terça-feira, 3 de agosto de 2010

Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica (iii)

Escrito por Álvaro Ribeiro




Teófilo Braga


Com efeito, em 1910 foram eliminadas da vida pública instituições tais como a realeza, a nobreza e as ordens religiosas, em voluntária obediência à lei dos três estados. O positivismo jurídico, doutrina segundo a qual o direito humano não está subordinado à justiça divina, é oficialmente proclamado pela lei de separação da Igreja e do Estado. Privados do espírito adunativo, unitivo ou filosófico, não souberam, não puderam ou não quiseram os novos políticos agrupar as instituições segundo aquele tipo de coexistência, coerência e consistência jurídica que se denomina constituição, e abriram campo às lutas divergentes e dissolventes.

Compulsando os livros e os jornais então publicados pelos próprios republicanos teremos a possibilidade de averiguar que todos os políticos se encontravam em situação de crítica e de polémica às leis vigentes e às consequências que dessas leis resultavam. Esta não é a República que nós sonhámos!... O positivismo eliminara a filosofia, isto é, a relação da metafísica com a teologia, ou, pior: subordinara a filosofia à política, realizara a subversão intelectual.

A crise na problemática das relações entre o Estado e a Igreja, que corresponde, aliás, à problemática das relações entre a filosofia e a teologia, deu novo alento aos pensadores que haviam propugnado pelo regresso à Escolástica. Verdade é que a encíclica de Leão XIII, se foi lida, observada e cumprida nos seminários diocesanos e na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, não alcançou êxito filosófico nos ambientes culturais do País. Multiplicaram-se, sem eficiência, as traduções dos livros de Jaime Balmes. As publicações periódicas e não-periódicas de que nos deu notícia Fortunato de Almeida na sua História da Igreja em Portugal não alteraram o andamento normal dos estudos superiores. Só depois de proclamada a República Positivista começaram a ser divulgadas entre nós as publicações do Instituto Filosófico de Lovaina e do Instituto Católico de Paris. A propaganda neotomista de Jacques Maritain, muito conhecida pelos leitores da Action Française, chegou a merecer atenção popular entre os estudantes universitários portugueses, o que hoje parece estar explicado e justificado pelas afinidades de interpretação com a melhor tradição nacional. O segredo de tal êxito não está só na intenção anticartesiana ou antimoderna da polémica medievalista, mas também no facto de Jacques Maritain haver estudado profundamente a obra latina de Fr. João de S. Tomás, conforme nos informa o Dr. António Manuel Gonçalves. Lembremos os nomes de Alfredo Pimenta, João Ameal e Correia de Barros entre os melhores divulgadores da filosofia neotomista, antes de fazer devida referência à obra apologética de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, intitulada A Igreja e o Pensamento Contemporâneo.

Mercê de circunstâncias favoráveis, entre as quais avulta a nova solução jurídica das relações entre o Estado e a Igreja, conhecida pela Concordata de 1940, nota-se hoje melhor revivescência da filosofia escolástica, sem compromissos já com a interpretação positivista. Justo é mencionar o esforço capital da cidade de Braga, onde a Província Portuguesa da Companhia de Jesus fundou o Instituto Miguel de Carvalho, depois transformado em Faculdade Pontifícia de Filosofia. Nas suas publicações de carácter histórico, aquele instituto procede a uma revisão e a uma revalorização dos escolásticos portugueses, o que virá a contribuir para anular o espírito de subserviência perante os escritores estrangeiros, quer dizer, o espírito da geração negativista de 1870. Conseguiram desse modo os padres jesuítas pôr termo à desconfiança que os católicos portugueses, eivados de positivismo, opunham à filosofia, apodando-a de filosofismo. De desejar seria também que aquela instituição cultural propugnasse pelo cultivo filosófico da psicanálise, da psicologia e da parapsicologia, a fim de combater o triste preconceito de que as ciências psíquicas são necessariamente empirismo, o que está refutado pela doutrina e pela acção de alguns ilustres membros da Companhia de Jesus.

Salazar e o Núncio Apostólico Ciriacci aquando da ratificação da Concordata e do Acordo Missionário (1940).







A parapsicologia faculta os melhores argumentos de uma apologética baseada na verdade central do Cristianismo que é a doutrina da imortalidade da alma, ou, melhor, da imortalidade do homem. As bem-aventuranças do Sermão da Montanha aludem a outro mundo, o da graça que completa a natureza, o da liberdade que completa a lei, mundo novo que só pode ter verdadeiro sentido pela remissão dos efeitos do pecado, e até do próprio pecado (20). Se a apologética não estiver centrada nesta crença e nos respectivos artigos de fé, a teologia contemporânea será incapaz de compreender, assimilando e vencendo, as doutrinas de Marx e de Freud no que elas substituem, pelas teses de alienação e superestrutura, como pelas teses de transferência e sublimação, as verdades cristãs da liberdade e da graça.

Vai sendo afirmado, dentro das instituições que renovam o cultivo da filosofia escolástica, algum espírito de independência na interpretação do tomismo, que tende a deixar de ser positivista para ser existencialista, interpretação distante da verdade aristotélica, mais fiel às tradições culturais do povo português. Do ponto de vista filosófico mais nos interessa o regresso a Aristóteles do que à consequente interpretação da obra de S. Tomás de Aquino. Em 1960 já é possível reler a encíclica de 1950 sem receio de que ela afecte a pluralidade e a liberdade dos modos nacionais de filosofar.

A tendência para fazer do tomismo, e de uma só escola tomista, ou de uma só interpretação do tomismo, a filosofia católica, tem ido sempre esbarrar com os ditames da experiência e do bom senso. Étienne Gilson, em um dos seus mais divulgados livros, não deixa de remeter irónicas censuras àqueles escritores católicos, para os quais:

«...Idade Média quer dizer escolástica, e escolástica significa verdade, eterna filosofia, delimitação rigorosa de um domínio dentro do qual tudo é verdade, fora do qual tudo é erro. Nestas condições, os grandes sistemas escolásticos serão expostos de modo tal que pareçam conter a solução antecipada de todos os problemas filosóficos e a refutação de todos os erros. Assim nos surgem essas exposições da doutrina tomista onde vemos um S. Tomás refutar antes de tempo os erros de Locke, Kant, Spencer e Bergson» (21).






Verificando, porém, que na ordem apostólica é indispensável conciliar a verdade una com a expressão múltipla para que a doutrina flexível se adapte às circunstâncias e às oportunidades, visto que também na ordem do Mundo não deixam de ser o espaço e o tempo, factores de afastamento, diferenciação e diversidade, foi pelo Magistério Eclesiástico sendo consentida melhor interpretação da filosofia escolástica. Exigir a obediência de uma fidelidade literal aos escritos de S. Tomás seria exigência contraditória, porque o próprio Doutor Angélico nunca foi homem de um só livro (unius libri), antes procurava com erudição em vários autores, comentadores, compiladores e escritores a solução preferida de cada problema determinado, não deixando de invocar também a divina assistência do Espírito Santo. Admitiu o Magistério Eclesiástico que normalmente se eliminasse o que na obra de S. Tomás existe de doutrina contrária à que tenha sido definida pela Igreja na posteridade dos séculos, mas além disso aconselhou a incorporação na filosofia escolástica de todos os resultados de que a cultura vem beneficiando desde o século XIII ao nosso tempo.

Consequentemente, aquelas ordens religiosas que, durante séculos, seguiram tendências teológicas e filosóficas que divergiam do método, da doutrina e dos princípios de S. Tomás se viram obrigadas a solicitar do Magistério Eclesiástico uma margem de liberdade indispensável à sua específica missão apologética e apostólica.

É notável, neste caso, o exemplo da Ordem dos Frades Menores não só porque durante muitos séculos preferiu o ensinamento de S. Boaventura ao de S. Tomás de Aquino, mas também porque foi dentro dela que surgiu a obra de Duns Escoto, o qual remodelou profundamente a filosofia escolástica. As constituições gerais da Ordem dos Frades Menores prescreviam, com maior ou menor força, a obrigação de seguir no ensino filosófico e teológico a doutrina do Doutor Subtil. Estes documentos eram submetidos à aprovação do Papa, sendo de notar o breve Ad Eximius de 31 de Outubro de 1634, pelo qual Urbano VIII aprovou até ordenações mais rigorosas do Capítulo de Toledo (22).

Formaram-se também dentro da escolástica albertino-tomista escolas que se designam ou tendem a designar-se pelos respectivos centros universitários; entre nós tornaram-se célebres os conimbricenses, os eborenses e os bracarenses. Na escolástica do século vinte também se distinguem os centros de Lovaina, de Milão e de Genebra, ao lado de outros menos importantes como o Instituto Católico de Paris. A aceitação do tomismo há-de ser imediatamente seguida de pensamento que o interprete, mas de muitas interpretações surgem necessariamente as divergências e as deturpações. Convém, a propósito, dizer algumas palavras sobre a notável discussão havida em torno das 24 teses tomistas, aprovadas pela Sagrada Congregação dos Estudos em 27 de Julho de 1914.

Reconduzir o tomismo a vinte e quatro teses, quer figurem ou não ao longo da extensa obra do Anjo da Escola, pareceu a vários autores como obra arbitrária, de critério difícil de aceitar, e portanto de consequências temerárias. Como entre as teses escolhidas algumas havia que contradiziam ou contrariavam o ensino tradicional das outras ordens escolásticas, logo surgiram reparos dos teólogos e filósofos que seguiam os ensinamentos de Duns Escoto ou de Francisco Suárez. Consultada aquela congregação sobre o alcance doutrinário e disciplinar das referidas teses, foi em 1916 esclarecido que representavam apenas normas directivas para o ensino eclesiástico. Assim se entendeu que não havia razão para excluir do ensino eclesiástico as teses contrárias de Escoto ou de Suárez, que costumavam ser ensinadas respectivamente pela Ordem dos Frades Menores e pela Companhia de Jesus. O Papa Bento XV, em carta datada de 19 de Março de 1917 e dirigida ao padre Ledochowski, Geral da Companhia de Jesus, significou uma quebra do rigorismo tomista (23).

Cúpula da Basílica de S. Pedro (Vaticano).


Também a encíclica Studiorum ducem, do Papa Pio XI, inclui textos que permitem uma interpretação mais liberal da filosofia escolástica. O ponto mais litigioso das 24 teses tomistas estava na distinção entre essência e existência, considerado por alguns teólogos o fundamento da filosofia cristã. As discussões escolásticas sobre tal distinção, que segundo os intérpretes pode ser lógica, modal ou ôntica, influíram certamente na efervescência de doutrinas que mais tarde seriam agrupadas no capítulo da filosofia existentiva, existencial ou existencialista (24).

Na encíclica Humani Generis foram especialmente mencionados o idealismo, o imanentismo, o pragmatismo, o evolucionismo e o existencialismo. Sabido é, porém, que a Igreja Católica não condena palavras, mas apenas teses ou proposições que se verifique serem contrárias à fé ou à moral. A prova está na liberdade concedida ao existencialismo cristão que os fiéis continuam a discutir. A condenação incide, pois, em determinadas teses que se encontram implícitas nos sistemas filosóficos designados pelas palavras mencionadas. Afinal de contas verifica-se serem teses condenadas pelos concílios ou por decisões eclesiásticas, aquelas que abrem o caminho que vai das heterodoxias para as heresias. A cosmologia escolástica parece ameaçada por aquele tipo de hipótese que nega a realidade das espécies substanciais e que consequentemente reduz ou anula as virtudes dos sacramentos, mediante os quais se exerce a acção transítica do mundo visível para o mundo invisível, quer dizer, a mais alta missão do sacerdócio e, consequentemente, a missão da Igreja. Efectivamente só a física aristotélica, perseguida ou repelida pela tecnologia moderna, permite atribuir à distinção entre a natureza e a graça aquele valor indispensável para a acção religiosa. Assim, a filosofia será uma arte, nunca uma ciência, e muito menos um sistema. A gnoseologia activista de um Maurice Blondel torna-se atraente a quantos duvidam daquele preceito parmenidiano segundo o qual a verdade surge na adequação do pensar ao ser. O ser, conforme ensina Aristóteles, é susceptível de acepções, categorias e modos que possibilitam a mobilidade do pensamento, e que portanto repugnam à sua quietação. Os sistemas condenados pela Humani Generis permitiam dúvidas sobre a aptidão da inteligência para atingir a verdade una, certa e imutável, enquanto a filosofia escolástica, se apresenta como um método seguro de exposição das verdades atingidas, ou um sistema coerente de todas as teses compostas para harmonizar a razão com a fé.

Tão insistente referência a um pensador do século XIII, considerado assim no cume, na cúpula ou no cabo da Escolástica, é facto que, ao ser historicamente explicado, tem dado motivo a diversas interpretações. A proeminência atribuída à obra e à doutrina de S. Tomás, considerado doutor comum da Igreja, tinha em vista garantir a perenidade de certos princípios da metafísica - os princípios de razão suficiente, de causalidade, de finalidade -, senão a unidade doutrinal da própria filosofia. Esta é a explicação mais frequentemente dada de se recomendar o regresso à escolástica na formação cultural dos futuros sacerdotes.




Dir-se-ia que a escolástica medieval, elaborada em latim, língua do culto e da cultura, subordinada à razão, ainda precavê como nenhuma outra os fiéis de incorrerem no perigo dos erros filosóficos e teológicos que ameaçam o cristianismo. É, aliás, perfeitamente compreensível e admissível que o Magistério Eclesiástico não quebre o zelo de avisar os fiéis quanto aos erros dos sistemas filosóficos, e assim tem procedido ao longo dos séculos, como se pode ler nos respectivos compêndios de história. A sucessão de tantos e tão variados sistemas de heterodoxia não impressionará, porém, o estudioso que souber qual é a causa da ilusão, ou do prestígio, dos caleidoscópios. Cada novo sistema filosófico, garantido pelo talento literário do seu autor, apresenta-se como agrupamento ou composição de novos argumentos em torno de um reduzido número de teses antiquadas. Compete à crítica examinar a validade desses argumentos e discernir as teses que ressurgem com uma tenacidade explicável pela condição humana. Enquanto houver quatro tipos humanos, ou temperamentos, classificáveis pela caracterologia, haverá também um reduzido mas irredutível número de atitudes ou reacções para com a verdade. A classificação e a esquematização facilitam o discernimento. Assim, no que do ponto de vista escolástico mais importa conhecer, convém atender a que os sistemas variam pela actualização dos argumentos às circunstâncias e às oportunidades, mas classificam-se essencialmente em torno dos problemas singulares das relações da razão com a fé, da filosofia com a teologia e do Estado com a Igreja.

Seria piedosa mentira, mas por isso mesmo seria faltar à verdade, dizer-se que nunca houve heresias e heterodoxias no território que teve outrora o nome de Portugal. Omitir o nome de hereges célebres e de célebres heresiarcas, para manter a ilusão de que o povo português foi sempre e totalmente fidelíssimo à Igreja Católica, seria proceder ao contrário do que a história exige quando se propõe explicar as razões implícitas nos eventos. Merece, por isso, perpétua gratidão dos estudiosos admirados esse célebre monumento de erudição que é a Historia de los Heterodoxos Españoles, escrito por Marcelino Menendez y Pelayo. A religiosidade dos povos ibéricos é minuciosamente analisada nesse livro que inclui documentação útil sobre a heterodoxia. Trabalho análogo, mas de resultados dispersos por publicações efémeras, realizou-o Sampaio Bruno quando pretendeu demonstrar que a convergência das tradições hebraica, cristã e islâmica se configura no culto do Espírito Santo.

Tem sido muito acentuada pelos historiadores religiosos a predilecção dos Portugueses pelo culto mariano, ainda que dos factos verificados não hajam extraído conclusões que esclareçam o correspondente problema doutrinal. Explicou Sampaio Bruno que em Terra de Santa Maria a propagação do protestantismo não teria condições naturais, pelo que são inválidos os argumentos colhidos na acção regressiva das doutrinas da Contra-Reforma. A heterodoxia portuguesa não cinge o mistério da encarnação. Só em pleno século XIV, ou já perto de 1870, começa a generalizar-se entre nós a iconografia francesa, segundo a qual a Virgem Maria aparece representada sem a companhia de Jesus. A heterodoxia portuguesa, se alguma sistematização exige, contorna o mistério da redenção, e o respectivo misticismo, até realizar a comunicação pensante entre a teologia e a filosofia, transgredindo assim os preceitos normativos dos tomistas de estrita obediência.



Sampaio Bruno



Anotou Sampaio Bruno que uma das características da cultura portuguesa é ser aristotélica, mas o aristotelismo não contém uma teodiceia, nem resolve satisfatoriamente o problema do mal. Será, portanto, lícito admitir que no povo português demorou sempre a esperança pelo advento do Messias e a confiança nos respectivos profetas. Durante longa meditação sobre documentos selados e cifrados, desde os cancioneiros medievais até aos contemporâneos folhetos de cordel, o historiador português foi perseguindo os vestígios de uma doutrina religiosa que, por demasiado transcendente, seria contrária à cristologia ortodoxa da Igreja Católica. A vinda de «um novo Cristo», do Paracleto anunciado no Evangelho de S. João, é para o autor de A Ideia de Deus, artigo de fé a interpretar à luz da ciência contemporânea. Na intenção de abonar a tese acreditada, socorre-se Sampaio Bruno de imensa documentação histórica, desde o Evangelho Eterno, pregado pelo franciscano Joaquim de Floris, até ao messianismo de Wronski, Ballanche e Joséphin Péladan. Entende-se, portanto, a solidariedade do messianismo com a teoria da existência de Deus. Se a existência é o ser no tempo e no espaço, pelo que se distingue da essência metafísica, o problema de Deus apela pelo problema de Cristo, ou seja, pelo problema da filosofia cristã. É de notar que, em livro que teve o seu período de celebridade, o Padre Del Prado, tomista convicto, afirmou que a distinção real entre a essência e a existência é a verdade fundamental da filosofia cristã. A filosofia portuguesa, de estrutura aristotélica, admite a transcensão, pelo que se opõe tanto ao existencialismo condenado pela encíclica Humani Generis, como a qualquer sistema de dedução cronológica, francês, inglês ou alemão.

Durante o pontificado de Pio XI, ou seja, entre a primeira e a segunda Guerra Mundial, esteve a teologia católica sujeita a críticas dos escritores de cultura latina e de línguas românicas, críticas que retomavam e aprofundavam a temática alemã do século XIX. Nas mãos dos estudantes universitários corria, como bom compêndio de história das religiões, o célebre Orpheus, de Salomão Reinach. Cessaram as heresias e as heterodoxias, que significavam interpretações divergentes do mesmo depósito doutrinal, para surgirem declaradas correntes anticatólicas e até anticristãs, que não interessa por agora designar. A escolástica da primeira metade do século não estava habilitada a responder com novos argumentos às novas objecções, confiada no erro de que a imutabilidade da doutrina verdadeira poderia ser sempre defendida com os mesmos argumentos de uma inalterada apologética. A actualização da apologética havia de depender de novo recurso à filosofia. Entre os episódios mais significativos da perturbação espiritual dos nossos tempos parece-nos notabilíssimo aquele que ficou celebrado pela querela da filosofia cristã. O historiador Emílio Bréhier resolveu o problema escolástico das relações da razão com a fé ao recolocar o problema, tantas vezes debatido, das relações entre o helenismo e o cristianismo. Em três conferências proferidas em Bruxelas no ano de 1928, propôs aos ouvintes a seguinte questão: Haverá uma filosofia cristã? Deste modo enunciada, a pergunta sugere resposta negativa, a qual é a de que não há filosofias adjectivadas, excepto se for dito que a filosofia é universal. O problema haveria de ter repercussões na teologia de S. Paulo. o debate foi, pouco tempo depois, transferido para Paris. A conferência, publicada no número de Abril-Junho de 1931 da Revue de Métaphysique et de Morale provocou não só uma discussão oral na Société Française de Philosophie, mas também uma série incessante de livros, opúsculos e artigos (25).

Não estava em causa a eficácia do sacramento do baptismo, cuja discussão não pode ser estabelecida entre crentes e descrentes. Estava, porém, em litígio a eficiência da doutrina religiosa e da respectiva prática nos primeiros anos da vida do cristão, no seu modo de pensar e de actuar, e na sobrevivência, consciente ou inconsciente, do mesmo espírito em quem declara ter perdido a fé. Desde que não se admitam compartimentos estanques na memória humana, e muito menos a separação habitual entre teologia e filosofia, estabelece-se a certeza de que o homem baptizado e catequizado há-de para sempre pensar na qualidade de cristão.



Henrique Bergson



Consistia, porém, problema para os filósofos parisienses em perguntar se além da «métaphysique naturelle d'intelligence humaine», desdenhada pelo autor de L'Évolution Créatrice, haveria realmente «une méthaphysique surnaturelle», infundida no espírito humano pela revelação cristã. Tanto equivale a perguntar se a filosofia é uma ciência ou uma arte, tanto equivale a perguntar se o cristianismo fora efectivamente um factor de evolução da humanidade, alterando-a e aperfeiçoando-a pelo surto das três virtudes teologais, e, consequentemente, das respectivas faculdades gnósicas. O infinito no espírito ou na alma, abriria maiores horizontes à transcendência religiosa, e superaria qualquer esquema estático ou dinâmico, de estrutura do ser humano. A discussão parecia interessar principalmente aqueles pensadores que já estavam mais inclinados para as tendências agostinianas do que para as tendências tomistas, numa época em que ainda vigorava a oposição entre platónicos e aristotélicos, contraditória das tendências modernas que pretendiam libertar as inteligências da subordinação milenária aos esquemas de qualquer filosofia greco-romana. A patrística e a escolástica, apoiadas nas filosofias de Platão, Aristóteles e Plotino, reduziam a esquemas uma doutrina que as excedia pelo factor sobrenatural da revelação.

Se é útil notar que o problema da filosofia cristã não produziu apreciável bibliografia em Portugal, mais curioso será interpretar essa atitude, sem recorrer à explicação simplista da deficiência de cultura filosófica e teológica do clero. Não nos é possível julgar, sem prévio estudo histórico do ensino ministrado nos seminários diocesanos e sem interpretação doutrinal das instruções prelatícias acerca do ensino eclesiástico. Há que fazer apelo a razões de ordem superior. A cristologia implícita no pensamento português, parece estar mais de acordo com o ensinamento franscicano do que com o ensinamento dominicano na resposta dada ao problema Cur Deus Homo, segundo a expressão de Santo Anselmo. A liberdade docente das duas escolas cristológicas, admitida até agora pelo Magistério Eclesiástico, suscita utilíssimo estímulo para o desenvolvimento da teologia, com as quais seria lícito relacionar a questão do molinismo, motivada pela obra de um professor da Universidade de Évora.

Muitas vezes tem sido repetido que a humanidade se encontra cansada de esperar pelas promessas de Cristo. Os homens desejariam que a redenção estivesse já cumprida, isto é, que se verificasse no mundo o desaparecimento do mal. Não entendem, por isso, que a redenção da humanidade tivesse sido confiada por Cristo aos Apóstolos e à sua Igreja, nem acreditam na eficácia dos sacramentos e da oração. Inclinam-se, portanto, para uma de duas doutrinas necessitaristas, isto é, negadoras da contingência e da liberdade. Uns adoptam o necessitarismo progressista, segundo o qual a humanidade assistirá, no futuro, apesar de todas as vicissitudes, à vitória inevitável do Bem. Outros adoptam o necessitarismo niilista, segundo o qual a humanidade, por mais que trabalhe e lute, será vencida pelas forças do Mal. A escolha feita perante um dualismo, aparentemente livre, significa, todavia, que não foi pensada e liberdade. Falta no mundo nosso contemporâneo uma filosofia da liberdade que explique o verdadeiro significado da Redenção.



Álvaro Ribeiro



Entre nós, Portugueses, não se apresenta com carácter de profunda autenticidade o problema de optar por um dos termos daquela díade. Em todas as gerações de escritores surgem representantes da doutrina mais séria que profetiza o fim do Mal pelo advento do Messias. Variante é a qualidade do profetismo e do messianismo, que ora se apresenta em termos patrióticos de nacionalidade, ora em termos religiosos de humanidade, ora ainda em termos abstractos de ciência, técnica ou sociológica. Em vez do necessitarismo filosófico de qualquer dedução cronológica, admitem os Portugueses ser contingente, e portanto dependente da iniciativa e do esforço humanos, o exercício da liberdade e o cumprimento da redenção. A filosofia portuguesa tem sido, até agora, uma reflexão sucessiva sobre autores, acções e actos nacionais, preocupada como esteve de relacionar o pensar com o agir, em vez do pensar com o ser. Não é um sistema, nem uma ciência, mas uma arte. Falta, porém, a esta atitude de sempre, uma doutrina adequada ao tempo presente.


Notas:

(20) Leonardo Coimbra, A Luta pela Imortalidade, Porto, 1918.

(21) Étienne Gilson, La Philosophie au Moyen Age, Paris, 1922, I, 6.

(22) Efrem Bettoni, Duns Scoto, Bréscia, 1946.

(23) Louis Rougier, La Scolastique et le Tomisme, Paris, 1925.

(24) Jacques Maritain, Court Traité de l'Existence et de l'Existant, Paris, 1947.

(25) Maurice Nédoncelle, Existe-t-il une Philosophie Chrétienne?, Paris, 1958.


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