sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O drama do universitário (ii)

Escrito por Afonso Botelho








O culto do diploma


1. «(…) A Universidade confirma hoje as situações mais rendosas do País e também, o que é mais grave, as situações dos remediados e menos que remediados, visto que, para os lugares de privilégio e para o sustento da classe média, é exigido o beneplácito dos professores universitários através dos diplomas de acesso. Esta sujeição constitucional duma pátria a uma instituição, contribui primordialmente para a adulteração do princípio de finalidade na convivência dos portugueses».

2. «A classe dos Professores Universitários não é renovadora da Universidade, mas a cada momento confirma o seu comprometimento no declínio progressivo e efectivo da instituição e de tudo o que ela representa».

3. «A relação paterna, protectora, e iniciadora na sabedoria da Natureza e da Família, fica inteiramente negada na Universidade, onde o aluno, é determinado, pela lei e pela mentalidade universitária dominante, como elemento do mundo dos seres da Matemática, como algo morto e estático, que não se move, não sofre e não opera. Para o professor universitário, que ordena a Universidade, a acção estudantil é o oposto da noção de enteléquia, é o contrário de obra e de fim. Torna-se por isso contraditório que o estudante possa ter um fim próprio a atingir ou uma obra pessoal a realizar. A única operação que se lhe atribui é a da adição, através do dever de somar os valores necessários à obtenção do diploma».

4. «O monopólio do trabalho ou do diploma, que é a autorização de trabalhar, intensificou-se cada vez mais nas mãos das Faculdades, animicamente agonizantes – até matar, em alguns casos, a última réstea da liberdade de estudo».


Catedratismo


1. «O catedratismo é uma doença generalizada entre nós, em todos os meios e em todas as instituições. Porém, a sua origem permanente e genérica está na Universidade».

2. «Os dois sintomas que apresenta, na vida social – o imobilismo e a eminência – são exactamente a reprodução dos aspectos mais salientes da posição catedrática. De resto, o catedratismo social define-se também como posição, nunca como situação. A situação é o lugar de relações passivas e concretas, a posição (social) é lugar de expressões unilaterais e abstractas. O catedratismo é realmente a ilusão endémica da posse duma cátedra, isto é, a manifestação puramente subjectiva dos sentimentos e volições que alguém pode ter numa posição separada dos outros e mais alta do que eles. E por ser ilusão e abstracção é que o catedratismo pode existir em todos os meios sociais, em todas as profissões, desde a de catedrático propriamente dito, passando pela de chefe político, até à de contínuo, à de merceeiro ou barbeiro».




3. «(…) o catedratismo universitário não é tão ilusivo porque se fundamenta numa estrutura social e numa construção jurídica. O catedrático universitário usufrui, dentro e fora da Universidade, da mais alta consideração social e dos mais seguros privilégios. Basta pensar que ao catedrático está reservada, com total exclusivismo, pelo menos, uma das pastas do governo».

4. «Só no plano pedagógico, naquele que lhe é próprio, é que o catedrático universitário representa a mais ilusória, senão a mais contraditória das realidades. Com efeito, a posição separada e superior do catedrático contradiz a natureza psicológica do jovem estudante e a essência da comunidade».

5. «(…) na Universidade portuguesa actual, o catedrático (…) é o sujeito principal, para não dizer único, da vida universitária; governa a instituição e os estudantes, com total exclusivismo; conduz as aulas e distribui ou nega os diplomas; escolhe e elabora os programas, etc., etc.. (…) A posição do catedrático é, portanto, pedagogicamente errada e tende naturalmente a transformar-se num erro social e político – o catedratismo. Os professores universitários, por melhor intencionados que sejam, por vezes mesmo inconscientemente, sofrem a atracção do catedratismo – do erro pedagógico e social resultante duma posição humanamente falsa».

6. «Esta posição é também consequente, no campo da doutrina, onde se projecta dum modo talvez ainda mais grave, pois, dominando a cultura aparente duma época, torna-se universal e universaliza os seus erros e desvios».

7. «A sociedade portuguesa actual sobrevaloriza apenas o professor imóvel e catedratizado e quase desconhece a missão condutora ou educadora do professor convivente».

8. «A cátedra, vista unicamente como pertença da colectividade burguesa dos nossos dias, perdeu também a riqueza do seu simbolismo, quer esotérico, quer exotérico».

9. «A cátedra do nosso tempo desceu ainda mais (enquanto ironicamente subiu no conceito social), porque deixou de ter qualquer relação com o símbolo – manifestação e incentivo do saber ascendente. Perdeu também a ordenação ao mundo das significações espirituais, aliás como a profissão e até o professar, ambos com a mesma raiz de professor».

10. «O professor que usa socialmente os favores da cátedra já não pode fugir ao seu império, gravitando em torno da sua imobilidade, aspirando sobretudo a conservá-la e a conservar-se nela. Deste modo se ordena o superior ao inferior e a cátedra, não podendo ser sede de sabedoria, é fulcro material da inferioridade dos que a ela se candidatam (de desejos e ambições, intrigas e malevolências), ponto de encontro de relações sociais vazias».




11. «A relação pessoal com a Verdade também o catedrático a tem prejudicada pelo condicionalismo da sua situação. Não encontrando nela nenhum motivo de liberdade, nem individual nem colectivo, o professor catedrático não se move no mundo da Verdade mas no mundo das verdades, não expõe um saber de si próprio mas dos outros, isto é, não podendo saber o que sabe, apenas expõe o que expõe – é um mero expositor».

12. «A perturbar o comprometimento natural do homem surge sempre o comprometimento social do catedrático, e só excepcionalmente, contra a sua situação, ele consegue comprometer-se com alguém. Quer dizer, a categoria do professor universitário é uma categoria social falsa, porque não recebe em si, não se amolda à humanidade de quem nela se integra».

13. «Houve portanto uma sucessiva degradação nos tipos de Professor Universitário, desde o primitivo e genuíno lente, para quem a cátedra era suporte duma leitura esotérica, passando pelo professor propriamente dito, cuja missão era declarar exotericamente o seu saber, até ao catedrático de hoje que cumpre o mero encargo de expor saber alheio».


Estado


1. «A autonomia deveria ser uma realidade indiscutida e indiscutível na Universidade».

2. «(…) o Estado, perante uma Universidade que não se impõe, nem revela vida própria, julga-se na obrigação (e com a facilidade) de prefixar juridicamente a vida de professores e alunos, metendo-se assim entre uns e outros, impossibilitando cada vez mais a corporação universitária».

3. «A educação não pertence primordialmente ao Estado, mas apenas subsidiariamente».

4. «O Estado não tem direito actual de transformar uma instituição sem atender ao fim para que foi criada e ao lógico envolver histórico dos seus interesses e atributos».

5. «A Universidade não é uma construção mecânica e intemporal que, em qualquer momento, possa ser virada de um lado para o outro e cuja vida dependa dum plano abstractamente concebido e exclusivamente elaborado por entidades, por força do seu cargo, estranhas à mesma construção».

6. «A Universidade não é um regulamento que se substitua por outros regulamentos, é antes de mais a vida orgânica dos estudantes, historicamente iniciada há séculos, com o sentido social e cultural marcado por uma missão que transcende, em muitos aspectos, a própria missão do Estado. (…) Reformá-la, com o mesmo direito com que se altera o horário do funcionalismo ou a orgânica de uma direcção-geral, seria desconhecer a própria razão histórica da Universidade…».

7. «O Estado que sonega o poder espiritual das suas universidades governa um povo, incompleto para a continuidade tradicional, por lhe faltar uma das suas melhores garantias, e aberto a influências culturais que o impedem de tomar o lugar que lhe cabia no desenrolar da História».


Cientismo


1. «(…) o culto da Ciência é o fruto duma transposição abusiva do pensamento. (…) Nas nossas universidades esse culto reedita-se constantemente (…) na adaptação vulgarizada do profissionalismo e do tecnicismo».

2. «O profissionalismo é a adaptação social desse culto. (…) O tecnicismo é a consequência imediata da ausência de hierarquia entre as ciências universitárias e a expressão elucidativa da falta de universalidade na sua interpretação – o que equivale à inexistência dum elemento indispensável ao simples conceito de Universidade e à sobrevalorização do útil, na Ciência aplicada».

3. «A Universidade não se reduz a uma fábrica de ciência, nem se basta com o significado dum rótulo igual ao de «Ensino Superior» porque, tanto pela sua génese, como pela categoria institucional que lhe está na base, é, sobretudo, um núcleo humano dirigido a um fim e agregado por ele. Mas é um núcleo humano, e o fim a que se dirige encontra-se radicado ainda na própria natureza humana, no homem considerado na sua totalidade».







4. «Vem muito a propósito citar o seguinte passo da «Missão da Universidade» de Ortega y Gasset: «A Ciência é o maior prodígio do Homem; simplesmente, por cima e acima da Ciência está a própria vida que a torna possível…».

5. «(…) educação científica é uma expressão absolutamente contraditória. Educação significa sempre um caminhar para a realização integral do Homem, e nunca pode esse título autêntico de homem realizar-se com o que a ciência lhe fornece. A Ciência é feita para o servir, ou no domínio da natureza que o rodeia ou no progressivo conhecimento da sua própria natureza. Só por abusiva transposição o próprio criador da Ciência passa a servi-la, ou antes, passa a supor que a serve porque, quando a Ciência está no topo dos valores de uma época, não é na realidade ela que está, mas a prova de que o Homem se esqueceu de metade de si próprio».

6. «A Universidade, que pelo seu curriculum nega ao aluno a reflexão, impondo-lhe exclusivamente ciência experimental e relacional, pelo magistério opõe-se à sua evolução para o sobrenatural. Com efeito, usando categorias estrangeiras, a Universidade intercepta a natural marcha do pensamento português, que, começando em realidades imaginadas, ascende naturalmente às imagens realizadas, às imagens do culto».

7. «(…) o Positivismo «é mais uma corrente de opinião do que uma escola filosófica». O ambiente da cultura vigente nos países onde o Positivismo fez carreira (e estão nesse caso Portugal e o Brasil) é propício à formação, em cada uma das sucessivas gerações, dum espírito ou dum critério a que corresponde uma força social».

8. «Ambos obrigam o modo de pensar a exteriorizar-se, chamando o sujeito do pensamento à integração no mundo exterior, da História das ideias como factos, da religião social. O real, a que o Positivismo vincula toda a realidade exterior ou interior ao homem (transcendente ou imanente), representa o máximo da exteriorização, pois atinge os aspectos antropológico, cosmológico e teológico do saber humano e, dum modo efectivo, já que é uma corrente de opinião constituída em força social».

9. «O Positivismo, sendo uma corrente de opinião, penetrou as ideias e ideais da nossa época pela sua raiz social, igualando-as nos seus efeitos e significados às instituições e às entidades político-sociais. O progresso da exteriorização do modo de pensar chegou aqui ao seu máximo limite – que é também o limite da contradição implícita no seu sentido. O termo exteriorização já não serve. O modo de pensar extroverte-se, pois já não é no pensamento que encontra o fim perseguido, mas num verdadeiro mundo de obediências, compromissos e vinculações sociais. O real, ainda aferente da realidade, tem agora um qualificativo que exprime o afastamento da Natureza e de Deus; o real é positivo. Positivas têm que ser as ideias, os actos, os sentimentos, a vida enfim, para que valham na cultura vigente em Portugal, e ainda influente na convivência internacional».

10. «O Positivismo estabeleceu-se, portanto, como critério de ortodoxia, que pouco a pouco se transmuda em modo de pensar. Em todos os planos, quer no intelectual, quer no social, quer no cultural, o pensamento espontâneo encontra o mundo de artifício positivista. E do mesmo modo por que o candidato às colocações estáveis, ou aos graus universitários, tem de submeter-se a exames e concursos para os quais se faz, se forma, (disformando a sua livre personalidade) – as ideias fazem-se para o pensamento social vigente e dominante. A factibilidade das ideias é a primeira exigência da sociedade positivista. E as outras seguem-se, levando os valores espirituais à integral subordinação do real positivo, exterior ao homem concreto, a Deus Pessoal, à Natureza intacta, exterior ao que fundamentalmente determina o pensamento espontâneo do português».






11. «Os comentadores continuadores, relacionadores do pensamento genial, são entre nós, na sua quase totalidade, dominados pelo espírito positivo, ou, pelo menos, por categorias de pensamento invisuais para o nosso modo de pensar».


quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O drama do universitário (i)

Escrito por Afonso Botelho





Afonso Botelho




Prelúdio


Tendo em conta o estado de calamidade pública em que a Universidade se debatia em meados do século passado, melhor compreenderemos o estado de podridão a que uma tal instituição chegou nos dias de hoje, sem remédio nem esperança à vista. Ora, de Afonso Botelho sabemos que teve a felicidade de ter conhecido Álvaro Ribeiro e José Marinho, de modo que falava e escrevia com base numa vivência espiritual que o salvaria aquando da sua passagem pela máquina universitária.

Porém, as alusões à Igreja Católica por parte de Afonso Botelho foram aqui preteridas. E a razão reside no facto de a acção católica, hoje praticamente destituída de pensamento, se ter tornado estéril e inoperante. Deste modo, sem que tal signifique qualquer espécie de animosidade para com o Magistério da Igreja, e muito menos para com a correspondente profissão de fé do autor, daremos aqui preferência àqueles trechos que mais incisivos se nos afiguram para um melhor entendimento da questão universitária.


Por outro lado, a ideia de Universidade enquanto corporação espiritual, bem como a de instituição promotora da transcendência no concerto dos povos, é já coisa de antanho. Esqueça-se, para efeitos de actualidade, a histórica filiação da instituição universitária no claustro monacal. Esqueça-se ainda o modelo medievo arquitectado e inspirado nas sete colunas do Templo da Sabedoria. Tudo isso foi irreversivelmente banido e ultrapassado pela pós-modernidade triunfante.


Por conseguinte, resta para a maioria dos Portugueses o espectro da Universidade Pombalina, em que Aristóteles não mais representa o eixo. Todavia, o mestrado de Aristóteles continua por cumprir
. E porquê? Porque quem «estudar Aristóteles sem mediação de comentadores desactualizados, quem se compenetrar da filosofia e da filomitia do Estagirita, não encontrará dificuldade em concluir que o melhor aristotelismo se concilia com o pensamento português».


Estas últimas palavras, vindas de Álvaro Ribeiro, falam por si, tal como, aliás, também falam as de Afonso Botelho sobre os erros, as contradições e as iniquidades da Universidade defunta. E para mais, quando, na expressão do autor, «a grave crise [da cultura portuguesa] é inconsciente e secreta». Logo, vejamos no que consiste o drama do universitário.

Miguel Bruno Duarte





Filosofia Portuguesa


1. «(…) na Universidade (…) se faz uma verdadeira ocultação dos autênticos pensadores portugueses, sobretudo dos contemporâneos e, claro está, dos seus discípulos directos. Ocultação de obras e de pessoas».






2. «No (…) pensamento [de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Pascoaes, Fernando Pessoa, etc.] (…) estão postos em causa os principais postulados do ensino oficial, tanto no que respeita à doutrina dominante, como no que respeita às bases pedagógicas que sustentam as instituições de ensino. A triste cadeira semestral de Filosofia Portuguesa [ou, mais propriamente, de "Filosofia em Portugal"] que faz parte do "curriculum" de algumas secções das Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa, é também um dos processos de ocultação, visto que nela se oculta a originalidade actual e efectiva do pensamento filosófico português, pelo estudo da originalidade histórica e inofensiva da Filosofia Portuguesa».

3. «Nem a Filosofia Portuguesa se defende como uma coisa, embora seja atacada quase sempre como tal. Defender a existência e originalidade da Filosofia Portuguesa é defender, para portugueses, a autonomia do pensar e do falar. É essa autonomia que a Universidade dos Professores não pode ou não quer defender».

4. «Da relação mestre-discípulo conheço, apenas um caso, de resto tão significativo que chegou a dar forma nova à própria instituição e seu regime, ao mesmo tempo que individualizou um grupo de pensadores, continuadores das constantes dum pensamento comum, embora muito diferenciado nas suas posições doutrinárias. Refiro-me a Leonardo Coimbra».

5. «Um dos seus discípulos mais próximos, José Marinho, escreve no livro de «testemunhos dos seus contemporâneos»: "Leonardo Coimbra surge, pois, como um Mestre no mais nobre sentido da palavra. Isto quer dizer que jamais transmitiu saber feito, nem método para o alcançar". Esta afirmação só se entende, fundamentadamente, em paralelo com a realidade patente no nosso actual ensino universitário – em que o saber transmitido aos alunos não possui qualquer relação de existência, nem no espírito do que o transmite, nem na alma daquele a quem se destina, é um saber feito, isto é, acabado, morto. Daí, o facto evidente de se preferir, nas nossas “Faculdades de Filosofia”, sobretudo as disciplinas da história do pensamento e se ensinarem os métodos científicos do conhecimento como fundamentos do próprio saber».

6. «Assim como a via da relação mestre-discípulo excede os limites normais da Universidade a ponto de, quando se verifica, chegar a romper as normas estatutárias, a via da cultura fica aquém da natureza e missão próprias da instituição medieva. A via da cultura é (…) a que está mais próxima do conhecimento e mais afastada do saber. A cultura é, sob certo aspecto, saber objectivado e permite, portanto, que as relações concretas da elaboração de pensamento derivem e se integrem no esquema exterior e abstracto do acto geral do conhecimento, nas relações menores de sujeito-objecto».

7. «(…) o estudante que não encontre durante o curso um mestre, vivo em si próprio, ou nas suas obras, não completou a sua formação embora leve consigo a garantia da sua formatura».


Língua Portuguesa


1. «A degradação da linguagem no sentido da letra morta explica todo o nosso ensino, em que é patente e geral a hegemonia da palavra escrita sobre a palavra oral. No ensino secundário, cada vez se acentua mais o predomínio das palavras escritas; no ensino superior, até mesmo as provas orais são, no fundo, a repetição do que está escrito na sebenta, não significando, portanto, qualquer libertação da letra».




2. «Este processo de degenerescência de linguagem teve, por causa, a situação heterónoma em que culturalmente esteve, e está, a Língua Portuguesa, sujeita ao falar e ao escrever do estrangeiro, e por efeito, a perda total de autonomia das instituições de educação e cultura. E mesmo o Catedrático, que no regulamento da Universidade é, indiscutivelmente, o titular dos únicos direitos, deixou, à porta de entrada, a sua independência cultural, para não ter que utilizar a porta de saída».

3. «O "trivium", que é afinal o estudo da oralidade, cedeu hoje completamente o seu lugar na hierarquia do saber, ao conhecimento da letra e das letras».


Professores e alunos


1. «O elemento docente, como tal, está constituído em função do pluralismo da sociedade, das potências sociais, não podendo concorrer portanto para o universal, que a essência da Universidade exprime. Rigorosamente, a Universidade de hoje não deveria chamar-se universidade mas "diversidade", pois a sua missão, interna e externa, é a de "diversificar": diversificar a Ciência, impedindo uma hierarquia de conhecimento verdadeiramente progressivo, do múltiplo para o uno, do conhecer para o saber; diversificar a alma dos alunos pela adição dos conhecimentos científicos e subtracção dos valores de Espírito; diversificar os licenciados, ou "formados", pela especialização das profissões e das funções do Estado; por último, diversificar-se a si própria, no âmbito dos que a dirigem, através de intrigas pessoais, estreitos redutos de escola ou sistema, processo de ensino, posição política, etc., etc.».

2. «Enquanto o drama do Professor é um drama de vontade ou de consciência, que termina quase sempre em comicidade, o drama do aluno é um drama de obediência, de paixão inconsciente, que se prolonga pela vida fora, imerso nas carências da personalidade e nos erros dos costumes sociais».

3. «O primeiro conhecimento que a Universidade oferece aos seus neófitos é o da distinção, ou separação absoluta, entre a doutrina e a personalidade».

4. «Os estudantes universitários não formam nenhuma classe, nem à face do Estado, nem muito menos à face dos professores; formam sim, eles e os professores, uma instituição que deverá viver harmonicamente com as outras dentro da Nação».

5. «A quebra da tradição universitária, o corte na sua essência histórica, fê-la perder o poder espiritual exercido em três sentidos correspondentes às três formas da sua missão: fê-la perder o seu próprio domínio interno, que era o da educação e da convivência universal de estudantes e professores – Universitas magistrorum et scholarium; fê-la perder a sua acção determinadora na vida nacional (…); fê-la perder, por último, a sua acção no entendimento espiritual das nações…».

6. «Enquanto a vida interna da Universidade não tiver configuração própria, enquanto professores e alunos não estiverem ao serviço de uma causa comum que lhes ordene a existência e lhes complete a personalidade, enquanto o ser universitário não for uma qualidade que implique certo tipo espiritual, não há "Universitas" nem se reconduz a Universidade à sua acção educadora».








7. «A nossa Universidade nasceu e desenvolveu-se de raiz vincadamente discente. Os escolares, os seus interesses, ou, mais tarde, o valor simbólico dos seus direitos, deram sempre à Universidade portuguesa o carácter estudantil e não professoral. (…) O panorama actual (…) é a própria oposição do que, outrora, a Universidade portuguesa foi».

8. «O tipo discente de Universidade é aquele que assenta numa comunidade de estudantes, no universal concreto, determinado pela vida, em comum, de pessoas que se juntam para estudar. Este foi o tipo da Universidade portuguesa (…), o tipo mais real de Universidade. (…) Isto não quer dizer que os professores não caibam na corporação, mas antes que o seu lugar é, secundário, enquanto lentes, e legítimo, enquanto estudantes».

9. «A comunidade dos que estudam, primacial e antecedente da corporação dos que lêem e dos que ouvem, em qualquer tipo de Universidade, tem, no regime da Universidade portuguesa, a tradição de garantir aquela comunidade básica dando ao elemento discente toda a autoridade e supremacia em desvavor do elemento docente».

10. «Não é a corporização dos mestres e dos escolares que nos deve preocupar porque nem uns nem outros formam, por si, elementos essenciais da Universidade. Se a quisermos verdadeiramente reformar, temos que descobrir primeiro o segredo daquela comunidade de estudantes sobre que todo o resto assenta. A corporação ou a convivência ordenada de professores e alunos virá depois, no decurso lógico da vida comunitária dos que têm por finalidade o saber universal».

11. «Assim como toda a verdadeira comunidade só deve governar-se por si própria, a Universidade, para voltar a sê-lo, só deve ser governada pelos estudantes».

12. «A mais evidente causa da morte da Universidade portuguesa é o seu funcionalismo total – que atinge alunos, professores e a própria instituição…». «Faltando à Universidade civil uma finalidade espiritual, toda a sua acção se degradou. Desapareceram nela, na sua vida corporativa normal, as únicas fontes de liberdade – a vocação e o desejo de saber».

13. «O professor tem uma significação meramente social na vida portuguesa. Já ninguém suspeita da missão educadora que esse nome devia suscitar».


Pena de Exame


1. «Ao estudante, oferecem-lhe apenas autonomia para o sofrimento dos exames. É uma autonomia motivada mas não justificada, porque o sofrimento que não sirva a salvação, não é justo nem justificável».



 Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra (datada do século XVI).




2. «O drama do exame é, em Portugal, um drama colectivo, que cada vez mais se alastra através da alfabetização, se intensifica pela influência do número às colocações e se imprime na sensibilidade e no carácter dum povo».

3. «Onde porém, o exame é mais falso e também mais dramático, enquanto se sofre evidentemente, é no ensino universitário, visto que, na Universidade, o estudante espera o fim do adiamento cultural sofrido durante a instrução primária e o Liceu».

4. «Tanto no que respeita à personalidade, como no que respeita à Sociedade, a instituição universitária, pelo menos a partir da reforma do Marquês de Pombal, opõe-se ao livre desenvolvimento do princípio de individuação, que na comunidade política, se designa por nobilitação».

5. «Com a perda da tradição aristotélica na Filosofia, perdeu-se também o princípio fundamental da educação da nobreza, daquela nova nobreza que justificou a maior evolução e dilatação da Pátria».

6. «Desde que se considere o exame como método pedagógico, e é como tal que o consideramos em todo o nosso ensino, porque lhe damos a primeira e última palavra, a unidade lógica e temporal da aprendizagem é o conceito terminal, o conhecimento sem continuidade, que a cada momento se suspende para ser examinado».

7. «Acentuou-se o valor do exame, entre nós, com o progresso do critério experimental, a ponto de, hoje, se reputar este critério, não só o único capaz de avaliar o saber do aluno, como o único possuidor de virtudes estimulantes e pedagógicas».

8. «O método experimental, tal qual é preferido pelo senso comum destina-se a conhecer os fenómenos, a aparência da realidade, e é exactamente como aparência que o aluno é conhecido no exame».

9. «Quanto mais se radica o ensino no saber examinável, mais se descobre o desconhecimento em que forçadamente são colocados o examinador e o examinando – basta observar o crescente cuidado de anonimato nos exames liceais, onde se está logicamente à espera da máquina perfeita, que consiga mascarar por completo a pessoa do examinador, pois este cuidado tem origem na opção de quem ensina e de quem examina, sendo a passividade do aluno apenas um reflexo da actividade do Professor. Isto significa que (…) o sistema do anonimato, da classificação e do exame, não consegue esconder totalmente a bilateralidade da nota classificadora. O professor que classifica, classifica-se».

10. «O examinando é que sente o falso drama, porque recaem sobre ele, sujeito passivo do exame, as consequências sociais e espirituais de um ensino positivista. Fala-se no ensino positivista porque o Positivismo é a escola filosófica (pelo menos considerada como tal) que, exceptuando o Marxismo, mais se organizou para se efectivar socialmente. É uma escola que se exprime e se difunde através do curso, do discurso e do catecismo. Conseguiu, portanto, criar no meio docente de há várias gerações um substrato que explica todas as outras tendências e aparentes progressos».


11. «O examinando sente o absurdo de um saber que termina na prova, e que nada tem que ver com a formação da sua personalidade, porque, no exame, se devolve aos Professores que examinam os conhecimentos que ensinaram. E percebe também que a experiência a que vai ser sujeito é uma humilhação necessária para se manter o sistema em que o Professor domina o aluno».

12. «Todos os factores convergem neste momento para agravar a humilhação, mas o que fere mais cruelmente o estado emocional do examinando, é o conluio que se estabelece entre a sua família e o professor que examina, a antecipada concordância que pais e parentes manifestam perante a justiça do exame, denunciando assim que confiam mais no critério de estranhos do que no poder revelador do amor familiar. Uma boa parte das famílias portuguesas vem a reconhecer o valor ou desvalor dos seus filhos pelos resultados dos exames».

13. «No sistema da prova, tal qual se realiza no ensino português, falta a projecção natural da Fé, da Esperança e da Caridade: não se crê no que se aprende, não se espera nada do que nos é ensinado nem se confia em quem nos ensina, porque o exame é contrário ao amor humano e só estimula malquerenças, invejas e adulações».

14. «Nele, no exame, está realmente o segredo. A esse balcão comercia o aluno com o professor um diploma; aí se radicam os interesses fundamentais da Universidade. O professor, quer queira quer não, ensina para o exame, e o aluno aprende para o exame».

15. «O exame é o segredo. O segredo que conserva um agregado social na aparência de ser composto por dois corpos – o docente e o discente – que tem relações de tipo societário, isto é, de interesses ocasionais, com vários alunos, indiferentes entre si, mas supondo e dando a supor que constituem o corpo discente».

16. «O exame para os alunos, e o concurso para os professores, são dois ardis pelos quais o conselho dos catedráticos das várias Faculdades constantemente recusa a necessidade de escolher. Claro que a opinião individual continua a ser o elemento preponderante e decisivo. Não obstante a objectividade que se quer atribuir ao exame, todos os que já foram alunos ou professores sabem que, querendo estes, não há exame que valha à sorte dum aluno. Nos concursos a decisão escondida é ainda mais evidente, mas apenas porque os candidatos são em muito menor número do que os examinandos e os interesses postos em jogo muito mais concentrados. Num e noutro caso, porém, passa-se o mesmo: recorre-se a um processo de aparência para fugir à decisão activa e pessoal, esconde-se a potencialidade da opinião sob a carpintaria dum acto abstracto e positivo».

17. «O que o exame jamais consegue, nem mesmo na aparência, é doar a disposição de aprendizagem, o amor à Verdade (…). E isto porque o exame não chega a ser um processo pedagógico, mas uma derivante grosseira do questionário, que, por sua vez, já é uma derivante do método psicológico da experimentação».




18. «(…) todo o português é, hoje, por estado normal, um examinando. O exame estendeu as suas raízes muito para além dos limites da escola e (…) se seguíssemos a sua sombra, caminharíamos por regiões insuspeitas e insuspeitáveis. Talvez chegássemos à mais alta hierarquia temporal e até religiosa. Quero com isto dizer que o ambiente de prova de exame, acalenta o estado anímico do português, em todas as suas manifestações, quer profissionais, quer políticas, quer religiosas. Talvez não seja difícil sustentar a tese de que o próprio Deus é hoje mais usualmente crido e sentido como Supremo Examinador do que como Deus de Amor».

19. «Todo o recém-nascido é já um examinando em potência e mal começam a amadurar as suas faculdades já o é em acto. E nunca mais o deixa de ser até à reforma – ou seja até à morte para o trabalho social».

Continua


domingo, 26 de dezembro de 2010

A questão das «filosofias nacionais»

Escrito por António Quadros





António Quadros



Uma questão que particularmente incomoda muitos dos nossos expositores de ideias, historiadores ou pensadores de mérito, é a da insígnia sob que conscientemente se colocaram alguns dos discípulos de Leonardo Coimbra, principalmente Álvaro Ribeiro e José Marinho, influentes na chamada geração do 57 e nalguns pensadores de gerações subsequentes: a da «filosofia portuguesa».

Pareceu-lhes insólito, ou escusado ou deturpante do carácter por assim dizer substantivo do pensamento filosófico, o acrescentar-lhe uma propriedade, uma qualidade, um adjectivo. Tudo como se no fundo concebessem que o substantivo é o nome designativo de uma substância, que, por si próprio sendo, sub-estando aos modos de estar, não admite adjectivação.

A seu ver, o substantivo de filosofia esgotaria pois o seu ser; ele, como o absoluto Ser, não teria de estar; seria um radicalmente substante ou substantivo.

Mas não é, não pode em boa lógica ser assim.

É que sendo uma actividade mental humana, fenomenológica e histórica, a filosofia não se coloca no plano da substância, mas no da estância. Ela expressa, digamos, o trânsito intelectual de estância para a substância, do ôntico para o ontológico, do particular para o uno através do universal; universal que não se pode confundir com o uno, porque é adunação para o uno, a partir do estar ou do como estar, em caminhar do plano a plano, versus unum.

Assim, o que há sob o estar, é algo, um núcleo essencial que só se pode inteligir, humanamente, no estar, em esforço mental de o transcender ou de o aproximar, embora com todos os limites impostos pelas categorias.

Ora o que é estar? O estar é, podemos dizer, o como do ser no mundo dos fenómenos, isto é, o como de ser no mundo sub-numenal. O estar é, por outro lado, o ser sujeito às categorias, o que viu antes de mais ninguém Aristóteles: lugar, tempo, situação, relação, quantidade, qualidade, hábito, acção e paixão.

Assim o que eu sou como substância, como essência (utilizemos as categorias segundo Aristóteles, porque neste contexto não carecemos de uma especial reflexão sobre elas), é o interior e também o transcendente, mas que não atinjo sem como tal me assumir e conhecer, ao meu ser modal e categorial, ou por outros palavras ao meu estar.

Assim (e releve-se o tipo das analogias empregadas) o que eu sou só se me dá através do meu estar e do meu estando: eu sou a um nível aquele que está nesta cidade, neste país (o ser-aqui de Heidegger, o lugar de Aristóteles); noutro nível, sou aquele que está nesta época, neste tempo; e aquele que está nesta determinada situação, por exemplo social, cultural, profissional; e também aquele que está numa dada relação familiar, política, associativa, etc.; e ainda aquele que está na vida como um individuado, um diferente, um eu entre muitos, mas também muitos entre muitos, porque o meu ser é simultaneamente plural e uno, heterónimo de mim próprio e homónimo, sou eu para mim, sou ele para os outros, sou nós na categoria de relação, sou também um grão de areia, unidade estatística como tal em certo plano definível; sou aquele que se qualifica pelo seu carácter, psicologia, personalidade e valor; sou aquele que não só está numa época, mas está nela durando (recordemos Bergson), exercendo uma acção permanente (tradução feita por Silvestre Pinheiro Ferreira à categoria aristotélica geralmente conhecida por hábito), isto é, afirmando uma continuidade variável mas em geral fiel a uma singular direcção; sou aquele que está segundo uma paixão ou paixões, paixão vital, paixão amorosa, paixão religiosa, paixão política, paixão de persistência na própria identidade e sua realização intensa...











Vejamos agora que se pensar é nível de ser, parte de ser, modo de ser, então não se confunde com o ser como substância, como essência: cai, pois também, sendo trânsito mental, do ser-acidental e categorial para o ser que sub-está e daqui para o ser que é, - no plano do estar.

Nestas condições, pensar não é uma parte de ser isolável das categorias ou acidentes da substância, isolável da estância, pensar participa também da estância. Não eu penso, logo sou; mas eu penso como sou e estou, ou como sou, estando; o meu pensar é um pensar-estar, por muito que seja um pensar, na filosofia, possuído da paixão de saber, que é paixão de ultrapassar as condições categoriais, de transcender o estar e atingir a substância, o que sub-está e daí o o que é e ultimamente O que é, o Ser sem relativo, a que os religiosos chamam Deus. Mas aos humanos só foi dado, só é porventura dado, pese à ilusão do progresso científico totalizante, um aproximar-se multímodo, relativo, sempre distanciado, embora evolutivo, da verdade almejada.

É por isso que naturalmente, filosofia é um substantivo que exige adjectivo. O adjectivo não é o epíteto, mesmo se originalmente os dois termos, nas suas respectivas origens latina e grega, tiveram significação semelhante.

Por outras palavras, quando escrevemos filosofia portuguesa, não acrescentamos um epíteto a um substantivo, isto é não empregamos o qualificativo de portuguesa para adornar, vestir, animar ou embandeirar o substantivo filosofia.

O que na realidade fazemos ao adjectivar a filosofia portuguesa, ou lusa, ou luso-brasileira, ou ibérica, ou ibero-americana, ou europeia, ou ocidental (o que vem tudo a dar (logicamente falando) ao mesmo, havendo só uma ampliação dos grupos humanos segundo as suas afinidades), é:

Primeiro («adjectivo restritivo»), restringir a filosofia, como substantivo abstracto, como substantivo abstracto de um imaginário pensar inespacial, ao concreto e ao intrínseco do pensamento segundo a categoria do lugar ou do ser-aqui, determinante do próprio das estruturas culturais diferenciadas, categoria em última análise expressa nas línguas, veículos inescapáveis da concepção filosófica.

Segundo («adjectivo determinativo»), determinar a modificação sofrida pelo substantivo abstracto (filosofia), na vivência circunstancial ou no acidente do lugar (os portugueses, Portugal), apontando um conteúdo qualificado.

E terceiro («adjectivo explicativo»), explicar que a propriedade ou qualidade representada no adjectivo é afinal, não contingente, mas necessária; não extrínseca mas intrínseca; não efémera, mas essencial.

Quer dizer não há filosofia em abstracto: toda a filosofia é, porque categorial, porque movimento da estância, ao mesmo tempo individuada, situada, temporalizada, qualificada, etc., relevando cumulativamente de um anseio de saber, superativo das determinantes categorias, transcendentalizante da condição de ser-estar.



Gottfried Wilhelm Leibniz



A sabedoria das nações diz-nos que há a filosofia platónica, a filosofia de Platão, filosofia individuada, a sua e de mais ninguém, irrepetível, em via intelectual que parte da sua experiência e inteligência singulares; e diz-nos também que há a filosofia indiana, ou a filosofia grega, ou a filosofia alemã, ou a filosofia inglesa, que se distinguem perfeitamente por suas linhas mestras, seus interesses dominantes, suas características, suas escolhas principais ou suas lacunas também; e diz-nos ainda que há a filosofia clássica, ou a filosofia medieval, ou a filosofia seiscentista ou a oitocentista; e não deixa de nos dizer que há as filosofias idealistas ou as filosofias voluntaristas, as filosofias pessimistas ou as optimistas, as filosofias angustiadas ou as de esperança, as filosofias de escola ou as criacionistas, as filosofias da negação ou as da afirmação: um Platão ou um Hegel, um Schopenhauer ou um Leibniz, um Kierkeggard ou um Marcel, um S. Tomás de Aquino ou um Leonardo Coimbra, um Nietzsche ou um Aristóteles são bons exemplos de tais concreções adjectivantes.

Sempre adjectivada, a filosofia. Segundo as categorias. E sempre segundo análogos princípios: elevar para o concreto o substantivo abstracto, conferir conteúdo humano e dinâmico ao nome estático e formal.

Filosofia portuguesa?

Naturalmente, porque lhe é de natureza exprimir a filosofia, em seu movimento mental, o todo do ente que pensa, sujeito às categorias, individuado, temporalizado, parte integrante de uma estrutura cultural situada, de uma paideia nacional e civilizacional, que o marca e para a qual ao mesmo tempo ele contribui criadoramente.

Ser grego é pensar grego. Lapidarmente, assim resumia Heidegger toda a questão.

Ser português é pensar português, análoga e necessariamente.






Porque, se há um ser português, isto é, um colectivo plural e contudo unívoco na sua singularidade, um ser português com seu inconsciente arcaico e mítico, com suas características e constantes repetidamente, embora evolutivamente afirmadas na linha sinuosa de um devir histórico de oito perseverantes séculos e meio, com sua expressão na literatura e na arte ou com sua tradução na língua, depósito supremo de arcanos, de riqueza lógica, de ideias-mães com peso metafísico -, então ele não deixará nunca de qualificar e personalizar a filosofia daqueles portugueses que, em liberdade de pensamento, em vez de se deixarem submergir pela erudição historiográfica ou pelo domínio das escolas sistemáticas ou ideológicas, são capazes de abrir os seus próprios caminhos na floresta das ideias.

Pensar português, no acordo com o ser português que o filósofo assume sempre que não tombe na tentação e na facilidade da alienação estrangeirada, é afinal a única via filosófica criativa ou criacionista que nos está aberta. O mesmo é dizer que o diálogo universal das ideias não é contraditório, ao contrário é consequente com o não sair o filósofo de si, como ente individuado mas participe de um colectivo unívoco. O pensador estrangeirado e por isso a nosso ver estéril é efectivamente aquele pretendente ao saber que se afastou da sua estrutura cultural e que, à força de adaptar o seu pensamento a uma linguagem filosófica alheia ou traduzida, renunciou à sua própria fortuna linguística e filológica, para compor obras que por isso mesmo, não paradoxalmente, rescendem fortemente a pensamento traduzido. O pensador estrangeirado é afinal o que saiu de si para ser um outro que nunca poderá ser, a menos que por completo se desintegre do organismo cultural que é o seu de origem. No limite, já não será então um estrangeirado, mas um estrangeiro, o que é perfeitamente aceitável, implicando no entanto o completo domínio de uma língua alheia e a perfeita integração na sua cultura histórica de eleição, passando pois a pertencer de direito a esta.

A importância essencial da língua, não só na expressão, mas também na criação filosófica, implica, no plano do pensamento, que se possa em rigor falar, por exemplo, numa filosofia anglo-americana, hispano-americana - ou luso-brasileira. A filosofia portuguesa, com sua tradição multissecular, seria assim a matriz de uma filosofia já trans-nacional, com raízes comuns e com desenvolvimentos um pouco diferentes, mas fraternos, nas nações de fala lusa.


Martinho Heidegger



É o motivo porque, para Álvaro Ribeiro, não há filosofia sem filologia. Esta é, digamos, o terreno onde se finca o filósofo para o seu voo metafísico, é o seu meio, o seu veículo. A língua portuguesa não é menos apta, disse, do que as línguas filosóficas mais conhecidas: o que muitas vezes faltou, foi o talento ou o génio dos pensadores para a assumir e activar. Heidegger vai mais longe (em «Que é pensar?», «Was heisst Denken?») quando diz que uma língua é o próprio pensamento. Assim, a filosofia portuguesa seria a língua portuguesa. O que equivale a dizer: filósofo português é o pensador que assume a língua portuguesa. É quase exactamente a ideia de Teixeira de Pascoaes, quando em A Arte de Ser Português, caracteriza a alma e o pensamento do nosso povo pelos seus vocábulos intraduzíveis. No mesmo sentido dizia também o filósofo alemão que só se pode traduzir grego para grego (in A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57 seguido de o Brasil mental revisitado, extraído do n.º 42/43 - Julho/Dezembro 1987 - da Revista Democracia e Liberdade).


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Os Reis Magos e a Tradição Portuguesa

Escrito por Álvaro Ribeiro






Convidado a falar solenemente sobre os Reis Magos, depois de haverem discorrido sobre o mesmo tema, um teólogo e dois filósofos, confesso-me intimidado perante quem irá comparar a minha ignorância com a alheia ciência. Não falto, porém, a um dever de cortesia, e, mais ainda, a uma expressão de amizade para com o anfitrião desta casa e presidente destas sessões. Falar solenemente é falar uma só vez por ano, como nos diz a semântica, e para mim talvez seja a única na vida em que direi quanto penso a respeito dos Reis Magos.

Tradicionalista, como sou e sempre fui, - por muito que pese a quem imagine o contrário, - acredito no Volkgeist e no folclore, como acredito também no Espírito Santo. Onde e quando se reúnam homens de boa fé há-de pairar um espírito subtil, invisível, comum, que nos anime para realização de prodígios. Tal é, aliás, o princípio da assembleia dos fiéis ou, seja, o princípio da Igreja. Eis porque me repugna aplicar o método individualista da análise luterana ou cartesiana, o livre exame, no estudo de tradições tão vivas, tão boas condutoras de calor humano e de calor divino, como é a tradição que agora celebramos. Diz-se que nos Evangelhos poucas palavras garantem positivamente a narrativa que nos é dada pela literatura popular e, consequentemente, a beleza etnográfica, para não dizer litúrgica, do culto dos Reis Magos. Pouco importa que letrados e legistas empalideçam ao fazer a recensão gramatical das palavras e das letras do texto sagrado. Todos sabemos que para a interpretação das Escrituras Sagradas, e, particularmente, para a Bíblia, temos de adoptar o paralelismo e a simetria dos símbolos, temos de refutar (quer dizer, de repelir) o esquema técnico da relação exacta entre o antecedente e o consequente. Deve-se à interpretação histórica, sociológica, positivista do documento sagrado a oposição moderna entre ciência e religião, oposição terrível quando se formula no campo da política, e todos bem sabemos que os maus políticos são filhos dos maus historiadores. Quanto afirmo, em despretensiosas palavras, está poética, eloquente e maravilhosamente demonstrado numa obra-prima de Novalis cuja leitura recomendo a todos vós: Die Christenheit oder Europa.

As Escrituras Sagradas hão-de ser lidas no conúbio, no casamento, no matrimónio do Espírito com a Letra, e assim me exprimo de propósito para acentuar a fecundidade e a criação da inteligência. O que torna possível a propagação católica do Evangelho é exactamente essa hierogamia, o pensamento que abraça, para lhes comunicar vida, as verdades de todos os homens e de todos os povos. Tal como a luz, tal como as cores, tal como os estados da matéria. Alegremo-nos, pois, de que uma palavra evangélica não fique isolada, celibatária, estéril, antes floresça e frutifique em admiráveis tradições populares.






Tradicionalista, como disse, acredito na Vox populi, e pelas razões expostas, acredito tanto mais no povo quanto mais ele for analfabeto. Demasiado conheço, - ai de mim! - os malefícios de letrados e legistas. Falta-me, porém, suficiente informação folclórica e etnográfica para vos dizer como é que o génio português, - aquele génio que, segundo Teixeira de Pascoaes, tem já uma expressão poética, filosófica e religiosa, - concebeu e desenvolveu a lenda dos Reis Magos, e por lenda quero dizer aquilo que leu e está lendo nos Evangelhos. Será lenda a reunião dos três poderes, - régio, mágico e sacerdotal, - numa só pessoa? Seria lendário o Prestes João de que nos falou Pero da Covilhã? Será apenas lendária a simbólica do ouro, do incenso e da mirra? Seja como quiserdes, mas não esqueçais que o nosso cantar dos Reis Magos tem variantes do Minho ao Algarve, e que também variam de região para região as cerimónias deste dia tão solene. Deixo, porém, a palavra aos folcloristas e aos etnógrafos.

A minha colaboração neste acto não significa mais do que adesão a quantos desejam que entre nós perdure a tradição portuguesa. Ela está, porém, em decadência. Facto evidente, não exige discriminação de sintomas. Já me referi à análise luterana ou cartesiana dos letrados e legistas. Chamo agora a vossa atenção para o calendário, tanto para o calendário civil como para o calendário litúrgico, onde a cerimónia vai decaindo de ano para ano. Comparai o que se observa no ano corrente com o que se observava há cinco, se não há dez, lustros, e verificareis sem dúvida a vitória do positivismo, isto é, a vitória daqueles que educados em longes terras estrangeiras se aclimam na terra portuguesa para combaterem as nossas tradições.

Dir-se-ia que já não há reis e que já não há magos. Faltando o termo de comparação, - a possibilidade do símbolo, - será impossível compreender a realeza, a magia, o sacerdócio de Cristo. Como diriam os neopositivistas que andaram na Escola de Viena, e também os professores de filosofia estrangeira na Universidade Portuguesa, aquelas palavras e aquelas expressões estão já destituídas de sentido. Vós bem sabeis que isto é verdade, e muitas vezes o verificais quando ouvis os termos iluministas, positivistas e socialistas de que usam e abusam agora os nossos pregadores.


Dir-se-ia que nos nossos seminários já não se ensina o que é um rei, o que é um mago, o que é um sacerdote. A palavra comum é chefe, porque estamos todos a falar francês, já que francesa dizem ser a nossa heráldica, a nossa numismática, a nossa esfragística. Não sabemos ler imagens, não sabemos ler miniaturas, e porque cessou entre nós o verdadeiro ensino da estética, vão desaparecendo da arte as tradições portuguesas. A tríade imanente que os Reis Magos significam, quando os representamos de coroa aberta, sem cruz nem tonsura, fica anulada nas trevas da ignorância estética, mas com ela também perde significação a unidade transcendente, ou seja, a divindade de Cristo.

Não vos foram, nem nos foram, atribuídas responsabilidades de guardiões dos símbolos religiosos. Sejam a escolha e a interpretação livre mister dos prelados, epoptas e vigilantes. A defesa dos símbolos populares, ou dos símbolos políticos, essa, é como um dever repartido por todos nós, como o serviço militar. É um dever repartido por todos nós, como o dizer respeitosamente a verdade política aos governantes, ainda que o testemunho ou martírio possa atrair um séquito de represálias. Enganar os governantes, ainda que na forma da lisonja, parece-me um crime de traição à Pátria.

Respondam os monárquicos, ou monarquistas, pelo significado que em seus escritos foram dando à balança, à espada e à moeda, aos símbolos da realeza, respondam e justifiquem por que, a partir do positivismo, negaram valor real às insígnias régias.

Quanto a mim, que nada tenho que ver a com a Fundação da Casa de Bragança, porque sou apenas um estudioso das tradições nacionais, creio que muitos são os erros dos doutrinadores monarquistas acerca da função régia, tal como foi concebida depois da Restauração e definida na Carta Constitucional, erros indesculpáveis na medida em que representam desconhecimento da História do Direito Português. Há uma filosofia no direito que os positivistas, por mais que queiram, não podem negar. O que importa é saber vê-la, é ter a teoria, e não reduzir só à prática as funções régias, tradicionais

Todos nós, quer defendamos o ideal democrata, o ideal aristocrata ou o ideal monocrata, estamos de acordo no mesmo desejo superior de restabelecer a justa coordenação e a justa subordinação das funções régias, mágicas e sacerdotais. As nossas divergências não são desinteligências, mas equívocos, ou seja, más interpretações de palavras que perderam o autêntico significado: a Torre de Babel antes do Pentecostes.



Rei será aquele que tiver uma ciência superior à dos outros nobres, a ciência que lhe permite descobrir, e até adivinhar, os verdadeiros homens superiores. A função régia é, pois, uma função de nobilitação que degenera na medida em que se limita ao reconhecimento de méritos que todos podem observar. A recompensa pública, porque já é de outra ordem, não atesta nobilidade. Vemos, assim, a transição da nobreza para o funcionalismo público. Quando a nobreza era hereditária, ou fidalguia, justificava-se a praxe exactamente pela espectativa de que o nobre não deixaria de engrandecer ou elevar o nome de família.

Na legislação individualista a família não tem existência objectiva nem essência conceitual, - não é existente nem essente , - e acredito que, dada a progressiva socialização que vós, sociólogos, desejais, a família proletária e parasitária desapareça de todo, sofrendo a lei do inutilia truncat que recai sobre os anacronismos. Hoje ainda a família goza de existência privada e subjectiva, nas relações de consanguinidade, afinidade e amor, mas tende a perder a última sanção do direito público. Na família se realiza, pois, a actualização dos símbolos e das tradições populares. Há uma espiritualidade fora da religiosidade que só a família conserva, como bem sabem aqueles que por todos os processos combatem a existência da família, dificultando ou impedindo o matrimónio. Não estiveram sem laços profundos verdadeiramente ligadas as festividades dos Reis Magos e da Sagrada Família nos povos de tradição cristã.

Quem mais se tem mantido fiel às tradições? O povo.

Quem mais se tem conservado fiel às tradições? O povo analfabeto, celebrando nas suas aldeias e nos seus lares o dia de Reis. Ele resiste, quanto pode, à industrialização do calendário, ele que sabe ver nos dias santos e feriados quanto mais importa prestar verdadeiro culto a Deus. Na gradação que vai do trabalho à arte, e da arte ao jogo, o povo alegre em seus ritos lúcidos tanto imita o Rei David como o Santo de Assis. Só nós, ou só vós, nestes tempos de indústria triste e de azedume operário, ignoramos ou ignorais, que tão religioso é o jogo, como a arte, como o trabalho.




S. Francisco de Assis




Em nossas casas, - em vossas casas -, existe ainda o hábito de repartir e comer o Bolo-Rei. Vede nesse ritual o trabalho, a arte e o jogo dos nossos pasteleiros. Não é sem razão que um bolo, cozinhado no princípio do ano, tenha a forma de um anel. Vede o símbolo solar. É o calendário que se há-de dividir em quatro partes, que por sua vez se subdividem em três. Não será preceito ir além do duodécimo, se quiserdes manter o mínimo aspecto sagrado. Cada fracção representa um mês, e a sorte dirá da delícia ou da amargura que nos será distribuída. Sempre os jogos hão-de estar relacionados com a profecia, e não há doutrina de trabalho contínuo que possa vencer antes de mutilar ou matar o homem. Variam de país para país as significações das prendas escondidas no Bolo-Rei. Sabeis o que elas significam entre nós. Reparai, porém, na proibição pitagórica de comer favas que eu interpreto, aliás, como aviso contra o espírito anti-tradicional, que é o espírito pitagórico, o espírito da queda, o espírito do mal. Levar-nos-ia longe a explicação do significado injurioso que a fava assume na linguagem do nosso povo, levar-nos-ia muito longe a exploração deste simbolismo. Aristotélico por cultura, e tradicionalista por formação, contemplo no esquema do Bolo-Rei e na imagem dos Reis Magos um símbolo cronológico sem o qual, salvo erro, tende a adulterar-se e a negar-se o catolicismo (in «Os Reis Magos e a Tradição Portuguesa», in As Portas do Conhecimento, com nota prefacial de Afonso Botelho, IAC, 1987, pp. 131-136; este escrito foi publicado pela primeira vez na revista Cidade Nova, IV Série, 1, Coimbra, Junho, 1955, 8-14).


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Champalimaud entra em cena

Escrito por Orlando Vitorino








Aí entra, e em toda a força, António Champalimaud. E eu, que ainda há dias exibia o meu orgulho de pobre, surpreendo-me a admirar o homem do dinheiro, o industrial que criou lenda entre os Portugueses.

Do Brasil se anunciara já, em entrevista telefonada a um dos seus jornais. Foi lisonjeiro para comigo, duvidando displicente dos candidatos presidenciais mas declarando que "ao Orlando Vitorino, em economia, dou 20 valores". Não podia ter tido eu melhor credencial.

Conheci-o há cinco anos, por altura das anteriores eleições presidenciais. Com a sua fisgada, viera do Brasil mas com passagem pela Inglaterra e Alemanha. Nessas terras lhe falaram de mim, em quem ele nunca ouvira falar. Desembarcado em Lisboa, logo me procura. Tenho de confessar que fiquei fascinado com a sua personalidade. O nosso primeiro encontro, em casa dele, prolongou-se desde as três da tarde até para além da meia-noite. Falou sem cessar. Contou minúcias da vida: que até aos 17 anos não tivera uns sapatos novos porque "herdava" os dos irmãos; que, durante quinze anos, passara as manhãs de todos os dias a responder a interrogatórios na Polícia Judiciária; que, por uns tantos anos, tivera de se exilar na Cidade do México. E entre suas misérias contou também de suas grandezas. Disse: "construi um império". Descreveu como comprara um Banco e, subindo a um andar do prédio defronte, levara a uma janela o maior banqueiro português e lho mostrara com uma simplicidade teatral ("é meu") que deixou o outro boquiaberto. Descreveu como comprara uma Companhia de Seguros olhando as fragatas que atravessavam o Tejo com produtos das suas fábricas. Descreveu como comprara as minas de Moncorvo a empresários franceses ("eu sim, eu é que nacionalizei") e as ia explorar como os outros nunca conseguiram (explicava: "seria o que há de mais fácil; eles é que nunca olharam para um mapa"). Descreveu como imaginara e planeara, exilado no México, o que ainda hoje não é a cidade industrial de Sines, plano que o Marcello lhe roubou mas não sabendo, nem ele nem os seus técnicos, executar. Descreveu, por fim, como alargara o seu "império" à África e referia-se, quase comovido, a Moçambique.

Levou tempo antes que falasse no que o trouxera até mim. E quando o fez, foi de chofre: "Eu serei o Presidente da República, Vocé será o Primeiro Ministro". Disse-o assim de chofre, decerto por um resto de receio. Argumentava: "Muitos deles foram meus empregados: o Spínola, o Zenha, o Proença, o Nobre da Costa... Muitos deles, fui eu quem os fez. O Zenha ("pagava-se bem, esse menino!"), o Zenha escreveu e publicou de mim o que só se diz de um ídolo (e mostrava o documento). O Nobre da Costa, esse, fez-se todo das migalhas que me vinha esmolar... Se eles são agora as grandes figuras do Estado, porque é que não hei-de ser eu o Presidente da República?"

Pois aí entrou ele outra vez em cena. Outra vez para ser Presidente da República. Mas não me procurou, agora. Pergunto-me porquê? Por eu já me haver candidatado e ter assim ficado seu adversário? Por ter alargado a mim, durante este longo intervalo em que nos deixámos de nos ver, a desconfiança que tem de toda a gente? Ou por não termos já nada que dizer um ao outro? Seja como for, não consigo deixar de sentir uma certa saudade desses meses em que ele seria Presidente da República e eu apenas Primeiro Ministro.



Champalimaud está em cena






Afinal, António de Champalimaud não deixa de me procurar e até me oferece de jantar no seu sumptuoso palácio da Lapa. Como outrora, ficamos longas horas a conversar, sentados frente a frente a uma mesa enorme numa sala forrada de magníficas tapeçarias Aubusson. Servem-nos uma velha criada que dá ao ambiente uma imagem de eternidade. Ainda não esqueci o nome dela: Conceição. Nem de quando, há cinco anos, eu ter vindo perguntar-lhe pelo patrão e ela, perplexa, ter acabado de me informar que andava no telhado da casa, onde havia telhas partidas. Champalimaud poupa-a: serve-me, serve-se. E fala, fala sempre.

Veio, como há cinco anos, preparar a candidatura. Pergunto-lhe: "Vai ganhar?" Fica perplexo. Depois responde: "O importante é fazer saber ao povo português que pode contar comigo..." E logo, mais forte: "...saber que eu invisto dinheiro, que é meu, na minha candidatura. É isso que eu quero que os Portugueses saibam". E vai prevendo o dia já próximo em que se desmoronará toda esta organização socialista que se apossou de Portugal. Nesse dia, os Portugueses irão recorrer a ele, dar-lhe-ão os poderes para pôr em prática as soluções que lhes vai agora propor na sua campanha eleitoral. Interrompo-o: "Admita que ganha? Que fará nesse caso?" Parece apossar-se dele uma espécie de delírio que, no entanto, logo controla. Mas acentua-se o seu modo de falar aos sacões, com expressões ora imperativas ora quase infantis e sempre em termos e vozes rudes. A minha pergunta leva-o a imaginar-se e descrever-se a si próprio subindo as escadarias do Parlamento para a cerimónia da posse, pisando tapetes vermelhos, entre alas de guardas republicanos fardados de luxo. Eu, cínico, insinuo:" Terá de jurar a Constituição". Reprime-se. Desenha com o braço um gesto largo, a apagar a imagem em que se estava vendo. E passa das grandezas imaginárias para as grandezas reais. Está, como ele diz, "outra vez rico". E enquanto eu fico a tentar imaginar o que seja, para este homem, a medida da riqueza, ele descreve a luta que acaba de travar com toda a indústria cimenteira do Brasil, como foi repetidamente acusado por Comissões parlamentares, o que teve de ouvir, o que soube responder. Por fim venceu. Descreve o combate e a vitória com imagens napoleónicas. No mais aceso da batalha, reuniu os seus homens de mercado e ordenou: "Damos tudo, menos dinheiro!" Passaram quarenta e oito dias e oito noites. Ao fim delas, fez-se um grande silêncio. Champalimaud esperou. Champalimaud subiu à torre. Não avistou viv'alma até onde a vista podia alcançar. O inimigo abandonara o campo de batalha. Era a vitória.

Está, pois, outra vez rico. Ri-se. Bate com a mão magra e longa no bolso: "Eu cheio de dinheiro, eles a tinir". Eles: o Estado, os políticos, os Partidos... "Vêm à minha porta, como pedintes. Há aí um Partido (parece-me entender o PSD) que quer que eu lhe dê as "obrigações" com que o Estado deles entendeu pagar-me as empresas que me roubou. Depositaram-nas num Banco, em meu nome. Mas eu não lhes toco. Porque hei-de ser eu a fazer um dia as contas. E como não lhes toco, os tipos imaginam que lhas posso dar". Ri-se e eu leio no seu riso: "o que os pobres diabos imaginam quando estão a tinir..."




Agora fala daquilo a que chama "o meu secretariado" para a campanha eleitoral. Já o tem composto e instalado. Hesita em dizê-lo, usa meias palavras... Eu quero conversar com toda a franqueza. Neste momento, não sei se em todos os momentos, um homem como este é muito mais importante do que essa coisa vaga, indefinida, meio teatral meio real, que é a Presidência da República. E digo-lhe tudo da preparação da minha candidatura: o que faço, o que tenho, quem trabalha comigo. Mas ele não consegue esconder a desconfiança de que eu só lhe digo o que me convém dizer-lhe. Em certo momento exclama: "Mas nós somos rivais".

Não, meu pobre riquíssimo amigo. Eu não sou rival de ninguém e muito menos de si, da sua personalidade fascinante, da amizade que me tem e não quer reconhecer porque nunca acreditou que houvesse amigos. E já que tanto gosta de citar clássicos, aqui lhe deixo um desabafo de Aristóteles: "Amigos? Não há amigos". Serve-lhe? A mim não. Por isso não sou rival de ninguém. Nestas eleições, limito-me a apresentar o que tenho e não é dinheiro, nem uma carreira triunfal de empresário, nem uma astúcia sinistra de político. Apenas tenho o que sei: um projecto de sociedade com o qual V, aliás, concorda quando está livre dos demónios que o trazem tantas vezes possesso. E proponho-o, muito simplesmente, aos Portugueses. Não quero saber do poder para nada. Afigura-se-me até que há uma certa obscenidade no poder político. Repugna-me mandar nos outros homens. Avilta-me a importância social. As escadarias atapetadas de vermelho já as fiz subir muitas vezes aos actores, no palco dos teatros. Aprendi com eles que tudo isso é fictício e só tem beleza quando se faz a fingir. O discurso de Marco António com o cadáver de César nos braços é tão belo na peça de Shakespeare como deve ter sido repugnante na realidade vivida. O que falta cada vez mais à humanidade é educação estética. Em especial aos políticos. Todos eles são actores sem personagem.

Actor sem personagem é o que Champalimaud não é. Dia a dia, hora a hora, ao longo de uma vida inteira, criou ele a personagem de que é actor. É um homem a sério, com uma grande obra feita e a fazer, e um justo orgulho de a ter feito. Aí o tenho à minha frente. E apossa-se de mim um mau desejo de lhe explorar a desconfiança que tem para comigo. Dirijo-lhe perguntas como esta: "Afinal, o que é isso do seu secretariado? Quem o compõe?" Ele hesita, mas resiste. Encolhe os ombros, atira a mão magra e murmura: "... uns professores universitários..." Outra pergunta, mais pessoal, a propósito de ele ter declarado, numa entrevista, que "todos os candidatos são zero ou nada". Sem qualquer laivo de censura, digo-lhe: "Também me inclui a mim nesse zero?" Mas surpreendo-me a ser eu próprio quem responde: "Claro que V. só se referia aos candidatos do sistema..." Concorda com um olhar e um sorriso que eu diria gratos.

Quando o deixei, vim com a certeza de que, como há cinco anos e como daqui a cinco anos, António Champalimaud não chegará a apresentar a sua candidatura.





(...) Um homem das Arábias


Logo de manhã leio a toda a largura da 1.ª página de um jornal: "Champalimaud: todos temos de votar em Freitas do Amaral".

Um homem das Arábias, este Champalimaud. Há poucos dias, dizia-me peremptório e duro: "Tudo, menos votar no Freitas" (in O processo das Presidenciais 86, pp. 24-26 e 62).


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Aprendizes de Judas

Escrito por Olavo de Carvalho




Ver aqui






























O Globo, 15 de março de 2003

Em 14 de janeiro, Mel Gibson foi ao programa de Bill O'Reilly, na Fox News, denunciar a perseguição que vinha sofrendo desde que anunciara seu intuito de filmar a crucificação de Nosso Senhor Jesus Cristo exatamente como narrada nos Evangelhos. Um filme abertamente cristão era mais do que o Politburô de Hollywood podia suportar: repórteres e detetives particulares não paravam de vasculhar as contas bancárias e a vida privada do ator em busca de matéria-prima para algum escândalo.

Não tendo encontrado nenhum esqueleto no armário do astro de “Coração Valente”, seus detratores passaram ao plano B: sopraram aos ouvidos de um rabino conservador, Marvin Hier, tido como freqüentador da Casa Branca, que o novo filme, “The Passion”, tinha algo de anti-semita. Muitos repórteres e críticos, entre eles o jornalista judeu Jeff Israely, da Time, tinham lido o roteiro sem notar nada disso. Tudo o que o rabino sabia era que um artigo da New York Times Magazine havia retratado Gibson, aliás corretamente, como um irlandês católico ultraconservador. Mas, mesmo com tão pouca munição, Hier não quis perder a ocasião de mostrar serviço ao Centro Simon Wiesenthal, do qual é um dos fundadores. Mais que depressa, deu à agência Reuters uma entrevista em que, admitindo não ter visto nada do filme e nem sequer ter lido o artigo, jogava sobre Mel Gibson as mais inquietantes suspeitas, desde a de fazer propaganda anti-semita até a de pretender, com o filme... revogar as decisões do Concílio Vaticano II!

A mídia americana, malgrado seu esquerdismo crônico e anti-israelismo agudo, até que cobriu o assunto decentemente. Mas a brasileira, que não publicara uma só palavra da denúncia de Gibson, apressou-se em dar ampla divulgação ao besteirol de Hier, apresentando-o implicitamente como expressão unânime da opinião judaica americana. Para piorar, a coisa vinha reforçada pela previsão alarmante de uma iminente “caça às bruxas” voltada contra as estrelas de Hollywood que tinham participado das passeatas pró-Iraque. Um caso concreto de perseguição política era assim encoberto sob densa camada de especulações futuras, ao mesmo tempo que a vítima se transformava em bandido por obra de uma testemunha que admitia nada saber contra ela.

O leitor pode estar se perguntando: por que dar tanta importância a essa desprezível trapaça de jornalistas de Terceiro Mundo e terceiro time, mais uma entre milhares? Já não está provado que essas criaturas são apenas idiotas úteis, ou pelo menos ambicionam sê-lo quando crescerem?






É que a utilidade da idiotice, no caso, é maior do que seus próprios portadores imaginam. Hier não fala pela comunidade judaica. O mais eloqüente defensor de Gibson na celeuma tem sido um escritor judeu, James Hirsen, da revista Newsmax. E a atriz principal do filme, no papel da Virgem Maria, é a judia romena Maia Morgenstern, que mereceria o Oscar de desatenção se depois de todos esses meses de trabalho em “The Passion” não tivesse ali percebido sinais de anti-semitismo caso os houvesse realmente.

Mas o próprio rabino também não é unanimidade. Ele tem recebido pesadas críticas de judeus por recusar-se a usar de sua influência nos altos círculos em favor de Jonathan Pollard. Pollard é um judeu americano, analista de inteligência da Marinha, que um dia passou ao Mossad, ilegalmente, dados do serviço secreto americano sobre armas químicas e bacteriológicas fabricadas por países árabes para ser usadas contra Israel. Encrencado com a justiça, acabou se refugiando em Tel-Aviv. Toneladas de petições a três presidentes ainda não conseguiram trazê-lo de volta para casa. É difícil dizer se Pollard é um traidor ou um herói. O que é certo é que até hoje ele é uma batata quente nas relações EUA-Israel, e Hier é o último que desejaria segurá-la: teme passar por chato entre os figurões republicanos, e sua omissão o torna odioso aos milhares de fãs do espião exilado. Ora, acontece que o principal sustentáculo político e cultural de George W. Bush é a aliança, já velha de muitas décadas e cada vez mais forte, entre conservadores judeus e cristãos. Hier é um ponto fraco nessa aliança, pela sua atitude no caso Pollard. Mais vulnerável ainda ele se torna porque, além de rabino, é também homem do show business: produtor e roteirista. Vive num meio infestado de fãs de Saddam Hussein, os Martin Sheens e Sean Penns da vida. Imaginem, portanto, de onde lhe vieram as dicas falsas sobre o filme que não viu e o artigo que não leu. E imaginem por que foi ele o escolhido para assar a reputação de Mel Gibson até fazer dela uma batata tão quente quanto Jonathan Pollard. Que maravilha, para os inimigos dos EUA e de Israel, poder usar um rabino direitista como instrumento para espalhar a cizânia entre judeus e cristãos, ameaçando debilitar a aliança conservadora no instante em que a esquerda mundial precisa com toda a urgência varrer o assunto “armas químicas e bacteriológicas” para baixo do tapete! Mais adorável ainda é que façam isso a pretexto de combater o anti-semitismo, quando eles próprios acabam de lançar a maior onda de propaganda anti-semita que já se viu no mundo desde a década de 30. E chega a ser sublime que mostrem tal desvelo em proteger a comunidade judaica contra o temível Mel Gibson, ao mesmo tempo que, nas ruas, marcham contra Sharon e Bush ao lado do líder nazista David Duke.








E Mel Gibson? Gibson só desempenhou nesse imbróglio o papel bíblico do bode expiatório, com a diferença de que o sacrifício deste era usado para reconciliar a comunidade, enquanto o dele foi planejado para dividi-la.

Já dos jornalistas brasileiros, com sua tradicional subserviência canina aos ditames da moda esquerdista chique de Hollywood e Nova York, não se pode dizer sequer que fizeram o papel de Judas. São, na melhor das hipóteses, aspirantes a Judas. Pois Judas, ao menos, sabia para quem fazia a parte suja do serviço.