segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A mulher enquanto alimento do homem

Escrito por Ernesto Palma








«Emília – Os homens são só estômago, nós o seu alimento.
Quando famintos, comem-nos. Depois, saciados, vomitam-nos».

William Shakespeare («Otelo»).



Solene advertência:

Ernesto Palma autorizou-nos a publicar o texto, excerto de um longo Tratado de Culinária, a que deu o título de A Mulher enquanto Alimento do Homem, com a condição de o precedermos desta solene advertência: a de que este escrito nada tem a ver com sexo.

Por dois motivos impõe ele a advertência, um jocoso, outro estético. Um jocoso porque não poderá o autor suportar ver-se abordado por leitoras que, ou mais femininas e iludidas com o que vai no mundo, lhe solicitem receitas culinárias em que se querem servir ao homem, ou, mais feministas e enganadas, o queiram militantemente agredir. E se Ernesto Palma não quer servir de pasto à risota estúpida dos homens ignorantes e grosseiros, também tem a convicção de que o seu escrito, mais tarde o seu Tratado, não é coisa para mulheres lerem.

O motivo estético da advertência acaba por ser muito mais do que estético. Trata-se do seguinte:

Na alvorada do mundo, muitos milénios antes de Deus ter encarnado e se fazer homem, encarnou a Beleza fazendo-se mulher. E assim como Deus, ao fazer-se homem, disse aos homens: “Comei, que é o meu corpo”, assim a mulher em quem a Beleza encarnou disse, mas mais simplesmente: “Comei…”

Formou-se uma religião, uma liturgia, seus ritos, seus cultos e sua igreja, para receptáculo da comida que Deus fez de si. O que se formou para comer a mulher, ou a Beleza que se fez mulher para ser comida, não foi uma religião, foi a arte, toda a arte, que sem isso nunca teria existido.

Ernesto Palma é, como se sabe, um homem do teatro, não um homem de teatro: não é dramaturgo, nem actor, nem empresário, não escreve nem encena peças, mas fez do teatro o seu habitat desde que os desatres dos campos agrícolas onde nasceu o exilaram para a cidade. Aí assistiu, depois da falência agrícola, à falência do teatro cujos restos se acabaram por refugiar em revistas do Parque Mayer, em Lisboa. Ou à tarde, sentado num “café”, a uma mesa sobre a qual se espalham, em volta do livro que vai lendo, chávenas vazias, o maço de cigarros, os óculos que tira e põe, ou à noite, saindo e entrando pela porta da caixa dos teatros, espreitando num uma cena, noutro uma actriz, assistindo a ensaios sentado ao fundo da plateia, onde lhe vão pedir a opinião e os conselhos, actores velhos como ele ou coristas sem idade, coristas hoje designadas nos cartazes por “jovens artistas”, é no Parque que o pode encontrar quem o procura.


Parque Mayer


Ernesto Palma envelheceu? Não tanto. Cabelos grisalhos e pouco mais. Mas o bastante para já se felicitar por nunca ter casado, para já não falar às mulheres com falas de faminto. O leitor conhece-o e sabe como, de toda esta saturnificação, ele consegue colher flores difíceis. Foi da saturnificação que deparou dita no palco com a personagem de Shakespeare na epígrafe deste texto citada, foi dela que Ernesto Palma extraiu a flor de pureza e castidade que é o seu Tratado de Culinária, A Mulher enquanto Alimento do Homem.

Talvez o leitor que o conhece estranhe, no excerto que publicamos, a ironia sem truculência e o sarcasmo sem grotesco pelos quais se habituou a identificar os escritos de Ernesto Palma, os escritos de outrora. Talvez a diferença seja a de o tempo ter passado (outra citação poética: “O passado vivi-o, que fazer?…”). Dizemos que o leitor talvez estranhará. Mas para isso seria necessário supor que o leitor conhece os escritos de Ernesto Palma. Raros porém são eles, porque o autor do Tratado de Culinária é um homem sóbrio: no 57, as entrevistas na Ilha aqui e além pelos anos fora. Aquando da falência agrícola, nos meses mais duros ou até famintos, escreveu e publicou o seu único livro, A Orientação da Leitura, que é recomendado em sérias bibliografias e ainda se pode encontrar nos alfarrabistas.

A verdade é que Ernesto Palma não é um escritor, mas uma personalidade. A cultura portuguesa tem, aliás, mais personalidades que a fazem do que escritores ou pintores ou dramaturgos. Almada foi muito mais uma personalidade do que um pintor; Fernando Pessoa, mais uma personalidade do que um poeta. Nos melhores, ser uma personalidade é ser o que Emerson chamava “um homem representativo” e Tomas Carlyle um “herói”.

Contemporâneos dos que referimos, os pintores foram Eduardo Viana e António Soares, os poetas Teixeira de Pascoaes e José Régio. A ligação de Ernesto Palma à nossa cultura fez-se mediante o grupo da “filosofia portuguesa”.

Mas o que de mais solene tem a solene advertência à leitura do excerto de Ernesto Palma, é o que se diz agora e, podemos adiantar, está no cerne do seu
Tratado de Culinária. O Tratado de Culinária é, afinal, um Tratado de Estética. Vejamos.


A origem e o fim de toda a arte é, naturalmente, a beleza. Ora não há beleza em si ou, se houver, é inacessível ao homem, uma vez que o acesso à beleza só é possível pela sensação. A sensação é dos sentidos e os sentidos são cinco: o ouvido, a que especialmente se refere a poesia e a música e é tido em Aristóteles, pai de todos nós, como o mais importante dos sentidos; a vista, a que são referidas as artes plásticas e Almada naturalmente sobrevalorizou num livro admirável; e bem assim para os demais, até para o sexto-sentido aristotélico, para o bom-senso cartesiano e para o senso comum da vulgaridade. Ora a beleza ofusca cada sentido ou cada espécie de sensação e, ao tornar-se acessível, é a todos os sentidos que se dirige cumulativamente. A sua manifestação terá então de suscitar as sensações de todos os sentidos, e é o que ela alcança pela encarnação. A encarnação é a mulher e é como alimento do homem que abrange e reúne o conjunto de todos os sentidos. Porque só no alimento intervém e participam todas as sensações, entre si se completando e harmonizando.

Em resumo e repetindo: Não há beleza em si, beleza pura, isolada, inviolável e inacessível. Tudo o que é belo é sensível e sensual. De tudo o que é belo há sensação, não a sensação de um único sentido mas de todos os sentidos. Não só da vista, como entendem os pequenos pintores; não só a do ouvido, como julgam ridículos melómanos; nem só a do perfume, a do sabor e a do tacto. Para ser de todos os sentidos, a beleza encarnou na mulher. Para isso a mulher é para comer pois é no alimento que todos os sentidos se combinam.

Ao falar-nos assim, Ernesto Palma falava com a turbulência que lhe é própria, até com sarcasmos inúteis que não registamos. Diz-nos: “Todos Vocês andam entregues a um cristianismo que, afirmando a igualdade de todas as almas, decaiu até à mísera democracia da igualdade de todos os votos… Andam Vocês entregues a isso e não entendem que uma única coisa no mundo é igual para todos os homens: a beleza que encarna a mulher para alimento do homem? Não entendem que só a partir daí, da mulher enquanto alimento do homem, é possível a arte e é possível a “educação estética do género humano”, hoje nas mãos da mais atroz fealdade? Não entendem? Se Vocês não entenderem, quem é que há-de entender?”





A mulher enquanto alimento do homem


Serve-se em casaco de peles e ataviada de jóias. Depois polvilha-se de rosas e rega-se de vinho.


Das peles:

As peles destinam-se a acentuar, dando-lhe um relevo mais apetitoso, os volumes do corpo, suas alturas e suas funduras. Devem escolher-se a preceito e, na sua generalidade, o preceito é este: peles negras como as do astrakan para os corpos morenos de cabelos pretos com os quais ainda condizem melhor as peles cinzentas como as de marta; castanhas, como as do vison, da raposa e da lontra, para os corpos brancos de cabelos loiros. É imprescindível que as peles estejam cuidadas e brilhantes, não baças.


Das jóias:

O atavio das jóias destina-se a tornar luminosa a coloração do corpo da mulher. Como essa coloração é diferente em cada parte do corpo, convém que umas sejam as jóias para o rosto, outras para o pescoço, outras para os seios e outras para os braços. Deve evitar-se ataviar de jóias, como fazem os orientais, o ventre e as coxas, porque residindo aí o sacrário da mulher, devem comer-se em êxtase ou em delírio ou em loucura que só a limpidez da carne nua propicia e todo o atavio perturba. [Nota: Por influência dos vestuários desenhados para comércio, e também dos pintores modernos, generalizou-se a transferência para os joelhos e as pernas, do apetite das coxas, e do ventre que elas enquadram. Compreende-se assim que o dramaturgo Ionesco tenha escrito que “o que há de mais belo no mundo são as colunas dos templos e os joelhos das raparigas”. Se Ionesco não fosse um artista, teria acrescentado: “porque ambos conduzem ao sacrário”].

Nas peles brancas as jóias devem realçar a coloração rósea que elas sempre têm mas mais ou menos viva. As jóias mais próprias serão, então, as pérolas. Mas se a coloração rósea for muito ou demasiado viva, como nos corpos das mulheres de Bruges, convém substituir as pérolas por brilhantes. Esse o motivo de, em quase todas as mulheres, os seios se tornarem mais saborosos quando os mamilos são beijados ou aspirados juntamente com os brilhantes que as cobrem.


Nos corpos morenos não aparece, em geral, a coloração rósea e quando aparece é nos mamilos e na parte interior das coxas, Estas, já sabemos que se não devem ataviar de jóias. E para os mamilos como em todas as outras partes do corpo deve recorrer-se às pedras coloridas: a verde esmeralda, o negro topázio, o vermelho rubi.


Das rosas e do vinho:

Os melhores apreciadores, amantes sem pressa, regam a mulher de vinho depois de as terem polvilhado de rosas desfolhadas, pétalas de rosa.

Ao paladar… veremos que o paladar, no banquete da mulher, não reside apenas na boca mas espalha-se por todos os poros da pele tal como o “sexo” não está só no lugar ou orgão assim erradamente chamado mas em todos os lugares do corpo… ao paladar, dizíamos, de quem se banqueteia da mulher, o sabor oscila entre dois extremos: um que designaremos por aveludado, mais comum nas loiras, outro por sedoso, mais comum nas morenas. Entre esses dois extremos, o saber que há no sabor pode descobrir toda a espécie de variedades e combinações.

Ora as rosas são, como a pele da mulher, uma mais sedosas outras mais aveludadas. Devem pois ser escolhidas as sedosas para os corpos aveludados, as aveludadas para os corpos sedosos. Consegue-se deste modo uma maior, uma infinita variedade de combinações, dependendo, das doses, do condimento, do gosto de cada cozinheiro.

Além das que dissemos, ainda as rosas se destinam a complementar, levando-o a uma espécie de apoteose que é já glória da mulher, o condimento das jóias.

Quanto ao vinho, atende-se naturalmente, como em todos os banquetes, ao sabor e à cor. No banquete de mulher, o sabor tem de ser antigo, forte, engrossado com mel e a cor nunca branca porque, sobre a coloração do corpo da mulher, é neutra. Da cor tinta, tem o vinho infinitas variedades. Junta-se ela à das rosas, não só para as ajudar a contemplar o condimento das jóias, mas sobretudo – e isto é o que há de mais importante no banquete – para fluidificar todos os atavios e, com eles, a mesma carne da mulher que, nessa fluidez, se torna meiga, terna e tenra. A rega não deve espalhar-se igualmente por todo o corpo mas traçar nele sulcos sinuosos, nascidos no pescoço (quando a cabeça da mulher já estiver, sem forças, tombada para trás) ou nos mamilos. Devem esses sulcos confluir no sacrário mas correndo o mais devagar possível para o que cumpre à mulher – sempre o fará quando bem condimentada – arredondar, engrossar ou altear o ventre como se estivesse abrindo por dentro numa espécie de preparação ou desejo de ficar prenha.

Há quem, em vez de vinho e rosas, utilize cremes, óleos e outros produtos como claras de ovo, mas isso só denota gostos e hábitos de taberneiro.

Obs.: Entendem alguns, gente fina e culta dando-se ares, como a que vai aos concertos da Gulbenkian, que o condimento das rosas e do vinho provém do preceito do poeta oriental: “Bebei o vinho na estação das rosas…” Estamos longe de concordar com eles. Em primeiro lugar, porque os orientais não comem a mulher com erotismo e amor, formas de comer intransmissivelmente europeias. Em segundo lugar, porque o poeta acrescenta ao seu preceito: “que a estação das rosas vai acabar”, metáfora que significa que o poeta está velho. Ora a mulher, se não é banquete para adolescentes, também não é alimento para velhos (in Leonardo, Ano I, n.º 4, 1988, pp. 64-65).








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