domingo, 13 de março de 2011

Decisão e Indecisão na Casa de Portugal (i)

Escrito por Álvaro Ribeiro




Álvaro Ribeiro


Estar atento e ver claramente as ínfimas e subtis alterações de uma sociedade para outra sociedade, ou seja, do passado para o presente e do presente para o futuro, não é próprio da maioria dos homens que dificilmente vivem absorvidos pelas preocupações da luta quotidiana. Compete à minoria qualificada pelas predilecções intelectuais o advertir aqueles que, por conservarem ou repetirem fórmulas pretéritas mas sobreviventes nas escolas, nos partidos e nas seitas, se abeiram erraticamente das trevas sem fim. Denominar com palavras fixas em frases consolidadas os novos acontecimentos culturais que perturbam, abalam e subvertem o que já perdera a razão de ser, equivale a fechar os olhos pela irracional vontade de negar a movimentação e a articulação do real. Tal atitude dos velhos, daqueles que se fincam na paleolexia e na paleografia, recitando as histórias de que se imaginam autores ou de que se representam actores, não deve ser imitada pelos homens novos, aos quais é dada a promessa ou lícita a esperança de um novo viver.

Ante os vários acontecimentos que transtornam, transformam ou transmudam a cultura portuguesa, vemos já determinados ou extremados os pontos de referência, sem todavia notarmos a oposição clara entre o século dezanove e o século vinte, sem contudo indagarmos a tendência, ou o fim para que tende, a aceleração literária do tempo presente. O historicismo de todas as docências, tanto o dos sacerdotes, como o dos professores, como o dos jornalistas, acumulam no calendário litúrgico, lectivo ou político as trevas suficientes para obrigarem os desavisados estudantes a um pensar maculado de anacronismo. No ensino da religião, mais do que em qualquer outro, a palavra oral ou escrita segue atrelada a noções mortas de história diluída. Apologetas há que ainda referem às obras de Antero, de Teófilo e de Junqueiro os malefícios de um anticlericalismo, anticristianismo e antiteísmo sem sedução mental para os adolescentes do nosso tempo. Outros crêem ainda que a poesia cristalizou nas quadras de Correia de Oliveira, nas canções de Lopes Vieira e nos sonetos de António Sardinha, apenas porque estes escritores notáveis continuam a ser celebrados pela qualidade de mestres da reconquista cristã. Raros observam que as novas gerações preferem ler, consultar e meditar os livros, sucessivamente reeditados, de Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes ou José Régio, e raríssimos interpretam ou explicam a razão mais séria para que tende o respectivo movimento cultural.

Na escala dos valores poéticos mantém seu principado a obra que mais inspirada comunicação nos oferecer do invisível, do insensível e do sobrenatural, ainda que na maioria dos casos seja indispensável a intervenção do intérprete, ou do tradutor, para determianar o grau, ou degrau, em que o poema ficou situado perante a verdade católica. Ao sobrenatural de Os Lusíadas costumam os escoliastas aplicar a designação minorativa e pouco epopeica de maravilhoso, contradizendo assim o teor dos próprios versos de Luís de Camões. Posto que a poesia vale por expressão do sobrenatural, resta dizer que muitas páginas de versos não são poesia, mas apenas artificial imitação da poesia. A história da literatura permitiu evidenciar que a mais alta poesia portuguesa tende para o Mistério da Santíssima Trindade, não só pela configuração literal do Espírito Santo, mas também pela referência nominada às duas outras pessoa divinas. Projectada em narrativas de biografia e de história, a poesia inferior perdura e sobrevive na medida da fidelidade aos outros mistérios transcendentes.



Leonardo Coimbra




A cristologia continua a ser o paradigma da antropologia. Fácil é entender, portanto, que a filosofia cristã haja recebido da obra de Leonardo Coimbra uma admirável contribuição para o seu aperfeiçoamento, tal como não será difícil entender também os mesquinhos e inconfessados motivos que obstam ao aproveitamento dos escritos portugueses na apologia católica. Dir-se-ia que a maior parte dos nossos sacerdotes só sabe francês, ignorantes da patrística grega e da patrística latina; preferem ver a luz de Paris, esquecem a voz de Roma. Dedicou-se Leonardo Coimbra a estudar na morte, no sono e no esquecimento, ou, pelo contrário, na memória, na vigília e na vida, os fenómenos que demonstram ser o homem um composto instável, verdade aliás afirmada pelas doutrinas do inconsciente e comprovada pelos resultados científicos da psicossomática, da psicanálise e da parapsicologia. Os modos de agir humano, que a criança confunde e que no adulto se separam até à oposição, os três modos do jogo, da arte e do trabalho, foram pelo filósofo analisados na sequência explicativa da luta pela imortalidade. Em estádio sublime da sua carreira de escritor, reconheceu Leonardo Coimbra que na ciência do composto humano está a legitimação doutrinal dos sacramentos, meios eficazes para a a finalidade da redenção. O pensador católico, embora solicitado pelas doutrinas voluntaristas e sentimentalistas que dominavam no seu tempo, afirmou sempre a prioridade da razão na hierarquia das faculdades humanas.

Mestre e educador de adolescentes, o grande teólogo, cosmólogo e antropólogo legou aos seus dicípulos os princípios ou segredos da reforma filosófica mais propícia ao aperfeiçoamento intelectual do povo português. Acreditava e afirmava que os superiores dons do nosso povo, se fossem educados por um sistema verdadeiramente nacional, multiplicariam maravilhosamente as heróicas façanhas que asseguram a permanência e a sobrevivência da Pátria. A dadivosa generosidade espiritual de Leonardo Coimbra nunca poderia ter sido bem acolhida num ambiente maculado e impregnado de positivismo.

Todos quantos tivemos a felicidade de ouvir as lições magistrais e as conferências inspiradas de tão excepcional homem superior, rememoramos que já no ano de 1925 começava a ser indigitada a figura do estudante José Marinho para intérprete, colaborador e continuador de Leonardo Coimbra na sequência docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A cultura, a reflexão e a eloquência de José Marinho, por todos nós admiradas em frequentes oportunidades e circunstâncias, justificavam a brilhante fama que ia irradiando entre várias sociedades e gerações de estudantes. Dir-se-ia, em linguagem jocosa, que entre os seus condiscípulos era José Marinho quem dava as cartas. As pessoas interessadas pelos estudos filosóficos esperavam impacientemente o dia em que o novo doutor, deixando de divertir perdulariamente o seu talento em diurnas e nocturnas conversas de tertúlias, se dispusesse a congregar para definido empreendimento de acção cultural os obedientes votos de quantos condiscípulos o respeitavam e estimavam. A República Positivista, com seu juízo escondido, isto é, com a sua hipocrisia, resultara num fracasso perante a reacção militar. A vida portuguesa iria sofrer um período pragmatista de acção directa, enquanto não fossem delineados os necessários fundamentos da nova legislação hegelista ou hegeliana. Foi sendo o tempo mais propício à intelecção das relações entre o direito e a filosofia, obliterador pelo positivismo, e em breve foi visto que o direito político pressupõe uma filosofia corporativa, o direito do trabalho pressupõe uma filosofia do trabalho. Vencido o positivismo, as circunstâncias davam uma oportunidade excelente para filosofar em simpatia ou antipatia com a obra de Hegel, muito divulgada pelos germanófilos no nosso país. Nem depois da morte de Leonardo Coimbra, ocorrida em 1936, se decidiu José Marinho a presidir à fundação de uma sociedade filosófica, a promover a direcção de uma revista cultural, a publicar os seus melhores manuscritos, embora ciente de que a sua intervenção conciliadora e concordante poderia acelerar a redenção da Pátria. O pensador, já hesitante entre o trabalho, a arte e o jogo, continuava a frequentar assiduamente tertúlias mais ou menos provincianas, sem dar notícia do que ia escrevendo, sem dar anúncio do que iria editar. Consciente do valor próprio, não procedia com inveja perante a revelação do valor alheio, que saudava nos opúsculos dos seus condiscípulos mais heróicos, mais audaciosos ou mais apressados. Hábil no trabalho da epistolografia e na arte do colóquio, José Marinho mostrava-se pródigo no elogio, no louvor e no encómio de quantos literatos lhe davam notícia de haverem publicado uma folha, um caderno ou um livro, sem intransigência nem compromisso perante a variedade de seitas, partidos ou escolas. Estimado por todos, o pensador continua, porém, a esconder o seu drama e o seu jogo. Na reflexão secreta sobre sucessivos eventos da sua experiência teológica, poética e filosófica, foi paulatinamente pondo e compondo os elementos do livro intitulado Teoria do Ser e da Verdade, no qual explica tão enigmático silêncio e responde ao apelo insistente dos companheiros de geração.






O esperado livro foi, enfim, publicado no anos de 1961. A obra contém várias notas de autobiografia espiritual, não só na parte da introdução, com o é da praxe, mas também ao longo dos principais capítulos. Em vários tópicos diz o autor haver longamente atendido ao que lhe foi ensinado e ao sentido fundo do que lhe foi ensinado, meditando lentamente sobre todas as perplexidades antes de descer ao fundo, ao fundamento e ao fundamental de muitas questões. Tão severas exigências intelectuais levaram o pensador a considerar as ilusões, os erros e os sofrimentos dos homens para se libertar e desprender de tudo quanto seja lisonjeiro para a vaidade humana. Esta descrença quanto aos motivos do agir e à eficácia da acção explica a ausência de soluções pensadas sobre os problemas económicos, políticos e religiosos, como também responde francamente pela ludicidade que acompanha o cepticismo do autor.

Depois de longa viagem que é a vida humana, especialmente para o estudioso que a todo o momento se interroga sobre a adequação do pensar ao agir, até o céptico se detém perante o termo da quietação e de segurança que costuma ser universalmente denominado pela palavra Deus. Escritores há que excluem tal palavra, por motivos vários entre os quais avulta o medo de uma ou outra pressão social, e transferem para nova palavra a designação do absoluto, infinito ou eterno, isto é, do envolvente que necessariamente há-de ser solicitado por todo o pensamento relativo, finito ou efémero. A bem dizer não há ateísmo. É concedida aos filósofos livre escolha de vocabulário pela simples razão de ser uma arte a filosofia. O artífice que não souber forjar a ferramenta própria do seu artesanato jamais produzirá uma obra-prima, de assinatura pessoal, porque se resignará a ser um operário anónimo de qualquer fábrica metropolitana ou um mero empregado de qualquer faculdade universitária. Dado, porém, que para José Marinho a filosofia é muito mais um jogo do que uma arte, melhor diríamos que o mesmo pode ser alterado para a magia de efeitos lúdicos. As palavras preferidas e escolhidas vão sendo escritas com inicial maiúscula, vão adquirindo personalidade teatral, para aceitarem as responsabilidades dos muitos e das culpas, para figurarem como agentes do drama filosófico, já que nenhum escritor se liberta totalmente da nostalgia de qualquer fabulação mais ou menos mitológica. Assim as cartas de jogar, que comercialmente transitam de país para país, designam e significam diferentemente a sorte dos vários povos. O que nós, Portugueses, denominamos por copas, espadas, ouros, paus é por outros denominado coeurs, piques, carreaux, trèfles, ou hearts, spades, diamonds, clubs, ensinamento notável para quem souber ver a subtil distinção entre o designar e o significar. Atribuindo palavras portuguesas, plenas de significação étnica, aos mesmos conceitos que atravessam fronteiras, procede-se ao contrário do universalismo das escolas que têm a pretensão estulta de nacionalizar também a ortofonia e a ortografia de vocábulos estrangeiros.

José Marinho começou por escolher no vocabulário da língua portuguesa as palavras que lhe pareceram mais adequadas à expressão das noções essenciais e decisivas da sua filosofia. Deste insólito afastamento da tradição, da memória e do passado resultaram algumas dificuldades para os leitores habituados à nomenclatura escolástica, predominantemente racionalista. Não será, porém, muito árduo ao leitor benevolente o respeitar uma nomenclatura nova que pela sua severidade evita a maliciosa sugestão das associações já feitas e a perigosa indução em erros refutados, porque as claves da teoria podem ser transferidas, traduzidas e interpretadas na conversão inteligente para o já assimilado. Prestando atenção ao que o autor quer dizer, ou não quer dizer, irá o intérprete, o tradutor ou o transferidor adquirindo familiaridade com expressões tais como visão unívoca, cisão cumulativa, insubstancial substante, interrogação fundamental, patente e secreto, liberdade divina, etc., na medida em que se purificar das repercussões afectivas, emocionais ou passionais, provocadas pela amargura de tão insólita nomenclatura.




José Marinho




Maior dificuldade encontrará o leitor nos hipérbatos de que o autor usa e abusa com excessiva frequência, transpondo as palavras para fora da ordem ou da sintaxe a que estamos habituados no discurso oral ou escrito. Tal dificuldade obriga o estudioso a fazer uma leitura lenta, com demora na ponderação de cada particípio, adjectivo ou substantivo, auscultando a acepção que lhe foi atribuída no lugar natural ou artificial da cláusula, mas também obriga o leitor diligente a evitar o equívoco e a anfibologia mediante a atenta pesquisa do sujeito e do predicado nas imprevistas posições de uma sintaxe barroca. Atropelam-se por vezes as palavras mais significativas em proveito da livre figuração de uma melodia silábica que na melhor fluência produz o efeito de saudosa ou melancólica evanescência, aliás própria da desiludida recordação dos inactivos ou contemplativos. A sinfonia sugere a teoria. É dada ao leitor a indicação de que o livro poderia ter sido talvez escrito num estilo narrativo, cadenciado por advérbios de tempo, acumulando atributos, epítetos ou predicados nos moldes do poema teogónico ou do sermão teológico, se o autor não tivesse declarado assumir toda a responsabilidade de quem escreve uma obra de filosofia, isto é, de quem exprime pensamento puro da razão mais pura.

Fácil será verificar que tal responsabilidade não foi suficientemente cumprida ao longo dos capítulos, das partículas e das partes da Teoria do Ser e da Verdade. Sucedem-se as frases, os períodos e as cláusulas sem que tais resultados de pensamento - resultados de alto ensino e de funda meditação - sejam acompanhados dos elementos que poderiam avisar, esclarecer ou iluminar o leitor. Ignora-se que resultem de inferência, indução, dedução, analogia ou intuição, os pensamentos que o autor diz haverem sido sobre ele lenta, longa e sinceramente reflectidos, mas tal imposição ou sobreposição do argumento de autoridade, por muito amável ou respeitável que seja, o escritor céptico e místico, nunca poderá ter o valor comunicativo ou persuasivo dos processos trabalhosos da razão. Quem elabora tão conscienciosamente uma obra destinada ao público, prevendo todas as possíveis objecções, não deverá ficar surpreendido com o efeito que ela possa produzir na maioria dos leitores cultos ou incultos, nem deve agastar-se com a diversidade das opiniões.

De uma obra apresentada como teoria aos leitores mais exigentes esperam uma série de teoremas. Tal não sucede neste livro perturbante e perturbador que, na sua acerada polémica não só contra o racionalismo mas também contra a razão, procura desviar os pensadores portugueses do tradicional rumo das suas aventuras para os distrair com visões cépticas e visões místicas, igualmente hostis à arte de filosofar. Teoria da indecisão ou teoria da indiferença, o livro assinala os pavores do nosso tempo, mas carece de actualidade (in As Portas do Conhecimento, Dispersos Escolhidos, IAC, 1987, pp. 267-272; o presente texto fora publicado em Tempo Presente, III Ano, n.º 21, Lisboa, 1961, 6-18).






Continua


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