terça-feira, 24 de maio de 2011

O Bateleur (ii)

Escrito por António Telmo







AS ESTRANHAS ETIMOLOGIAS DE PLATÃO


Não me fiquei pelo Crátilo. Voltei a ler todo o Platão. Foi uma boa companhia na ausência de Tomé Natanael que, por qualquer motivo, fora passar três meses no norte do país.

Tenho o hábito saudável de ler o prefácio só depois de ter lido o livro. Eu possuía as obras do filósofo grego em traduções das edições de "Les Belles Lettres" que oferecem a vantagem de serem acompanhadas pelo texto original e de incluírem, antes de cada diálogo, uma pormenorizada "notícia" escrita por um especialista da escola universitária francesa.

Ao ler a "notícia" que precede o Crátilo, fiquei pasmado por ver que as numerosas etimologias que cobrem mais de metade do diálogo não são, afinal, de Platão que as escreveu. Escreveu-as, mas não acreditava minimamente no seu valor. São imitações do que outros faziam em Atenas; constituem uma paródia composta pelo filósofo para ridicularizar um certo tipo de gramáticos, que o especialista tem dificuldade em identificar, mas que Platão conhecia muito bem.

Aquele procedimento na explicação da génese e do sentido dos nomes está tão longe dos modernos processos científicos de formar etimologias que o especialista logo o reconhece como incompatível com a poderosa e lúcida inteligência de Platão. É dada uma palavra, por exemplo, a palavra anthrôpos (homem) e Sócrates, sem qualquer hesitação, explica-a por anathrôn ha opôpé (aquele que examina o que viu). Estas três palavras, ao reduzirem-se a uma só, perdem uma quantidade de letras. Etimologias deste tipo cobrem, como disse, mais de metade do livro.

Para tornar a sua paródia mais incisiva diz-nos o especialista que Sócrates aparentou estar possuído pelo daimon de Eutyphron, um adivinho muito estúpido com quem pela manhã estivera a conversar. Há um diálogo que tem por título Eutyphron e que constitui a prova daquela estupidez.

Baseado neste facto, em certas frases aparentemente irónicas de Sócrates, na insistência deste em fazer suceder as "etimologias" umas atrás das outras para marcar bem a paródia, conclui o autor da "notícia" que o diálogo foi escrito para criticar os tais gramáticos.






Aconteceu-me, porém, ter lido o Fedro logo depois do Crátilo e aí encontrei o seguinte que deita por terra tudo quanto laboriosamente escreveu o especialista: "O melhor que nos é dado vem-nos por mediação do delírio, que é, sem dúvida, um dom divino. A profetiza de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, quando estavam inspiradas pelo deus, deram aos gregos avisos que os encheram de benefícios na vida pública e na vida privada; mas, no seu estado de consciência normal, pouco sabiam ou nada. É necessário que lembre todos aqueles que, praticando a adivinhação que um deus inspira, disseram a tanta gente e tantas vezes o curso da sua vida futura? Seria perder tempo a dizer o que é evidente para todos nós".

"Eis o que vale a pena trazer aqui: os homens que, na antiguidade, estabeleceram os nomes não consideravam o delírio (manía) uma manifestação vergonhosa e um opróbrio. Se assim tivessem pensado, não teriam ligado este nome ao nome da arte por excelência que é a arte de adivinhar o futuro (manikê). Viam no delírio uma bela coisa, dado que provinha de uma dádiva divina, e por isso o nome de manikê. Os modernos, tendo perdido o sentido do belo, juntaram à palavra um t e deram à arte divinatória o nome de mantikê".

Quando o antiquário regressou do Norte, comuniquei-lhe o que tinha visto.

- Aí tem - disse ele - um exemplo bem claro do modo de proceder germânico.

- Mas o autor da "notícia" é francês...

- De formação alemã. Na Alemanha têm-se escrito centenas de estudos sobre o Crátilo a dizer o mesmo e muito antes de os franceses abrirem a boca. O que é revoltante é que essa mentira de dar o Crátilo como um diálogo imaginado para parodiar as etimologias que nele se estabelecem seja apresentada como o resultado de uma investigação rigorosamente científica, que os estudantes de filosofia universitária são obrigados a aceitar sob pena de serem reprovados. Onde é que está a objectividade? É ciência a que finge ignorar o que você viu no Fedro? As "etimologias" são ridículas para Platão. Porque as utiliza então noutros diálogos em momentos da mais perfeita seriedade?

Era a primeira vez que o via zangado, mas, de repente, calou-se e vi que a sua respiração era tranquila.

- O que eu não vejo - disse eu - é o que eles ganham em pôr Platão contra si próprio.

- Não vê? Julguei que, com o que eu lhe tenho mostrado, já estava em situação de o saber. Pretendem desprestigiar a Cabala, que usa exactamente os mesmos métodos de Platão na explicação dos nomes: a Temúria, a Guematria e a Notaria. Não a atacam directamente, mas indirectamente.

Vi perfeitamente onde ele queria chegar, à tal ideia da conspiração, mas levantava-se no meu espírito uma perplexidade. Havia outro modo de explicar os fins da erudição europeia, que a defendia e punha acima de qualquer crítica. Eu continuava a resistir à ideia da conspiração.




- Com Franz Bopp, (se não estou enganado ele foi o primeiro a estabelecer isso) o étimo de uma palavra é a palavra que lhe deu origem na passagem de uma língua para outra. Assim, por exemplo, a palavra senhor tem como étimo a palavra latina senior. Esta produção de uma língua a partir de outra língua obedece a rigorosas leis de transformação fonética, pelo que temos que considerar a etimologia uma verdadeira ciência. As etimologias de Platão, não o podemos negar, são por tal modo arbitrárias que bem devemos dizer que o daimon que inspirava Sócrates era o demónio da fantasia. É natural e até louvável que não se queira comprometer o superior pensamento de Platão com tais disparates.

Ouviu-me tranquilamente até ao fim.

- Não. Uma vez que o António Telmo verificou o que verificou, que as etimologias são de Platão e são para Platão verdadeiras explicações dos nomes, o que temos de compreender é como "o superior pensamento de Platão" pensa esses disparates.

- Como é que os garante... - murmurei.

- Exactamente. Olhe, vou-lhe ensinar uma coisa. Você diz que o que ali vemos em actividade é o génio da fantasia. De facto, como o próprio Sócrates o declara, podemos juntar letras, tirar letras, trocar letras. Parece assim muito fácil explicar qualquer nome e dar dele a explicação que quisermos. Experimente fazê-lo com, por exemplo, a palavra céu.

- O que é que devo fazer precisamente?

- O que Sócrates fez com os nomes que explicou: encontrar a palavra ou as palavras que estão escondidas na palavra céu, mas por tal modo que uma nova significação venha iluminar a significação corrente, enchê-la de profundidade.

Pus-me à procura e não encontrei nada.

- Como vê, não é fácil. Não é sequer possível num estado normal de inteligência. Se fossemos capazes de pensar a ideia do céu, eu não digo a ideia de céu, em ligação com a palavra que a designa, logo se apresentariam a exprimir o pensamento a que tivemos acesso as palavras foneticamente concordantes ou convergentes.

É o que Fernando Pessoa fez com a palavra Mensagem. Pensou-a à luz da ideia de levantar do chão o seu povo. Na sua qualidade de bateleur que faz da mentira uma verdade e da verdade uma mentira, sentou-se à mesa operativa de escritor e deixou-se possuir pelo daimon da analogia. Reconduzindo a palavra ao latim, jogou com as suas letras, desencobrindo os seus possíveis sentidos dentro da ideia vivente de Pátria concebida pelo seu espírito. Encontrou assim as seguintes significações: "MENS AGEM", "MENS AGITAT MOLEM", ENS GEMMA", "MENSA GEMMARUM", isto é, "A mente actua, "A mente remove as massas", "O ente pérola", "A mesa das pedras preciosas", aquela mesma mesa que é a mesa do bateleur (in ob. cit., pp. 31-35).



Fernando Pessoa



Continua


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