sábado, 15 de outubro de 2011

Da cultura portuguesa ao romance francês

Escrito por António Telmo




O Ancião dos Dias (William Blake).



A tese defendida por João Gaspar Simões, em artigo saído no «Diário Popular» com o título de O Pensamento Poético de Teixeira de Pascoaes, segundo a qual a originalidade, isto é, as origens ou as fontes da verdadeira poesia residem no pensamento do sobrenatural, como exemplifica através de Victor Hugo, Rimbaud, Milton, William Blake, Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa, é tese tão válida para a poesia como para os restantes géneros literários. Intuiu, além disso, muito bem que a realidade invisível que designa por «pensamento poético» se apreende e conhece por meio da analogia. À luz destes princípios poéticos torna-se fácil explicar a frustração dos escritores da «Presença» e verificar que, se José Régio constitui uma excepção, o motivo reside em só este poeta ter sido um pensador do sobrenatural.

Entre os géneros literários o romance é aquele que mais depende da antropologia. Parecem, todavia, ignorá-lo todos quantos baseiam o seu juízo de valor acerca do nosso romance na comparação da sociedade portuguesa com as sociedades estrangeiras. Pela antropologia se caracterizam as filosofias dos povos, e, por conseguinte, é lícito supor que só o predomínio da sociologia positivista na crítica literária permitiu negar a possibilidade do romance português.

O realismo, também chamado naturalismo, não é mais do que a subordinação da literatura ao positivismo, embora devesse ser etimologicamente adequação à realidade ou imitação da natureza. Quando J. H. Huysmans, depois de uma fase de obediência ao realismo, escreve «A Rebours», livro pelo qual se reatava a autêntica tradição francesa do romance, derivada do ensino do português Pascoal Martins, Emílio Zola manifestou viva discordância. Como Zola, protestou unanimemente a multidão dos críticos. Somente Barbey d’Aurevilly soube antever os efeitos revolucionários do livro. Huysmans e Barbey d’Aurevilly formam com Léon Bloy uma tríade de romancistas odiada, por terem denunciado repetidamente nos seus livros a aliança secreta que o positivismo estabeleceu nos três sectores principais da sociedade francesa: - na política, na religião e na literatura. Assim, cada um destes escritores propôs-se demonstrar quanto é falso o preconceito de que a literatura é expressão da sociedade, pois se o chamado realismo soubesse levar ao limite este seu princípio condutor, sondando a vida social parisiense nas suas zonas mais cobertas, logo a sociologia se dissolveria para mostrar o princípio do mal, isto é, o príncipe das trevas ou o príncipe deste mundo.

Quem compare Marcel Proust com Barbey d’Aurevilly, André Gide com Huysmans, Paul Bourget com Léon Bloy poderá então avaliar a grandeza e a força do malefício que a «Presença» fez à cultura portuguesa e sobretudo à cultura francesa, ao esconder os seus maiores valores, divulgando outros para os quais facilmente encontramos equivalência na nossa literatura. Não caiu nesse erro Teófilo Braga, quando, num dos volumes das Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, chamou a atenção para Balzac. Sem dúvida que encontrou, também, a resistência dum certo sector da mentalidade nacional, representado, então, por Amorim Viana, que algures se refere com desdém ao autor do Luís Lambert. Teófilo Braga, temperamento impetuoso e irascível, impreca violentamente o deísta. Torna-se interessantíssimo entender como é o positivista quem defende o pensador duma filosofia heterodoxa que foi Balzac.



Pentáculo martinista



Victor Hugo


Em nenhum outro romancista como no autor de Serafita podemos surpreender tão bem as origens que transmitem originalidade ao romance francês. Discípulo de Claude de Saint-Martin, conforme mostrou Ernest Curtius, num livro muito divulgado em Portugal, Balzac filia-se, pelas ideias que animam o seu pensamento literário, no martinismo, isto é, naquela corrente filosófica cujo promotor foi o português Pascoal Martins. A influência deste contemporâneo de Pascoal de Melo determina, aliás, todo o romantismo francês consoante se entrelê nas obras de Victor Hugo, Lamartine, Alexandre Dumas ou Gérard de Nerval. Daqui o interesse de excepção que tem para nós, portugueses, a literatura francesa iniciada na Revolução. A ocultação dos verdadeiros valores da França explica as justas reacções movidas contra a cultura desse país por aqueles portugueses que se negam a aceitar a superioridade de escritores que, nem na terra natal deles, é inteiramente reconhecida. Lícito é, então, preferir a literatura inglesa para a qual nos atrai, além disso, a afinidade atlântica.

Uma fonte de equívocos é a produzida pela confusão que se estabelece entre o romance como expressão do sobrenatural e, por conseguinte, de função educativa ou iniciática, e o romance como expressão de uma doutrina moral e, por conseguinte, de intenção didáctica ao serviço de um universalismo qualquer. O romance, como a poesia, como, em geral, toda a literatura didáctica, tem sido justamente combatido pelo simples motivo de que constitui uma transgressão do género. À poesia didáctica dedicou Sampaio Bruno algumas páginas de crítica e combate no Brasil Mental. Mas quem não estabeleça aquela confusão (e, para isso, é condição não a levar dentro de si) só tem de estar atento para reconhecer e receber o ensino artisticamente ministrado pelos grandes mestres do romance, espíritos para quem o moralismo e o didactismo, sociológico ou outro, constituem eternos obstáculos à evolução ininterrupta da humanidade (in jornal 57, Agosto de 1957, Ano I, n.º 2, p. 7).


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