quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Portugal e o iberismo (ii)

Escrito por Franco Nogueira








Justamente: o iberismo ligado a acontecimentos fora do comum. Foi esse o caso provocado pelo transe nacional que se abriu com o ultimatum britânico, em 1890; e por essa via muitos dos homens que já haviam expresso uma atitude, vieram a alterar esta ao peso da emoção, e de sentimentos desencontrados. Perante o gesto brutal da Inglaterra, é a desorientação, o pânico, o habitual apelo ao milagre, ao Sebastianismo, ao Encoberto; e na emergência a Espanha aparece como bordão de arrimo e tábua de salvação. Ao saber-se o teor da nota inglesa, ou o que se supôs ser o teor da nota inglesa, estava desencadeado todo o processo emocional. «O efeito foi prodigioso», diz Basílio Teles. De lés a lés, pelo país, há um levante de opinião pública. Sobretudo em Lisboa. Agita-se a baixa da cidade. De gente em turbulência regurgitam os cafés, e pelos passeios, e ruas, e praças, circulam grupos, mesmo multidões. Vociferam, protestam, cobrem de insultos a Inglaterra, o Governo; e não poupam a Família Real. Rei e seus ministros, e o Conselho de Estado, por se haverem curvado às instâncias de Londres, são classificados de traidores, de cobardes, e cobertos de outras injúrias (3). Um grupo de manifestantes pretende dirigir-se às Necessidades; e a ideia parecia ser a de obrigar o jovem D. Carlos, há pouco no trono, a retirar-se de Portugal; mas o Governo toma precauções de segurança; e o propósito é abandonado. Pela cidade mantém-se a ebulição, no entanto. Do Café Martinho surgem João Chagas e Magalhães Lima, que se misturam a contingentes de populares; e a estes se agregam outros vindos de São Domingos, como aos tempos de Fernão Vasques e de Álvaro Pais. Todos confluem para engrossar a multidão que ondeia no Rossio. Sobem depois a Rua Nova do Carmo. Entretiveram-se uns minutos, em viva exaltação, a apedrejar as janelas da redacção das Novidades, havidas por afectas a José Luciano, e seguem ao Chiado, e aí aclamam a Gazeta de Portugal, que se supunha regeneradora e ligada a Hintze Ribeiro. Num momento ou outro, João Chagas e Magalhães Lima bradam vivas à República. Tomam todos pelo Camões, pelo Calhariz, e convergem para o Século. Atribuem-se-lhe simpatias republicanas, e perante o seu edifício são ovacionados os notáveis do Partido Republicano. E assim a manifestação perante o Século significava que no ânimo popular, em Lisboa, se estava a levantar, sobre a questão do ultimatum, a questão do regime político. Sentem alarme o trono e os círculos monárquicos. Para além da rua, a indignação e a mágoa invadiam também as redacções dos jornais. Nas salas do próprio Século e nas do Diário de Notícias lançam-se apóstrofes à Inglaterra. E corriam sugestões: devia rejeitar-se o ultimatum, prender os súbditos britânicos em território português e usá-los como reféns, e abrir uma subscrição nacional para compra de armamento. Na redacção do Tempo, Emídio Navarro ruge a sua cólera e crava nas mesas murros de raiva impotente. Entretanto, Eduardo de Abreu, com outros e em cortejo cívico, vai tapar de crepes negros a estátua de Camões; o duque de Palmela, num gesto olímpico de grande senhor, devolve à rainha Vitória a sua condecoração britânica; e há uma corrida colectiva de devolução de condecorações britânicas. Keil do Amaral, com a sua música, e Lopes de Mendonça, com a sua letra, lançam A Portuguesa. E nos dias que se seguem alastram pelo país os protestos antibritânicos. Ainda em Janeiro, reúne-se no edifício da Escola Politécnica a Associação Académica de Lisboa: em mensagem à Câmara dos Deputados declaram-se prontos a morrer por Portugal os estudantes: e um protesto é enviado aos governos signatários do Acto Geral de Berlim. Reagem por igual os estudantes de Coimbra, e os do Porto também. Atropelam-se os comícios, as marchas, as sessões de protesto. Nos quatro cantos de Portugal, vai toda uma euforia antibritânica. Ampliam-se as sugestões de retaliação: boicotar mercadorias inglesas, não ensinar nas escolas a língua inglesa, não admitir ingleses em hotéis e restaurantes. No Porto, constitui-se a Liga Patriótica do Norte, sob a presidência de Antero de Quental; e ao Sul surge a Liga Liberal, presidida por Augusto Fushini. Publica-se em Coimbra, em número único, a revista Anátema, redigida em Espanhol, italiano, além de português. Apresenta-se confessadamente antibritânica (4). E é nessas páginas solitárias que se concentra de momento o apoio maciço da cultura e da inteligência portuguesas ao repúdio do ultimatum. Que homens do lado português, colaboraram nessa Anátema? Recordem-se os nomes que bastem para documentar o alto nível daquele apoio: Oliveira Martins, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, João de Deus, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Bulhão Pato, Tomás Ribeiro; João Penha, Fialho de Almeida, Maria Amália Vaz de Carvalho, Conde de Sabugosa, entre os homens da cultura; e Jaime Magalhães Lima, Barros Gomes, Víctor Cordon, Basílio Teles, entre os homens do mundo político. De alto a baixo, Portugal era sacudido por funda emoção. E o cariz que esta tomou impõe e confirma duas lições: nas crises e no pânico, ressurge o iberismo português, como teoria, ou esperança sebastianista, ou vingança de um ódio súbito, ou busca do que parece ser uma solução, que na eterna procura da opção mais fácil se fia sempre do exterior e não do cerne da comunidade portuguesa; e nas crises e no pânico em que Portugal se deixa atolar, a Espanha avança com presteza para aproveitar com avidez e explorar com sofreguidão a oportunidade de executar o seu iberismo.



Retrato de Teófilo Braga, do pintor português Columbano Bordalo Pinheiro



E com efeito alguns portugueses iberistas antigos que haviam deixado de o ser, são arrastados pela emoção. Quase tornam à atitude anterior, ainda que temperada agora pela prudência que resulta da observação dos factos e pelo estudo que a maturidade permite. Entre todos, mais uma vez se destaca Latino Coelho. Sem o abandonar, atenuara acaso o seu pendor iberista; mas sob o aguilhão do ultimatum, converte-o num sonho renovado e diverso. Em artigo no Século vem afirmar: «detestamos sempre e agora abominamos mais do que nunca a União Ibérica». Mas faz um último apelo ao destino: e confessa que as suas esperanças são doravante confiadas, não a uma integração luso-espanhola, mas a uma Federação das Nações Latinas. Em sentido afim, Teixeira Bastos, em mensagem aos republicanos catalães, afirma-se paladino de uma vasta República Ocidental dos Estados Unidos da Europa, e engloba este projecto numa larga concepção política onde há ressaibos de Víctor Hugo e vaticínios de Augusto Comte. Nos dois casos, tratava-se de bradar contra a Inglaterra e de subtrair Portugal à aliança luso-britânica; mas já havia a percepção do perigo e da ameaça espanhola, a que também se queria fugir; e por isso se lançam e se abraçam agora aquelas construções tão grandiosas como quiméricas. E também sai a terreiro Teófilo Braga. Mas este, além de se escusar a manifestações, não regressa por via do gesto britânico à antiga pureza do seu iberismo: invoca apenas a fraternidade: e afirma sobriamente que, «sob o opróbrio do brutal ultimatum com que a Inglaterra nos desonrou, anseio que chegue o dia em que a fraternidade republicana fortifique a liberdade de todos os povos peninsulares». Sublinhavam-se a Liberdade e a República, como garantias automáticas suficientes a todos os povos; e o iberismo cru passava a uma sombra esquecida. Se ainda não era o anti-iberista do projecto de constituição republicana atrás registado, estava à beira de o ser. Mas esta posição de Teófilo Braga, como a de Latino Coelho e a de Teixeira Bastos, iluminam um outro caminho. Comprovam que, sobre a questão do ultimatum, foi posta da forma mais viva a questão das instituições. Decerto: já vinha de longe o partido republicano: mas no lance com a Inglaterra criou-se a sensação de que poderia estar para breve o derrube da monarquia: e este aparece de súbito como objectivo final muito mais próximo e fácil de atingir. Havia que responsabilizar o Trono por qualquer coisa que indignara a consciência da Nação, e a despertara. Em boa razão, ao Trono não poderiam ser atribuídas culpas, e em especial não as tinha D. Carlos, que iniciara o seu reinado escassos meses atrás. Responsabilidades deveriam ser assacadas a políticos monárquicos, tanto a progressistas no poder ao tempo do ultimatum, como regeneradores, na altura em oposição que mais se diria de hostilidade às instituições do que de ataque à política do governo. E quanto ao iberismo, ingénuo em alguns como de hábito, oportunista em muitos, simplesmente antipatriótico e interesseiro em outros, os republicanos sentem que, para além de um limite, têm de arrepiar caminho; percebem que a união ou federação conduzem inevitavelmente à anexação de Portugal;o próprio Século, sem embargo do seu republicanismo, torna-se mais cauteloso no capítulo; e tanto neste contexto como no das manifestações anti-britânicas, exclama: «Prudência! Prudência!». Do mesmo passo, no entanto, o sistema monárquico apercebe-se de que o republicanismo se apoderara da emoção nacional causada pelo drama, e inicia a defesa de si próprio. Mas aos erros que conduziram ao ultimatum agregou um outro, e grave também: teve por republicanas todas as manifestações patrióticas e autenticamente nacionais: e foi duro na repressão. António Enes, patriota, e de sentimentos monárquicos acima de dúvidas, clamava no jornal O Dia, perante medidas policiais e militares: «A Nação não se quer esquecer do ultraje que recebeu da Inglaterra; o Governo proíbe quanto o possa recordar. A Nação quer protestar; o Governo quer submeter-se. A Nação pensa na desforra; o Governo pretende impor-lhe a conciliação». E escreveu mais António Enes: «O que se está fazendo, principalmente em Lisboa, envergonha mais a Nação do que a abateu a violência britânica». E o grande jornalista - e dramaturgo e homem de Estado - vinca bem o ponto crucial: é que o Governo receia ser criticado, quer ceder em tudo à Inglaterra: e inventa contra as instituições ameaças que não existiriam. Por outras palavras: estava-se ante grave crise nacional: e dir-se-ia, à distância de um século, que no lance dramático muito poucos, se alguns, conseguiram manter o sangue-frio. Sobretudo muito poucos, se alguns, se conservaram na linha do interesse nacional permanente.

No quadro do iberismo português, todavia, que sentimentos foram na altura expressos entre os intelectuais, os homens da cultura e da inteligência, o escol mental da Nação em suma? Que atitudes se assumiram perante o ultimatum? Como é que, em face deste, e tendo abandonado e até repudiado o iberismo, inverteram a sua marcha e se sentiram tentados a regressar ao ponto de partida.

"Houses of Parliament" (Palácio de Westminster).


Se se ergueu contra as violências do poder, António Enes nem por isso acolheu o iberismo, a que aliás jamais havia aderido. Mas que escreveu aquele homem, em substância, no momento do rude gesto britânico? Sentiu naturalmente a consciência nacional humilhada, e insurgiu-se. Numa longa série de artigos, Enes acompanhara o processo das conversações entre Londres e Lisboa; e apoiando os argumentos portugueses, não se eximia a dirigir as suas setas ao modo por que da parte de Lisboa era conduzido o assunto. Perante o ultimatum, escreve no dia seguinte: a Inglaterra tornou-se «absolutamente impositiva» e «pôs-nos o revólver aos peitos, contando os minutos». Desafronta com energia Barros Gomes. Mas Enes coloca-se acima dos partidos e para além das paixões: é uma atitude nacional, e só nacional, e de homem de Estado. E é de salientar este exemplo de António Enes por haver talvez sido único. Porque em verdade são inteiramente emotivas as reacções de quase todos os demais. Pela sua intensidade, sobressai a de Fialho de Almeida. Requinta no ultimatum o seu velho iberismo. Sarcástico, céptico, ressentido, afogado em complexos de inferioridade, o autor de Os Gatos vergasta agora a Grã-Bretanha; defende os direitos de Portugal; exalta o Ultramar português, as suas glórias, o seu carácter sacrossanto para a Nação; e qualifica os ingleses de «carrascos ruivos do Tamisa». E volta-se com fervor para o republicanismo. Escreve: «antes do ultimatum inglês e da revolução do Brasil, raros de nós poderiam fazer sondagens certas na profundeza e na eficácia da cruzada republicana que pregávamos: e maldispostos contra a Espanha, menos ainda nos sentíamos dispostos a enfunar o estandarte da ideia, com correntes de opinião sopradas do outro lado da fronteira»; mas «agora mudou tudo»; «os verdadeiros inimigos de Portugal desmascararam-se»; e «a linha que nos separa de Espanha é apenas uma ilusão óptica de políticos, filha de um erro histórico de sete séculos, que desviou a Península da sua missão de grande potência, e tem defraudado a família latina duma força que, virilizando-se, poderia ter disputado, quem sabe? a hegemonia do mundo às raças loiras». Assim, Fialho, em pleno desvairo, retoma e repete com arreganho um iberismo que havia abandonado, e é de novo imperial; mas mais tarde, na sua inconstância e versatilidade permanentes, haveria de regressar ao patriotismo, quase à monarquia, quase ao repúdio do republicanismo jacobino que por um tempo fora o seu. Mas na vivacidade do seu sentimento, neste particular, não está Fialho isolado. Acompanha-o Guerra Junqueiro, «grande poeta do ódio e da dissolução nacional» (Fid. de Fig., Pref. Cit., 10). Este compõe o poema O Caçador Simão (5) e dedica-o justamente a Fialho de Almeida. Junqueiro procura pôr em ridículo a figura do monarca. Mas depois é a Inglaterra que o autor de A Morte de D. João fustiga numa linguagem desapiedada. Recordem-se estas linhas (a que não é lícito chamar versos e muito menos poesia) e que foram depois incluídas no Finis Patriae: «Ó Cínica Inglaterra, ó bêbada impudente/Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?/ Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,/Repartindo por todo o escuro continente/A mortalha de Cristo em tangas de algodão».



Guerra Junqueiro



Como em todo o poema, não estamos evidentemente perante arte mas em face de um panfleto; e este desce à bitola do torpe, de uma emoção primária, que tem por raízes a exaltação partidária e a raiva à Grã-Bretanha. E também a peça-poema Pátria constitui um grito de cólera, de ataque, de desvairo. Elogia-se Fialho, elogiam-se Os Gatos, onde perpassam, diz Junqueiro, rugidos de tigre; proclama-se o republicanismo, e afirma-se que republicano e patriota são palavras sinónimas; à monarquia nada se poupa; e o rei, porque aceitara o tratado do 29 de Agosto de 1890 (entretanto negociado entre Londres e Lisboa), é qualificado por Junqueiro de miserável ou irresponsável. Estes e outros textos, de teor por igual edificante, são coligidos por Junqueiro em Horas de Luta. Mas aqui deparam-se-nos páginas que impõem destaque; de súbito, projecta-se um outro Junqueiro. Republicano? Decerto. Antibritânico? Sem dúvida. Iconoclasta de forma geral? Também. Demolidor do que é convencional? Igualmente. Mas naquelas páginas ressurge o Junqueiro patriota, nacionalista, medularmente português. Republicanos e iberistas, ainda por impulso da memória do ultimatum, organizaram em Badajoz, em 1892, um banquete de confraternização iberista com espanhóis, ou de confraternidade peninsular, como preferiu Teófilo Braga. A participar é convidado o autor de A Velhice do Padre Eterno; mas este alega falta de saúde, não assiste; e envia a sua mensagem. Recorde-se desta o essencial. Sim: há uma alma ibérica: mas tem duas metades: e vive cada uma em «corpos separados», em «organismos distintos que a natureza irremediavelmente diferenciou, e que é necessário deixar em absoluta e livre independência, pois só assim se cumprirão com harmonia e nobreza o seu papel e o seu destino». E Junqueiro conclui: «E este sentimento português, de soberania e irredutível autonomia, sem restrições e sem equívocos, é em mim de tal maneira intransigente e natural, que eu sacrificaria, sendo necessário e podendo, os destinos completos da minha raça à completa independência do meu país. Unifiquemo-nos em espírito, mas conservemos as fronteiras, tal como estão no nosso território. Só da dualidade sem obstáculos pode nascer a confiança sem limites. Somos irmãos, mas não cabemos juntos na mesma casa». E terá esta sido a posição definitiva de Guerra Junqueiro. E assim Fialho e Junqueiro são dois exemplos frisantes de uma espécie de iberismo português: Daquele que se entretece de emoção perante uma crise ou episódio hostil; que ignora as forças reais em presença e as realidades permanentes; que esquece a linha histórica constante; que se deixa persuadir da boa-fé espanhola e que depois, quase de repente, é iluminado pelos propósitos reais de além-fronteiras; e que muitas vezes se julga em vésperas de um amplo mundo idílico e fraterno para logo a seguir mergulhar na desilusão acabrunhante. Mas em outros vultos grados do alto escol português também o ultimatum exerceu influência: diferente, contudo, da que sofreram os autores de O País das Uvas e de Os Simples.



Antero de Quental



Antero de Quental é um primeiro nome. Que texto enviou para a Anátema? Considera o presidente da Liga Patriótica do Norte que é positiva a intensa paixão nacional do povo português, desencadeada pelo ultimatum; mas tem por elementos negativos o descrédito das instituições, as práticas do governo, os actos dos responsáveis políticos. Para Antero, aquela paixão traduz inequívoca vitalidade nacional; tudo o mais é resultado da morbidez do organismo social português. Perante o choque brutal do ultimatum, Antero volve-se agora em firme anti-iberista, em nacionalista, em patriota tradicional. «Moralizar e nacionalizar o Estado, tal deve ser depois de passado o primeiro ímpeto de paixão, o fim consciente do movimento popular iniciado em 11 de Janeiro» (Prosas, III, 163). E isto porque «não é pelo desespero e abdicação que nos salvaremos», «não é assim que quem está prostrado se levanta»; «sejamos nós mesmos»; «tenhamos esse valor, e tudo se tornará possível»; «antes de tudo, convém crermos em nós mesmos, no passado como no presente» (Prosas, II, 238-239). Teria o ultimatum constituído uma «expiação» dos vícios e erros nacionais (Prosas, III, 144-146). Há assim, para o autor dos Sonetos, um deplorável divórcio entre o sentimento nacional e o Estado, uma falta de acordo íntimo entre governo e governados. Como remediar este «funesto divórcio», produto que é de trinta anos de materialismo político? Pela revolução? Seria essa a maior das calamidades. Como, então? Pela constituição de «orgãos genuínos, semelhantes à Liga Patriótica do Norte». Na presidência desta, Antero sente-se investido de uma missão que o transcende. Ao assumir funções, pronuncia um discurso de nota. É a Liga uma primeira pedra para o edifício da restauração das forças nacionais, e isso não deverá ser obra de entusiasmo momentâneo mas de paciência aturada; o protesto contra o insulto e a vilania da Inglaterra implica um esforço viril e persistente; e a subscrição nacional que fora aberta, movimento de paixão nobilíssima, é apenas o início da obra da ressurreição do brio e das forças do povo português. Há que emendar erros, e que restabelecer uma natural harmonia entre o pensamento nacional e o seu orgão, que é o Estado. Estará a Liga acima dos partidos, praticando a verdadeira política, que é a «dos grandes interesses nacionais», e fará assim ouvir aos poderes públicos a voz da Nação. Serão escutados todos os alvitres, e destes há-de emergir um plano de independência económica, de reestruturação das forças produtoras, de levantamento do nível intelectual, de defesa da integridade nacional. Um plano, em suma, de ordem, de justiça, moralidade. E o poeta resume: «a atitude que convém não é a do protesto violento e estéril: é a da concentração da vontade, aplicando-se indefesa até conseguir, pela força e independência reconquistadas, a desafronta, o sossego, e a dignidade». Em síntese: «Coragem, paciência, e esforço: tal deve ser doravante a nossa divisa». Antero pede ainda a retirada do cônsul britânico no Porto, acusado de haver ofendido a juventude portuguesa. Nessa atitude é acompanhado por homens de primeira água: Rodrigues de Freitas, Vieira de Castro, Basílio Teles, Bento Carqueja, Luís de Magalhães, Conde de Resende, Ricardo Jorge, outros ainda. E em carta a Jaime de Magalhães Lima escrevia Antero: «Faça cada um o seu sacrifício no altar da Pátria. Eu sacrifico a minha saúde, que naufragará de todo no meio disto, e muito provavelmente o meu nome, que antes de seis meses estará manchado. Não importa. Quero sacrificar a vida e morrerei contente se tiver vivido seis meses ao menos da verdadeira vida que é a da acção por uma grande causa». E deste modo Antero não propõe, para superar a crise, o recurso ao iberismo quimérico ou político, nem a mitos ou milagres. Afirma que a solução assenta no retorno às genuínas raízes nacionais, ao patriotismo, à independência. E apela para a coragem, o esforço, o sacrifício dos Portugueses. Neste particular, sobressaem a boa-fé, a candura, a ilusão do poeta.




Ramalho Ortigão



De um matiz aproximado é a atitude de Ramalho Ortigão. Como vê este vencido da vida a crise nacional? Diz nas Farpas a ramalhal figura: «Uma potência estrangeira, assinalada pelos instintos de mercantilismo e de rapacidade que caracterizam a sua missão histórica, disputa-nos palmo a palmo e dia a dia a posse do nosso domínio colonial». Para Ramalho, Portugal é nação marítima e gloriosa; o império é «brasão da nossa raça». Foi o ultimatum uma declaração de guerra: e de tudo tem culpa a sociedade portuguesa e seus vícios. Quais? Esclarece Ramalho: a parlamentarice dos últimos vinte anos, a baixa educação nacional, a desmoralização dos costumes políticos. E por outro lado os Portugueses haviam perdido o amor do trabalho, o espírito de aplicação e zelo, o empenho profissional, a paciência, a perseverança, a lenta economia. Por isso, afirma Ramalho, «isto não pode continuar assim». E se o recente conflito africano, conclui o autor de A Holanda, puder ocasionar um movimento reformador de Portugal, então haveria que agradecer à Inglaterra, sem embargo de este país andar pelo mundo desonrando triunfantemente a Civilização e esbofeteando a Providência. Como Antero, o autor das Farpas encara a solução da crise nacional, não no iberismo ou outro mito (ainda que na obra de Ramalho perpasse de quando em quando um traço equívoco), mas na revitalização do espírito, da consciência, das virtudes portuguesas de antanho. Mas de Ramalho Ortigão podemos caminhar para outro vencido da vida, e amigo predilecto daquele: Eça de Queirós. Em toda a sua obra surgem alusões esporádicas a formas de iberismo; mas já vimos como tudo era parte da irreverência literária. Perante a crise nacional, sem personagens de ficção e de maneira responsável, Eça compõe um estudo: O Ultimatum. Tem a crise como a mais severa, acaso a mais decisiva da sua geração. Exprime o seu respeito, mesmo a sua compreensão pelos objectivos imperiais da Grã-Bretanha (onde Eça viveu longos anos), e pela tenacidade com que esta os conduz. Ora Portugal constituía para a Inglaterra um obstáculo: a posse de certos territórios junto ao Zambeze, ao Chire, ao Niassa, «excitava furiosamente a cobiça» dos Britânicos. E o autor de Os Maias observa: «Se nós fôssemos fortes, ou se ainda reinasse o direito internacional, este impedimento (para o caminho imperial inglês do Cairo ao Cabo) seria como montanha que se não transpõe». Para Eça, portanto, o direito, a história, a razão pertenciam a Portugal. Mas nas conversações com Londres nem sempre haviam sido felizes os Portugueses, e o ministro inglês em Lisboa, escreve o autor de O Primo Basílio, «apresentou ao sr. Barros Gomes um ultimatum com aquela brutal surpresa com que outrora José do Telhado, ou outro dos nossos salteadores lendários, apontava, num pinheiral, o bacamarte ao peito de um marchante em jornada» . Enfim, foi a crise, é a crise - e agora que fazer? Injuriar a Inglaterra? De que serve? - pergunta Eça. Odiar a Inglaterra? Decerto é sentimento bem legítimo: mas o ódio é um «sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza». Então, boicotar a Inglaterra? Será perfeito; mas ineficaz. Em completa isenção de espírito, e de olhos postos na nação portuguesa, Eça afirma que àquele movimento nacional de desagravo, nascido da alma da nação para proveito da nação, «nunca lhe cumpriria tomar por fim único o fazer mal à Inglaterra, mas antes de tudo, e sobretudo, fazer bem a Portugal». Recomenda em suma Eça de Queirós: «Não se trata infelizmente de destruir a Inglaterra - mas de conservar Portugal». E por isso o grito não deve ser: «Delenda Britania». O grande grito a gritar, para Eça, é: «Servanda Lusitania». E por este modo Eça junta-se a Ramalho e a Antero no quadro da crise: os interesses portugueses têm de ser defendidos pelos portugueses: e não podem ser entregues a mitos, ou a mãos alheias (in ob. cit., pp. 113-122).



Eça de Queiroz



Notas:

(3) A nota inglesa tinha indubitavelmente o carácter de um ultimatum, e isso era decerto bastante para causar indignação; mas esta foi agravada porque, usando o texto inglês a palavra intimation, esta foi traduzida por intimação, o que pressupunha que o Governo inglês se dirigia a Portugal como a um súbdito a quem se dá uma ordem. Ora a palavra intimation, neste conceito, significa instância, insistência, ou semelhante. A nota inglesa era um ultimatum, mas não pretendia envolver o propósito de humilhar Portugal.

(4) Surgem também numerosos outros jornais e folhas avulsas e de vida lábil. Mencione-se o artigo Bragança, o último, na Folha Académica. É seu autor o então terceiranista de Medicina António José de Almeida.

(5) Como se sabe, Simão era um dos muitos nomes de baptismo do Rei D. Carlos.

Continua


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