sábado, 8 de janeiro de 2011

Filosofia como valor e filosofia como utilidade (ii)

Escrito por José Marinho





Sócrates



Não é verdade, entretanto, como pretendem certos compêndios amáveis para a suficiência comum, não é verdade existir um filósofo em cada homem? Difícil é responder depressa e bem. Difícil, muitas vezes, decidir da verdade ou da justeza de uma questão aparentemente simples e bem posta. Há proposições de aspecto problemático nas quais se não põem verdadeiros problemas. E a afirmação, segundo a qual todo o homem é um filósofo, pode ser considerada justa, se entendermos por ela que a existência não pode realizar-se sem se pensar (ainda quando minimamente o faça) e que o homem não pode realizar as suas humanas possibilidades sem se pôr, por vezes, o problema do que lhe é seguramente possível, que não pode realizar o seu destino humano sem se pôr, por vezes, qualquer que seja a maneira como os resolva, os problemas do destino, do bem e da possibilidade de realizá-lo, da imortalidade e de Deus. Deste modo, é legítima a afirmação segundo a qual todo o homem é um filósofo. Mas ainda, reflectindo atentamente, não nos podemos contentar com isto. Pois quantas vezes a afirmação aludida não tem outro propósito que não seja legitimar a tranquilidade cómoda de quantos se não interessam por desenvolver o filósofo germinal que em si levam, quantas vezes tal afirmação visa apenas adormecer ou desvalorizar a inquietação angustiada ou ansiosa, o enigma que já vimos estar na origem de todo valioso pensamento! (3)

É o homem, quando não atingiu a inquietação angustiada ou ansiosa, como quem, minado por uma doença, não chegou ainda à dor ou sentimento do desgaste fisiológico ou orgânico que a revela plenamente. A situação de um tal homem traduz-se nesta pergunta: «Estou na verdade doente?» E não: «Estou gravemente doente; - mas será a minha doença curável ou incurável?»

É, pois, justa a ideia de que todo o homem é um filósofo, se entendermos por ela que todo o homem é um filósofo germinal. Falsa, porém, enquanto implique desvalorização da inquietação originária em todo o pensamento sincero e directo, falsa enquanto implique assimilação ou identidade do espírito de curiosidade do homem suficiente, com o espírito de problema pelo qual o pensamento se constitui, falsa enquanto assimile o devaneio estéril ou o pensamento satisfeito e tranquilo do homem de acção, erudítico, sabedor, técnico ou pragmático, com o pensamento que intui, perscruta, apreende e compreende.

Assim ao pensamento que se esforça pela luz e pela verdade se deparam seus dois ancestrais inimigos: o espírito simplista e o espírito idólatra. O espírito simplista da menor erudição acumulativa de conhecimentos e da cultura pragmatizante, que ou desatendem o valor da filosofia ou a consideram como um ramo de saber entre outros, ignorando, por este modo, a filosofia como árvore do saber e sua seiva; que ou reduzem a filosofia a propedêutica de cultura ou propedêutica de acção. O espírito idólatra do político ou do religioso vulgar que já tem a sua filosofia inconsciente, optimista ou pessimista, esperançada ou desesperada, e não quer ir além dela com receio, preguiça e insuficiência, ou por considerar o que, segundo ele, existe de impossível e quimérico no esforço por desvendar os mais fundos enigmas.

Por toda a parte e todas as épocas de transmutação de valores e em todos os filósofos inovadores, na cultura da humanidade ou na mais restrita de um país, se deparam à filosofia o simplismo de cultura e os vários ídolos, tendo de os criticar ou de se guardar do seu perigoso influxo. Assim com Sócrates, com Platão, com Bacon e Descartes, com Kant, e com Bergson no nosso tempo. Em poucos países, porém, terá o pensamento filosófico, como em Portugal, existência mais intermitente, mais dramático destino.



Francisco Bacon



O sentido de quanto aparece de precário, intermitente e inseguro no pensamento filosófico português, ditou a Bruno, na abertura de A Ideia de Deus, alguma palavras que importa aqui citar, palavras nas quais perpassa certa amarga ironia, aquela ironia certeira, embora pesada, que é a sua: «Nunca os portugueses mostraram queda para as altas especulações filosóficas; e a metafísica à nossa gente pareceu sempre ludíbrio fátuo de cerebrações senão já de raiz mórbidas, perturbadas, contudo, na normalidade clara de uma pachorrenta irrigação sadia. Não impediu esta originária indisposição, estrutural, de natureza e essência, que, à laia do demais, como dever de ofício e encargo de profissão, nas aulas públicas, de todo o tempo, se lesse, entre nós, de filosofia e que até pretendesse o engenho pátrio, donde a onde, alçapremar-se à região vaga das cogitações metafísicas, que, em regra, uma invencível, preguiçosa antipatia formalmente sentenciara e categoricamente condenara».

A leitura atenta desse trecho de Sampaio Bruno mostra como o autor de A Ideia de Deus via bem a crise filosófica portuguesa. Auscultou-a mais intimamente, embora - e porque - não tão agudamente a sentisse como a sentira Antero.

Não queremos deter-nos na interpretação do trecho citado, pois de Bruno só acidentalmente nos ocupamos, como de Antero, para melhor esclarecer pelas aproximações e contrastes o significado e o valor da obra e do pensamento cujo estudo nos interessa. No trecho citado, poremos em relevo a ideia (expressa com ironia pesada, mas certeira) de que a filosofia era cultivada à laia do demais, isto é, como disciplina entre as disciplinas, e não como fonte e fim de todo o saber, alfa e ómega de todo o pensamento e conhecimento. Essa citação bem deixa ver como Bruno superava aquele plano de erudição onde muitas vezes se moveu, mas de que se não satisfez.

Assim, um dos nossos grandes pensadores injustamente esquecidos se aproximou do sentido de autonomia especulativa nesse livro complexo e exteriormente vário, como são os seus livros, mas onde algumas ideias essenciais e dignas de reflexão aparecem. Entre essas, essencial e digna de reflexão se afigura a ideia inspiradora do trecho a seguir transcrito: «Parece que nascemos destituídos de imaginação criadora; e assim, os sistemas metafísicos hostilizamo-los, visto como não se entende nunca bem senão aquilo que se cria» (4).

Se se verificasse a presunção hipotética de Bruno, isto é, se os portugueses nascessem, com efeito, destituídos do que chama imaginação criadora, não haveria a esperar, certamente filosofia portuguesa. A tentativa anteriana teria sido veleidade e as de Bruno e Leonardo Coimbra obstinação. Não existem, porém, povos onde não surjam homens com imaginação criadora (aceitando a expressão de Bruno) e com as diversas virtualidades de que ela é susceptível. Simplesmente essa imaginação criadora pode estar frenada por hábitos mentais precários ou revelar-se ainda num compromisso com outras formas de actividade do espírito ou outras ordens de interesses.




A própria obra do autor de O Encoberto, cujo estudo sério e meditado trará um dia surpresas, mostra autêntico dom especulativo, perante o qual o do mais estimado Antero fará talvez má figura. E, ao afirmar tal dom para Bruno ou para Leonardo Coimbra, nenhum objectivo particularista ou nacionalista nos seduz, não nos move qualquer propósito destituído de universalidade e veracidade. Consideramos, simplesmente, a natureza ou o demiurgo muito mais generosos para os homens em geral do que de ordinário se supõe. Não vamos até afirmar que em todos os homens a imaginação criadora surja revelando-se. A imaginação na maioria dos homens é imaginação da criatura e não imaginação de criador. Se a revelação do homem criador se torna difícil em muitos casos e condições, isso não significa a inexistência ou o não valor do espírito criador ali onde, com firmeza, nos apercebemos dele. Basta ler com atenção A Ideia de Deus e meditar a concepção do divino em Bruno, basta ler a sua crítica do positivismo e as suas reflexões sobre a filosofia em geral e sobre o pensamento seu contemporâneo, em O Brasil Mental, basta seguir, o que requer alguma paciência e trabalho, mas não é impossível, a interpretação do messianismo em O Encoberto (implicada, aliás, com A Ideia de Deus), para nos sabermos perante um autêntico especulativo, embora realizando-se nas adversas condições possíveis.

Agora, um problema instante nos ocupará. Se a filosofia verdadeira se distingue pelo sentido de autonomia especulativa nos homens que a cultivam, se a filosofia se cria e se não aprende, se vale por si mesma e não pelas aplicações que se lhe atribuam - como se situa o pensamento, a actividade e a obra de Leonardo Coimbra em relação a esta ideia? (in ob. cit., pp. 21-26).


Notas:

(3) Não consiste, claramente, a filosofia na manifestação da inquietude. Essa manifestação caracteriza mais propriamente a arte. A filosofia é um acto de conhecimento cuja raiz é o sentido enigmático do ser de que a inquietação é dramática forma. Há, aliás, duas ordens de filósofos: aqueles em que a inquietação subsiste invisível e aqueles em que é subjacente. Veremos como o pensamento de Leonardo Coimbra realiza aquele primeiro tipo de conhecimento.

(4) A Ideia de Deus, p. 32.


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