quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A existência de filosofias nacionais e a de uma filosofia portuguesa

Escrito por José Régio








Começando ex-abrupto: Haverá, ou não, filosofias nacionais? E haverá, ou não, uma filosofia portuguesa? Eis, meu amigo, questões muito insistentemente solevadas pelos livros de Álvaro Ribeiro, cuja última obra, A Razão Animada, você pretende, mas não consegue, discutir.

Claro está que muitas outras questões se levantam nesses livros, ricos de pensamentos; e, antes de mais, porque exprimem eles próprios uma filosofia, – discutível como todas. Discutir, porém, uma filosofia que se tem vindo abrindo aos poucos, sob forma bem mais aforística, até hermética ou oracular, do que discursiva, e expressando-se numa original linguagem em que, por vezes, até o rigor paradoxalmente desconcerta o leitor mais ou menos vulgar – não é coisa fácil. Por isso a maioria dos leitores, mesmo os considerados críticos, preferem discutir o autor, as suas intenções particulares e atitudes meramente humanas. Não serei eu quem me abalance, e menos num breve artigo, a discutir a filosofia de Álvaro Ribeiro. Para isso me falta a competência dos especialistas. Só, sobre um ponto ou outro dos versados pelo autor, quando muito poderei dar a minha opinião de leigo. Os nossos especialistas, porém, – os que naturalmente possuem o dom, e culturalmente conquistaram o direito, de criticar obras de pensamento – não poderão esses ir mais longe?

Haverá, ou não, filosofias nacionais? E haverá, ou não, uma filosofia portuguesa? Eis sobre que venho dar-lhe a minha opinião de leigo, pois a mim se me afigura não serem inconciliáveis as duas posições postas em forma contraditória. Sim e não, – aventarei. Creio que a filosofia é universal; ou, mais modestamente, internacional. E creio que há filosofias não só nacionais como, até, temporais e individuais. Universal e intemporal é a filosofia, porque todo o pensamento válido ou autêntico – isto é: gerado num cérebro humano e capaz de ser assimilado por outros cérebros humanos – pode e deve ultrapassar as fronteiras das individualidades, das pátrias ou dos tempos. Assim nós, portugueses do século vinte, somos capazes de nos interessarmos pela filosofia de Platão, ou de Sto. Agostinho, ou de Descartes. Não me parece obstar isto a que se possa falar na filosofia de um autor, ou de uma nação, ou de uma época ou idade. Aqui mesmo, sem intenção, acabo eu de o exemplificar quanto aos autores, referindo-me à filosofia de Descartes, de Sto. Agostinho, ou de Platão. E a cada passo encontramos referência, por exemplo, à filosofia grega, francesa, ou alemã, – à filosofia medieval ou ao pensamento contemporâneo. Torna-se evidente que estas expressões algum sentido têm. Independentemente da sua perene validez em qualquer lugar da Terra, toda a filosofia criada por um indivíduo se há-de ressentir da personalidade sua criadora; e tanto mais quanto mais original for, devendo, ainda, notar-se que, quanto mais original, – mais interessante, mais autêntica, mais válida; por outras palavras: mais internacional e intemporal. O que se dá quanto à personalidade criadora se dá, ou pode dar-se, quanto à necessidade ou temporalidade. Pois até na medida em que se ressente a criação filosófica da personalidade do filósofo-criador, e se ressente esta personalidade do lugar e tempo em que nasceu, cresceu, criou, reflecte a citada criação das várias características de uma nação ou época. Pode o centro, o fundo de qualquer pensamento filosófico ser, como é, intemporal e inespacial, e, simultaneamente, reconhecermos nos autores certas posições, tonalidades, modalidades, preferências, inclinações que os distiguem como indivíduos, como cidadãos de uma pátria, como seres de uma idade; e que naturalissimamente se espelham nas suas obras. Mas por que seria – a ser doutro modo – por que seria a filosofia diferente da arte ou, até, da religião? Acaso não sentimos que, por exemplo, Tolstói e Dostoievski são universais, são intemporais, – sem, por isso, deixarem de ser russos e pertencerem ao século dezanove? Não será, no fim de contas, a arte tão universal e intemporal como a filosofia? Sobretudo em nos reportando ao pensamento de Álvaro Ribeiro, não estará a filosofia tão presa à língua e à palavra como a literatura propriamente dita? Não pertence, afinal, à própria arte literária?

Talvez o fenómeno religioso seja ainda mais delicado ou esquivo, mais difícil de abordar. E, todavia, até com a criação religiosa, produto do génio místico, se dão coisas idênticas. Porventura o cristianismo, que liga todos os seres através dos tempos e dos espaços, no natural e no sobrenatural, não nasceu da personalidade de Jesus Cristo, não se enriqueceu da colaboração doutras personalidades, não surgiu numa certa época, não reflecte cambiantes das épocas que vai atravessando? O paganismo que caracterizou certos povos, floresceu em certos tempos, – não pode renascer hoje e, sem negar a sua essência, apresentar aspectos que pertencem aos indivíduos, aos países, aos tempos? Muito natural julgo, pois, que se fale em filosofia portuguesa, como tenho por naturalíssimo falar-se na internacionalidade da filosofia.




Suponho, porém, ainda não ser isto – nacionalizar a filosofia, ou uma filosofia – o que mais irrita e assombra, o que provoca mais indignados protestos aos adversários de Álvaro Ribeiro: mas sim afirmar a existência de uma filosofia portuguesa. Perfeitamente admito que possa tal afirmação ser contraditada por indivíduos de senso e boa-fé. O caso é que dificilmente poderá caber o que chama Álvaro Ribeiro «a filosofia portuguesa» no conceito que têm esses de filosofia. Além, porém, dos que só têm por filosofia a monumentalidade, racionalidade e discursividade dos grandes sistemas filosóficos (que, nós, por enquanto, não produzimos) há os que se comprazem em negar a seus compatriotas quase toda a capacidade para quaisquer superiores formas de criação literária. Em Portugal não há senão excepcionalmente romance – os pobres dos portugueses são inaptos para a criação romanesca! Em Portugal não há teatro, – os infelizes lusitanos não se adaptam à criação teatral! Em Portugal não há filosofia, – os míseros lusíadas mostram-se incapazes de pensar sobre quaisquer intuições! Destas e outras negações, seria, precisamente, a que diz respeito à filosofia que os nossos auto-negativistas julgariam mais inabalável, Como, então, não darão pinchos com a insistente afirmação de Álvaro Ribeiro.

Todavia, poder-se-á conceber, sequer, que não tenha filosofia alguma um povo que já vive há alguns séculos, e está ao nível civilizacional dos outros povos cultos? Tão impossível como conceber que não tenha teatro, romance, ou música. Parece que esta coisa simplíssima dificilmente penetra em certas cabeças, que aliás podem nem ser das mais duras. Afinal, tudo depende do conceito que de filosofia se tenha; e também do que se exija à virtualidade filosófica impossível de recusar seja a que povo for. Há já uns anos, protestando contra os que negavam aos portugueses quaisquer possibilidades de criação de um romance de interesse universal, sugeria o autor destas linhas que se estudasse o nosso romance não só nas mais acabadas realizações do género, como nas várias, diversas obras em que pudessem revelar-se as nossas virtualidades ficcionistas próprias. Arrojo-me a pensar que, no caso da filosofia, segue Álvaro Ribeiro um caminho que não deixa de ter ligação com esse. Porque... vejamos: Não será uma das mais insólitas audácias de Álvaro Ribeiro (e das mais irritantes para os que, por um lado, se enfurecem com qualquer sua originalidade de pensamento ou criação), não será uma das mais insólitas audácias de Álvaro Ribeiro ter, de filosofia, um conceito próprio, dar, de filosofia, uma definição que, precisamente, lhe permite afirmar a existência de uma filosofia portuguesa?

Em suma: não valerá mais ler, estudar, tentar compreender os livros de Álvaro Ribeiro (além de tudo o mais, notabilíssimos de linguagem), discutí-los e criticá-los a partir desse estudo, que atirar ao ar foguetes de lágrimas, procurar facílima razão junto do vulgo, e morder no homem em vez de analisar o autor? (in Nova Renascença, 1993, Vol. XIII, pp. 151-153).



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