domingo, 30 de outubro de 2011

Diotima de Mantineia (i)

Escrito por Platão








«O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel».

Platão


«Outrora, a nossa natureza não era como agora; era bem diferente. A princípio, havia três espécies de seres humanos, e não duas, como agora: o masculino e o feminino e, além destes, um terceiro, composto pelos outros dois, que veio a extinguir-se. Apenas nos resta a sua designação, pois a espécie desapareceu. Era a espécie andrógina, que tinha a forma e o nome das outras duas, masculina e feminina, das quais era formada: hoje, já não existe e não passa de uma designação pejorativa».


Aristófanes



«No seu aspecto mais profundo o eros incorpora um impulso tendente a vencer as consequências da queda, a sair do mundo "cessante" da dualidade, com o fim de restabelecer o estado primordial e ultrapassar a condição de uma existencialidade «dual», fracturada e condicionada pelo "outro". (...) Esta é, pois, a chave de toda a metafísica do sexo: "Através da díade para a unidade"».

Julius Evola



«Misterioso Afán! Mientras en todos los otros casos de la vida nada repugnamos tanto como ver invadidas por otro ser las fronteras de nuestra existencia individual, la delicia del amor consiste em sentir-se metafísicamente poroso para otra individualidad, de suerte que sólo en la fusión de ambas, sólo en una «individualidad de dos» halla satisfacción. (...) Sin embargo, no para en esto el anhelo de fusión. Cuando el amor es plenario culmina en un deseo más o menos claro de dejar simbolizada la unión en un hijo em quien se prolonguen y afirmem las perfecciones del ser amado. Este tercer elemento, precipitado del amor, parece recoger en toda pureza su esential sentido. El hijo ni es del padre ni de la madre: es unión de ambos personificada y es afán de perfección modelado en carne y en alma. Tenía razón el ingenuo Platón: el amor es anhelo de engendrar en lo perfecto, o como otro platónico, Lorenzo de Médicis, habia de decir: es appetito di bellezza».


José Ortega y Gasset



«Existe, pois, o amor "platónico", ainda quando o neguem os especialistas de psiquiatria. Poderia inclusivamente dizer que tão-só existe o amor "platónico". O que também habitualmente se logra chamar de amor pertence ao reino do intangível. Um só amor se nos revela: o amor por Beatriz, a adoração pela Madonna. Para o coito está destinada a prostituta babilónica».

Otto Weininger 





Discurso de Sócrates



Parthenon


(...) desejo relatar-vos um discurso sobre Eros que, há tempos, ouvi a uma mulher de Mantineia, Diotima, que era deveras sabedora destes assuntos e de muitos outros. Foi ela quem, outrora, oferecendo sacrifícios aos deuses, conseguiu protelar por dez anos a praga de peste que viria a assolar os atenienses. Com ela aprendi o que sei sobre Eros, e são as suas palavras que vou tentar reproduzir, partindo dos princípios em que Agatão e eu assentámos. Fá-lo-ei como puder, sem recorrer a qualquer interlocutor. Torna-se necessário que vos explique, em primeiro lugar, como tu próprio fizeste, caro Agatão, a natureza e os atributos de Eros e, em seguida, os seus actos. Creio que o mais fácil ainda é relatar-vos a conversação segundo a mesma ordem e o mesmo método interrogativo, utilizado pela estrangeira, ao fazer-me as perguntas. Também eu próprio lhe respondia mais ou menos as mesmas coisas que Agatão me respondeu: que Eros é um grande deus e o mais belo dos que existem. Então ela demonstrou-me, com os mesmos argumentos, há pouco apresentados por mim a Agatão, que Eros nem é belo, nem bom, como eu julgava que fosse.

Sócrates – Que dizes, Diotima, então Eros é feio e mau?

Diotima – Vê lá o que dizes! Julgas, por acaso, que o que não é belo deve ser necessariamente feio?

Sócrates – Com certeza!

Diotima – Julgas que quem não é sábio é ignorante, e desconheces que existe um meio-termo entre a sabedoria e a ignorância?

Sócrates – Que meio-termo é esse?

Diotima – Não sabes que a opinião acertada sem conveniente justificação não é sabedoria – pois como poderia uma coisa ser sabedoria se não sabemos fundamentá-la? E também não é ignorância, porque o que atinge a verdade não pode ser ignorância? A opinião verdadeira é, por conseguinte, como que um meio-termo entre a sabedoria e a ignorância.

Sócrates – Sinto que falas a verdade!

Diotima – Não concluas, então, apressadamente, que o que não é belo é feio, e que o que não é bom é mau. Assim se passa com Eros: não julgues, porque tu próprio reconheces que o que não é belo, nem bom, seja necessariamente feio ou mau. Ele é algo de intermédio entre estes dois extremos.

Sócrates – Todavia, toda a gente reconhece que Eros é um deus poderoso…

Diotima – Quando dizes «toda a gente» o que pretendes dizer: todos os ignorantes ou também os sábios?

Sócrates – Referi-me a toda a gente, sem excepção.

Diotima – Como, Sócrates – disse sorrindo – poderia ser reconhecido como um deus poderoso por aqueles mesmos que defendem que Eros não é um deus?

Sócrates – Quem são esses?

Diotima – Tu, em primeiro lugar, e eu própria, em seguida.

Sócrates – Que estás para aí a dizer?

Diotima – Nada que não possa demonstrar facilmente. Diz-me: não te parece que os deuses são felizes e belos? Ousarás defender que, entre os deuses, possa existir um que não seja belo e feliz?

Sócrates – Por Zeus, nunca!



Zeus








Diotima – Ora, os felizes não serão, conforme disseste, os que possuem as coisas boas e belas?

Sócrates – Seguramente!

Diotima – Mas reconheces que Eros, porque lhe faltam as coisas boas e belas, deseja aquilo de que carece?

Sócrates – Com efeito, reconheço-o.

Diotima – Nesse caso, como poderia ele ser um deus, uma vez que não participa, nem das coisas boas, nem das belas?

Sócrates – Não poderia ser um deus, parece-me…

Diotima – Nesse caso, já vês que também tu concordas em que Eros não é um deus!

Sócrates – Que poderia ser, então? Um mortal?

Diotima – Nada disso.

Sócrates – O que poderia ser, nesse caso?

Diotima – Pretendo dizer que é um demónio poderoso, Sócrates, e, com efeito, tudo o que é de natureza demoníaca representa o meio-termo entre os seres divinos e os seres mortais.

Sócrates – E quais são as qualidades de um demónio?

Diotima – O demónio interpreta e leva aos deuses o que é próprio dos seres humanos e traz aos homens o que é próprio dos deuses. As orações e os sacrifícios de uns, os mandamentos de outros e as recompensas pelos sacrifícios! Situado entre uns e outros, preenche este espaço intermédio, de maneira a manter unidas estas duas partes de um todo. É dele que procedem a arte divinatória, bem como as artes sacerdotais relativas aos sacrifícios, às iniciações, aos encantamentos e a toda a magia em geral. Os deuses não se aproximam dos homens, e é por intermédio deste demónio que os deuses estabelecem comunicação com os homens, seja durante a vigília, seja durante o sono. O homem que conhece estas coisas é de carácter demoníaco, inspirado, enquanto o homem que tem engenho para fazer qualquer outra coisa, arte ou ofício, não passa de um artífice. Os demónios são em grande número, de muitas espécies e, um deles, é Eros.

Sócrates – E quem foram os seus progenitores?

Diotima – É um pouco difícil responder, todavia, vou fazê-lo: quando foi do nascimento de Afrodite, os deuses reuniram-se para festejar o acontecimento com um banquete e, entre eles, encontrava-se Poros [o Engenho, filho de Métis, a Prudência]. No decorrer do banquete, Pénia [a Pobreza] chegou para mendigar os sobejos da mesa e, para isso, sentou-se à porta.



Afrodite



Entretanto, Poros, turbado pelo néctar que tinha bebido – nessa altura ainda não havia vinho – saiu para o jardim de Zeus e, atordoado como estava, adormeceu. Pénia, possuída pela indigência, teve a ideia de aproveitar o ensejo para conceber um filho de Poros que minorizasse a sua indigência. Deitou-se ao lado de Poros e, assim, concebeu Eros. Deste modo, Eros tornou-se o companheiro e escudeiro de Afrodite, porque foi concebido no mesmo dia do nascimento da deusa e, também, porque Eros é, por natureza, amante do belo e Afrodite é bela. Na qualidade de filho de Poros e de Pénia, Eros herdou caracteres de ambas as partes. Em primeiro lugar, é pobre, e, longe de delicado e belo como geralmente imaginamos, é rude, sujo, anda descalço, sem eira nem beira. Não tem outro leito além do chão, dorme ao ar livre, desagasalhado, junto às portas e nas ruas. Assim imita a indigência de sua mãe, indigência que é sua eterna companheira. Por outro lado, herdando a natureza do pai, vive à procura do belo e do bom; é bravo, audaz, ardente, filósofo, bom caçador, gastando muito tempo a filosofar, mago, habilidoso, e sofista. Por natureza não é mortal, nem imortal mas, num só dia, tão depressa se encontra pleno de vigor e belo, vivendo na abundância, como tão depressa morre, pois renasce por causa do dom natural que herdou da linha paterna. O que adquire escapa-lhe sem cessar, de maneira que nunca se encontra, nem na pobreza, nem na opulência. Eis porque Eros constitui o meio-termo entre a sabedoria e a ignorância.

Nenhum dos outros deuses filosofa, ou deseja tornar-se sábio, porque os deuses já são sábios e, em geral, os sábios não filosofam. Os ignorantes também não são filósofos, nem desejam tornar-se sábios, porque a ignorância caracteriza-se justamente por se julgar bem dotada, mesmo não possuindo, nem beleza, nem bondade, nem sabedoria. Ora, quando não pensamos que nos falta uma coisa, não a procuramos adquirir.

Sócrates – Quais são, neste caso, Diotima, os que filosofam, se não os sábios, nem os ignorantes?

Diotima – Uma criança compreenderia logo quem filosofa: são os que se encontram entre uns e outros, e Eros é um desses. Com efeito, a sabedoria encontra-se entre as coisas mais belas e Eros tem o amor das coisas belas, de onde se torna necessário que Eros filosofe e, se filosofa, é porque se encontra no ponto intermédio entre o sábio e o ignorante. A causa de assim ser está na sua origem, pois é filho de um pai sábio e pleno de recursos e de mãe sem saber, sem recursos.

Eis meu caro Sócrates, qual a natureza desse demónio.

Quanto à maneira pelo qual representavas Eros, o teu caso nada tem de estranho, pois julgavas, segundo posso conjecturar pelo que dizias, que Eros é o objecto amado e não o sujeito amante. Eis porque penso que tu o imaginavas assim tão belo. Efectivamente, o amável é o realmente belo, delicado, perfeito, feliz; mas o que ama tem outra essência, aquela que acabei de expor-te.

Sócrates – Devemos render-nos aos teus argumentos, estrangeira, porque são sábios, mas, sendo Eros tal como acabaste de dizer, que utilidade tem para os homens?

Diotima – É isso justamente, Sócrates, o que vou tentar explicar-te agora.

Conheces a natureza e a origem de Eros e reconheces, tu mesmo, que Eros consiste no amor do belo mas, se nos perguntassem: - por que motivo, Sócrates e Diotima, Eros é o amor do belo? Ou, para ser mais clara: o que se deseja ao amar o belo?



Eros e Afrodite



Sócrates – Com certeza que se deseja possuí-lo…

Diotima – Essa resposta sugere-me outra pergunta: o que possuirá quem chegar a possuir o belo?

Sócrates – Não sei o que responder… já disse.

Diotima – Mas se, por exemplo, substituirmos a palavra belo por bem, e perguntássemos: o que deseja quem ama o que é bem?

Sócrates – Possuí-lo.

Diotima – Mas o que possuirá quem possuir o bem?

Sócrates – A resposta é difícil, conquanto mais acessível: será feliz!

Diotima – Exactamente, porque é na posse do bem que consiste a felicidade e, por isso, já não se torna necessário perguntar os motivos pelos quais quem deseja a felicidade pretende ser feliz. Chegámos ao termo da questão, julgo.

Sócrates – Está certo.

Diotima – Mas, essa vontade, esse amor, são eles, no teu entender, comuns a todos os homens e todos querem, igualmente, possuir o que é bem? O que te parece?

Sócrates – Penso que são comuns a todos os homens.

Diotima – Neste caso, Sócrates, porque não dizermos que todos os amam, pois todos amam sempre as mesmas coisas? Porque havemos de dizer que uns amam e outros não?

Sócrates – Realmente isso é para admirar!

Diotima – A tua admiração resulta do facto de aplicarmos a uma espécie particular de amor o nome do género por inteiro, enquanto que, para as outras espécies, nos servimos de outras designações diferentes.

Sócrates – Por exemplo?

Diotima – Eis um: sabes que a palavra poesia é de múltiplo significado. Geralmente chama-se poesia à causa que torna possível a passagem de qualquer coisa do não-ser ao ser, de maneira que as criações de todas as artes são poesia, e que os criadores são poetas!

Sócrates – É verdade!




Diotima de Mantineia



Diotima – Todavia, bem sabes que não se chama poetas a todos eles, e que há outras designações, que só uma pequena parte, relativa à arte musical e à arte versificatória, é chamada pela designação do género; pois esta parte chama-se poesia e os que a cultivam chamam-se poetas.

Sócrates – Efectivamente assim é.

Diotima – O mesmo acontece com o amor; geralmente, o desejo do bem e da felicidade, sob qualquer forma, é o que para toda a gente significa o grande e industrioso Eros. Há muitas maneiras de nos entregarmos ao amor, e dos que procuram ganhar dinheiro, dos que se dedicam à ginástica e à filosofia, ninguém diz que sejam amantes, nem amados. Contudo, há uma espécie particular de amor cujos adeptos e seguidores recebem o nome do género, por inteiro: amor, amar, amantes…

Sócrates – Parece-me que tens razão!

Diotima – Por vezes, diz-se que os que amam procuram a sua própria metade. Eu digo, meu caro, que amar não consiste em procurar, nem a metade, nem o todo de si mesmo, a menos que isso seja o Bem. Os homens estão preparados para cortar os seus próprios pés e mãos, se virem que essas partes do corpo lhes são prejudiciais, pois, se esta metade e este todo não forem bons, qualquer homem consentirá em deixar que lhos extirpem. Não amamos o que é nosso só pelo facto de ser nosso, a menos que tenhamos por bem o que nos pertence, e por mau o que é alheio. Os homens não amam senão o que lhes parece bom! Não és da minha opinião?

Sócrates – Sim, por Zeus!

Diotima – Nesse caso, pode dizer-se, muito simplesmente, que os homens amam o que é bom?

Sócrates – Podemos.

Diotima – Mas não será necessário acrescentar que os homens também desejam possuir o que é bom?

Sócrates – Também.

Diotima – Nesse caso, o amor será, em suma, o desejo de possuir sempre o bem?

Sócrates – Perfeitamente.

Diotima – Se o amor, em geral, é o amor do bem, como, e em que casos, os que perseguem a posse do bem, devem praticá-lo? Em que consiste esta operação essencial? Podes dizer-me?

Sócrates – Se o soubesse, Diotima, não estaria perante a tua sabedoria e não viria a tua casa para me instruir, precisamente sobre estes assuntos.

Diotima – Então, vou dizer-te: é a criação da beleza segundo o corpo e o espírito.

Sócrates – É preciso adivinhar para compreender o que disseste. Não compreendo.



As três Meras (Moirai) ou Parcas do nascimento, do casamento e da morte.



Diotima – Ora bem; vou falar mais claramente: todos os homens são fecundáveis, Sócrates, segundo o corpo e o espírito. Quando chegamos à idade própria, a nossa natureza sente o desejo de gerar, mas não pode gerar no feio, não pode gerar a não ser no belo e, com efeito, a união do homem e da mulher é um acto de geração, de procriação. É uma obra divina, e o ser mortal participa da imortalidade através da fecundação e da procriação. Todavia, estes actos não se realizam no que não possui harmonia. O feio não se harmoniza com o divino, enquanto o belo se harmoniza. A Beleza preside à geração, como Moira e Ilitia. Assim, quando o ser, impulsionado pelo desejo da procriação, se aproxima do belo, sente o desejo e o prazer aumentarem e concebe. Em contrapartida, quando se aproxima do feio, retrai-se, contrai-se e, triste, não fecunda. Guarda o germe e sofre. Daí resulta a mudança, que se verifica no ser fecundo e viril, em presença do belo, pois este o liberta do sofrimento do desejo, porque o amor, Sócrates, não é o amor do belo, como antes julgavas…

Sócrates – Que é então?

Diotima – É o desejo de geração e procriação no belo!

Sócrates – Admito que seja…

Diotima – Pois admite sem reserva, porque nada é mais verdadeiro. Qual é a importância da procriação? Para um mortal é uma possibilidade de imortalidade, de eterno, pois o amor é o desejo da perpétua posse do bem. Segue-se por consequência, que Eros é igualmente o desejo da imortalidade! (in O Simpósio, Guimarães Editores, 1986, 201d - 207a).

Continua


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