sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Os Reis Magos e a Tradição Portuguesa

Escrito por Álvaro Ribeiro






Convidado a falar solenemente sobre os Reis Magos, depois de haverem discorrido sobre o mesmo tema, um teólogo e dois filósofos, confesso-me intimidado perante quem irá comparar a minha ignorância com a alheia ciência. Não falto, porém, a um dever de cortesia, e, mais ainda, a uma expressão de amizade para com o anfitrião desta casa e presidente destas sessões. Falar solenemente é falar uma só vez por ano, como nos diz a semântica, e para mim talvez seja a única na vida em que direi quanto penso a respeito dos Reis Magos.

Tradicionalista, como sou e sempre fui, - por muito que pese a quem imagine o contrário, - acredito no Volkgeist e no folclore, como acredito também no Espírito Santo. Onde e quando se reúnam homens de boa fé há-de pairar um espírito subtil, invisível, comum, que nos anime para realização de prodígios. Tal é, aliás, o princípio da assembleia dos fiéis ou, seja, o princípio da Igreja. Eis porque me repugna aplicar o método individualista da análise luterana ou cartesiana, o livre exame, no estudo de tradições tão vivas, tão boas condutoras de calor humano e de calor divino, como é a tradição que agora celebramos. Diz-se que nos Evangelhos poucas palavras garantem positivamente a narrativa que nos é dada pela literatura popular e, consequentemente, a beleza etnográfica, para não dizer litúrgica, do culto dos Reis Magos. Pouco importa que letrados e legistas empalideçam ao fazer a recensão gramatical das palavras e das letras do texto sagrado. Todos sabemos que para a interpretação das Escrituras Sagradas, e, particularmente, para a Bíblia, temos de adoptar o paralelismo e a simetria dos símbolos, temos de refutar (quer dizer, de repelir) o esquema técnico da relação exacta entre o antecedente e o consequente. Deve-se à interpretação histórica, sociológica, positivista do documento sagrado a oposição moderna entre ciência e religião, oposição terrível quando se formula no campo da política, e todos bem sabemos que os maus políticos são filhos dos maus historiadores. Quanto afirmo, em despretensiosas palavras, está poética, eloquente e maravilhosamente demonstrado numa obra-prima de Novalis cuja leitura recomendo a todos vós: Die Christenheit oder Europa.

As Escrituras Sagradas hão-de ser lidas no conúbio, no casamento, no matrimónio do Espírito com a Letra, e assim me exprimo de propósito para acentuar a fecundidade e a criação da inteligência. O que torna possível a propagação católica do Evangelho é exactamente essa hierogamia, o pensamento que abraça, para lhes comunicar vida, as verdades de todos os homens e de todos os povos. Tal como a luz, tal como as cores, tal como os estados da matéria. Alegremo-nos, pois, de que uma palavra evangélica não fique isolada, celibatária, estéril, antes floresça e frutifique em admiráveis tradições populares.






Tradicionalista, como disse, acredito na Vox populi, e pelas razões expostas, acredito tanto mais no povo quanto mais ele for analfabeto. Demasiado conheço, - ai de mim! - os malefícios de letrados e legistas. Falta-me, porém, suficiente informação folclórica e etnográfica para vos dizer como é que o génio português, - aquele génio que, segundo Teixeira de Pascoaes, tem já uma expressão poética, filosófica e religiosa, - concebeu e desenvolveu a lenda dos Reis Magos, e por lenda quero dizer aquilo que leu e está lendo nos Evangelhos. Será lenda a reunião dos três poderes, - régio, mágico e sacerdotal, - numa só pessoa? Seria lendário o Prestes João de que nos falou Pero da Covilhã? Será apenas lendária a simbólica do ouro, do incenso e da mirra? Seja como quiserdes, mas não esqueçais que o nosso cantar dos Reis Magos tem variantes do Minho ao Algarve, e que também variam de região para região as cerimónias deste dia tão solene. Deixo, porém, a palavra aos folcloristas e aos etnógrafos.

A minha colaboração neste acto não significa mais do que adesão a quantos desejam que entre nós perdure a tradição portuguesa. Ela está, porém, em decadência. Facto evidente, não exige discriminação de sintomas. Já me referi à análise luterana ou cartesiana dos letrados e legistas. Chamo agora a vossa atenção para o calendário, tanto para o calendário civil como para o calendário litúrgico, onde a cerimónia vai decaindo de ano para ano. Comparai o que se observa no ano corrente com o que se observava há cinco, se não há dez, lustros, e verificareis sem dúvida a vitória do positivismo, isto é, a vitória daqueles que educados em longes terras estrangeiras se aclimam na terra portuguesa para combaterem as nossas tradições.

Dir-se-ia que já não há reis e que já não há magos. Faltando o termo de comparação, - a possibilidade do símbolo, - será impossível compreender a realeza, a magia, o sacerdócio de Cristo. Como diriam os neopositivistas que andaram na Escola de Viena, e também os professores de filosofia estrangeira na Universidade Portuguesa, aquelas palavras e aquelas expressões estão já destituídas de sentido. Vós bem sabeis que isto é verdade, e muitas vezes o verificais quando ouvis os termos iluministas, positivistas e socialistas de que usam e abusam agora os nossos pregadores.


Dir-se-ia que nos nossos seminários já não se ensina o que é um rei, o que é um mago, o que é um sacerdote. A palavra comum é chefe, porque estamos todos a falar francês, já que francesa dizem ser a nossa heráldica, a nossa numismática, a nossa esfragística. Não sabemos ler imagens, não sabemos ler miniaturas, e porque cessou entre nós o verdadeiro ensino da estética, vão desaparecendo da arte as tradições portuguesas. A tríade imanente que os Reis Magos significam, quando os representamos de coroa aberta, sem cruz nem tonsura, fica anulada nas trevas da ignorância estética, mas com ela também perde significação a unidade transcendente, ou seja, a divindade de Cristo.

Não vos foram, nem nos foram, atribuídas responsabilidades de guardiões dos símbolos religiosos. Sejam a escolha e a interpretação livre mister dos prelados, epoptas e vigilantes. A defesa dos símbolos populares, ou dos símbolos políticos, essa, é como um dever repartido por todos nós, como o serviço militar. É um dever repartido por todos nós, como o dizer respeitosamente a verdade política aos governantes, ainda que o testemunho ou martírio possa atrair um séquito de represálias. Enganar os governantes, ainda que na forma da lisonja, parece-me um crime de traição à Pátria.

Respondam os monárquicos, ou monarquistas, pelo significado que em seus escritos foram dando à balança, à espada e à moeda, aos símbolos da realeza, respondam e justifiquem por que, a partir do positivismo, negaram valor real às insígnias régias.

Quanto a mim, que nada tenho que ver a com a Fundação da Casa de Bragança, porque sou apenas um estudioso das tradições nacionais, creio que muitos são os erros dos doutrinadores monarquistas acerca da função régia, tal como foi concebida depois da Restauração e definida na Carta Constitucional, erros indesculpáveis na medida em que representam desconhecimento da História do Direito Português. Há uma filosofia no direito que os positivistas, por mais que queiram, não podem negar. O que importa é saber vê-la, é ter a teoria, e não reduzir só à prática as funções régias, tradicionais

Todos nós, quer defendamos o ideal democrata, o ideal aristocrata ou o ideal monocrata, estamos de acordo no mesmo desejo superior de restabelecer a justa coordenação e a justa subordinação das funções régias, mágicas e sacerdotais. As nossas divergências não são desinteligências, mas equívocos, ou seja, más interpretações de palavras que perderam o autêntico significado: a Torre de Babel antes do Pentecostes.



Rei será aquele que tiver uma ciência superior à dos outros nobres, a ciência que lhe permite descobrir, e até adivinhar, os verdadeiros homens superiores. A função régia é, pois, uma função de nobilitação que degenera na medida em que se limita ao reconhecimento de méritos que todos podem observar. A recompensa pública, porque já é de outra ordem, não atesta nobilidade. Vemos, assim, a transição da nobreza para o funcionalismo público. Quando a nobreza era hereditária, ou fidalguia, justificava-se a praxe exactamente pela espectativa de que o nobre não deixaria de engrandecer ou elevar o nome de família.

Na legislação individualista a família não tem existência objectiva nem essência conceitual, - não é existente nem essente , - e acredito que, dada a progressiva socialização que vós, sociólogos, desejais, a família proletária e parasitária desapareça de todo, sofrendo a lei do inutilia truncat que recai sobre os anacronismos. Hoje ainda a família goza de existência privada e subjectiva, nas relações de consanguinidade, afinidade e amor, mas tende a perder a última sanção do direito público. Na família se realiza, pois, a actualização dos símbolos e das tradições populares. Há uma espiritualidade fora da religiosidade que só a família conserva, como bem sabem aqueles que por todos os processos combatem a existência da família, dificultando ou impedindo o matrimónio. Não estiveram sem laços profundos verdadeiramente ligadas as festividades dos Reis Magos e da Sagrada Família nos povos de tradição cristã.

Quem mais se tem mantido fiel às tradições? O povo.

Quem mais se tem conservado fiel às tradições? O povo analfabeto, celebrando nas suas aldeias e nos seus lares o dia de Reis. Ele resiste, quanto pode, à industrialização do calendário, ele que sabe ver nos dias santos e feriados quanto mais importa prestar verdadeiro culto a Deus. Na gradação que vai do trabalho à arte, e da arte ao jogo, o povo alegre em seus ritos lúcidos tanto imita o Rei David como o Santo de Assis. Só nós, ou só vós, nestes tempos de indústria triste e de azedume operário, ignoramos ou ignorais, que tão religioso é o jogo, como a arte, como o trabalho.




S. Francisco de Assis




Em nossas casas, - em vossas casas -, existe ainda o hábito de repartir e comer o Bolo-Rei. Vede nesse ritual o trabalho, a arte e o jogo dos nossos pasteleiros. Não é sem razão que um bolo, cozinhado no princípio do ano, tenha a forma de um anel. Vede o símbolo solar. É o calendário que se há-de dividir em quatro partes, que por sua vez se subdividem em três. Não será preceito ir além do duodécimo, se quiserdes manter o mínimo aspecto sagrado. Cada fracção representa um mês, e a sorte dirá da delícia ou da amargura que nos será distribuída. Sempre os jogos hão-de estar relacionados com a profecia, e não há doutrina de trabalho contínuo que possa vencer antes de mutilar ou matar o homem. Variam de país para país as significações das prendas escondidas no Bolo-Rei. Sabeis o que elas significam entre nós. Reparai, porém, na proibição pitagórica de comer favas que eu interpreto, aliás, como aviso contra o espírito anti-tradicional, que é o espírito pitagórico, o espírito da queda, o espírito do mal. Levar-nos-ia longe a explicação do significado injurioso que a fava assume na linguagem do nosso povo, levar-nos-ia muito longe a exploração deste simbolismo. Aristotélico por cultura, e tradicionalista por formação, contemplo no esquema do Bolo-Rei e na imagem dos Reis Magos um símbolo cronológico sem o qual, salvo erro, tende a adulterar-se e a negar-se o catolicismo (in «Os Reis Magos e a Tradição Portuguesa», in As Portas do Conhecimento, com nota prefacial de Afonso Botelho, IAC, 1987, pp. 131-136; este escrito foi publicado pela primeira vez na revista Cidade Nova, IV Série, 1, Coimbra, Junho, 1955, 8-14).


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