sexta-feira, 26 de março de 2010

O conflito na economia contemporânea (i)

Escrito por Orlando Vitorino









a) As três posições


(...) três posições se defrontam: a de J. M. Keynes, a de Frederico Hayek e a de Milton Friedman. Convém, metodicamente, começarmos por enunciar tais posições, de que faremos a seguir uma quadro comparativo das «medidas» que preconizam para, finalmente, descrevermos as suas justificações teóricas.

Podem elas enunciar-se em termos históricos, desde logo se lembrando que a situação histórica contemporânea remonta, como vimos, aos finais do século passado, quando o intervencionismo socialista conseguiu subordinar a economia a finalidades de ordem política, assim a desprendendo - e é esta aspecto que mais convirá fixar - da realidade que lhe é própria e da ciência que dessa realidade fora já adquirida. Mas remontando tão longe, é a partir dos anos 30 que a sua imagem se virá a completar com o desaparecimento das últimas relíquias da situação anterior, o padrão-ouro e o livre-cambismo, com a grande depressão de 1929/31, com a vasta crise de desemprego que se arrastou ao longo dos anos 20, com a tragédia da Segunda Guerra Mundial, com o flagelo da inflação que ainda hoje continua a parecer imparável. Só por si, estes componentes da situação económica deveriam ser mais do que suficientes para condenar de vez o intervencionismo. Mas conseguiu ele salvar a face fazendo impor, através das «culturas oficiais» transmitidas pelos meios académicos, universitários e jornalísticos, falsas interpretações dos seus resultados dando-lhes por causa a liberdade económica (1).

Salvar a face não é, porém, suficiente para sobreviver. E a sobrevivência encontrou-a o intervencionismo numa nova e singular versão que lhe veio dar a famosa «Teoria Geral» de J. M. Keynes, publicada em 1936. Aos governos socialistas ainda instalados no poder, oferecia ela a miragem de simultaneamente obterem - e aí residia a sua singularidade - o crescimento económico e o pleno emprego. Sobre isso, apresentava-se isenta de quaisquer compromissos políticos, nova vantagem sobre as anteriores versões do intervencionismo, todas elas, em especial a socialista, reconhecidos instrumentos ideológicos e partidários. O keynesianismo aparece, pois, como a posição mais responsável pela situação económica contemporânea, aquela em que se colocam a maior parte dos governos e as «culturas oficiais» predominantes.

A segunda posição é a da própria ciência económica que também nos anos 30 saía do ostracismo a que o triunfo das doutrinas socialistas a votaram desde os finais do século passado. Mas no ostracismo encontrou ela a tranquilidade que os seus novos teorizadores aproveitaram para fazer a revisão, a actualização e a ampliação dos «clássicos», ao mesmo tempo que elaboravam uma sistemática demolição de todo o intervencionismo (2).









Esta demolição os isentou da conexões que, até Stuart Mill, foram fatais aos teorizadores clássicos, enquanto a revisão a que procederam os fez remontar, para além de Adam Smith, a David Hume, no qual passaram a situar o ponto de partida da ciência geralmente atribuído ao primeiro. O regresso a David Hume é significativo. Enquanto A. Smith subordinou a formação da ciência económica ao modelo das ciências modernas, fundadas no mecanicismo, na quantificação e na mensuração, D. Hume foi o pensador que demonstrou como as ciências estavam desprovidas do carácter de necessidade que só os fundamentos lógicos permitem adquirir. A famosa demonstração de Hume provocou a não menos famosa contestação de Kant, apresentada como «Crítica da Razão Pura» - que é uma crítica da razão e da lógica aristotélica -, depois desenvolvida no idealismo alemão e sistematizada na «Ciência da Lógica», de Hegel. O pensamento científico tentou, porém, e ainda tenta, manter-se alheado de toda esta questão, continuando a procurar os seus fundamentos na matemática, cujo valor de conhecimento Hegel, como Aristóteles, desdenhava. A demonstração de Hume, depois de resistir à crítica de Kant, mais facilmente tem continuado a resistir ao desenvolvimento das ciências, conforme o reconhece o mais autorizado, e também mais incómodo, pensador científico, A. N. Whitehead, no admirável livro «A Ciência e o Mundo Moderno». Compreende-se, pois, que o regresso até David Hume se traduza na recusa de as vias da renovada ciência económica serem as vias das ciências modernas. Assim se explica que os seus teorizadores, sobretudo Von Mises e F. Hayek, não se cansem de repetir que os fenómenos económicos são essencialmente qualitativos e na generalidade irredutíveis à quantificação e mensuração, analisando, refutando e até ridicularizando os resultados e os métodos da econometria e do contabilismo. Em sentido inverso ao das ciências modernas, têm antes realizado tentativas para situar a economia no domínio da filosofia. São, quase todas, tentativas frustradas. Karl Menger, por exemplo, deixou-se iludir e envolver pelo positivismo lógico, ou logicismo matemático, do Círculo de Viena. Von Mises chegou a conceber uma sistematização filosófica, aliás infeliz, que designou por praxeologia e se deduz da identificação entre a economia e a acção humana. Sistematização semelhante, mas ainda mais infeliz, elaborou Pareto. Tais tentativas têm, no entanto, um significativo invocativo que as pode tornar fecundas. É já o que acontece na poderosa segurança conceptual com que F. Hayek prolonga a teoria da economia numa filosofia do direito ou da política (3).

Ao aliar este prolongamento filosófico com o intransigente rigor científico que herdou de seu mestre Von Mises, Frederico Hayek aparece-nos como o indisputável representante da teoria económica contemporânea.

Duas posições temos, pois, perante a situação actual da economia: a do intervencionismo, na versão que lhe deu J. M. Keynes, e a da economia livre que F. Hayek prolonga numa filosofia do direito. A primeira ainda não deixou de dominar os ambientes políticos, académicos e contabilísticos; a segunda ainda não deixou de concitar a adversidade e afugentar os centros de decisão e de poder, sempre temerosos das intemporais e inabaláveis determinações do saber científico.


Uma terceira posição consideramos ainda: a do chamado monetarismo, representada pelo americano Milton Friedman (4), em volta de quem se formou, nos EUA, mas alargando-se hoje à Europa, sobretudo à Inglaterra e à França, o movimento dos «novos economistas americanos». Compõem-no já várias «escolas», não divergentes na doutrina liberal que a todas é comum, mas distinguindo-se entre si consoante o sector da realidade económica que investigam. De cada uma delas se pode encontrar, na obra de Von Mises, a sugestão, o enunciado ou a ideia que desenvolvem. O que a todas igualmente caracteriza é um rigoroso pragmatismo - que se deve distinguir da precária prática, investigando os fenómenos económicos na sua factual realidade, comparando as soluções que lhes deram as divergentes teorias e apurando qual destas melhor contribuiu para a satisfação das carências e desejos ou para o desenvolvimento da prosperidade. Sempre igualmente têm concluído pela superioridade da economia livre sobre a economia intervencionada (5).

Deve ter-se o cuidado de evitar confundir a posição de M. Friedman com uma posição intermédia e conciliadora entre as duas posições anteriores. Trata-se, antes, de uma hábil e muito eficaz inserção da ciência económica, tal como a representa Hayek, nas conjunturas que aí estão, estruturalmente marcadas por cinquenta anos de keynesianismo. Embora os êxitos práticos das suas doutrinas - um dos quais está ligado à surpreendente recuperação da economia japonesa a seguir à Guerra Mundial - sejam anunciadores da «morte de Keynes» (6), M. Friedman não deixa de afirmar que «somos todos keynesianos». Entende ele que a teoria de Keynes, com os erros que contém e as consequências que teve (os quais, aliás, ele atribui aos epígonos do famoso economista), não se podem apagar de uma vez tanto mais que continua a ser a teoria adoptada pelos governos da maior parte dos países e que as instituições por ela suscitadas ou desenvolvidas - as da segurança social, as da centralização sindicalista, as do controlo da moeda - ainda não deixaram de concitar as esperanças das populações incapazes de compreender como delas estão sendo vítimas.

Para mais facilmente apreciarmos as divergências, e também as convergências, das três posições enunciadas e compreendermos como, a partir delas, se formam as várias e contraditórias imagens da situação económica em que vivemos, vamos traçar um quadro comparativo das propostas, ou das «medidas», que, para a solução de algumas das principais componentes daquela situação, os três representativos teorizadores nos oferecem (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 41-47).


Notas:

(1) Um exemplo destas falsas interpretações é o da depressão de 1929/31. Foi preciso esperar pela publicação, em 1968, do livro de M. Friedman e Anna J. Schwartz, «A Monetary History of the United States, 1867-1960», para ver desfeita a versão, durante tantos anos aceite sem qualquer crítica, de que ela fora consequência da liberdade económica e só pudera ser vencida com o controlo da economia estabelecido pelo «new deal» de Roosevelt. Naquele livro notável, os seus autores demonstraram, em todas as minúcias, como a depressão se deveu à intervenção do Estado, ou suas agência, sem a qual ela nunca teria atingido as proporções que atingiu e não teria passado de uma das cíclicas e transitórias crises a que a economia está periodicamente sujeita. Já antes de Friedman, L. von Mises enunciara esta explicação e F. Hayek, então jovem economista, notabilizara-se por ter previsto, em 1927, a crise de 1929.






Outro exemplo é o da Segunda Guerra Mundial, que foi uma guerra do socialismo. Com efeito, ninguém pode ignorar ter ele começado por uma aliança entre o governo socialista alemão e o governo socialista russo, entre o nacional-socialismo e o Internacional-socialismo. Ninguém pode também ignorar que o final da guerra foi selado com o Tratado de Ialta, onde se registou o entendimento entre o socialismo totalitário russo e o intervencionismo estatizante iniciado por Roosevelt nos EUA. O terceiro parceiro do Tratado, a Inglaterra, vivia então num regime estabelecido, para o tempo de guerra e logo prolongado no socialismo do Partido Trabalhista, pelo Plano Beveridge que F. Hayek, aliás seu colaborador técnico, mostra, no livro «O Caminho para a Servidão», seguir as vias do nacional-socialismo acabado de ser vencido militarmente.

(2) Quase todos os principais representantes da renovada ciência económica escreveram livros de refutação do socialismo, tais como: «O Socialismo», de L. von Mises; «O Sistema Socialista», de V. Pareto; «O Caminho para a Servidão», de F. Hayek. São todos eles livros que os leitores dificilmente encontrarão no mercado livreiro. A história, em certo aspecto divertida e apesar de tudo famosa, da demonstração de von Mises quanto à inviabilidade de uma economia socialista, é bem elucidativa de como o socialismo procura fazer ignorar tudo o que o contraria. Publicada a demonstração numa revista austríaca em 1925, foi ela mantida ignorada até que, quinze anos depois, uma revista inglesa a transcreve. Fez-se então correr, nos meios académicos à la page, que a demonstração havia já sido totalmente refutada no livro de um economista búlgaro que jamais ninguém viu. O próprio Von Mises conta, divertido e galhofeiro, esta história no seu livro «Le Socialisme», ed. francesa de Lib. Medicis, Paris, 1937.

(3) Ver F. Hayek, «Law, Legislation and Liberty», ed. Routledge & Kegan Paul, London, 1973.

(4) A designação de monetarismo provém de um aspecto da doutrina de Friedman: a de que o combate à inflação, flagelo das sociedades contemporâneas criado pelo keynesianismo, se pode conduzir com eficácia mediante a política monetária.

(5) Alguns exemplos: onde se encontram, nos EUA, as melhores condições de habitação é no Estado de Michigan, onde a construção civil não está sujeita a qualquer regulamentação do Estado; os transportes aéreos de maior segurança, melhor comodidade, mais baixos preços e mais certos horários, encontram-se numa companhia de aviação do Estado da Califórnia que está ao abrigo das regulamentações federais estabelecidas, precisamente, para assegurarem aqueles objectivos. Trata-se, neste como em muitos outros exemplos, de casos sectoriais. Mas o «movimento» estuda também fenómenos de grande amplitude social, política e histórica, como acontece com a «escola dos direitos de propriedade» ou a do «public choice». E em todos os casos conclui pela confirmação da superioridade da economia livre. O leitor pode encontrar uma inteligente e bem informada exposição dos «novos economistas americanos» no livro de Henri Lepage «Demain le Capitalisme», ed. Lib. Generale Française Pluriel, Paris, 1978; há uma tradução portuguesa, ed. Europa América, Lisboa, 1981.

(6) É este o título do capítulo sobre Friedman no livro de H. Lepage citado na nota anterior.





Continua


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