terça-feira, 20 de julho de 2010

A Fé e a Razão (i)

Escrito por Karol Wojtyla (João Paulo II)








1. As etapas significativas do encontro entre a fé e a razão

Os Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se encontrou, desde o início, com as correntes filosóficas do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo teve com «alguns filósofos epicuristas e estóicos» (17, 18). A análise exegética do discurso no Areópago destacou repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de origem estóica. Certamente, isso não se deu por acaso; os primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não podiam citar apenas «Moisés e os profetas» nos seus discursos, tinham de servir-se também do conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rm 1, 19-21; 2,14-15; Act 14, 16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento tinha degenerado em idolatria (Rm 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início tinham contraposto, aos mitos e cultos mistéricos, conceitos mais respeitadores da transcendência divina.

De facto, um dos cuidados que levaram mais a peito os filósofos do pensamento clássico, foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenómenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade. Abriu-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O fim em vista era a verificação crítica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo o caminho ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo.

Já que se menciona este movimento de aproximação dos cristãos à filosofia, importa recordar a cautela com que eles olhavam para outros elementos do mundo cultural pagão, por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria prática e escola de vida, podia ser facilmente confundida com um conhecimento de tipo superior, esotérico, reservado a poucos iluminados. É, sem dúvida, a especulações esotéricas deste género que alude S. Paulo, quando adverte os Colossenses: «Procurai que ninguém vos engane com vãs e falsas filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo» (2,8). São bem actuais estas palavras do Apóstolo, se referidas às diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário sentido crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros escritores dos primeiros séculos, designadamente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma orientação cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelação à interpretação dos filósofos.



São Gregório Palamas



Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não foi fácil nem imediato. O exercício desta e a frequência das respectivas escolas foi vista pelos primeiros cristãos mais como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente missão era o anúncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o interlocutor à conversão do coração e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, tal não significa que ignorassem a obrigação de aprofundar a compreensão da fé e as suas motivações; pelo contrário. É injusta e improcedente a crítica de Celso, ao acusar os cristãos de serem gente «iletrada e rude» (1). A explicação deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Na realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta tão satisfatória à questão do sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os filósofos parecia-lhes coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada.

Hoje, isto é ainda mais claro, se pensarmos no contributo dado pelo cristianismo, ao defender o acesso à verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens perante Deus. A primeira consequência deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamente superado o carácter elitista que a busca da mesma tinha no pensamento dos antigos: se o acesso à verdade é um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condições de poder percorrer este caminho. As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus Cristo.

Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico, sempre marcado por um prudente discernimento, há que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter pela filosofia grega, depois da sua conversão, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado, no cristianismo, «a única filosofia segura e vantajosa» (2). De maneira semelhante, Clemente de Alexandria chamava ao Evangelho «a verdadeira filosofia» (3), e, por analogia com a lei mosaica, via a filosofia como uma instrução propedêutica à fé cristã (4) e uma preparação para o Evangelho (5). Uma vez que «a filosofia anseia por aquela sabedoria que consiste na rectidão da alma e da palavra e na pureza da vida, está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar. No nosso meio, designam-se por filósofos os que amam a sabedoria que é criadora e mestra de tudo, isto é, o conhecimento do Filho de Deus» (6). Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega não tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade cristã; a sua função é, sobretudo, a defesa da fé: «A doutrina do Salvador é perfeita em si mesma e não precisa de apoio, porque é a força e a sabedoria de Deus. A filosofia grega não torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas, porque torna impotente o ataque da sofística e desarma os assaltos traiçoeiros contra a verdade, foi justamente chamada sebe e muro de vedação da vinha» (7).






Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível verificar a assunção crítica do pensamento filosófico por parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros exemplos encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes. Contra os ataques lançados pelo filósofo Celso, recorre à filosofia platónica para argumentar e responder-lhe. Citando vários elementos do pensamento platónico, começa a elaborar uma primeira forma de teologia cristã. Naquele tempo, a própria designação de teologia e a sua concepção ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico. Mas, à luz da revelação cristã, o que anteriormente indicava uma doutrina genérica sobre a divindade, passou a assumir um significado totalmente novo, ou seja, a reflexão que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca de Deus. Este pensamento cristão, que era novo e que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia mas, ao mesmo tempo, tendia a distinguir-se nitidamente dela. A história revela que o próprios pensamento platónico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformações, especialmente em conceitos como a imortalidade da alma, a divinização do homem e a origem do mal.

Nesta obra de cristianização do pensamento platónico e neoplatónico, merecem particular menção os Padres Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da fé cristã, teve a força de realizar aquela conversão radical a que os filósofos, anteriormente contactados, não tinham conseguido induzi-lo. Ele próprio confessa o motivo: «Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, ainda que esta não estivesse ao alcance de qualquer pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais sensato do que zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para depois nos mandarem acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que as não podiam provar» (8). Quanto aos platónicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referência de Agostinho, este censurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, ignorado o caminho que para lá conduzia: o Verbo encarnado (9). O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A síntese feita por Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e ajudado por uma admirável santidade de vida, foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando à experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de algumas correntes filosóficas.

Atenas



Jerusalém


De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em relação com as escolas filosóficas. Isto não significa que tenham identificado o conteúdo da sua mensagem com os sistemas a que faziam referência. A pergunta de Tertuliano: «Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja?» (10), é um sintoma claro da consciência crítica com que os pensadores cristãos encararam, desde as origens, o problema da relação entre a fé e a filosofia, vendo-o globalmente, nos seus aspectos positivos e nas suas limitações. Não eram pensadores ingénuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o conteúdo da fé, conseguiam chegar às formas mais profundas da reflexão. Por isso, é injusto e redutor limitar o seu trabalho a mera transposição das verdades da fé para categorias filosóficas. Fizeram muito mais; conseguiram explicitar plenamente o que era ainda implícito e preliminar no pensamento dos grandes filósofos antigos (11). Estes, conforme já disse, tiveram a função de mostrar o modo como a razão, livre dos vínculos exteriores, podia escapar do beco sem saída dos mitos, para melhor se abrir à transcendência. Uma razão purificada e recta era capaz de se elevar aos níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à percepção do ser, do transcendente e do absoluto.

Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas questão de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma, e foi um encontro entre a criatura e o Criador. Ultrapassando o fim mesmo, para o qual inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo de reconhecer os elementos comuns e as diferenças que elas apresentavam relativamente à Revelação. A percepção das convergências não ofuscava neles o reconhecimento das diferenças.

Na teologia escolástica, o papel da razão educada filosoficamente torna-se ainda mais notável sob o impulso da interpretação anselmiana do intellectus fidei. Segundo o santo Arcebispo de Cantuária, a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão. De facto, esta não é chamada a exprimir um juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é idónea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé. Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não fizera tudo o que estaria no seu desejo: «Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum» (12). Assim, o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além; esta fica como que embevecida ao verificar que a sua capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo do seu caminho: «Penso efectivamente que, quem investiga uma coisa incompreensível, se deve contentar com chegar, pela razão, a reconhecer com a máxima certeza a sua existência real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o seu modo de ser (...). Aliás, que há de tão incompreensível e inefável como aquilo que está acima de tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora ficou estabelecido sobre razões necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira racional que é incompreensível (rationabiliter comprehendit incomprehesibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (...), quem explicará como ela própria se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber?» (13).



João Paulo II



Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta» (in Carta Encíclica Fides et Ratio, do Sumo Pontífice João Paulo II, Edições Paulinas, 1998, pp. 51-60).


Notas:

(1) ORÍGENES, Contra Celso 3, 55: SC 136, 130.

(2) Diálogo com Trifão, 8, 1: PG 6, 492.

(3) Stromata I, 18, 90, 1: SC 30, 115.

(4) cf. ibid. I, 16, 80, 5: SC 30, 108.

(5) cf. ibid. I, 5, 28, 1: SC 30, 65.

(6) ibid., VI, 7, 55, 1-2: PG 9, 277.

(7) ibid., I, 20, 100, 1: SC 30, 124.

(8) SANTO AGOSTINHO, Confessiones VI, 5, 7: CCL 77-78.

(9) cf. ibid. VII, 9, 13-14: CCL 27, 101-102.

(10) «Quid Ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae?» [De praescriptione hereticorum, VII, 9: SC 46, 98].

(11) cf. CONGR. DA EDUCAÇÃO CATÓLICA, Instr. sobre o estudo dos Padres da Igreja na formação sacerdotal (10 de Novembro de 1989), 25: AAS 82 (1990), 617-618.

(12) SANTO ANSELMO, Proslogion, 1: PL 158, 226.

(13) idem, Monologion, 64: PL 158, 210.



Jesus Cristo no Monte das Oliveiras



Continua


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