segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Terceiro Mundo (iv)

Escrito por Franco Nogueira




JFK



Ver 12, 3 e 4





«Salazar dizia-me: "Kennedy é um garoto". Não tínhamos dúvidas de que os americanos nos trariam muitas dores de cabeça».

«O Elbrick disse-me que a Inglaterra estava a vender mais à Índia depois da independência do que antes da independência. E aconselhou-nos a seguir o exemplo. Mas para nós o negócio nunca foi a questão essencial».


Marcello Gonçalves Mathias



«...desumano, insolente e desinteressado o bem-estar das populações das áreas onde se fixa [o big business dos Estados Unidos]».


Armando Gonçalves Pereira



«Apossaram-se de Washington os intelectuais e teóricos de Harvard. Solidariedades de alianças, compromissos morais, princípios legais, tudo foi varrido».

«O Ocidente está a ser derrotado nas Nações Unidas».

«Portugal não terá interesse numa "vitória dos Estados Unidos sobre a União Soviética" se para isso Portugal for sacrificado».


Franco Nogueira



«Nogueira foi bem claro ao garantir que Portugal lutará até ao limite das suas forças para manter os seus territórios ultramarinos e que disso poderá resultar uma guerra mundial. Perguntei-lhe então se Portugal iria ao extremo de arrastar o Mundo inteiro por causa de Angola, ao que ele respondeu afirmativamente, dizendo que para Portugal Angola era muito mais importante do que Berlim».

Charles Burke Elbrick (embaixador dos EUA em Portugal).





«O Governo português não tem dúvidas de que incidentes da natureza dos que ocorreram em Luanda estão a ser preparados por agentes do terrorismo internacional».

«Inacreditável selvajaria...».


Vasco Garin



«Em Kinshasa, Roberto era o nosso homem».


John Stockwell (Chefe da task force da CIA em Angola).



«...São os próprios americanos que nos andam a tramar em Angola...».


«Os Americanos ou conseguem matar-me, ou eu morro. Caso contrário, terão de lutar anos para conseguirem deitar-nos abaixo».

«Ah! se eu tivesse menos vinte anos!... Havia de pôr os brancos contra os brancos em África, e os pretos contra os pretos, e brancos e pretos uns contra os outros, e nós haveríamos de sair incólumes no meio de tudo».

«Só nos faltava mais essa desgraça [a existência de vastos jazigos de petróleo no Norte de Angola e no território de Cabinda]».


Oliveira Salazar



«Uma palavra final de aviso: a nossa ajuda clandestina a líderes africanos e à educação de jovens africanos não pode permanecer clandestina por muito tempo. Devemos preparar-nos para as consequências de qualquer revelação a esse respeito...».


William H. Taft III



«...a Grã-Bretanha e outras nações europeias têm partilhado com os Estados Unidos, aos olhos dos portugueses, o ónus das atitudes antiportuguesas nas Nações Unidas».


Theodore Xanthaky




Nikita Khrushchev e JFK


«O espectáculo dos Estados Unidos a votarem ao lado da União Sociética contra os seus próprios aliados na NATO é um motivo de grande preocupação para qualquer pessoa que preze a Aliança Atlântica».

Adlai Stevenson



«Não restam dúvidas de que se trata do governo de um homem só e que não há lá outro homem como ele. O mais provável é que, se Salazar morrer ou perder os seus poderes, Portugal volte à confusão da qual ele o arrancou».


Dean Acheson



«Portugal está em saldos, com uma carteira de privatizações que inclui TAP, EDP e REN, entre outras, bancos a necessitar de capital, indústrias a abrir falência e casas desvalorizadas pela crise cativam os angolanos, que vêem Portugal como um patamar estratégico».

«O BCI, banco de capitais maioritariamente angolanos, comprou o banco [BPN] por 40 milhões de euros».

«Não é por acaso que o presidente José Eduardo dos Santos foi considerado o 6.º mais poderoso da economia portuguesa pelo "Jornal de Negócios". Em Março de 2009 afirmou que os investimentos "eram tímidos" mas em 2010 3,8% do mercado bolsista português era de capital angolano. Foi Isabel dos Santos, a toda-poderosa filha do presidente, quem começou a dar a cara em Portugal, quando em finais de 2009 adquiriu 10% do capital da ZON por 160 milhões de euros. Consolidou a presença através de holdings, detidas pela engenheira licenciada em Inglaterra e pela Sonangol - a petrolífera estatal angolana presidida por Manuel Vicente, já indicado como "futuro presidente". Atrás do topo da hierarquia surge um séquito que inclui Hélder Dias Vieira, chefe da casa militar, com interesses no Douro e na área financeira, o ex-ministro Higino Carneiro, que tem investimentos na hotelaria e restauração em Lisboa, e outros da lista dos dez mais ricos de Angola, como a família van Dunen ligada à Newshold - dona do "Sol", ou o general João de Matos, ligado à finança».


(«Angolanos à conquista de Portugal», in Suplemento do Correio da Manhã, Edição n.º 11 791, 2011).






«OS MITOS INTERNACIONAIS E A NAÇÃO PORTUGUESA»: Texto baseado na Conferência proferida na «Casa do Infante», na cidade do Porto, em 4 de Junho de 1968






Em obediência a mitos que se apossaram dos espíritos, bateu-se no mundo toda uma geração. Àqueles que saíam da adolescência há trinta anos, e muito antes que pudessem assumir responsabilidades na vida, foram apontados os valores fundamentais por cuja defesa se lhes disse que valia a pena o sacrifício supremo. Estava em causa na Europa e no mundo a liberdade do homem e das pátrias. Violentavam as consciências e obscureciam a razão sistemas totalitários; e o caminho de imperialismos abatia povos e suprimia velhas nações. Nunca alguém ousou falar de interesses, nem apresentar ambições que não se escudassem nos mais puros princípios. Era dito, a todos quantos então tinham vinte anos, que se cuidava apenas de salvaguardar ideais em que o homem encontrava a solução dos seus problemas. Disseminaram-se ideias-força que continham em si um apelo e implicavam um desafio moral aos homens bons; e para as corporizar ergueram-se símbolos por cujo preito morreram milhões. Reivindicavam as nações que então se diziam proletárias o direito à partilha das riquezas da terra e dos benefícios da técnica. Lançou o Japão o projecto de uma ordem nova na Ásia Oriental, para garantir a paz e a prosperidade gerais na área. As nações proletárias da Europa, da década de 1930, repudiavam o sistema de segurança colectiva em nome da libertação de homens da mesma raça, para os reunir numa só pátria, ou em nome do direito a um espaço vital que afiançasse um bem-estar igualitário. Personalizaram-se sentimentos e doutrinas. O Chanceler austríaco Dolfuss foi havido por paladino da independência dos povos, e o seu martírio deu prestígio à ideia. O Presidente Bénès, da Checoslováquia, identificou-se com a causa da democracia; era o guardião escutado dos direitos individuais; e dirigia-se aos homens com o peso e a ressonância de quem se sentia depositário dos seus destinos. O Marechal Pilsudski, da Polónia, consubstanciava o princípio das nacionalidades. E Chamberlain, Primeiro Ministro do Reino Unido, durante um instante de emoção teve a seus pés o mundo agradecido: era o homem que tinha sabido calcar orgulhos, e que a quaisquer ambições ou riscos havia conseguido antepor o ideal da paz entre os povos. Acreditou-se que assim seria, para muitas e muitas gerações, e o Parlamento francês aprovou por uma maioria de 550 votos em 575 os acordos de Munich. Quando todos estes valores, e mitos, e figuras, ficaram ameaçados e foram atacados, a humanidade vibrou de angústia, e para enfrentar acontecimentos que haviam escapado ao domínio dos governos apenas na guerra se viu o único caminho praticável. Mas foi então feita a afirmação suprema: essa guerra era de certeza a última, e por isso merecia todos os sacrifícios, porque a vitória seria garantia da paz para sempre e da abertura duma idade nova. Para o efeito, a Europa, a África e a Ásia foram mergulhadas em seis anos de luta sem quartel. Recordemos a hecatombe de Stalinegrado, o massacre de Katyn, os bombardeamentos de Coventry e de Londres, as bombas atómicas que pulverizaram Nagasaki e Hiroshima, as destruições de Berlim e de Varsóvia; e as campanhas da África do Norte, e do Pacífico, e das selvas da Ásia; e os milhões de mortos e feridos, e de estropiados, e de prisioneiros. Ao fim, quando cessou o pesadelo, o mundo habitava entre escombros, as estruturas políticas e económicas estavam desmanteladas, e os povos eram destroços humanos cujo destino constituía um mistério. Tudo isto correu há três décadas somente. Mas dir-se-ia que os homens e os Estados já hoje deixaram apagar das suas memórias frágeis aqueles seis anos dramáticos e convulsos. Das ruínas, todavia, uma coisa emergiu ainda durante algum tempo: a esperança de que tudo não houvesse sido em vão e que o sacrifício colectivo abrira aos homens uma nova idade alicerçada numa ordem nova.

Aqueles a quem cabia dissipar as angústias do mundo, e organizar a paz e eliminar as causas de guerra, conceberam a instituição das Nações Unidas como uma nova ideia-força em torno da qual poderia afirmar-se a reconciliação da humanidade exausta. Eram ambiciosos os propósitos: dizia-se no preâmbulo da Carta que se pretendia para sempre libertar «do flagelo da guerra as gerações futuras», assegurar «iguais direitos para todos os homens e para todas as nações grandes ou pequenas», impor justiça e respeito pela lei internacional, e «promover o progresso social numa mais ampla liberdade». Erigiu-se em mito a ONU: o mundo foi persuadido de que a organização constituía a esperança derradeira de sobrevivência dos povos. Aquela surgia assim como um vasto pretório democrático, regulador dos conflitos internacionais, promotor do desenvolvimento, garante dos direitos humanos, e nivelador das diferenças entre as nações, corrigindo a preponderância dos impérios através da igualdade qualitativa das pátrias. Procurava-se estruturar na adesão à ética da Carta a confluência de sistemas políticos e económicos díspares, presumindo-se que o respeito pela nova lei internacional e a prossecução do ideal de paz seriam automáticos numa humanidade fustigada por seis anos de guerra. Na imaginação dos mais ousados ou dos mais ingénuos firmou-se a ideia de que estava próxima a era do Governo mundial, de que decorreria a abolição das soberanias nacionais; e começou a aperfeiçoar-se o embrião de futuras instituições universais, sem se excluir mesmo o estabelecimento de uma força colectiva permanente que velaria pela ordem pública no mundo.







Ao mesmo tempo que assim se pretendia reforçar a ONU, compreendia-se no entanto que no desarmamento residia a pedra fundamental para uma paz duradoura. Por isso o desarmamento geral e completo foi o segundo mito que capturou a imaginação dos povos no limiar da idade nova. Era sinónimo de paz, no sentido de ausência de guerra; mas também foi havido como sinónimo de progresso económico e desenvolvimento técnico porque, para estímulo de um e outro, libertava os recursos financeiros indispensáveis. Deixou assim o problema do desarmamento de interessar somente os grandes impérios: mesmo os povos mais modestos reivindicaram uma voz na sua solução, e dir-se-ia haverem acreditado que com os seus anseios coincidiam os desejos e os interesses das potências, e que as dificuldades encontradas para desarmar o mundo eram apenas técnicas ou adjectivas.

Por isso – e estamos perante outra das ideias-força actuais – insistem os povos no desenvolvimento económico e no progresso técnico acelerados. Constitui uma obsessão a que tudo se diria ficar subordinado. Aquela insistência, e o desejo que a impulsiona, são em si inteiramente legítimos, e colocar o progresso ao alcançe das massas, tão rapidamente quanto possível, é imperativo dos governos e das instituições internacionais. Consiste o problema, porém, em saber se os actos dos países ricos e o comportamento dos que constituem o terceiro mundo têm contribuído para realizar aquele objectivo, ou se serão os mais idóneos para o alcançar. Entendeu-se, com efeito, que o desenvolvimento dos povos modestos era uma responsabilidade moral dos países abastados e altamente evoluídos, e que estes deviam distrair para aquele fim uma parte do seu trabalho. Assentou-se em que o avanço do terceiro mundo deveria ser veloz e espectacular, e nisso não haveria mal se não se pensasse que o segredo do êxito estava na industrialização maciça, sem se cuidar de lançar primeiro as bases de uma administração capaz e eficiente.

Mas lado a lado com o objectivo do desenvolvimento acelerado afirmou-se a necessidade moral da independência política de territórios, porque esta foi correlacionada com aquele. Na verdade, acreditou-se ou fez-se acreditar que a independência política de um território era panaceia para todos os problemas: por si, constituía um método de promoção social, representava uma segurança da liberdade individual, prestava uma garantia de avanço técnico e económico, sendo assim capaz, em suma, de estruturar um Estado, lançar uma administração e implantar uma pátria mesmo onde esta não existisse. Foi portanto o mundo levado ao que se designou por descolonização, e esta apresentou-se como um imperativo de consciência, um acto salutar para eliminar as causas do conflito, um gesto esclarecido de sabedoria política para libertar de encargos as potências com soberania em espaços ultramarinos. Essa descolonização efectuar-se-ia sob o signo de um tipo de democracia: chamou-se-lhe autodeterminação: e como a democracia e como a paz, a autodeterminação foi havida como indivisível. Quer isto dizer que forma uma responsabilidade colectiva: não será completa nem estará segura enquanto não for universalmente aplicada, e sempre do mesmo modo: e isso sem distinções e sem atender a considerações de número de habitantes e recursos e sem olhar às estruturas e estádios sociológicos dos vários povos.

E assim encontramos as grandes coordenadas em que, após o rescaldo da última guerra, se tem procurado organizar a nova comunidade universal: a busca do governo mundial através das Nações Unidas; a paz pela lei e pelo desarmamento; o progresso técnico e o desenvolvimento económico acelerados; os direitos humanos e a independência dos povos fundados na autodeterminação, sujeita à fiscalização e censura internacionais. Têm sido estes os grandes ideais com que se procurou emocionar os corações dos homens e aliciar as vontades, e à sua sombra a todos nos tem sido dito que sobre a humanidade ia descer uma ordem nova e mais perfeita. Dir-se-ia que o fulgor destas ideias-força tem cegado muitos olhos deslumbrados, e dir-se-ia também que se tem sido incapaz de distinguir naquelas o que há de incontestavelmente de mito ao serviço de novos impérios.


Reverso do Grande Selo dos Estados Unidos, instituído em 1782. O ano de 1776 (indicado na base da pirâmide em numeração romana) pode estar, porventura, relacionado com a fundação da «Ordo Illuminati Germanicus», levada a cabo por um professor de Direito Canónico: Adam Weishaupt (1748-1830). A finalidade de uma tal associação, desde logo infiltrada na Maçonaria, era o estabelecimento de uma "Nova Ordem dos Tempos" (Novus Ordo Seclorum). "Annuit Coeptis" significa "Ele aprova nossos actos".


Porque, com efeito, temos de perguntar: serão na realidade novas as bases da nova sociedade? Serão de facto eficazes os instrumentos com que se procura apetrechar a comunidade para garantir o progresso e o bem comum? Tomemos a Organização das Nações Unidas e o seu projecto de governo mundial. A ideia de uma autoridade universal, no sentido de abranger todo o mundo conhecido, já nós a poderemos encontrar no conceito da Respublica Romana e depois no da Respublica Cristiana. Sem recuar a tempos tão remotos, todavia, recordar-se-á que no século XV o Rei Jorge da Boémia elaborou uma organização do Estado Universal; e no séc. XVII William Penn escreveu o Ensaio para a paz presente e futura na Europa, em que propunha um sistema de decisões por votos ponderados (caberiam três a Portugal) e previa o uso da força contra os desobedientes. Mais tarde, um outro inglês, John Bellers, sugeriu a constituição de um Estado Europeu dotado de um sistema para resolver todas as disputas acerca dos direitos dos Príncipes. Já no séc. XVIII, o Abade de Saint-Pierre compunha a Memória para tornar a paz perpétua na Europa e entrevia o estabelecimento de um congresso e um senado perpétuos, tendo o plano interessado Rousseau vivamente. Pouco depois Bentham publicava o Plano para uma Paz Universal e Perpétua, e no mesmo sentido propuseram seguidamente os filósofos alemães do séc. XVIII uma confederação geral universal. Podemos mesmo descer a um pormenor e inquirir se será nova a ideia de uma força internacional de manutenção da paz, que tantos hoje advogam como vital para a segurança colectiva. Neste particular, será de lembrar que já Sully, o conselheiro de Henrique IV de França, sugeria em 1609 a formação de um exército internacional de 100 000 soldados de infantaria, 25 000 cavaleiros e 120 canhões, destinado a executar as decisões do Conselho Geral Europeu composto por quarenta membros. Afigura-se aliás historicamente comprovado que neste «grande desígnio» de Sully se inspirou o Presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos, quando três séculos mais tarde lançou a sua Sociedade das Nações. Mas por estes dados rudimentares tirados da história política já poderemos entrever as vicissitudes das tentativas de um governo mundial ou planetário e de manter a paz entre os homens. Trata-se de um desideratum, de resto, que se enquadra num permanente ideal cristão, que sempre recomendou a paz.

O desarmamento, por sua vez, também corresponde a um desejo que nunca morreu no homem; e a negociação frustrada de um desarmamento geral e completo depois de cada guerra constitui um traço tão comum na história de todos os tempos que será descabido exemplificá-lo. Na época que todos vivemos também não tem avançado um passo o problema: e não se sabe se é a impotência das instituições ou simplesmente o instinto de conservação dos Estados que mantém o mundo em posição de combate.

Mas que resultados se têm alcançado através das demais ideias-força com curso nas duas últimas décadas? Depois da euforia dos primeiros ensaios, parece que o mundo dos subdesenvolvidos começa a sentir-se decepcionado perante os obstáculos intransponíveis que os países ricos têm acumulado no seu caminho. As potências industriais, tanto capitalistas como socialistas, dizem-se com efeito prontas a aceitar a responsabilidade moral de auxiliar o terceiro mundo e a atribuir para tanto uma generosa percentagem do rendimento do seu próprio trabalho. Mas da declaração de princípio à sua execução mantém-se um largo abismo que ainda não foi transposto; e as alterações dos sistemas monetários internacionais, as oscilações nos preços das matérias-primas fornecidas pelo terceiro mundo, e as flutuações do custo dos produtos manufacturados que este tem de adquirir – tudo isto pode anular os auxílios que os países ricos afirmam conceder generosamente aos países pobres. Isto explica o que é por todos averiguado: sem embargo das múltiplas instituições internacionais para erguer os povos pobres ao nível a que todos têm direito, e não obstante os altos princípios morais que todos decerto desejam acatar, é indisputável o facto de que os ricos se acham cada vez mais ricos, e os pobres cada vez mais pobres. Se se tiver em conta que a maioria do terceiro mundo é formada pelos descolonizados, daqui se concluirá qual a natureza da descolonização e a extensão do desastre a que a autodeterminação indiscriminada tem conduzido.



E aqui cumpre sublinhar três aspectos fundamentais. Já vimos que as Nações Unidas e algumas potências nos dizem que a autodeterminação, para ser segura e completa, é indivisível como a democracia e a paz. Lançou-se este slogan, e não se reparou nos seus riscos. Quando se declara indivisível a paz, por esse facto se considera a guerra ilegal. Mas quando se alega que a autodeterminação e um tipo exclusivo de organização política são indivisíveis, então temos de aceitar que ao mesmo tempo estamos a legitimar e a justificar a alegação que se faça da indivisibilidade do comunismo, do socialismo, do capitalismo ou de qualquer outra ideologia política ou sistema económico; e estamos também a lançar os germens de um conflito pois que a oposição entre duas legitimidades só pela força pode ser dirimida. Estamos em plena negação da coexistência pacífica, que por outro lado se tem procurado organizar em moldes aceitáveis. Isto significa que tem de haver mais de uma forma de autodeterminação, e que todas têm de poder coexistir e de ser havidas por válidas. E o segundo aspecto importante é este: se se aceita a responsabilidade colectiva da autodeterminação, cai-se implicitamente, para a efectivar, na sua fiscalização internacional; esta, porém, só é exercida sobre os pequenos países, porque as grandes potências têm meios de se eximir ou de desacatar qualquer ingerência estranha; e deste modo se explica que a fiscalização do respeito pelos direitos humanos nunca se tenha podido praticar na União Soviética, ou nos Estados Unidos, ou na China. E isto me conduz ao terceiro aspecto fundamental. A ideia da responsabilidade colectiva em matéria de autodeterminação dos povos inteiramente coincide com a velha ideia imperial do «fardo do homem branco». Esta assentava na convicção de que constituía responsabilidade moral do homem branco envidar todos os sacrifícios pelo progresso do homem negro ou amarelo. Esse altruísmo ímpar do homem branco foi fonte de lutas entre as nações europeias – cada uma desejando ser mais dadivosa do que as demais e querendo sobretudo talhar-se na África e na Ásia amplas esferas de influência, onde pudessem vender os seus produtos e obter a bom preço as matérias-primas para as suas indústrias. E é precisamente também este o fundamento da autodeterminação actual. As grandes potências mundiais, com indústrias e mercados insaciáveis, também hoje nos afirmam ser por virtude de uma obrigação moral pesada, a que se não podem furtar, e em obediência a altos princípios ideológicos, a que não conseguem subtrair-se, que são compelidas a defender a autodeterminação indiferenciada em toda a parte, ainda que para tanto hajam de arruinar os povos autodeterminados e ofender amigos e aliados, pisando seus direitos e interesses legítimos. Entre esta situação e a de ontem é nenhuma a diferença. A descolonização foi assim impulsionada em termos que não são de independência política e económica para os novos estados, e em muitos casos representarão simples reconversão ou transferência de soberanias.

E de tudo tiraremos uma conclusão geral: as grandes ideias-força, os altos princípios, os mitos difundidos nas últimas décadas, mergulham as suas raízes em ideias ou conceitos que vêm de longe. A sua novidade, o seu fascínio, o sortilégio que provocam derivam sobretudo do vocabulário usado, e dos poderosos meios técnicos com que se disseminam e repetem as novas frases herméticas. Não se diga, porém, que não há matéria nova, ou que se não alteraram muitas estruturas, e é isso que teremos de ver.

Mas antes convirá referir uma outra ideia-força, que tem sido rodeada de grande prestígio e a que no Ocidente se tem devotado um particular culto. Designamente muitos de nós em Portugal lhe atribuímos subido valor. Estou a pensar no mito da Europa: na ideia de que a Europa deve ser construída numa base supranacional, de modo a erguer-se como força de envergadura poderosa que baste para a colocar em pé de igualdade com os grandes impérios surgidos depois da guerra. Por outras palavras: uma Europa despojada de soberanias nacionais, descarnada da sua diversidade, federal no plano político, monolítica no plano moral e social. A esta ideia de pátria europeia se amparam muitos, arrastados pela atracção das coisas aparentemente diferentes. No que particularmente nos toca, julgam alguns de nós que o destino de Portugal está no apego a essa Europa unitária, e que àquela nova pátria europeia poderíamos confiar a nossa segurança e o nosso rápido desenvolvimento: esta seria uma alternativa compensadora do abandono a que entretanto teríamos votado os caminhos do Ultramar.



Imperador Carlos Magno



Esta é a ideia de hoje. Mas a história mais elementar diz-nos que esta ideia tem pelo menos dois mil anos. Não se trata de incompreensão perante um novo fenómeno: é análise fria do quadro actual que nos impõe essa conclusão. Já a Respublica Romana ou a Respublica Cristiana não haviam sido mais do que tentativas de uma pátria europeia. No plano político como no militar, o Império de Carlos Magno constituiu a mais acabada realização de uma Europa Unida e de um Mercado Comum, cujas fronteiras coincidiam quase exactamente com as que hoje delimitam a Comunidade Económica europeia. Mas logo sobrevieram as nações, e a história da Europa consistiu na acomodação de umas com as outras. Entramos no séc. XVIII e assistimos ao embate entre o que então se chamava o cosmopolitismo e o princípio das nacionalidades. Com a Revolução Francesa o choque produz-se entre a Europa do direito dos povos e a Europa das hegemonias. Temos novas tentativas de construção da Europa pelo império: a Europa napoleónica, a Europa da Santa Aliança, a Europa hitleriana. E se quiséssemos, acaso com algum simplismo, sistematizar vinte séculos de história europeia, poderíamos dizer que esta tem sucessivamente girado em torno de um princípio, de uma força, e de um interesse. Mas é na diversidade que a Europa tem encontrado a sua expressão.

Caberá aqui perguntar o que é a Europa. É antes de mais uma força de ânimo, de matriz cristã; depois é a liberdade de espírito, à maneira grega; seguidamente, é o culto da lei, da ordem, da grande administração, nos moldes romanos; e por último é a técnica, a ciência, o rigor, o respeito pelo homem como um valor em si, o domínio da natureza, a disciplina fundada na lei geral, a distinção entre o privado e o público, a vocação universalista, e a multiplicidade e fragmentação criadora. Foi nestas bases que a Europa viveu a sua grandeza, e que tem sido portadora de uma mensagem que o mundo aceitou. A cooperação, a unidade económica, e um sentido comum dos interesses mundiais europeus, são hoje indispensáveis; mas ir para além desses limites é correr o risco de abafar o ímpeto fecundo da Europa. Aqueles que noutros continentes advogam e solicitamente recomendam uma Europa supranacional, unida, federada, têm no pensamento uma Europa cingida às suas fronteiras geográficas, sem posições no Mundo e sem intervenção no plano internacional. E isto porque uma Europa que seja uma simples península da Ásia e que não disponha de posições políticas ou outras para além das suas praias, terá de se confiar à protecção de além-Atlântico, decerto condicionada aos interesses nacionais e à linha ideológica de quem protege.

É dentro deste quadro que por esse vasto mundo se desencadeia uma propaganda infatigável destinada a incutir na Europa um complexo de culpa, um dever de expiar crimes e redimir faltas, e tudo isto é dito e repisado até à saturação, para entibiar a consciência dos europeus como se estes habitassem um continente maldito. Dir-se-ia que tão-somente a Europa cometeu erros, provenientes da malignidade e torpeza ética do homem do continente europeu, enquanto os outros apenas se determinam pelos mais altos e mais desinteressados princípios. E por isso é no repúdio daquela culpa sem fundamento que a Europa poderá retomar a sua marcha interrompida pela guerra e sofreada pelos impérios não-europeus.






Não se conclua, porém, que se mantém idêntico o mundo desde a guerra de 1939-1945. Se as situações históricas se repetem, e se a natureza das forças em conflito não sofre as alterações que seríamos levados a supor pela nova terminologia usada, a verdade é que nas últimas décadas dois factos apresentam um interesse vital para os destinos do homem e da civilização. Refiro-me à emergência de novos impérios e à revolução tecnológica. Das ruínas da guerra, da fadiga dos povos que arcaram com a sangria dos combates, das dúvidas suscitadas quanto a um padrão de valores morais a respeitar, saíram em escombros os impérios tradicionais que, filiados no velho concerto europeu, durante mais de um século asseguravam a estabilidade do mundo. Demitiu-se das suas responsabilidades o império britânico; reconverteram-nas o império francês e alguns outros; e o complexo de culpa com que se tem procurado desfazer toda a Europa, sob o pretexto artificioso de a unir, arrastou o continente europeu ao abandono. Ergueram-se no mundo, por outro lado, os impérios chinês, russo e norte-americano. De momento, o potencial humano da China não é apoiado nos meios económicos, técnicos e militares que bastem para assegurar uma hegemonia que transcenda os aspectos regionais. Mas os recursos da União Soviética e dos Estados Unidos permitem-lhes estar presentes em força e agir nos quatro cantos da terra. Dir-se-á que essa sempre foi a característica dos impérios de escopo mundial. Bastará recordar o exemplo do império britânico: era uma organização económica e comercial que se apoiava na arma suprema da época – a esquadra britânica – e numa rede mundial de bases militares. Não tentava o Reino Unido, todavia, organizar o mundo num quadro moral e ideológico novo; e por isso, assegurados os interesses britânicos, os seus desejos de intervenção na vida dos povos eram nenhuns. Mas é diferente o objectivo da União Soviética e dos Estados Unidos da América. Estes têm como fim único estruturar, segundo o modelo que se traçaram, uma ordem nova planetária, e sujeitar o mundo a uma disciplina de poder que limite, em número e em potencial, os centros autónomos de decisão política e militar. Sob pretexto de que têm de conduzir uma luta global, ambos praticam um intervencionismo de proporções mundiais; e declaram agir com sacrifício em nome de princípios de que estariam ausentes os seus interesses próprios. Atribuem-se assim imperativos de consciência e mandatos colectivos cujo fundamento aliás não descobrimos em nenhuma ordem revelada ou positiva. Sentem-se forçados a tomar posição judicativa, ao mesmo tempo ideológica e moral, em face de governos e de instituições alheias, e a actuar em conformidade; e arrogam-se o direito de definir os interesses nacionais dos vários países, querendo impor-lhes essa definição.







Não se pretende dirigir uma crítica a quem quer que seja; mas a mais sóbria análise política leva-nos à conclusão de que, na ordem nova que se anuncia, há uma significativa coincidência permanente entre os interesses nacionais dos grandes impérios mundiais e os princípios de que se fazem apóstolos quanto a terceiros. E por isso somos obrigados a dizer que as super-potências mundiais assumiram perante os homens e perante a história responsabilidades gravíssimas; e parece duvidoso que uma ordem nova construtiva possa ser fundada sobre a instabilidade inerente ao intervencionismo em escala universal.

Mas as grandes potências apoiam-se, de momento, nas conquistas da era tecnológica. Esta contém, na verdade, uma das mais belas promessas. É inultrapassável o prestígio das conquistas técnicas e científicas, e dir-se-ia que delas fiamos a felicidade do homem para sempre. Por isso se começou a medir a eficiência dos governos e a legitimidade de uma política pelo grau de prosperidade individual e progresso material que assegurasse. A construção de sociedades afluentes ou pletóricas é avidamente desejada; e para se lhes dar um conteúdo e uma justificação moral disseminou-se a ideia de que só o homem rico é um homem livre e de que apenas numa sociedade de abundância está garantida a plenitude dos direitos humanos. É toda uma nova civilização que se anuncia: a do poder nuclear, a dos ordenadores e computadores electrónicos, a das grandes empresas mundiais sem nacionalidade, a da organização dos ócios, a da sociedade de participação e contestação, a sociedade humana pós-industrial; o ano dois mil aparece no horizonte como uma linha de fractura cerce e abrupta com o passado; e o futuro é apresentado como uma fase finita, estanque, delimitada, permanente, que se segue à actual, como se a vida aí se suspendesse em moldes definitivos e como se a um futuro não se seguisse outro, e outro, num fluir sem paragem. Acima de tudo, exige-se rapidez: esquece-se se as economias podem aguentar o peso do que se pretende e das reivindicações que se apresentam e, ao mesmo tempo, continuar a progredir e ser independentes. A verdade, porém, é que a grande revolução tecnológica requer recursos vultuosíssimos na fase actual; e esses apenas as grandes potências mundiais os possuem. Daí a sua hegemonia; e esta manter-se-á enquanto detiverem o monopólio da fonte de que emana o poder, ou enquanto outra fonte não for descoberta. Por isso as maiores potências não se cansam de propagar os ideais de prosperidade, abundância, integração supranacional; mantêm a ficção de um organismo internacional de feição democrática, mas procuram organizar a comunidade das nações em termos aristocráticos, reservando-se o manejo sem restrições da energia nuclear e das alavancas económicas; e à sombra daqueles grandes mitos por todo o vasto terceiro mundo desceu de 30% a produtividade média nos últimos cinco anos.






Sim: os recursos económicos, o poder nuclear, o domínio da revolução tecnológica, o controle das matérias-primas e do trabalho dos países subdesenvolvidos, os grandes arsenais militares – tudo isto confere às grandes potências um poderio que se diria irresistível. Mas não é: não podem tudo. Porque, para além da agitação que promovem, têm esquecido o elemento humano; e é este, por retardado e fraco que seja, que compele a União Soviética a ser prudente na Europa de leste e os Estados Unidos a ser cautelosos perante outras dificuldades que tem enfrentado.

Na definição da atitude portuguesa não nos deveremos determinar por emoção, ou por simpatia, ou malevolência, ou ódio em favor ou contra um povo ou outro. Não se trata de ser amigo ou inimigo de quem quer que seja. Haveremos de nos cingir à análise dos factos, para assim mantermos clara e fria a nossa visão. E a primeira consideração que se afigura vital é esta: para nós, os interesses portugueses têm prioridade absoluta sobre todos os demais, e a satisfação ou a cooperação com os interesses alheios não podem nunca realizar-se com atropelo dos nossos. Isto significa, antes de mais, que a noção de pátria tem de estar sempre presente e viva no nosso espírito. E é bem que falemos de pátria, de nação portuguesa. Todos sabemos que se condena hoje o nacionalismo, que se tem por ideia ultrapassada, e que a linha de fronteira é havida como uma aberração e um arcaísmo. Mas atentemos em que aqueles que condenam o nacionalismo, e o tratam pejorativamente, são precisamente os mesmos que, para si próprios, mais cultivam e exaltam a ideia da pátria. Na União Soviética todo o sistema de educação e propaganda se baseia na história russa, nos mitos russos, nas glórias russas, na defesa e promoção, em suma, da pátria russa. Nos Estados Unidos, a educação, a propaganda, o enquadramento psicológico e social da juventude não se destinam a formar um homem, dotado de espírito universalista, mas um cidadão americano, impregnado de orgulho de o ser, o convicto de que ser americano constitui a única expressão válida de patriotismo e de cidadania política. Acreditar que está desprestigiado o conceito de pátria, e que o nacionalismo não tem hoje razão de ser, é ponto de vista de que só os simples poderão partilhar. E daqui podemos atingir uma segunda conclusão, e que será esta: não se justifica que procedamos como se os estrangeiros, pelo facto de o serem, tivessem razão contra nós, e como se fossem sagrados os princípios de que se fazem arautos para sua exclusiva conveniência; e nem há que ficarmos confusos porque nos criticam, ou que recear dar-lhes a resposta que for apropriada. Quer isto dizer que nenhum motivo há para inibições morais nem sobressaltos de consciência, e lembremo-nos de que não são formados de santos nem de super-homens os demais povos. Não há que sublimar os nossos adversários: temos que ser friamente realistas na valoração e julgamento que deles façamos. E somos conduzidos a uma terceira conclusão. Uma política digna desse nome tem que saber, a cada momento, distinguir o que é acessório do que é essencial, e o que é passageiro do que é duradouro. Não podemos tomar decisões definitivas para satisfação do que for provisório. Está o perigo, portanto, em que nos deixemos persuadir de que é permanente e definitivo o que é somente provisório. Perante os mitos que enleiam os espíritos, e as ideias-força que capturam as imaginações, e as dúvidas que perturbam as consciências, muitos deixam-se arrastar, e ficam convictos de que a ordem nova, além de ser nova, é definitiva e irreversível. Decerto: no mundo muita coisa poderá ser aperfeiçoada e actualizada; mas no que nos toca tomemos como directrizes o nosso interesse e não actuemos ao sabor das ideias insufladas por outros. Porque, além de manejar com destreza um novo vocabulário, que impressiona muitos pelo seu hermetismo e audácia, e de utilizar meios técnicos de dissimulação veloz e maciça, a ordem nova é acima de tudo uma criação de forças imperiais que procuram realizar-se no mundo. As decisões que tomemos no essencial, todavia, essas são definitivas e irrevogáveis; se ao tomá-las procuramos satisfazer o adversário para o apaziguar, estaríamos já a fazer a sua política e a não a nossa; e quando nos apercebêssemos do ludíbrio seria inviável arrepiar caminho.





Diz-nos a história desta nossa nação que a identidade das situações e analogia dos conflitos se mantém para além da evolução dos princípios teóricos e das revoluções ideológicas. Não temos que sair do continente africano para estabelecer esta verdade. Firmámo-nos em África com títulos morais e jurídicos por todos havidos como válidos, e a Nação Portuguesa, tal como então a constituímos, teve na época reconhecimento internacional pacífico. A contestação dos nossos direitos surgiu, porém, quando as potências se quiseram assenhorear do continente africano, e este passou a ser elemento de peso no jogo internacional. Então se elaboraram doutrinas de maior elevação moral, e todas eram no sentido de destruir em África a nação portuguesa. Lançou-se o princípio da liberdade dos mares contra Portugal quando se quis atacar o poder naval português. Proclamou-se o sistema do «pacto colonial» quando se quis restringir a liberdade de navegação portuguesa, e o seu acesso aos portos africanos de outrem. Condenou-se Portugal em nome do anti-esclavagismo quando a escravatura, que toda a Europa praticara maciçamente, deixou de ser economicamente proveitosa e passou, por esse facto, a afrontar de súbito a consciência das maiores potências. Advogou-se o direito de visita e de inspecção a navios nossos, e admitiu-se a legitimidade do bloqueio de alguns portos portugueses para, segundo era alegado, assim melhor se executarem os objectivos ideológicos da comunidade internacional. Defendeu-se a internacionalização dos problemas africanos quando as potências, pela sua força, tiveram a certeza de poder dominar essa internacionalização e encaminhá-la em seu proveito. Defendeu-se o critério da ocupação de territórios como base da legitimidade de soberania; mas não antes de se ter garantido por expedições militares a ocupação do que interessasse. Depois considerou-se que em nome da justiça entre as potências seria útil delimitar em África as respectivas esferas de influência; mas estas deveriam equilibrar-se utilizando territórios portugueses e deixando intactos os dos mais fortes. No mesmo sentido operou mais tarde a doutrina dos mandatos. E ainda nessa direcção foi entendida e aplicada a teoria do «fardo do homem branco»: era a ideia de um generoso dever colectivo do concerto europeu perante o homem africano, e a que apenas as potências poderiam naturalmente fazer face: e também nos nossos dias, finalmente, o conceito de autodeterminação parece constituir um dever que a si mesma se impõe a comunidade internacional, atribuindo-se algumas grandes potências, sem que alguém lho houvesse solicitado, a responsabilidade de zelar pelo seu rigoroso cumprimento: e tanto num caso como noutro pretendeu-se excluir Portugal. Mas através de todos estes séculos de história alguns traços comuns devemos salientar: Portugal funda-se em África na validade dos seus títulos e na legalidade internacional vigente; depois as super-potências elaboram novos conceitos ideológicos e assentam novas estruturas legais e políticas no plano internacional, e umas e outras servem acima de tudo os respectivos interesses nacionais; ataca-se seguidamente Portugal porque se recusa a adoptar aqueles altos princípios ideológicos e humanitários; e essa recusa portuguesa é havida como um obstáculo ao desenvolvimento da África, como um agravo à consciência da humanidade, como um embaraço à grandiosa estratégia política do Ocidente, e por isso condenar Portugal e privá-lo das suas províncias constituem, hoje como no passado, imperativos de moral, além de sábios e salutares actos políticos.






Mas se sairmos da África, e confrontarmos a nossa posição com princípios actuais de escopo mundial, não são diferentes as nossas conclusões. Não possuem as Nações Unidas força além da que as grandes potências quiserem dar-lhes; estas apenas apoiam a organização quando a mesma actuar em conformidade com os respectivos interesses nacionais; e temos de afirmar que aquele organismo internacional não se determina pelos princípios éticos inscritos na Carta nem obedece a qualquer sentido de equidade política. Por isso se tem de dizer que as Nações Unidas não reflectem uma qualquer opinião pública, nem traduzem o peso de um julgamento moral. O Governo de Moscovo desrespeitou as trinta ou quarenta resoluções votadas contra a União Soviética, além de haver aplicado o veto no Conselho de Segurança uma centena de vezes, de uma das quais fomos vítimas no caso de Goa; a União Indiana tem repudiado todas as resoluções do Conselho acerca de Cachemira; o Egipto e Israel sempre ignoraram as decisões daquele órgão e da Assembleia; os Estados Unidos da América expressamente se recusaram a cumprir o que há anos foi votado sobre o desarmamento e energia atómica. Nenhuma perturbação de espírito ou escrúpulo de consciência nos deve causar o não-cumprimento de resoluções da ONU, sobretudo quando as mesmas, como é o caso no que nos toca, constituem clamorosas ilegalidades – e foram votadas para satisfazer os objectivos aparentes do terceiro mundo e os objectivos reais dos impérios. Nem devemos equacionar o nosso prestígio internacional com os votos da ONU, nem pensar que estamos isolados porque estamos em minoria na Assembleia. Mas uma das principais acusações da ONU contra Portugal consiste em afirmar que constituímos uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Arrasta-se há doze anos a acusação; nesse período assistimos às crises de Berlim, e ao conflito do Suez, e à aventura militar do Congo, e ao esmagamento da Hungria, e ao embate de Cuba, e à conquista de Goa, e à luta da Indochina, à ocupação da Checoslováquia, e às guerras no Médio Oriente e na Nigéria; perante tudo isto ficou impotente a ONU; mas segundo esta, é a protecção das populações e territórios portugueses que ameaça a paz e a segurança internacionais. Decerto que a paz é um valor em si, e um bem que deve ser defendido, e ninguém responsável e lúcido pode ser paladino da guerra. Mas salvo se se tomou a iniciativa da agressão, não há e não pode haver paz unilateral; e quando à vítima de um ataque se recomenda a paz a todo o preço, sem que os atacantes hajam sido persuadidos a cessar o ataque, está-se a negar a mais elementar legítima defesa e a advogar o que se chama uma solução política, que no fundo é a paz nos termos do adversário. Mas toda esta problemática surge para nós em ligação com o Ultramar. E isto nos reconduz ao outro dos grandes mitos actuais: o da descolonização. Somos arguidos de colonialismo, e a acusação firma-se em dois pressupostos: o de que o Ultramar português é uma nódoa de subdesenvolvimento no esplendor e na prosperidade que a descolonização trouxe a toda a África; e o de que estamos negando os direitos humanos mais elementares. Temos de rejeitar, por falsos, os dois pontos. Aqui na metrópole temos de tomar consciência, e de proclamar sem temor, que Angola e Moçambique estão entre os territórios mais desenvolvidos da África negra ao sul do Sahará; e no que respeita a direitos humanos, não parece que estes sejam eficazmente protegidos na Nigéria, ou no Congo, ou na Etiópia, ou em quase todas as outras regiões da África; mas são respeitados nos nossos territórios, e por isso admitimos sem esforço que é do interesse português recusar que às populações portuguesas, sejam negras ou brancas ou mestiças, se imponha uma autodeterminação que inevitavelmente, fatalmente, as submeteria ao império económico, financeiro e militar de potências não-africanas. Alega-se por outro lado que devíamos abandonar os caminhos do ultramar – porque os tempos são outros, e porque uma integração na Europa nos daria segurança e prosperidade, e nos alinharia com o progresso e a modernização europeias. Há os que sentem então a sedução de pertencer a organizações de tendência supranacional sem se aperceberem de que por esses atalhos deixaríamos de ser o que somos para passarmos a ser o que não queremos. Cingidos ao que o Infante D. Henrique chamava o território «de aquém», seríamos uma entidade de limitada expressão internacional. Também neste particular, de resto, a história desta Pátria nos diz que as estradas da Europa são ilusórias, e custosas, e que a nossa tipicidade assenta na fidelidade à nossa vocação de povo ultramarino.






Desta investigação sumária parece evidente o paralelismo entre os principais mitos do mundo actual que foram lançados e em que se apoiam as grandes forças internacionais, e os ataques que nos são dirigidos no plano mundial. Isso significa que sofremos o embate dos grandes interesses e ambições e que somos acusados e atacados porque estamos no seu caminho. Daqui deveremos compreender que é inviável tentar conciliar ou apaziguar os adversários mediante transigências parcelares. Porque, com efeito, os interesses só se consideram satisfeitos quando efectiva e realmente o forem; mas então já nós teríamos cessado de ser o que somos, e as ambições apenas se detêm quando acomodadas no arranjo global a que conseguirem chegar. Por isso tem de ser imperativo da nossa política nacional procurar atravessar, tão incólumes quanto possível, a tempestade da actual revolução planetária; porque, restabelecida a ordem pública internacional e firmadas as modernas Tordesilhas mundiais, os novos impérios, já então saturados, serão os mais extremados defensores da lei, dos direitos adquiridos, e da moral. Temos de ser fortes até essa altura, para que seja respeitada a nossa integridade dentro do lugar que nos cabe. Mas tudo isto significa também que são inúteis, além de perigosos, todos os compromissos políticos. Nenhum seria respeitado: e cada cedência nossa seria tão-somente o ponto de partida para nova e mais ampla exigência. E não nos convençamos de que, condescendendo no acessório e no secundário, conseguiríamos guardar e salvar o fundamental: porque é no fundamental que o adversário tem os olhos fitos: e não se deixa iludir ou persuadir que o obteve sem que o haja alcançado na verdade. Não pensemos, assim, que o segredo da nossa vitória está numa maleabilidade e flexibilidade, de cuja falta nos acusam os que rigidamente nos lançam sempre as mesmas acusações eternas; nem julguemos ser viável cruzar os caminhos do mundo sem problemas, sem dificuldades, sem sacrifícios, como se vivêssemos numa irrealidade que pudéssemos comandar a nosso gosto; e nem se diga que os portugueses estão alheios ao mundo de hoje, e apartados dos seus problemas, e dos seus valores, e das suas novas subtilezas, e das suas novas verdades, porque são precisamente um profundo sentido realista e um claro entendimento dos problemas, e dos mitos, e das ambições em presença, que nos dizem que não nos deixemos ofuscar por tudo quanto, ao fim e ao cabo, é transitório e fugaz nas perspectivas da história. Para além do imediato, e para além daquele pequeno futuro a que se referem os mitos modernos, temos de ver o futuro a longo prazo, nas perspectivas do tempo; e não nos esqueçamos de que o que fizermos aqui tem imediatas repercussões no Ultramar. Finalmente, não imaginemos ser praticável adoptar políticas contraditórias, colhendo os benefícios de ambas, de modo que ao mesmo tempo se conserve esta nação multirracial e pluricontinental e se contentem os adversários que a querem destruir.



Jorge Félix



Tudo isto põe à prova a nossa vontade e a nossa coragem. Fala-se hoje muito em desafios. Pois eu falarei do desafio português – do repto que esta nossa velha Nação lança a todos nós, seja qual for a idade que tenhamos, perguntando-nos se estamos à altura dos direitos e dos interesses permanentes de Portugal. Mas essa pergunta é sobretudo dirigida às gerações que, além das que se batem em África, despontam hoje para as responsabilidades da vida. A mocidade pede que se compreenda e dissipe a sua inquietação. A juventude pede que se lhe assinalem as esperanças no futuro. Pois pode dizer-se-lhe que o conjunto desta metrópole e seu ultramar consentem todos os sonhos. Estão lançadas e em progresso as grandes estruturas; possuímos os recursos; a nova tecnologia permite os mais audaciosos planos e empreendimentos; e as posições estratégicas sem par, de que dispomos no Atlântico e no Índico, constituem cartas vitais no jogo a que nos obrigam. É este o repto de Portugal à juventude: porque esta tem de estar consciente dos direitos que são seus, dos interesses legítimos que são seus, e da grandeza do futuro que pode ser o seu: e tem de resolver se, no foro íntimo da sua consciência, estaria preparada para aceitar a responsabilidade de ser a primeira na história de Portugal a negar os sentimentos e os esforços que foram os de todas gerações precedentes – sem excepção (in ob. cit., pp. 209-245).


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Terceiro Mundo (iii)

Escrito por Franco Nogueira






«O De Gaulle disse-me: "Não contem com uma mudança na atitude dos americanos. Procurem novos apoios. Resistam. La France vos aidera"».

«Só tínhamos a França do nosso lado. O De Gaulle».


Marcello Gonçalves Mathias


«Saímos ou não das Nações Unidas? Mor[eira] sim; No[gueira] não».

Diários Pessoais de Franco Nogueira (18 a 20 de Dez. de 1961).



«Hoje, mais do que nunca [...], me parece necessário ter presente que a unidade portuguesa vive mais do sentimento e da razão do que de qualquer das forças materiais que fizeram a grandeza dos impérios desaparecidos do nosso tempo... só o intransigente portuguesismo e fidelidade das populações da mais variada origem, metropolitana ou outra, esteve na base da unidade que se tem mantido».

Adriano Moreira



«Adriano Moreira, uma alta inteligência, era extremamente ambicioso. Em Nova Iorque costumava brincar aos governos, distribuindo as pastas, mas deixando sempre vago o lugar de chefe, para si próprio. Só que o velho Salazar sabia mais daquilo tudo a dormir do que nós acordados». 

Franco Nogueira


«Visto como inteligente, enérgico e por vezes brusco, Nogueira é naturalmente uma pessoa afável; contudo, pode indignar-se e ser mordaz quando sente que o seu país está a ser ludibriado». 

(Central Intelligence Agency, December 1964. Subject: "Alberto Franco Nogueira").


«Estamos a agredir de ânimo leve os nossos amigos».

«Alienaremos os portugueses. Isto não é forma de se orientar uma aliança. É precisamente a forma errada de o fazer».


Dean Acheson



«Eu era bastante favorável a uma clara e forte posição sobre a questão de Angola nas Nações Unidas. Mas não estava tão ansioso como Adlai Stevenson em cuspir no olho de Salazar».

Averell Harriman



«Não gosto que me tomem por tolo. Os Estados Unidos querem levar-nos docemente, suavemente, a seguir pelo caminho que lhes convém, como se fosse sem dor e não dêssemos por isso! E prometem-nos o seu apoio e o seu auxílio para fazermos a política deles, e não a nossa. Embirro que me tomem por tolo!».

 Oliveira Salazar







Continuidade: texto baseado na Conferência proferida no Palácio do Comércio, em Luanda, a 28 de Setembro de 1964, por ocasião do 1.º Centenário da Associação Comercial daquela cidade


Cem anos na vida de qualquer instituição constituem um período muito extenso que só por si afirma uma vitória. Mas quando esse século foi vivido no continente africano, no coração da África ao sul do Sahará, o significado desse centenário é mais rico e mais profundo. Não se trata apenas, com efeito, do triunfo de uma instituição através da sua sobrevivência: estamos perante a documentação de todo um quadro político e sociológico que tornou viável aquele sucesso contra o tempo e ao longo do tempo. Mas é ainda mais complexo o fenómeno, e não podemos delimitá-lo no simplismo daquela fórmula. É que, na verdade, este século de vida profícua de uma instituição só foi possível porque, antes daquele, outros séculos haviam sido vividos no mesmo contexto político-sociológico. Dir-se-á mais: a celebração de um século de vida de um organismo ou instituição, que para mais se encontra em pleno vigor, só é possível porque se acredita que, além daquele, outros séculos virão, e sempre dentro das mesmas coordenadas políticas e humanas. Quer isto dizer que se está em face de um fenómeno muito denso de sentido e tocando muitos aspectos. Teremos, em primeiro lugar, um fenómeno histórico: o presente assenta em raízes que o informam, o sustentam, e o condicionam. Teremos depois um fenómeno de aculturação: estamos transpondo e implantando os dados de uma cultura e de uma civilização que, por outro lado, se expandem ao absorver os elementos novos. Teremos, por último, um fenómeno de fé: no passado e nas nossas virtudes; no presente e nos nossos meios; e no futuro e nos nossos objectivos. Resumir-se-á tudo se se disser que estamos perante um caso que exemplifica e sintetiza a continuidade da Nação Portuguesa, no Ultramar e na Metrópole. E acrescentar-se-á que um centenário, comemorado na terra de Angola, não seria viável nem concebível sem aquela continuidade nacional. Porque não parece que sejam muitas as instituições centenárias em África ao Sul do Sahará, nem se sabe mesmo se haverá alguma outra: mas existem nas províncias portuguesas: e esse fenómeno a um tempo simples e complexo não é, no seu simbolismo, o produto de um acaso; e por outro lado explica também muitos dos problemas que se enfrentam no momento que vivemos. Mas se se fala em continuidade da Nação portuguesa, em Angola ou em Moçambique ou na Metrópole, é para destacar este aspecto: é que é essa continuidade que justamente tem sido atacada e posta em causa. Temos de ver, por isso, como é atacada; e temos de ver quem a ataca, e sob que pretexto o faz.




Desde logo, ao mais sóbrio exame, temos de assentar nesta conclusão: a primeira arma utilizada pelo inimigo, seja este qual for, consiste em tentar disseminar a dúvida no âmago da Nação, e em suscitar hesitações quanto a nós próprios e aos outros. Multiplicam-se as interrogações, e pelas formas mais aliciantes são apresentadas à opinião pública questões e problemas que têm apenas por objectivo criar perplexidade, destruir o ânimo dos mais fracos e pelo menos impressionar os mais fortes. E surgem as perguntas: seremos capazes de enfrentar o ataque? Teremos os recursos para garantir a vitória? Mas não comportará riscos esta política? Que dizem os estrangeiros de nós? Com que aliados ou amigos poderemos contar? Não seria preferível não ter problemas? Não seria viável comprar com transigência no acessório a tranquilidade no essencial? Todas estas interrogações e outras análogas apresentam os adversários de Portugal quase quotidianamente, insinuando-as na nossa vida colectiva, e introduzindo-as subtilmente na nossa vida de relação social. E a sua primeira grande vitória surgiria no dia em que se suspendesse o esforço comum e se afrouxasse a solidariedade nacional para nos concentrarmos somente naquelas perguntas; para equacionarmos as dúvidas com as múltiplas respostas possíveis; e para confrontarmos uma política, cuja realidade momentânea por vezes dura nos faz subestimar a sua própria validade e o seu longo alcance, com outras políticas que nos são apontadas num invólucro de ilusões e de promessas tão tentadoras no presente quanto vãs no futuro. E quando tudo isto acontecesse ter-se-ia instalado a dúvida entre nós; desta passaríamos à hesitação; daqui à paralisia e à transigência iria um passo curto; e estaríamos no campo do adversário, à sua mercê, já dentro dos seus princípios e fora dos nossos, e agindo em função dos seus objectivos e contra os nossos. Porque a experiência diz-nos que não podemos ser ingénuos, nem pautar o nosso procedimento pelos mitos a que procuram atrair-nos. Temos de atentar em que todos os compromissos, todas as transigências, todos os apaziguamentos jogam contra nós: nunca seriam satisfatórios nem finais, e a cada reabertura do problema ceder-se-ia mais e mais. Devemos ter sempre presente que não há meias soluções; e que quando alguns nos dizem que, para salvarmos os interesses ou alguns valores de espírito e de cultura, deveríamos adoptar uma política sem os riscos da actual, esses sabem e estão seguros de que adulteram e mascaram a realidade e de que nos aconselham o impossível: pretendem apenas anestesiar-nos para que demos um primeiro arranque num caminho que conduz aonde os outros querem e não onde nós queremos. É evidente que a política da Nação comporta riscos, mas não se sabe de política que os não tenha. É evidente que devemos pôr os problemas que enfrentamos e examiná-los e discuti-los, mas em função do nosso objectivo. Se apenas agirmos depois de escutar todas as vozes alheias, e em conformidade com os seus ditames; se aguardarmos continuamente o momento ideal em que se possa actuar sem perigos ou inconvenientes; se resolvermos esperar o acordo dos outros ou da maioria para o que queremos fazer – então ficaremos imóveis e inertes: e isto porque as vozes exteriores precisamente não querem ou algumas não têm até agora querido o que nós desejamos; e a preocupação excessiva com as possíveis reacções e dificuldades retarda e entrava a decisão, e entrega-nos tolhidos ao adversário.



Desfile de tropas portuguesas em Luanda (1961).



Sublinhou-se em primeiro lugar o método de ataque através da instalação da dúvida sistemática porque é ao mesmo tempo o menos espectacular e o mais grave. Todos no entanto sabemos que se lançou mão de outros processos: o massacre sem distinção de raças, o terrorismo, a agitação internacional, a pressão política no plano dos governos, e as ameaças mais ou menos vagas e mais ou menos ostensivas proferidas nos grandes debates da Assembleia Geral ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas. De tudo se tem experimentado. Alguns têm-nos afirmado que, se déssemos satisfação aos pedidos ou exigências dos adversários, passariam então a apoiar-nos: a esses foi respondido que para cumprir o que desejam os inimigos não se precisa do apoio dos amigos. Outros têm sugerido transigências graduais e lentas, e explicam com generosidade que têm a peito o verdadeiro interesse português: perante esta grosseira enormidade fica-se interdito: e não se sabe se a sugestão é simplesmente ingénua ou sobretudo malévola. E quando um dia forem facultados elementos para se escrever a história destes aspectos muitos decerto ficarão surpreendidos com a má-fé, a duplicidade, as manobras, os subterfúgios, a intriga, a hipocrisia, e os jogos de interesses que se encontram por detrás da solene afirmação dos mais altos, dos mais generosos princípios ideológicos. Mas a tudo temos resistido, não obstante serem poderosas as forças que temos enfrentado, e por isso caberá perguntar o motivo do nosso sucesso. E aqui se torna ao ponto de partida: no repúdio da dúvida, na recusa à hesitação está o segredo da nossa continuidade. E por isso se dizia que o ataque pela dúvida é o mais perigoso, e aquele contra que se tem a todo o instante de estar precavido.

E agora atentemos nisto: se acolhemos a dúvida e lhe damos livre curso, então seremos inevitavelmente levados a encarar, para a política actual, uma política alternativa. E assim temos de pôr, corajosamente, o problema: qual ou quais são as políticas alternativas possíveis? Desde logo havemos de fazer uma restrição importante: uma política alternativa, para que houvesse lógica na sua adopção pelos insatisfeitos da actual, teria de eliminar todas as críticas que se dirigem à que se tem praticado. De contrário, os que condenam ou duvidam desta não teriam justificação em preconizar e adoptar uma outra. Assim, qualquer política alternativa, para evitar o que se alega serem os defeitos da actual, não deverá comportar riscos, nem suscitar agitação política no plano externo, nem implicar a mobilização do nosso potencial humano, nem onerar os recursos da nação, nem exigir sacrifício de vidas, nem malquistar-nos com amigos ou aliados, nem afrontar as Nações Unidas ou suscitar ataques noutras organizações internacionais; e além do mais deve ser fácil, cómoda, sem atritos nem problemas. Esta política ideal deverá ainda, como é óbvio, manter a continuidade e a unidade de toda a Nação. Se isto for possível, então decerto nenhumas objecções se suscitariam; mas até hoje ninguém, dentro ou fora das nossas fronteiras, conseguiu definir as linhas mestras dessa política ideal. E nem alguém será capaz de o fazer. Porque nós temos de assentar em que não podemos abarcar todas as realidades a um só tempo, nem podemos do mesmo passo seguir caminhos que se contradizem ou divergem. Quer isto dizer que havemos de fazer opções: não se podem fruir simultaneamente os benefícios da política seguida e de uma política que lhe for contrária. Constitui objectivo da política seguida manter a continuidade e a integridade da Nação: não constitui objectivo da política que atravessemos incólumes as sessões da ONU, sem debates que podem ser incómodos mas são inofensivos e sem a votação de resoluções que podem ser desagradáveis mas são ineficazes. Alguns pensam que são conciliáveis os dois objectivos, sem transigências de fundo ou mesmo de forma: e julgam ou fingem julgar que se explicássemos melhor as nossas razões, e se fizéssemos umas singelas declarações de princípios, e se aceitássemos uma colaboração disfarçada que nos é por vezes oferecida no plano económico em troca da quebra ou afrouxamento dos vínculos políticos, então encontraríamos aí a política ideal que tudo salva e nada sacrifica. São ingénuos esses que assim pensam; mas podem crer que o adversário não o é; e uma política alternativa que queira conciliar o oposto conduz directamente a uma só política: à dos adversários. Porque a declaração de princípios que se nos tem sugerido é uma declaração dos princípios alheios, não dos nossos; e afrouxados ou desfeitos os vínculos políticos, outros se substituíram nesses e em todos os demais vínculos, fossem políticos ou económicos. E não se pense que se pode tentar a experiência e depois, consoante os resultados, suspendê-la ou anulá-la: porque essa experiência é verdadeiramente irreversível: e não admite paragem, regresso ou reconversão. E daqui temos de concluir que não há, para a política actual, uma política alternativa válida e ideal, que não seja a de outros e que tudo concilie e mantenha, e nada perca. Caímos, por consequência, nas alternativas que são oferecidas correntemente no plano internacional: a linha preconizada pelas Nações Unidas, as sugestões particulares ou públicas de alguns países que por um motivo ou outro têm interesse ou querem intervir no assunto.






É por demais conhecida a orientação que as Nações Unidas procuram imprimir e em muitos casos têm imposto no que toca à evolução política e sociológica do continente africano. Caracteriza-se, antes de mais, pela sua tendência para a uniformidade. Acontece que além das três grandes zonas ou áreas político-económicas de África, a que já se chamou as três Áfricas, encontravam-se ainda no continente, dentro de cada área, territórios com estatutos extremamente diversos: países independentes como a Etiópia ou a República da África do Sul ou a Libéria; protectorados como a Tunísia ou Marrocos; colónias individualizadas ou federadas; territórios em regime de tutela ou fideicomisso como Tanganica, ou Togo, ou os Camarões; departamentos como a Argélia; praças de soberania como Ceuta; e províncias integradas em pé de igualdade numa Nação unitária. Não terá sido por acaso que surgiram tantos e tão diversos estatutos: estes correspondiam a acidentes da história, a condições específicas e próprias de cada território, tendo em atenção o estádio político-sociológico respectivo. Quer isto dizer que os problemas de cada território não deviam nem podiam ser medidos ou solucionados por uma única bitola, nem pela aplicação cega dos mesmos preceitos. Mas de tudo as Nações Unidas fizeram tábua rasa: e entenderam que, sob o mito do anticolonialismo indiscriminado, todos os territórios se haveriam de subordinar aos mesmos princípios. E aqui mergulhamos no simplismo doutrinal da ONU: para esta, são «colónias» todos os territórios geograficamente separados do território onde está a sede do Governo, habitados por grupos étnicos ou culturais diferentes, e em estádios diversos de evolução económica e política. Choca-se esta definição, pelo seu primarismo, com as realidades mais gritantes, mas nem por isso a têm abandonado as Nações Unidas. E do absurdo da definição têm saltado para a irresponsabilidade da sua aplicação. Proclama-se que a independência é o objectivo a atingir, a que tudo o mais se deve subordinar, por que se entende que sem aquela não evoluem as comunidades. Quer isto dizer que a independência, baseada em motivos de ordem ocasional exclusivamente política, nos é apresentada como método de desenvolvimento sociológico, suficiente em si mesmo para sustentar e fazer viver uma sociedade desprovida de outros meios ou sustentáculos. Na filosofia da ONU, ou pelo menos na sua prática, a independência é a caução dos direitos humanos, constitui defesa das liberdades individuais, garante o rápido progresso económico, assegura a formação acelerada dos quadros humanos, consubstancia em suma a estrutura do Estado, do Governo e da administração, e consegue implantar uma nação mesmo onde não exista. Na vida das colectividades humanas não se processam assim as coisas, e por isso apenas tem conduzido ao desastre e à tragédia a actuação da ONU no continente africano. Falam bem alto, com efeito, os resultados obtidos. E bastaria um pouco de honestidade mental e alguma integridade moral para que, com base além do mais numa ou noutra experiência, se ter há muito concluído pelo erro do caminho apontado. Na verdade, a política da ONU não tem garantido os direitos humanos nem defendido em África as liberdades individuais de qualquer grupo étnico. Não tem assegurado a democracia das instituições. Não tem constituído os quadros humanos indispensáveis: e isto porque poderemos talvez formar aceleradamente um operário não-especializado: mas já será mais difícil fazê-lo quanto a um médico ou a um engenheiro; e será de todo impossível aplicar o método à formação de um administrador, de um político, de um homem de Estado. E não têm as Nações Unidas tão pouco estimulado ou fomentado o desenvolvimento industrial e económico: por toda a parte assistimos a um retrocesso, a uma estagnação, a uma caminhada para trás. E não têm estruturado Estados ou Nações: o poder político tem sido entregue e está nas mãos de uma minoria que ao mesmo tempo se apoia em interesses estrangeiros e os serve, mas que de nenhum modo se identifica com a colectividade nem a representa. Daqui o carácter precário, e quase mítico, das estruturas estaduais africanas: dois batalhões decididos podem tomar conta de um país, derrubar um Governo ou fazer mesmo desaparecer toda uma nação para a anexar a outra. Tomam-se por independência os simples sinais exteriores e simbólicos do fenómeno da independência: uma bandeira, um hino, e a admissão nas Nações Unidas. Mas se esses sinais não corresponderem a uma realidade sociológica, e não forem apoiados por uma sólida estrutura humana e política, coesa e solidária, aquela independência será fictícia, e fica enfeudada às Nações Unidas. E como estas, por si, são incapazes de defender o novo Estado, este a breve trecho se tornará presa de interesses e de blocos políticos e ideológicos. Pois bem: tudo isto está sucedendo em África, e os resultados são patentes. Instalou-se o caos no continente, e deste partiu-se para um novo colonialismo, de base económica ou ideológica, que já vai dominando áreas sucessivamente mais amplas. E temos assim uma das alternativas que o actual contexto internacional nos oferece: a sua rejeição pura e simples constitui um imperativo histórico, político e sobretudo humano.


Mas além da política demarcada pela ONU nós encontramos ainda, no plano internacional, outras políticas alternativas que são aliás simples reflexos ou desenvolvimentos daquela. Nuns casos, temos a política da ONU, em forma mais violenta; noutros casos, têmo-la em forma aparentemente mais mitigada. Não mencionarei, entre os primeiros, o anticolonialismo do bloco socialista, porque já ninguém tem dúvidas sobre o seu verdadeiro carácter. As liberdades e os nacionalismos apoiados e subsidiados ou mesmo pagos pelo bloco comunista são aqueles que possam prejudicar o Ocidente e hostilizá-lo. Não será admitido o nacionalismo da Lituânia, ou da Ucrânia; mas proferir-se-ão ameaças de guerra, se necessário, para defender o nacionalismo do Zanzibar. Na luta pelo fortalecimento do poder nacional, no desejo do contínuo alargamento das esferas de influência, na procura de posições estratégicas, na ânsia de matérias-primas e mercados, na vontade de dilatar o âmbito da revolução mundial, encontraremos a justificação para o vigoroso anticolonialismo dos soviéticos. Seria erro ver nas acções e na política do bloco comunista exemplos de simples demagogia e irresponsabilidade: por detrás de eloquentes declarações, sempre carregadas de princípios generosos e de emoção, esconde-se a mais calculada, a mais fria das decisões. E seria irrisório pensar que têm em qualquer conta os interesses, os direitos, a felicidade, o bem comum dos povos que pertencem ao terceiro mundo. Mas o terceiro mundo não parece ter a noção exacta daquele facto, e por isso se deixa manipular de forma crescente pelo bloco socialista. Mas nesta política do bloco socialista há clareza e nitidez, e há uma lógica implacável que lhe tem conquistado sucessivos êxitos. Por isso, quando os comunistas nos escolhem por alvo, e se ocupam de nós com uma atenção pertinaz, estão na linha da sua coerência: atingindo-nos, atingiriam a Europa, e o Ocidente, e a África na sua área mais sólida, desmoronando de um só golpe várias posições. E por isso temos de ficar perplexos quando vemos alguns no Ocidente, e até entre os nossos aliados e amigos, seguirem ou recomendarem uma política que é paralela da do bloco socialista. Para tanto têm-nos sido apresentadas razões que há anos se ponderam sem se entender. Alegam em primeiro lugar a sua adesão a princípios ideológicos, a defesa dos direitos humanos e da liberdade individual, e a propagação das instituições democráticas. Mas nós assistimos todos os dias, como resultado da política que recomendam, à derrota desses princípios. Progride na África o trabalho forçado e a escravatura; os Governos fecham os parlamentos, suprimem os tribunais, destroem pelo terror qualquer discordância; e a noção dos direitos individuais é substituída pela da segurança do Estado, entendendo-se por esta, como se anotou, a segurança de uma só tribo e a do seu chefe. Alegam-se depois, em favor do anticolonialismo, razões de conveniência ou expediente político: e isso consistiria em procurar não deixar o bloco comunista aparecer como o único campeão do nacionalismo e da liberdade do terceiro mundo, e assim obter o apoio deste; e para isso seria necessário defender também o que o bloco comunista defende, e até com mais ardor e extremismo. Não se vê claramente a lógica desta atitude, a não ser que fosse levada às últimas consequências e se condenasse também o colonialismo comunista: mas para isso não se afigura haver no Ocidente a precisa coragem. Por outro lado, ao admitir-se uma tal posição, temos de confessar que se cai numa atitude pragmática: já não seremos guiados por ideais mas por interesses. Quer isto dizer que o Ocidente, bem vistas as coisas, não apoia o nacionalismo do terceiro mundo para defender a liberdade individual e os direitos humanos mas simplesmente para conquistar a simpatia daquele, entendendo-se por simpatia, neste caso, a cedência de posições do terceiro mundo, as suas matérias-primas, os seus mercados, e o seu apoio político no plano do parlamento da ONU. Friamente, poderia conceber-se uma política firmada em puros valores e interesses materiais: mas então, despidos de toda a roupagem ideológica, teremos de medir essa política pelos seus resultados: e estes são bem limitados, e apontar a sua falência total é o mínimo que se pode fazer. Não se vê, na verdade, que o Ocidente haja obtido apoio político do terceiro mundo em qualquer dos grandes problemas que interessam ao mundo livre: nem a propósito de Berlim, ou do Vietname, ou de Cuba, ou de Chipre. E isto explica que nunca estes e outros problemas hajam sido debatidos no vasto pretório político das Nações Unidas: porque o Ocidente não está seguro dos votos daqueles que precisamente tanto corteja e procura disputar ao bloco comunista. E não se vê que no plano económico, dos mercados e das matérias-primas, sejam maiores os benefícios: em Genebra e depois em Nova Deli, na Conferência Mundial do Comércio, tudo foi exigido do mundo livre, sem compensação nem pagamento. Mas constituindo esta política uma falência no plano dos princípios e dos interesses, caberá perguntar se há eventuais beneficiários, e se ao fim e ao cabo os novos países do terceiro mundo não estarão lucrando com o regime de licitação política conduzida ou praticada pelas grandes forças mundiais. Ainda aqui teremos de responder pela negativa. Como em relação à política preconizada ou imposta pela ONU, já vimos que também aquela recomendada ou executada pelo Ocidente tem conduzido os territórios e as populações ao caos e ao retrocesso. Nenhum grupo étnico tem beneficiado: e o prosseguimento da actual política, se não conduzir à destruição de algumas etnias, conduzirá pelo menos à sua dominação por povos e interesses totalmente estranhos à África. Mas não antecipemos. De tudo isto, contudo, haveremos de extrair para Portugal uma conclusão importante, e que será esta: não são válidas, no que respeita à Nação portuguesa, as políticas alternativas no plano dos princípios, nem dos interesses legítimos de todos quantos são portugueses, nem do ponto de vista dos objectivos gerais do Ocidente. Essas políticas são opostas à continuidade dos interesses da Nação portuguesa. Mas começa a verificar-se que são também contrárias aos interesses reais dos próprios que as têm advogado: parece que daqui devemos concluir pela inevitabilidade de uma mudança radical, se se quiser evitar um desastre de proporções mundiais.


Muitos dos factos apontados pretendem esconder-se por detrás daquilo que há anos se convencionou chamar os ventos da mudança ou os ventos da história. São estas umas expressões literárias sem conteúdo ideológico substancial: apenas traduziram, quando foram utilizadas, o oportunismo de um momento político. Mas ao longo do tempo tem-se procurado erigir sobre aquelas frases uma construção doutrinal para justificar a insistência com que se fala nos ventos da história e no respeito que os mesmos deveriam merecer. Para tanto idearam-se alguns dos mais clamorosos e irresponsáveis mitos políticos do nosso tempo. Sobre eles repousam muitas das críticas que nos são dirigidas; procura-se envolver toda a Nação Portuguesa nesses mitos; e por isso haverá alguma vantagem em referir e analisar os principais. E o primeiro que convém sublinhar, por estar na origem dos demais, será este: alega-se que não há administração ou Governo legítimo se não se fundar no princípio de que a cada homem tem de corresponder um voto. No plano abstracto não poderá o princípio suscitar objecção, mas deverá desde logo acrescentar-se que na vida real não se sabe de circunstância ou sociedade em que o mesmo haja sido integralmente executado. Quando se estabelece o princípio de «um homem-um voto» está-se a pressupor uma colectividade humana perfeita, como se se produzisse e funcionasse num laboratório, e onde houvessem sido resolvidos todos os problemas que normalmente se põem a uma comunidade humana. A afirmação de que a cada homem corresponde prática e efectivamente um voto supõe que se consideram solucionados os problemas de educação, de transportes, de administração, de desenvolvimento económico, industrial ou agrícola; que estão montados e em funcionamento todos os serviços públicos; e que, finalmente, todos os homens têm na vida da comunidade igual interesse, possuem igual capacidade, apresentam igual título de intervenção, e estão igualmente habilitados e desejosos de participar nos vários níveis de administração, desde o Governo local ao Governo nacional. Mais grave e importante: o princípio de um homem–um voto não implica apenas a concessão de voto a todos os homens: supõe sobretudo que cada homem está educado de modo a reconhecer, respeitar, e a aceitar que o voto de outro homem é igual e tem o mesmo valor do que o seu, pelo que o deve acatar tão cegamente como deseja que o seu o seja. Só assim nos inclinamos e se admite a legitimidade de uma maioria […] sem que se desça ao plano revolucionário. Ora todos sabem, mesmo os autores e defensores do princípio, que na realidade da vida social o fenómeno político é inteiramente outro, quer se trate de país altamente evoluído ou de presente formação. Há cerca de duzentos milhões de norte-americanos; mas apenas 60 a 80 milhões participam normalmente nas eleições presidenciais. E há pouco, num país de África, uma nova constituição foi aprovada por cento e quarenta mil votantes, não obstante a respectiva população ser superior a uma dezena de milhões. E em todo o mundo, com percentagens variáveis, as coisas se processam de forma idêntica. Mal se compreendem, ou compreendem-se demasiado bem, as exigências que na ONU e noutros meios se fazem quanto ao nosso sistema orgânico de eleições e à forma de assegurar efectivamente a participação de todos na vida administrativa e política da Nação. Mas não se limita a esses aspectos a ficção do princípio de «um homem–um voto». Porque se formos levar o sistema ao seu extremo, e tirar mesmo todas as consequências lógicas, teríamos de alterar a representação internacional dos países e modificar por completo a estrutura das próprias Nações Unidas. Se com efeito partirmos daquele princípio não se explica que o continente asiático, com mais de um bilião de habitantes, esteja representado por 14 ou 15 votos na ONU; que trezentos e cinquenta milhões de americanos do norte e do sul disponham de 22 votos; que a trezentos e cinquenta milhões de europeus correspondam 18 votos; e que o continente africano, com duzentos e cinquenta milhões de habitantes, esteja representado por cerca de 40 votos. Será caso para perguntar se a doutrina de «um homem–um voto» é a mais vantajosa para a representação dos países africanos na ONU.

Mas a verificação destes factos conduz-nos a um outro dos mitos políticos actuais: o de que são sempre válidas as decisões tomadas pela maioria. É este o critério das Nações Unidas, mesmo quando a maioria se pronuncia para além da Carta ou contra a Carta; e depois, em nome dessa maioria, são os países solicitados, e Portugal tem-no sido desde há anos, a cumprir as decisões que a maioria votou. Mas nós já vimos que essa maioria é fictícia e sofre de um vício irremediável de origem: é que as maiorias que se pronunciam no plano parlamentar da ONU não são proporcionais às populações nos territórios, e sobretudo não traduzem nem representam as forças reais no mundo nem os interesses bilaterais verdadeiros no plano dos Governos. Os Estados Unidos, com todo o seu poderio e os seus recursos podem ser batidos em votos no plano da ONU, e já o têm sido muitas vezes, mesmo em assuntos de interesse vital e directo para a América; mas o que a ONU não pode é impor e fazer executar a sua decisão contra a vontade dos Estados Unidos. E no que nos toca já temos experimentado situação análoga numerosas vezes: desde há anos que por "larga maioria" são aprovadas resoluções contra nós. Pois bem: nenhuma foi jamais aplicada e executada; e isso porque as forças reais do mundo, muito embora possam ter votado em favor dessas resoluções, não desejam no fundo das coisas que as mesmas sejam cumpridas, ou não estão dispostas a pôr os seus recursos e os seus meios à disposição daqueles outros que, efectivamente, desejariam executar as deliberações da Assembleia, mas que, por si mesmos, não têm meios de o conseguir. Por isso já tem sido dito e repetido que não se deve Portugal impressionar excessivamente com as votações da Assembleia da ONU ou do Conselho de Segurança, nem atribuir-lhes uma importância ou significado para além da que tenham.






Mas este problema das maiorias no plano das Nações Unidas relaciona-se directamente com o problema da legitimidade da ordem jurídica nacional e internacional. As maiorias, com efeito, arrogam-se o poder de ditar a lei à comunidade das nações; e arrogam-se a faculdade de sobrepor essa lei à lei interna dos Estados. Daqui emanam as mais graves consequências. Em primeiro lugar, como as maiorias podem votar sucessivamente medidas contraditórias, nunca se sabe onde está a legalidade, e isso tem emprestado à vida internacional um sentimento de insegurança que muito tem agravado a convulsão geral do mundo. Depois, o desrespeito pelas ordens jurídicas internas dos países, procurando que se subordinem à legalidade ditada pelas votações maioritárias, leva por um lado à internacionalização de todos os problemas e, por outro, a conflitos entre as duas espécies de ordens jurídicas; e como esses conflitos só são resolúveis por acto de força, teremos de concluir que, não obstante toda a aparência em contrário e todos os mitos legalistas, se vive hoje num estado de facto, sendo o recurso à violência afinal legitimado por aqueles mesmos que pretendem criar um estado mundial de direito. A União Indiana usou a força contra Goa, e colocou-se portanto contra a lei do momento; mas logo a ONU votou contra a lei para legitimar aquele acto de força. Finalmente, o desrespeito pela ordem jurídica nacional e a faculdade que as maiorias se arrogam de criar e ditar lei nova põem em causa a legitimidade das estruturas dos estados e das próprias fronteiras. No fundo, o que se procura será um novo revisionismo mundial, e sob a capa das autodeterminações procede-se a uma redistribuição de esferas de influência nos vários continentes. Mas aqui abre-se um problema fundamental: se as Nações Unidas consideram ilegítimo o que está e o que existe há muito, e pretendem refazer o mundo dentro de um critério de perfeita legitimidade, então temos de definir um padrão para aferir a legitimidade das novas ordens jurídicas internas e externas, que se devem conformar portanto com tal padrão. E então põe-se a questão de saber como e em que época estava o mundo validamente organizado, a fim de tudo se reconduzir a essa época. Teria sido no século XIX? Parece que não: porque é contra esse período que se levantam os maiores clamores. Seria então nos séculos XVI ou XVII? Dificilmente seria aceitável a ideia pelos países latino-americanos, por exemplo, e por muitos outros. E estas interrogações já por si mostram o absurdo da orientação que se procura seguir na ONU, e a impossibilidade prática de a executar dentro da legalidade.

Mas todas estas construções políticas constituem apenas a aparência das coisas. São inteiramente outras as realidades que se abrigam por detrás daquelas construções. Produto de um clima de guerra fria, de uma atmosfera de conflito ideológico em escala mundial, de choque de interesses das grandes forças internacionais, aqueles mitos políticos são próprios de um período revolucionário. Está-se processando, com efeito, uma revolução mundial: daí a crise de legalidade, a crise de instituições, a crise de ordem pública internacional, a crise de valores morais como sucede em todos os períodos revolucionários. Até que as forças que impulsionam a revolução se considerem pletóricas e satisfeitas, ou vejam que não podem ir mais além, continuará a crise. Essas forças, no fundo, são os novos imperialismos que se procuram erguer das ruínas de outros. Quando essas forças atingirem os seus objectivos, e os novos impérios estiverem firmados, poderemos ter a certeza de que se transformarão em forças tenazmente conservadoras: e a vida da comunidade das nações processar-se-á de harmonia com a nova ordem, e será restabelecida a ordem pública internacional, sustentada e policiada pelos novos impérios. Esta é a realidade das coisas, e os direitos humanos, a liberdade individual, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção nos negócios internos, são apenas acidentes verbais nos caminhos e no jogo dos grandes interesses mundiais. Se tivermos este condicionalismo bem presente no nosso espírito, será desde logo diferente a nossa visão do contexto internacional. Deveremos ter a certeza, em primeiro lugar, de que o bem-estar das populações, o seu progresso real, a sua efectiva participação na vida do Estado em que se integrem, são problemas perfeitamente secundários que não preocupam as Nações Unidas nem os que as manipulam. E deveremos tomar consciência, em segundo lugar, de que o único processo de atravessar uma revolução e de lhe sobreviver consiste em resistir, oferecendo-lhe uma vontade firme e uma frente solidária. É isto que a Nação portuguesa tem feito, e parece que este comportamento tem contribuído para desmascarar muitos mitos e convencer alguns de que não é fácil destruir a realidade portuguesa, e de que nem será talvez conveniente prosseguir na tentativa porque, no fim de tudo, será preferível obter a sua colaboração e não uma hostilidade que se tornaria inevitável.


A estrutura da Nação portuguesa, a sua continuidade, os seus valores têm sido atacados. Atacados pela dúvida capciosa, pela propaganda tendenciosa, pela agitação internacional, pela ameaça, pelos massacres indiscriminados, pelo terrorismo, pelas pressões políticas. São estes os métodos empregados. E temos sido atacados pelas Nações Unidas, pelo bloco afro-asiático, e por muitos do bloco ocidental. Lembraremos que de início os ataques se fundamentavam em razões legalistas – o pretenso não-cumprimento por parte de Portugal de algumas disposições da Carta da ONU – e em críticas quanto ao que se alegava ser a situação interna nas províncias ultramarinas. Mas a Carta da ONU foi postergada, e depois já nem mesmo um simulacro de legalidade se procurou respeitar na forma de ataque. Pelo que respeita à situação e às condições internas das províncias, conseguiu Portugal trazer o assunto à luz do dia, e hoje admite-se, embora com relutância, que Angola e Moçambique, tudo ponderado, estão mais avançados em todos os campos do que a maioria, se não a totalidade dos países da África ao Sul do Sahará. Podemos afirmar que os adversários, nos seus ataques verbais contra nós, não dispõem de argumentos nem invocam razões. Quando defendemos a igualdade das raças e a sua integração não podem levantar objecções. Quando defendemos a construção e o progresso de sociedades multirraciais, não sentem que lhes seja lícito fazer algum reparo. Quando defendemos o desenvolvimento económico, social e educativo de todas as etnias, não encontram motivo para crítica. Quando demonstramos a crescente participação paritária de todos na administração e na nossa vida colectiva, não estamos ofendendo nenhum princípio mas apenas executando os princípios que os próprios adversários dizem considerar sagrados. Porque somos então atacados? Precisamente pelas virtudes da nossa estrutura, pelo êxito da nossa grande experiência humana e sociológica, e sobretudo porque embaraçamos o caminho de muitos interesses e constituímos obstáculo à expansão de muitos desígnios, alguns aliás já tradicionais e bem anteriores aos ventos da mudança ou da história. E do que precede haveremos de concluir que não há uma política alternativa, a não ser que se aceite uma alternativa para a existência da Nação. E daqui parto para a consideração de um ponto da mais alta importância. Quando a Argélia, pela voz de Ben Bella, declarou que constituía seu indeclinável dever «libertar» Angola, não se podia compreender a afirmação porque não se sabia que entidade humana ou divina havia conferido esse mandato àquele país. Quando o Presidente Sekou Touré diz que é sua responsabilidade «libertar» toda a África portuguesa, não se entende a declaração porque se ignora quem lhe atribuiu tão grave responsabilidade. Quando de modo genérico se ataca Portugal em África apenas com o objectivo de atacar, mas sem apresentar razões, nem invocar argumentos, nem indicar factos, temos de nos perguntar o que estará por detrás e para além dos ataques. Se não se refuta a essência dos nossos princípios; se não se nega a validade dos nossos objectivos; se não ameaçamos nem afrontamos ninguém; se trabalhamos na paz e pelo progresso; se estamos prontos a colaborar com todos os de boa-fé – porquê, então os ataques, a agitação, as campanhas internacionais? Por uma razão que os adversários não se atrevem a admitir nem confessam: é que não querem que exista qualquer vínculo entre uma parcela de território africano e um território não-africano. Veladamente, já o proclamaram ao dizer que a África inteira não era livre nem se sentia em segurança enquanto alguma área estivesse ligada às áreas não-africanas. Mas nós temos o direito de perguntar por que é isto assim. Não se compreende nem se pode admitir que a liberdade de um país ou de um povo seja afectada ou dependa da estrutura interna de outras áreas ou povos que são pacíficos e não perturbam ninguém. Não se vê com clareza que Angola, província de uma Nação e nesta integrada em pé de igualdade, esteja por esse facto a ameaçar ou a comprometer a segurança e a liberdade do Tanganica ou do Tchad ou do Ghana. Não se vê também que ameaças à segurança ou peias à liberdade de outros possam advir do facto das estruturas internas de um território e da sua organização política e social serem diversas das de outros territórios. Numa época em que tanto se proclama a co-existência seria lícito esperar que nesse desejo de co-existência se encontrassem as possibilidades de respeito para com os sistemas de outros. Se apenas se admite a co-existência de estruturas idênticas ou paralelas, destrói-se a própria ética da ONU, que assenta na pluralidade das ordens jurídicas e económicas e se destina a proporcionar-lhes um ponto de encontro, e anula-se a própria comunidade internacional, que se funda na diversidade. E não se sabe até que extremos poderemos chegar: porque as monarquias não se sentirão seguras enquanto existirem repúblicas; e os Estados capitalistas não estarão tranquilos enquanto existirem países socialistas; e a breve trecho caminharemos para o mais horroroso dos antagonismos, que é o antagonismo das culturas e das raças. Estes são os perigos de ordem geral. Mas não respondem à pergunta concreta formulada atrás: porque somos atacados e por que motivo não está segura a África, nem independente, enquanto Angola e Moçambique e a Guiné tiverem vínculos e outros com o Portugal europeu? Porquê uma tão absurda doutrina? É simples a explicação: é que a execução ou aplicação daquela teoria leva necessariamente à destruição do que Angola e as outras províncias são hoje e das possibilidades de futuro. Quer-se destruir o ocidentalismo do ultramar, a igualdade das raças, e a sua integração, e o multirracialismo como forma de convivência e de estrutura sociológica; e querem-se criar condições que permitam dominar Angola e as demais províncias em nome e para benefício de interesses não-angolanos. Ao dizer isto, não se está fazendo simples especulação: expõem-se factos, que todos devem ter sempre presentes no espírito, como um aviso e como uma lição. Sem o apoio de um Portugal unido e solidário, sem firmes vínculos ligando toda a Nação, não é viável manter-se em África uma sociedade multirracial, nem qualquer das etnias que a compõem deverá julgar que subsistiria na paz e no progresso uma vez quebrados aqueles vínculos. É pelo menos ingénua, para não a classificar de outro modo, a atitude daqueles que acaso julguem poder assegurar a sobrevivência dos seus negócios mediante uma discreta cooperação financeira e até política com grupos de subversão. Nada os pouparia: nem esses grupos, que desconhecem a gratidão e que aliás logo seriam substituídos por outros, nem os interesses estrangeiros que imediatamente se apossariam de todas as posições, mostrariam qualquer tolerância. Por que a haviam de ter? E também não seria menos irreflectida e ingénua a atitude do grupo étnico mais numeroso se acaso pensasse que, na adesão aos princípios da ONU, estava um caminho de mais rápido desenvolvimento, de maior responsabilidade: os múltiplos exemplos ante os nossos olhos garantem-nos, sem traço de dúvida, que esse caminho conduz à pulverização social, à luta, à miséria, à privação dos direitos básicos, ao retrocesso, quando não conduz ao retalhamento territorial e ao massacre e genocídio de raças como tem sucedido na Nigéria, em Zanzibar, no Ruanda e no Burundi, entre outros. Não devemos por isso emprestar a miragens e a promessas um valor que não possuem. Quando nos dizem que a nossa presença, a nossa influência, os nossos interesses ficariam assegurados se aceitássemos partes de compromissos e bocados de transigências, verificamos que se nos recomenda precisamente o que os adversários pretendem que nós façamos, e que de uma forma tão suave quanto possível iniciemos o caminho que leva à negação total dos nossos princípios e valores, e à supressão total da nossa presença, dos nossos interesses e da nossa influência. Todos sentem por vezes impaciências perante atrasos administrativos, e se enervam em face de incompreensões ou peias burocráticas, e se exasperam com a lentidão de processos e a multiplicidade de intermediários. Tudo isso é natural, e é humano. Mas tudo isso é preço bem pequeno para a alternativa única que, no contexto internacional actual, só poderia ser a perda total de direitos, de haveres, de interesses, para muitos até de vidas, e isto em relação a qualquer das várias etnias que compõem a população das províncias portuguesas ultramarinas (in ob. cit., pp. 137-171).



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