sábado, 16 de outubro de 2010

Do pensamento grego

Escrito por Fernando Pessoa








Sobre Heráclito

O movimento universal pode ser muito lento e, assim, a sensação ser possível (Radio-actividade).

Heráclito diz que tudo é movimento. Mas, o que é movimento? Algo que é concebido apenas por oposição a substância.

Além disso, o movimento pede duas coisas: uma coisa que move e uma que é movida, um motor e um móvel. Precisa, primeiro, uma coisa para mover porque nada pode de um modo concebível mover-se a si próprio. Precisa em segundo lugar, de algo para ser movido, pois, nada pode mover-se por si próprio, como já disse.

Uma vez mais, para se perceber qualquer coisa, para ter algum conhecimento, é necessário que aquele que tem tal conhecimento seja alguma coisa.

Isto é, todo o movimento, toda a percepção, todo o conhecimento, embora mutáveis e de uma coisa que se muda, supõe uma substância nem que seja só pelo facto de existir aqui e em tempo inferior a um momento.

Agora, tendo visto que todas as coisas são movimento, ainda há mais uma questão a resolver. Este movimento ou existe ou não existe. Se não existir, ainda que se possa dizer que ele existe (pois parece existir), a ideia de existência precede a ideia de movimento e a existência não pode consistir em movimento.

(...) O célebre argumento contra o movimento:

«Uma coisa que se move, nem está onde estava, pois nesse caso não se tinha movido; nem onde está, pois então woud be at rest; nor where it shall be (tends) for then there estaria em repouso; nem onde estará (para onde se dirige) porque então não haveria necessidade de movimento (não se teria movido), nem o movimento seria possível. Por conseguinte, nada se move realmente».

(...) Quando Parménides diz que o Ser é eterno, sobre a força da asserção que o Ser não pode tornar-se Não-Ser, ele insere no argumento a secreta noção de tempo, pelo menos, de vir a ser. Mas vir a ser não é ser - é-lhe oposto.

O verdadeiro argumento desenrola-se assim: o Ser não é temporal porque não pode ser duração. O Ser não é eterno, pois não pode ser tempo. O Ser é ser e nada mais.

(...) Para Parménides o universo não é infinito, porque, consoante a concepção artística grega, o que é infinito é imperfeito.


Melissus de Samos. Não somente um filósofo mas um militar, um estadista, opôs às cosmogonias Jónicas a doutrina eleática da eternidade do mundo. Melissus era um materialista. Se o vir a ser é impossível, é inútil e absurdo investigar como é que o universo veio a existir. O Ser é infinito na duração e também no espaço. Esta última circunstância marca Melissus como um materialista e separa a sua filosofia da de Parménides e da filosofia da maior parte dos sistemas gregos, cujo raciocínio é que ser infinito é ausência de limitação, logo, é ser imperfeito. É uma concepção artística. Para eles o universo é finito e tem a forma de uma esfera perfeita.

Zenão, discípulo de Parménides, controversista dos eleáticos, é o inventor da «reductio ad absurdum», pai do sofisma e da dialéctica.

Somente o Uno pode ser concebido; extensão, medida, movimento, espaço não podem existir.

1. Suponha-se que uma grandeza (limitada) existe, ela deve necessariamente ser infinitamente grande e infinitamente pequena.

Infinitamente grande, porque, sendo divisível ad infinitum, é composta de um número infinito de partes;

Infinitamente pequena, porque, partes não extensas [o ponto], embora multiplicadas «ad infinitum», não podem perfazer uma extensão, uma grandeza.

2. O movimento não pode conceber-se.

a) Porque a linha que separa pontos de partida e de chegada é composta por pontos, e, uma vez que o ponto é inextenso, de um número infinito de pontos.

Logo, mesmo a menor distância, é infinita e o ponto de chegada não pode ser atingido.

b) Suponha-se o veloz Aquiles o mais perto que se quiser da vagarosa tartaruga; ele nunca a apanhará: porque, para a ultrapassar, ele teria primeiro que percorrer metade do espaço, embora pequeno, que o separa; e, antes disso, metade desta metade, e assim por diante ad infinitum. A divisibilidade infinita da linha é para ele um obstáculo intransponível.

c) Crê-se que a seta voa; não é verdade: porque, para atingir o seu fim, ela tem que percorrer uma série de pontos no espaço. Terá que ocupar sucessivamente estes diferentes pontos.

Mas para ocupar a um dado momento qualquer ponto no espaço é parar: a seta não se move; o seu movimento é aparente.

3. Mas, se o movimento existe, não pode senão existir no espaço. Ora, se o espaço é real, deve encontrar-se algures, i.e. noutro espaço e estoutro noutro espaço e assim por diante ad infinitum. Logo, o movimento é impossível: não podemos admitir que ele é real sem cometer um absurdo.










Górgias, de Leontium (...) levou o princípio eleático às suas últimas consequências: o niilismo. No seu tratado ultrapassa Zenão e destrói o próprio ser.

Argumento: Nada existe. Se alguma coisa existir deve ser eterna, (Parménides). O que é eterno é infinito: o Ser infinito não existe nem no tempo nem no espaço, o que o limitaria «tour à tour», (embora toda a sua extensão). Não existe em parte alguma, e, o que não está em parte alguma, não existe. Se (o que é impossível) alguma coisa existisse, nós não poderíamos conhecê-la. E, se conseguíssemos tomar conhecimento dela, não poderíamos comunicar este conhecimento a outros.

A indiscrição de Górgias dá origem à aspiração de Heráclito. «O Ser é nada, (vir a ser) é tudo». O Ser de Parménides e de Zenão não passa duma abstracção eterna e imutável sem atributos positivos.

(...) O segundo sofisma de Zenão é o de Aquiles e a tartaruga.

Bayle explica-o perfeitamente: «Suponhamos uma tartaruga 20 passos em frente de Aquiles, sendo a sua velocidade 20 para 1. Enquanto ele dá 20 passos, a tartaruga dá 1; portanto ainda está em frente dele. Enquanto ele dá o 21 passo ela anda a 20ª parte da vigésima primeira, etc.».

Fundamentalmente, este argumento é igual ao primeiro. Desta faculdade da mente seguir a divisibilidade infinita do espaço, Leibnitz fez a sua imortal descoberta do cálculo integral. Zenão previu, mais de 2000 anos antes, as dificuldades resultantes dela na explicação do movimento.


(...) Argumento de Górgias

Se o não-ser é não-ser, o não-ser não é menos que ser, uma vez que não-ser é não-ser e ser é, e por esta razão as coisas não existem mais do que não existem.

Se todavia o não-ser existe, o ser não existirá, porque é o contrário de não-ser. Se o não-ser existe, não pode ser senão que o ser não existe; de modo que assim também o nada exisitiria, a não ser que ser e não-ser fossem a mesma coisa. E, se realmente estes são a mesma coisa, também nada existirá, porque o não-ser não existe e também não existe o ser, uma vez que se defenda que ele é o mesmo que não ser.

(...) O sistema de Górgias é idealista. O que significa que nada existe de aparente. Górgias foi talvez um profundíssimo filósofo, se não, um tolo feliz. O seu sistema leva-nos a uma conclusão que muitos não suspeitam. Quando diz que o Ser é não-existente, por estar fora do tempo e do espaço, dificilmente se pode dizer niilista. É um idealista, e, em alto grau. Para os filósofos mais profundos, mesmo para os da Igreja Católica, Deus é imenso e eterno. Para Górgias, o Ser, além de ser não-existente (como aparência), o Ser é a única coisa existente. Daqui resulta o mais completo idealismo. Pelo menos o raciocínio a ele conduz, não obstante o que Górgias quisesse que ele significasse e aonde conduzisse.


Zenão




Nascido em Eleia, era um homem de extremo heroísmo e força de carácter. Era muito eloquente, diz Diógenes Laércio, deixou-nos trabalhos cheios de sentido e erudição, e distinguiu-se não menos na política que na filosofia. Tendo esta ideia do seu carácter, podemos examinar mais seriamente a sua filosofia do que se tivéssemos conservado a ideia comum dele.

«Zenão defende», diz Aristóteles, «que o movimento não existe porque o que é móvel passa pelo meio antes de chegar ao fim...»

(...) Aos argumentos de Zenão de Elea os seus contraditores opuseram só três ordens de razões, todas elas falsas:

1) Os que, como o solvitur ambulando atribuído a Diógenes o Cínico, respondem afirmando o facto aparente, o que Zenão não negou como aparente, senão como real; o que é como se eu, afirmando que «vi» o objecto de uma alucinação minha - o que é indubitável, visto que é uma alucinação minha - julgam provar com isso a sua realidade.

2) Os que explicam a sofística de Zenão como inevitável dado que se toma o espaço, ou o movimento, ou ambos, por «realidades». Tal argumento não o é; é concordar com Zenão. Ele mais não afirma que, se forem tidos o espaço e o movimento como reais, se mostrarão, como tais, absurdos, isto é, se mostrarão irreais.

3) Os que, considerando o movimento nem como coisa nem como simples conceito, o consideram todavia como relativamente coisa, como função de um corpo, por assim dizer... Nada importa esta hipótese ao argumento de Zenão. Negado o movimento como função do ser, queda pensada [?], por exclusão da única hipótese contra, a «imobilidade» como função dele. E é isso que constitui um dos pontos essenciais da metafísica dos Eleates.

O essencial, na ideia de movimento, é o conceito de posição. Se considerarmos a posição de um corpo como um facto estranho a ele, não poderemos responder a nenhum dos argumentos dos Eleates. Desta forma, porém, considerando a posição de um corpo, isto é, o lugar, a porção de espaço, que ocupa (relativamente a outros corpos) como um atributo do próprio corpo, como um elemento diferente da sua essência, teremos, ao mesmo tempo, respondido aos argumentos de Zenão e aberto uma porta nova ao problema. Porque assim o corpo que se move vai deixando de ser, por mover-se, o mesmo corpo, visto que vai mudando de posição, e a posição é, por hipótese, um atributo, ou generalidade definidora ou delimitadora do próprio corpo. Nada se «move»: tudo muda.

Chegamos, assim ao conceito da posição como quarta dimensão.

(A posição é o estado temporal de um corpo?)

Durar é deslocar-se. Nada pode durar ficando no mesmo sítio. Assim o tempo é, não uma quarta dimensão do espaço, senão a condição dessa quarta dimensão. Dizendo de outro modo: a posição, sendo a quarta dimensão de um corpo no espaço é a sua segunda dimensão no tempo. (?)

O tempo não é uma condição do espaço, senão uma condição do conhecimento - e por isso do conhecimento do espaço.

O que espacialmente é mudança de posição é temporalmente mudança de ser. (?)






O movimento é o nome que damos ao facto de um corpo deixar de ser o que é essa coisa das duas dimensões, que é a posição. Mas nas outras, permanece o mesmo?

Há corpos simultâneos? Se os há, como o são? O tempo é dimensão de cada corpo? Que quantidade de tempo?

O tempo é sinónimo, ou não, de simples existência?

Se o tempo fosse uma dimensão não haveria corpos simultâneos?

É só «instantaneamente», ou, antes extra-temporalmente que qualquer corpo existe. O tempo «faz» com que seja outro corpo. O tempo é uma anti-dimensão. Toda a linha recta é portanto recta logo que não «dure».

Tudo quanto é expresso em termos de tempo, é expresso em termos de aquilo, em termos do que nada pode ser expresso.

Serão o tempo e o espaço coordenadas? (O destino de cada ser determinável por elas). (A astrologia explicável como esta coordenação?) A metafísica é uma geometria, ou supergeometria, a três coordenadas - tempo, espaço e ser (consciência).

(«Zenão de Eleia, e o Problema do movimento»).

A esfera como infinita, ou centros como infinitos. Mas o raio da esfera?

O argumento de Zenão não nega o movimento no universo: afirma apenas que o facto de haver movimento no universo mostra que o universo não é uma realidade absoluta, não é o ser - porque o movimento não é (o argumento prova-o) característica do real, do ser (in Textos Filosóficos, Editorial Nova Ática, 2006, Vol. I, pp. 64-75 e 80-83).




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