sábado, 6 de novembro de 2010

Garcia Domingues, o último moçárabe

Escrito por Pinharanda Gomes





Garcia Domingues



A notícia do falecimento de Garcia Domingues (Silves, 18.5.1910-Lisboa, 1.5.1989) chegou-nos com frieza nos primeiros e tórridos dias de Julho, quando o seu corpo era já pura algidez. Não raro sucede que a morte nos leva amigos e conhecidos, sem que nos demos conta, ou sem que a informação nos chegue em tempo útil. Havia pouco, na Primavera deste ano, visitara-o em sua casa, na Rua de Moçambique aos Anjos, primeiro, com o propósito de obter da sua perícia alguns pareceres sobre a transcrição de arabismos contemplada no terceiro volume da nossa História da Filosofia Portuguesa; depois, no sentido de com ele preparar uma entrevista de fundo que os redactores da revista de filosofia portuguesa – Leonardo, desejavam manter com ele, acerca da sua obra, dos problemas do pensamento pátrio e da vida portuguesa nesta vertente derradeira do presente século. A mencionada entrevista realizou-se, foi publicada na revista Leonardo (n.º 4) com sensível alegria do entrevistado, que, já na antecâmara do fim, teve oportunidade de meditar, com a nova geração, as suas teses sobre pátria e nacionalidade, filosofia islâmica e cultura portuguesa, religião e filosofia, Portugal e Europa. Essa entrevista foi, segundo conjecturo, o seu último trabalho público de historiador e de pensador.

No entanto, quando o visitámos, pareceu bem de saúde, fumando o seu cíclico charuto, que, fumador, abandonara em tempo o cigarro, porque não podendo parar o vício, optara por fumar tabaco puro, sem papel. Mais tarde, ainda nos encontrámos, na tarde de um dia, numa sessão de lançamento de um livro da Editorial Verbo. Pareceu abatido, expressou esse abatimento e, logo de seguida à apresentação do livro, aliás feita pelo professor Gama Caeiro, retirou-se. Ali nos despedimos, um simples voto de melhoras, sem mais nada. Despedida breve para tão demorada viagem.

José Garcia Domingues foi o nosso último escritor moçárabe. Tinha ele isso por certo. Imerso na pesquisa da história luso-árabe, numa diuturna entrega que durou cerca de 45 anos, houve ensejo de percorrer a linha genealógica do seu patronímico Garcia, chegando a determinar a sua mais remota origem no seio de uma família moçárabe do século XII, residente no Andaluz e, em tempo, ramificada no Algarve. Dizia, com alguma graça, que, sendo arabista, às vezes parecia ser um anti-arabista, porque o que ele valorizava nos seus estudos luso-árabes era, com toda a evidência, o vector moçarábico – o da cultura cristã residente em meio muçulmano. No seu entender, aliás documentado, as massas invasoras que implantaram o Islão na Península Hispânica não eram constituídas por árabes puros. Destes, poucos, contavam-se pelos dedos. O resto, a massa invasora, incluía povos orientais e africanos de múltipla origem, no meio deles chegando também muitos cristãos islamizados, e foi por isso que o império muçulmano teve na Hispânia dois singulares: uma franca tolerância com os usos e costumes dos cristãos peninsulares (sem prejuízo das excepções e dos episódios contra) e um carácter de ubiquidade social, expresso na condição moçárabe, à qual foi possível manter a tradição axiológica cristã, sem prejuízo de assimilação dos valores culturais e técnicos do mundo árabe, naquilo em que eles não contraditavam o espírito cristão.

 Sé Catedral de Silves


O moçarismo explica, deste modo, a superficial radicação da fé islâmica na sociedade portuguesa, mesmo na população alentejana e algarvia, e a profunda usança dos métodos da sabedoria muçulmana na vida prática – agricultura, alvenaria, comércio, ciências dos pesos e das medidas, direito da terra e das gentes, naútica, botânica e medicina. O fenómeno moçarábico, tão antigo, explica também as razões pelas quais a expulsão dos mouros no final do século XV, por D. Manuel, jamais atingiu a dramaticidade da questão judaica, sendo muito menos os processos inquisitoriais por islamismo do que por judaísmo. Mesmo vivendo um determinado sincretismo religioso, feito de mistura de valores, a maioria da população arábica, ou como tal havida, estava em assimilação cultural e religiosa pela maioria cristã, ainda quando a educação cristã desta, fosse, a sul do Tejo, altamente deficiente.


Obra com três vertentes

Garcia Domingues pressentiu, averiguou e demonstrou a interpenetrante correlação desta realidade histórica, e aduziu algumas teses que bem importaria fossem retomadas, por forma a que não se interrompesse o fluxo de reflexão que ao autor se deve sobre a nossa herança arábica ou moçarábica, a que se dedicou, com afã e zelo, depois de 1945. Com efeito, a obra de Garcia Domingues compreende três vertentes – uma, que vai de 1930 a 1944, outra que se desenvolveu desde então, nela se situando, no decénio de 1950-1960, uma fase que chamaríamos de didáctico-pedagógica. Estas fases acompanham também, e de todo o mundo, já a sua formação, já o exercício de actividades profissionais. Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ingressou no ensino secundário, tendo sido professor no Liceu de Faro e Inspector do Ministério da Educação Nacional. A primeira fase da sua obra é germanizante e privilegia o pensamento alemão. Embora a introdução do conceito de Kultur em Portugal seja anterior, maior frequência de exercício interpretativo e adaptativo ocorreu a partir de 1930, data a partir da qual, com mais sensível intensidade, a ideia de cultura se propaga e se vulgariza. Garcia Domingues fixou o seu nome entre os intérpretes da ideia de Cultura, aferindo-a à portuguesa, se bem que estivesse ciente da origem germânica do conceito. O seu germanismo fê-lo, de resto, incorrer num extremado nacionalismo e, com efeito, foi companheiro de Rolão Preto na campanha do Nacional-Sindicalismo, embora nunca se lhe tivesse conhecido sombra de hitlerismo. Garcia Domingues era um nacionalista português, e houve posição crítica face à filosofia alemã. Tendo sido um dos primeiros comentadores portugueses de Heidegger, não se submeteu de modo acéfalo ao ideário daquele filósofo, cujo método, aliás, e em tempo ulterior, sujeitou a crítica redutiva. De qualquer modo, sublinhe-se que o padrão cultural germânico era prestigiado, na época, ao nível da alta cultura.

Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves


Meditando os problemas do ensino, Garcia Domingues opera uma mutação de interesse e, iniciando o descobrimento das suas origens algarvias, mergulha fundo no estudo da cultura arábica, obtendo o diploma de Língua Árabe pelo Instituto de Línguas Africanas e Orientais da Escola Superior Colonial (depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos) e, mais tarde, idêntico diploma pela Faculdade de Filosofia e Letras de Madrid, onde foi bolseiro. Esta faceta de Garcia Domingues – bolseiro de estudos e de ciências arábicas – fazia-o desaparecer com frequência de Lisboa. Conviva habitual do grupo da “filosofia portuguesa”, raro faltava quando, em férias, regressava de Madrid. Álvaro Ribeiro e José Marinho, ambos filólogos, estimavam as suas opiniões etimológicas, ainda quando esperassem dele, mais do que o contributo histórico, o contributo filosófico. Membro do Conselho Permanente do Congresso de Estudos Arábicos e Islâmicos, participou ainda no de Évora (1982) organizado pela União Europeia de Arabistas e Islamólogos, a que pertencia. Situa-se ele, como arabista, na geração por hábito designada “depois de David Lopes” que, falecido em 1942, criou, nas aulas que durante anos regeu, um considerável número de arabistas, a tal ponto considerável, que ainda os mais modernos podem aferir-se ao magistério de David Lopes.

O primeiro trabalho luso-arábico de fundo, subscrito por Garcia Domingues, foi a colectânea de episódios e de figuras meridionais – História Luso-Árabe (1945) – depois do que aparece mais atento à composição de compêndios para o ensino da história da civilização, que sempre elaborou em conformidade com os programas oficiais para o ensino liceal. Muitos de nós estudámos pelos seus compêndios, em geral publicados em fascículos de capa verde, e muito ilustrados pela União Gráfica. É já na actividade do Centro de Estudos Escolásticos de Lisboa que Garcia Domingues expressa em público os estudos que ia fazendo na área da cultura árabe, produzindo então diversos opúsculos – figuras do pensamento luso-árabe, problemática do entrosamento na história política peninsular, estudos filológicos e de arte, de geografia e de sociologia, etc. Foi-lhe possível enunciar e construir a tese sobre o contributo dos moçárabes para o movimento das taifas, e sobre a importância destas para a definição das nações hispânicas medievais, entre elas Portugal. Raro Garcia Domingues isola o arabismo luso; quase sempre documenta um sólido enlace entre os árabes e os cristãos do ocidente andaluz, e, pois, um sólido avaliamento das nossas raízes moçarábicas. Foi leal a essas teses, que desenvolveu em múltiplos escritos, sempre opusculares, e constituídos, ou por textos escritos para a imprensa periódica, ou para assembleias e congressos.

A “filosofia portuguesa” esperava dele um volume para a filosofia arábico-portuguesa. Foi ela um projecto, sucessivamente adiado, de Garcia Domingues. Autor, exigente, algumas vezes mencionou a proximidade da confecção dessa obra que seria a chave de ouro de uma vida trabalhosa. Era, no entanto, escrupuloso e cada dificuldade, ou documental, ou interpretativa, o levava a recuar. E morreu sem que tivesse publicado o fruto desse projecto. Ignoramos se o chegou a produzir, e se estará, desse modo, inédito.

Sé Catedral de Silves


Julgamos, porém, que os seus opúsculos e estudos luso-árabes devem ser compilados num único volume, e que o mérito da iniciativa deveria partir, por ordem crescente, ou da autarquia de Silves, ou do ICALP, ou do INIC. Oxalá (e pomos neste oxalá toda a carga determinante da sua origem arábica) a nossa sugestão ache quem a guarde e semeie (in Leonardo, Ano II, número duplo, 5 e 6, 1989, pp. 69-71).


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