quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma mensagem de ociosidade e abundância

Entrevista a Ernesto Palma





Torre de Belém



Quem teve, como nós, o privilégio de conhecer e de conviver, na mais pura amizade, com Ernesto Palma, sabe muito bem quão singular era a ironia com que repelia todo e qualquer absurdo mais directa ou indirectamente proveniente da letrada ignorância bem-falante e contente de si. Numa palavra, Ernesto Palma não perdoava. Contudo, ao repelir o absurdo, demonstrava igualmente por que o fazia, um pouco à semelhança do que já Platão, na Politeia, fizera ao demonstrar, numa ironia sem precedentes, o contra-senso do comunismo.

Em todo o caso, o que distinguia verdadeiramente a inteligência alegre e generosa de Ernesto Palma, era o modo, também único e singular, com que, na esteira de Hegel, sugeria que tudo é e não é ao mesmo tempo. Basta tão-só imaginar o caso da língua portuguesa como sendo o de uma língua já morta, pese embora falada por homens vivos, ou por homens e mulheres «que se amam, falam de amor entre si, numa língua que já não existe». Quer dizer: a língua portuguesa, sendo - já de facto - uma língua morta, conforme nos dão a entender os nossos governantes, os padres, os professores e os deputados, revela, no entanto, aquela inesperada virtude que melhor assiste aos escritores de génio quando confrontados com uma língua já puramente clássica.

Ora aí está: uma língua clássica, mas ainda assim potencialmente apta a inspirar o espírito de liberdade.

Miguel Bruno Duarte





Ernesto Palma oferece aos Portugueses uma mensagem de ociosidade e abundância (in Jornal da Madeira, Funchal, 11 de Fev. de 1971, pp. 1-3 - supl. "A Ilha").


O nome de Ernesto Palma apareceu pela primeira vez a assinar artigos sobre o nosso ambiente político e cultural publicados, em 1957, no jornal 57. Eram artigos de carácter irónico e, em certos casos, sarcástico. Ficaram famosos aqueles em que fez o elogio do tubarão e outro em forma de carta aberta dirigida aos deputados da nação. No primeiro, mostrava que o vilipêndio do tubarão, homem de muitos empregos e proventos fáceis, não passava de um testa-de-ferro de mais poderosos interesses que o seu e, portanto, de mais poderosos interesses escondidos e acobertados, precisamente, pelo vilipêndio do tubarão. No segundo, aconselhava os deputados da nação a aprenderem e cultivarem a língua portuguesa que utilizam nos seus discursos e tão mal tratam.

Falou-se depois em Ernesto Palma como líder político de um sector que lhe seria entregue pela oposição tradicional, concentrada então na revista «Seara Nova». Sobre as negociações que com ele estabeleceu aquela revista, representada por Câmara Reis, correram versões que, embora diversas, igualmente acentuavam o espírito irónico e a inteligência sarcástica de Ernesto Palma. Conta-se que, convidado por Câmara Reis a apresentar as condições para aceitar a liderança política que lhe ofereciam, terá ele imposto que a oposição, no mesmo dia em que assumisse o governo do país, decretaria: 1.º – a instituição do serviço militar obrigatório; 2.º – a proibição de pagar rendas de casa por habitação; 3.º – o reconhecimento da propriedade privada só até à medida em que a propriedade fosse susceptível de ser trabalhada e explorada pelo próprio, ou proprietário. Diz-se que Câmara Reis, ao ouvir estas condições, encerrou as negociações exclamando: «Irra! Você é muito mais socialista do que nós!»



Os fundadores da revista «Seara Nova» (da esq. para a dir.: de pé, Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis; sentados, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão).



Que é o socialismo

Com Ernesto Palma à nossa frente, perguntamos-lhe:

– Você é socialista?

– O mais radical socialista desde que se trate de resolver os chamados problemas sociais, que são os problemas das carências sociais. Tais problemas são susceptíveis de solução imediata, não só a nível nacional como a nível internacional. A solução consiste, em termos económicos, em somar quanto temos, somar quantos somos e dividir um total pelo outro. Nada mais simples e imediato.

Mas de modo algum serei um socialista quando o socialismo, extrapolando-se, se apresenta: ou como o processo de complicar os problemas sociais até ao ponto de adiar indefinidamente a solução deles; ou como um sistema que, para lá disso que é negativo na organização social (que é afinal toda a existência em sociedade), se pretende alargar ao que há de afirmativo na existência humana, domínio onde estão em jogo valores não só muito mais importantes do que os sociais mas também insusceptíveis de a eles se reduzirem ou por eles serem condicionados.

– Seja a arte, por exemplo?

– Seja a arte, sim. É evidente que constitui uma pura estultícia pretender condicionar a arte às determinações, urgências e finalidades sociais. Os socialistas que o pretendem estão apenas a iludir a urgência e simplicidade com que os fins da sua doutrina se podem alcançar e a proceder como procedem os eternos tiranos da história.

O Marquês de Pombal, por exemplo, mandou compor alguns milhares de poemas para celebrar a inauguração da estátua de D. José. Como é inevitável que seja alguém que define o que mais importa socialmente, o nosso mais famoso déspota determinou que, ao menos para os poetas, fosse aquela inauguração. O que acontece assim com a arte, acontece com toda a cultura, todo o pensamento, modos de vida e, por fim, da própria vida e do próprio homem.

– É verdade que Você, Ernesto Palma, é um grande latifundiário alentejano?

– Fui. Em 1960, por herança de família, recebi uma grande herdade no Alentejo. Procedi a profundos melhoramentos e a muitas experiências e iniciativas agrícolas. Recorri aos empréstimos bancários. Em 1967, os bancos exigiram-me pagamentos que não estavam previstos e isso, acrescentado de um grande incêndio das culturas e instalações, levou-me à falência. As culturas não estavam seguradas porque eu não consigo compreender que a actividade seguradora esteja entregue a companhias particulares e não ao próprio estado.

– É, então, um homem, pobre?

– Você, desculpe-me o cinismo. Mas, no nosso país, não há falência que lance na pobreza um homem que alguma vez possuiu fortuna de 20 000 contos. Ora eu tive mais de 20 000 contos. Não posso, portanto, ser um homem pobre.

– Não precisa, então, de trabalhar para viver?

– Perdão: eu é que preciso de trabalhar para viver. E o meu trabalho é um verdadeiro trabalho, não um trabalho manual ou formal de escravo, de «empregado por conta de outrem», como dizem os juristas. Você não me vai dizer que já não há escravatura!

– Em que trabalha Você?

– Assunto secreto e privado, impróprio para entrevista.

É que esta entrevista estava sendo dada sob condições. Ernesto Palma é um homem difícil de encontrar e mais difícil de conhecer. Acedeu em dar-nos a entrevista, mas pôs condições. Uma foi essa: poder vetar perguntas. Outra foi sobre as fotografias.






Nós já não conhecemos boémios em Lisboa, já não vivemos aquela vida de boémia artística de que ainda falam alguns actores, alguns pintores, um ou outro escritor mais velho, um tanto restos do século XIX, outro tanto ambiente da cidade e de uma vida mais liberta do que a de hoje. Ainda convivemos com um Almada envelhecido, mas já não conhecemos Fernando Pessoa. É a imagem de um desses homens que Ernesto Palma nos lembra. Talvez, mais mentalmente do que fisicamente, a de um Fernando Pessoa. Mas um Fernando Pessoa mais prosaico, menos obsediado, mais sensual e pagão. Que se demora até tarde, à noite, nos derradeiros cafés de Lisboa e, depois deles fecharem, ainda percorre o Parque Mayer e vai, às vezes, cear ao restaurante do Mercado da Ribeira, às horas a que chegam as hortaliças. Aí o encontrámos uma madrugada, com o José Régio, o Orlando Vitorino, o Augusto de Figueiredo e o Andrade e Silva, quando andavam a ensaiar o «Jacob e o Anjo». Duvidamos, todavia, que Ernesto Palma componha poemas e os guarde numa arca, como Fernando Pessoa fazia. Se os compusesse, talvez se não tivesse chegado a entender bem como o vimos entender-se com José Régio, seu oposto físico e mental. Lembramo-nos de como José Régio o olhava e lhe falava: um pouco de lado, suspeitoso e suspicaz, como se não percebesse bem aquela independente generosidade que Ernesto Palma lhe dava à sua obra de poeta e, sobretudo, de dramaturgo. Ernesto Palma fala quase sempre a sorrir, e o que nos diz provoca-nos uma alegria inteligente. Os estúpidos consideram-no por isso mefistofélico e diabólico. Nós antes o diríamos um Apolo, um deus que deixa que suas musas cantem e sorri benévolo para os poetas que elas inspiram; apolíneo também no subitâneo fulgor com que raciocina, na surpreendente facilidade em conciliar opiniões e em extremar posições. Como se a razão, ou a lógica, tudo reduzissem ao princípio de identidade e ao princípio de contradição e, depois, como se a identidade e a contradição fossem a mesma coisa. Tudo é o mesmo e nada é o mesmo, mas tanto faz. Por exemplo:


Diálogo sobre a morte de Deus

– Em que mundo vivemos, Ernesto Palma? Num mundo já perdido ou num mundo já salvo?


– Só no extremo da perdição se atinge a salvação.

– Que prefere Você ser: um misantropo ou um anjo?

- Um misantropo, mas com resignação angélica.

- Amigo do homem, portanto?

– Se acaso houvesse amigos. Mas só há amor e ódio.

– A salvação vem dos deuses ou dos homens?

– A salvação está no homem.

– É portanto real?

– A salvação está naquilo que o homem hoje pensa ser irreal. E atingir-se-á quando o homem souber que esse irreal é o único real.

– Não entendo.

– Não é para entender. Quero dizer: não é para conjugar com aquilo que já se sabe.

– Você conhece como ninguém o pensamento de Fernando Pessoa. Qual o segredo?

– Um verso: «Nasce um deus, outros morrem...»

– Há sempre deuses?

– Deus nasce sempre, Deus morre sempre. Deus está sempre entre o Natal e a Paixão. E há sempre um momento, ou um instante, em que Deus está morto.

– Você atribui realidade ao que diz?

– O que digo está na própria, mais íntima realidade do homem. O homem perdido, que é aquilo a que chamamos o estúpido, esse é que acredita só na realidade de si próprio. É um proprietário. Para esse, ou nunca houve deuses ou, se os houve, morreram há muito para...

– Para?

– Para que o homem nasça, reine, domine, seja ele só no mundo. A esta doutrina se chama umas vezes ateísmo, outras humanismo.

– Aceita, então, como Nietzsche, que Deus morreu?

– Quem primeiro o disse não foi Nietzsche. Foi Hegel. E, antes de Hegel, disse-o a Igreja, todos os anos, pela Semana Santa. E também a arte, isto é, o teatro que é a arte universal. Todo o teatro começa no momento em que Deus morre.

– Se não é para dar lugar ao homem, para que morre Deus?

– Para nascer outro Deus, disse Fernando Pessoa. Para ressuscitar, diz o cristianismo.

– Não é para redimir ou salvar o homem?

– Cuidado! Convém, sempre, dar a Deus o que é de Deus e ao homem o que é do homem.






– Onde está, então, a salvação do homem?

– Na Sexta-Feira da Paixão.

– Que é que está na Sexta-Feira da Paixão?

«A paixão absoluta, ou Sexta-Feira Santa especulativa deve restabelecer-se em toda a verdade... e o supremo todo pode e deve ressuscitar na mais tranquila liberdade».É assim, um diálogo com Ernesto Palma. Todo travado a rir. Sempre contraditório, identificante e enigmático. O assunto deste que transcrevemos é dos mais raros e difíceis, exige dialogantes especializados. Hesitámos até em publicá-lo para leitores que ignoramos quem sejam.

Mais comum, são conversas como esta:


A grande miragem

– Dizem que Você tem um plano para salvar Portugal. É verdade?


– Longe disso. O que tenho é um plano para dar aos portugueses a felicidade que eles procuram.

– Qual é a felicidade que os portugueses procuram?

– Pois não o vê todos os dias escrito nos jornais, dito e prometido pelos governantes, desejado por toda a gente, nas ruas e nas casas? Não é a propriedade económica o que todos eles querem? Não é sobre isso que se fundam todas as doutrinas, todos os sistemas de governo, todas as promessas de gregos e troianos, todos os agrupamentos e todas as disputas?

– Qual, então, o seu plano?

– Num primeiro passo, estabelecer-se um acordo quanto à autonomia das províncias ultramarinas (o que, aliás, já começou a ser esboçado pelo actual governo no plano da administração). Orientar-se-ia tal acordo no sentido de conseguir o financiamento ou, melhor, a execução de uma série de trabalhos públicos que constituiriam uma poderosa infra-estrutura ou rede turística: auto-estradas, estradas à beira-mar, hotéis de toda a espécie, casinos, parques, etc., espalhados por todo o país.

– É mais ou menos o que se está a fazer.

Sim, mas num ritmo que não tem a aceleração necessária a resultados imediatos. O meu plano supõe que o referido acordo crie possibilidades de uma súbita e total construção dessas infra-estruturas.

– A partir delas...?

– Dividir-se-ia o país em algumas dezenas de estados, com dimensões análogas às de Andorra ou do Mónaco. Esses estados teriam as mais diversas constituições jurídicas: monarquias, principados, cidades-livres, repúblicas e até um sultanato no Algarve. O Porto seria uma república. Lisboa uma cidade-livre. Outra república far-se-ia em Sines, na Figueira da Foz ou em Aveiro, ampliadas as cidades para habitação daquele milhão de portugueses brancos que viriam do Ultramar. Em Coimbra, estabelecer-se-ia um regime colegial e sacerdotal. Em Cascais, Sintra, Sesimbra, Vila Nova de Mil Fontes, ilhas da Madeira e Açores, criar-se-iam principados. Esta organização político-jurídica daria ao país uma multiplicidade de instituições, cerimónias, solenidades, uma tal variedade da chamada «religião do estado» que não teria rival para a atracção dos viajantes que se instalariam nos milhares de hotéis que possuiríamos e que todos os dias podiam ter sensações raras e novas, dada a multiplicação e variação de espectáculos análogos ao render da guarda em Buckingham, ao discurso da coroa no parlamento holandês, ao coroamento da rainha, ao enterro de De Gaulle, ao julgamento de políticos rebeldes, à condenação de anarquistas, etc. Com o tempo, formar-se-ia uma mitologia romântica representada em monumentos como a Torre de Londres, a estátua da Liberdade, o Kremlin.



Nelson Rockefeller e Robert Kennedy



Haveria, depois, o filão inesgotável dos matrimónios das nossas centenas de príncipes, seus filhos e filhas, com os milionários, os filhos e as filhas dos milionários norte-americanos. É fácil conjecturar que as dinastias como as dos Kennedys e Rockefellers viriam a ter laços e, por fim, a sede nos nossos principados e reinos. As nossas repúblicas, por sua vez, suscitariam, o apoio bolchevista e maoísta. Tudo isto canalizaria para os portugueses a maior parte dos investimentos financeiros das grandes potências industriais. Não acha que é a própria evidência?

– Assim me parece. Todavia?...

– E não acha que o nosso país, com a sua diversidade de paisagens e climas, sua romântica tradição, a vizinhança forte da Espanha, suas ilhas atlânticas, oferece, para a execução deste plano, condições excepcionais, únicas?

– Também me parece... Creio, no entanto, que há nesse plano qualquer coisa de irreal, de utópico...

– Como assim? Pois não são reais, não existem realmente principados como os do Mónaco, de Andorra, de Liechtenstein? Não casam os seus príncipes com milionárias norte-americanas? Não vivem os seus habitantes em grande prosperidade que lhes vem só disso de pertencerem a principados?

– Sim.

– Pois não existe a rainha de Inglaterra? Pois não é real, até em países de grande progresso socialista como a Dinamarca, a Noruega, a Holanda, a inevitável Suécia, a existência de monarquias, reis, dinastias com todo o cortejo de príncipes, princesas tão simples como as costureiras e casamentos de uns com os outros?

– Devo reconhecer...

– Todavia, tudo isso é ainda feito com muito pouco talento e com paupérrima imaginação. Suecos, ingleses e os mais que citámos, tomam-se demasiado a sério e resultam, evidentemente, ridículos. Os suecos, por exemplo: têm um rei com coroa e tudo e apresentam-se campeões do socialismo e do progressismo. Um socialismo com um rei em cima.

O meu plano nada tem de utópico. É perfeitamente realizável e está perfeitamente de acordo com a opinião e a ideologia dominante. Constitui apenas a aplicação técnica e científica dessa ideologia. Se do que se trata é de tudo fazer depender dos meios para alcançar a prosperidade económica, desafio quem quer que seja a refutar este plano que apresento ou a apresentar outro mais eficaz. As resistências que lhes farão são apenas o reflexo dos preconceitos dominantes. Liberta de preconceitos, ela está toda aplicada no meu plano. Posso continuar a expô-lo?

– Sou todo ouvidos.

– Muito bem. Um aspecto essencial é o problema da língua. O português é uma língua de povos pobres: o brasileiro, o angolano, o moçambicano, nós mesmos. Ora o meu plano destina-se a atrair riqueza, a atrair os homens de povos ricos que falam línguas como o russo, o alemão e, sobretudo, o inglês. Claro que não podemos trocar a língua que falamos. Como vencer a dificuldade?

Uma pausa para acender um cigarro, beber mais um café.



Ponte Sisto, construída em 1479, e que conduz ao centro da Cidade Eterna (Roma).



– A solução está em decretar que o português é uma língua morta. Como o grego. Como o latim. Você já imaginou a sedução que isso representará? O português, língua morta! Homens vivos, homens que todos os dias nascem, e falam uma língua morta. Homens e mulheres que se amam, falam de amor entre si, numa língua que já não existe. Imagine o que seria passearmos nas ruas de Roma e ouvirmos à nossa volta falar latim. Será isso o que acontecerá nas ruas de Lisboa, do Porto, de Évora, do Funchal. O chauffer de táxi que responde ao turista numa língua que ele já sabe que está morta. E os criados de restaurante, os gerentes dos hotéis, os croupiers dos casinos, os caixas dos bancos... Não será admirável? Um povo, todo um povo de clássicos! Percorrermos uma estrada do Alentejo, numa tarde quente, o Sol a cair no horizonte vermelho, e as ceifeiras ao longe a cantar numa língua clássica. Nos largos das aldeias, os rapazes gritam palavrões em clássico! Eis o que resultará de um simples decreto.

Esta última palavra foi, de repente, uma chave. Quase gritámos:

– Espere! Nada disso é real nem possível. Uma língua não se pode fazer morta ou clássica só pela força de um decreto, só pelo capricho de um legislador. As línguas não dependem do arbítrio de um homem!

– Quem falou aqui em arbítrio dos homens, em capricho dos legisladores? O português será decretado língua morta porque é, efectivamente, uma língua morta. Ouça bem. Porque já é efectivamente uma língua morta! Você nunca ouviu os discursos dos nossos governantes, os sermões dos padres no púlpito, os discursos dos deputados que pesam sobre a ideologia adoptados no parlamento? Sabem eles, porventura, falar? Sabem eles a língua que falam? Você não lê todos os dias os jornais? Não houve todos os dias a rádio e a televisão? Não escuta os professores nas cátedras? Sabem eles falar? Sabem eles a língua que falam? Você já leu os romances dos nossos romancistas, os versos dos nossos poetas, os livros dos nossos escritores? Sabem eles escrever? Sabem eles a língua que escrevem? Responda! Ah! Meu amigo! O português é efectivamente uma língua morta. E no entanto é a língua que o nosso povo, que nós todos continuamos a falar.

– Perdão... Deixe-me pensar. Será verdade tudo o que diz. Mas deixe-me pensar. O facto de não se saber a língua que se fala, não significa que ela esteja morta. Acontece o mesmo a todas línguas da África, por exemplo. E isso não significa que estejam mortas. Significa apenas que ainda não tiveram os seus escritores, os seus oradores, os seus sábios...

– Ora aí está! É que o português já teve os seus escritores, os seus oradores, os seus sábios. O português foi a primeira língua culta da Europa medieval. Já teve uma literatura, uma poesia, uma retórica. E já não a tem. Ora aí está! Aí está porque é que o português é uma língua morta, uma língua de clássicos.

– Mas Você tem de admitir a possibilidade de surgir um orador, um escritor... Você mesmo, há pouco, reconheceu que o Fernando Pessoa, quase nosso contemporâneo... ou o Álvaro Ribeiro, o Orlando Vitorino, nossos conterrâneos, são escritores, sabem a língua que falam e escrevem.

– Admitamos... Mas essa raríssima hipótese também está prevista. E para maior dignidade desses que porventura surjam. São escritores clássicos, oradores clássicos. Serão, simplesmente, clássicos. Como Cícero, como Horácio. Veja bem: clássicos e no entanto vivos!

Que responder? Como pensar? Como aguentar este penetrante olhar apolíneo e este mefistofélico sorriso?

– Você acredita que, uma vez em execução, o seu plano daria os resultados que anuncia?

– Meu caro amigo, levei a minúcia ao ponto da fazer as contas. Basta dizer-lhe os totais. Sabe de quanto viria a ser, dentro de previsões modestas, o saldo positivo do orçamento nacional? 100 milhões de contos? Cem milhões! O que daria a cada português, homem ou mulher,, velho ou criança, a bonita soma de mil contos anuais. E sem fazerem nada.

– Sem fazerem nada?

– Pois que teriam eles a fazer? Os portugueses serão, em conjunto, os proprietários do país, que será explorado como uma sociedade anónima. A cada um dos portugueses cada uma das quotas. É uma das maneiras de realizar a justiça distributiva: tanto de rendimento nacional, tanto a cada português. Duas contas de somar e uma de dividir. Mais nada. E para que tudo isto não seja realizável e desejável, para que tudo isto seja fictício e utópico, então será preciso acabar com o predomínio absoluto e exclusivo de tudo subordinar às finalidades da prosperidade económica.

Que horas seriam? Ainda o cair da noite? Já madrugada? Onde foi que Ernesto Palma me trouxe? Onde tenho a cabeça? Teríamos bebido? A voz pende-se-me, as palavras agarram-se-me à língua:

– Uma coisa só... só uma pergunta. Para que vai ser isso do sultanato no Algarve?

Senti-lhe a mão a agarrar-me o braço, a puxar-me. Senti-me cair para ele. E com a boca junto à minha orelha, num murmúrio cá dentro ribombante:


– Para que havia de ser, jornalista? Para haver moralidade. Não sabes que os sultões são polígamos? Não vês essa gente a andar para aí como anda? Para que havia de ser, jornalista? Para terem juízo!



Sherezade, a concubina que, na tradição persa, acaba por evitar a sua morte ao seduzir e cativar, ao fim de mil e uma noites, o sultão Shahriar que matava ao amanhecer todas as mulheres que se lhe juntavam no leito. O expediente estava no interminável conto que Sherezade usava para encantar o denominado sultão.



Alguns estados e suas constituições da federação proposta por Ernesto Palma


Bragança - República Corporativa do Nordeste
Caminha - Principado
Braga – República Teocrática de Governo Regional
Porto – República Trabalhista do Norte
Aveiro – Estado Autónomo associado à República Trabalhista
Coimbra – Agremiação de Repúblicas Colegiais
Guarda – Monarquia Agro-Pastoril
Leiria – Principado de regime matriarcal
Tomar – Principado
Sintra – Principado
Cascais – Principado
Lisboa – Cidade Livre
Barreiro – República Socialista
Sesimbra – Principado de regime matriarcal
Setúbal – Porto franco
Évora – Monarquia Agrária
Beja – Monarquia Agrária
Sines – Cidade Livre e Porto Franco
Ilhas da Madeira e Açores – Principados
Algarve – Sultanato
Caparica – República Anarquista
Santarém – Sede do Governo federal



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