segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

De Charlot a Chaplin

Escrito por Orlando Vitorino






1. Há quem prefira o Charlot, palhaço, mudo, sempre extremamente indignado com a injustiça dos poderosos, das máquinas e das organizações, sempre extremamente enternecido com a variada inocência das crianças, das adolescentes virginais e da natureza. Mas há nessa preferência qualquer coisa de saudade de nós próprios, de uma infância perdida, de que Charlot foi, para a maior parte dos nossos contemporâneos, o último boneco ou o último brinquedo.

2. Até quando pôde, Chaplin deixou-se ser esse boneco articulado e mudo, até quando o cinema fez sentir o maquinismo no momento das personagens e para mais do que até quando as suas personagens não tinham voz.

Mas na infância perdida se esquece e se deixa a natural inocência que só a palavra pode substituir e transcender. O boneco sabiamente, fez-se homem, o palhaço cedeu ao actor como a pantomima à representação, e às situações extremas do riso e das lágrimas, da farsa grotesca e da tragédia melodramática substituiu-se a serena ironia intelectual quando se trata da inocência (veja-se a discussão entre o rei e a criança no colégio de Nova Iorque), ou a radical negatividade do humor quando se trata da injustiça (que é o que domina, veja-se, todo o «M. Verdoux»).




3. Fora de uma «carpintaria» espectacular ninguém se lembrará de refutar a superioridade da ironia e do humor sobre o melodrama e a farsa. No que consiste tal superioridade é nisso mesmo, de estas últimas dispensarem a palavra enquanto aquelas só pela palavra se podem manifestar. Compare-se uma cena de farsa e uma cena de ironia em seus exemplos extremos: a farsa do polícia que ensina a um professor as regras do trânsito rigorosamente deverá evitar o uso de palavras; a ironia de Sócrates que ensina ao escravo Ménon a ignorância e a ciência, só pode exprimir-se através da palavra: «Repara, Ménon, que nada mais faço senão interrogar».

4. Não pode, porém, o escravo ser interrogado sobre a sua situação de escravo (ou sobre a injustiça que é o assunto de metade da obra e da figura de Charlot) porque a interrogação se dirige, precisamente, ao homem livre ou, em termos socráticos, ao que no homem é livre, ao conhecer-se ignorante para poder conhecer-se a si mesmo.

Substituindo o palhaço pelo actor, o boneco mudo pela personagem que fala, Chaplin substituiu, ou, melhor, desenvolveu a luta contra a injustiça na luta pela liberdade. Diríamos para cá, entre nós, que o socialista cedeu ao anarquista se C. Chaplin não fosse, sobretudo, como desde Sócrates todos os ironistas, um mestre da libertação psicológica, anímica, reflexiva.

5. O monstro que, em defesa da liberdade, Chaplin combate neste «Rei em Nova Iorque» , é a propaganda, e conduz tal combate através da destruição dos sofismas que a constituem. Esses sofismas consistem no seguinte: a propaganda começa num juízo a que se não dá nem pode dar qualquer fundamento. Por exemplo: esta pasta de dentes é a melhor do mundo. Porque não tem fundamento, este juízo é indiscutível ou seria vão discuti-lo; e porque se não pode discutir, é um juízo definitivo, ou seja, inapelável.




Da propaganda não viria grande mal ao mundo se o seu inicial juízo apenas se referisse a pastas de dentes ou a coisas como pastas de dentes. Mas os seus sofismas alargam-se a outros domínios e pretendem atingir até aquela liberdade que o escravo Ménon possuía. O próprio Chaplin nos tem dado outros exemplos da mesma propaganda. Este: se desço o passeio com o pé esquerdo. Logo nos EUA haverá quem judique: este homem é comunista, se desço o passeio com o pé direito, logo na Rússia haverá quem judique: este homem é fascista. Assim se obtém o juízo final, e como o descer do passeio o não possibilita, trata-se de um juízo sem fundamento, logo indiscutível, logo inapelável.

Em Portugal (queremos dar um exemplo nosso, mas como havemos de o dar ironicamente?) é a vida cultural que está sendo sujeita ao processo da propaganda. Por motivos de grupo dominante ou homogéneo, de amizade ou de hostilidade política de ser da extrema-direita (que entre nós se considera direita), e de ser da direita (que entre nós se considera esquerda), por motivos, portanto, que não são fundamentos, judica-se: este livro é o melhor, este autor ganha o prémio, este livro é o pior, este autor silencia-se. Alberto de Lacerda, há dias, sem se referir ao filme de Chaplin, comparava os escritores portugueses às vedetas de Hollywood.

6. Proibida a discussão, proclama-se como atributo da verdade isso mesmo de não ser discutida. E o que nos ocorre é o «Ensaio sobre a Liberdade», de Stuart Mill: «Os que julgam defender a liberdade impedindo os homens de a discutir, o que conseguem é apenas transformá-la em superstição» (in Diário de Notícias, ano 98, n.º 34607, Lisboa, 1960, pp. 76-82).














sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O sistema monetário internacional

Escrito por Deirdre Manifold









«[A Nova Ordem Mundial] não é mais do que um sistema mundial de fiscalização financeira, colocado nas mãos privadas, sistema que será capaz de dominar os regimes políticos de todos os países e a economia mundial na sua totalidade... a liberdade individual do homem, e as suas escolhas, está estreitamente vigiada, o que permitirá pouca alternativa...». 

Carroll Quigley («Tragedy and Hope»).



O Federal Reserve Bank U.S. é uma ditadura monetária possuidora de poderes discricionários absolutos sobre o povo americano e, por ricochete, sobre o resto do mundo. O paralelismo entre a instituição do sistema do Federal Reserve Bank e do Partido Comunista Soviético é mais do que evidente.

Na URSS a clique estreitamente ligada ao Partido Comunista tudo dirige, agindo no segredo mais absoluto e com total desprezo pelo povo e pela Constituição da União Soviética. Nesses dois países só um reduzidíssimo número de pessoas conhece e beneficia das decisões tomadas por essas súcias.

Nos Estados Unidos, a política monetária é dominada pelos sete membros do Federal Reserve Board, pelos doze presidentes e pelos cento e oito directores dos doze bancos do Federal Reserve. Essas 127 personalidades, agindo no segredo mais absoluto, exercem um poder ilimitado sobre as decisões monetárias.

Na URSS, por seu turno, os 133 membros da Comissão Central do Partido Comunista dirigem totalmente o país.

Estes dois corpos contêm um escol – uma pequena super-comissão.

No sistema do Federal Reserve, essa pequena super-comissão, conhecida sob o nome de «Open Market Committee», é composta por sete membros do Federal Board e por cinco dos doze presidentes dos Bancos da Federal Reserve – 12 pessoas ao todo – e a presença de outros sete presidentes.






No seio da Comissão Central da URSS existe uma comissão restrita chamada Politburo. Esta compreende onze membros em vez dos doze do «Open Market Committee».

De três em três semanas, em Washington, o Open Market Committee reúne-se na sua sede, à porta fechada. (…) Respeitando o prazo de prescrição referente a qualquer transgressão que possa ter cometido, durante seis anos nada se sabe sobre os temas ventilados nessas reuniões. É evidente que nela são tomadas decisões em relação à moeda, aos juros a praticar e ao volume monetário. O próprio presidente dos Estados Unidos não pode estar presente nessas reuniões. Eis o estilo democrático em vigor na América do Norte.

Na URSS, o Politburo, reúne-se, em Moscovo, várias vezes por mês por ocasião das Sessões Secretas. Ninguém é autorizado a penetrar para além do cordão constituído por guardas armados. Como sucede em relação aos Estados Unidos, as decisões do Politburo são mantidas secretas até que seja decidida, superiormente, a sua divulgação.

Na Rússia Soviética, o Partido defende os seus amigos; nos Estados Unidos o Federal Reserve defende os seus associados bancários. Mas nos dois casos a grande massa do povo é mantida inteiramente alheia ao que se passa. Apenas um escol aproveita. Que 240 milhões de americanos supostamente «livres», possam suportar uma situação tão absurda parece pura e simplesmente inacreditável. Mas tudo deixa de ser inconcebível quando se toma conhecimento da profundidade abissal da sua ignorância quanto ao que se passa nas cúpulas. Esses milhões de pessoas são tratadas como atrasadas mentais e os seus tutores são os únicos a saber o que melhor lhes convém. Em 20 anos de negócio e cerca de 5 meses por ano, tive a oportunidade de, quase diariamente, frequentar os meios americanos. Sem jamais perder, durante todo esse tempo, uma ocasião para proceder a uma sondagem sobre o seu grau de conhecimento referente à conspiração do poder dos que decidem a política monetária, apenas me foi dado deparar com uma só pessoa que sabia algo sobre quem governava as suas existências. Tratou-se de um funcionário do governo do Estado de Massachussets. Os designados por «Iniciados» apavoram-se com a perspectiva de serem expostos aos olhares públicos embora todo aquele que se lança nessa aventura saiba de antemão que o espera a difamação ou mesmo a morte.

O Banco Mundial, o Export-Import Bank, O Fundo Monetário Internacional são, hoje, outros tantos instrumentos criados, pelos «Iniciados», para dominar a espécie humana.


O FMI foi instituído em Bretton Woods, em 1944. Harry Dexter White, bem conhecido espião comunista, foi o seu arquitecto. O Presidente Truman, informado pelo FBI das suas ligações com a URSS, em vez de o mandar prender nomeou-o para o FMI, acompanhado doutros numerosos espiões comunistas de alto coturno, tais como: Frank Poe, Lauchlin Currie, William Ulmann, Nathan Silvermaster e Alger Hiss [1]. Eram todos detentores de elevados postos nos Departamentos do Estado americano e beneficiavam, em pleno, da protecção presidencial. E ocorre perguntar: qual a razão que leva um presidente dos Estados Unidos a proteger um espião comunista? Só uma resposta se apresenta legítima: tanto o presidente como o espião estão às ordens de alguém. Ambos sabem como o mundo é constituído. Em «Tragedy and Hope» (Tragédia e Esperança) o Professor Quigley conclui que fomos já longe demais no caminho da Ditadura Mundial para recuarmos. O «Saturday Evening Post», de 18 de Outubro de 1944, acompanhou a reunião de Bretton Woods através de Peter Drucker, porta-voz dos «Iniciados».

«Se o mundo adoptar um sistema de economia dominada, o timoneiro desembocará na URSS. A Rússia Soviética deve representar o modelo para semelhante ditadura, dado que foi o primeiro país a desenvolver a técnica de fiscalização económica internacional».

O FMI reivindica soberanias, imunidades e privilégios que suplantam, em muito, os das nações que o compõem e no seio dos territórios dessas nações.

Assim, o artigo IX, parágrafo 2, prevê que o Fundo possuirá personalidade jurídica plena e inteira e, de modo muito particular, a capacidade de: 1.º contratar; 2º adquirir e fazer uso de todos os bens mobiliários e imobiliários; 3.º accionar.

Neste mesmo artigo, o Fundo atribui-se o poder de emitir juízos, estabelecer estatutos e executar as suas próprias decisões, remetendo e reduzindo os estados membros ao papel de simples polícias. O parágrafo 10 deste artigo obriga cada nação a fazer valer os princípios nele inscritos, nos termos da sua própria lei, e prestar contas ao Fundo das medidas tomadas.

O parágrafo 3 proíbe que o Fundo seja submetido ao poder judicial de qualquer país ou estado em que actue, salvo no caso em que renuncie, expressamente, à imunidade de que goza.

O parágrafo 4 determina: «Os bens e activos do Fundo, quaisquer que eles sejam e em que mãos se encontrem, ficarão ao abrigo de qualquer execução, confisco, expropriação ou outra forma de arresto por acção legislativa ou executiva».




O parágrafo 7 atribui ao Fundo a mesma imunidade diplomática que desfruta qualquer nação que mantenha representação consular mas com esta diferença – que se possa exigir a partida aos representantes dos outros países.

O parágrafo 8 dispensa imunidades e privilégios aos quadros e empregados. E a segunda parte deste parágrafo estipula mesmo: «A todos os governadores, itinerantes, quadros ou empregados que não pertençam às nacionalidades locais serão asseguradas as mesmas isenções às restrições à emigração, nas condições do estatuto de estrangeiro e às obrigações do serviço nacional, e as mesmas facilidades quanto às restrições referentes a operações de câmbio que as dispensadas aos representantes oficiais e empregados da mesma categoria da parte de outros membros».

Os parágrafos 1 e 9 facultam a isenção de impostos sobre todos os bens, rendimentos, operações e transacções assim como sobre os salários e emolumentos pagos pelo Fundo que não sejam cidadãos locais, súbditos locais ou outros nacionais locais.São também isentos de impostos todas as obrigações ou títulos emitidos pelo Fundo, juros e dividendos compreendidos.

Sempre que as grandes civilizações ruíram para jamais se reerguerem, testemunha a História, a riqueza dessas civilizações encontrava-se nas mãos de um punhado de homens.

John Adams escreveu a Thomas Jefferson:

«Todas as embaraçosas confusões e desgraças na América provêm não tanto dos defeitos da Constituição ou da Confederação como de uma falta de honra e de virtude, assim como da ignorância completa da natureza da moeda, do critério e da circulação monetária».

E eis a resposta dada por Thomas Jefferson:

«Penso sinceramente, como vós, que as instituições bancárias são mais perigosas do que os exércitos em campanha e de que o princípio de gastar dinheiro que virá a ser desembolsado pela posteridade, sob o pretexto de consolidação, não é mais do que uma burla sobre o futuro, praticada em grande escala».

E até Mayer Amshel Rothschild afirmou:

«Permiti-me emitir e fiscalizar a moeda de uma nação e troçarei de tudo o que as suas leis instituem».








O ouro armazenado em Fort Knox não pertence ao povo americano mas ao Federal Reserve, grupo privado. O nome dos que possuem semelhantes fundos jamais foram revelados» (in Fátima e a Grande Conspiração, Edições Fernando Pereira, pp. 47-50).


[1] No contexto do progressivo desmantelamento de todas as forças armadas nacionais com vista ao fortalecimento de um exército mundial sob a égide das Nações Unidas, leia-se o seguinte: «Ironicamente, foi Alger Hiss, o qual viria a ser condenado como espião soviético, quem juntou as Nações Unidas com os seus colegas do Departamento de Estado norte-americano. Hiss foi Secretário-Geral da ONU a título temporário, e diz-se que criou o Departamento de Assuntos de Política e Segurança, o qual teria jurisdição sobre todas as operações militares futuras da ONU.

A influência de Hiss é evidente nas entrelinhas das regras e dos regulamentos que governam as operações militares da ONU. Uma das regras prescrevia que o chefe deste departamento seria sempre cidadão ou militar soviético, ou alguém nomeado pelos Sovietes. Tal foi o caso nos primeiros 53 anos, em que os catorze comunistas seguintes ocuparam o cargo vital de Subsecretário-geral. O primeiro indigitado na 35ª reunião plenária de 24 de Outubro de 1946 foi Arkady Sobolev: 1946-49 Arkady Sobolev; 1949-53 Konstantin Zinchenko; 1953-54 Ilya Tchernychev; 1954-57 Dragoslav Protich; 1960-62 Georgy Arkadev; 1962-63 E.D. Kiselyv; 1963-65 V.P. Suslov; 1965-68 Alexei E. Nesterenko; 1968-73 Leonid N. Kutakov; 1973-78 Arkady N. Shevchenko; 1978-81 Mikhail D. Sytenko; 1981-86 Viacheslav A. Ustinov; 1987-92 Vasily S. Safronchuk; 1992-97 Vladimir Petrovsky (in Daniel Estulin, Toda a Verdade sobre o Clube Bilderberg, Publicações Europa-América, 2008, pp. 126-127).






terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Portugal de Agostinho da Silva

Entrevista a Agostinho da Silva








«Amor não quer cordeiros nem bezerros».



«(...) A Deusa [Tethys], no decurso da sua descrição da Esfera, emprega sempre o vocativo no singular; diz "vê" e não "vede". O importante, neste ponto obscuro, é não esquecer aquilo que Camões, num soneto, põe como condição para o entendimento dos seus versos:



Entendei que, conforme o amor tiverdes,
Tereis o entendimento dos meus versos.


Devemos observar que ele, ao escrever "conforme o amor tiverdes", não se refere a graus de amor, embora os possa ter em mente, mas a diferentes formas de amor. Há o amor disforme, insusceptível de constituir tão só que seja o primeiro termo daquela escala que vai do amor pela qual as almas se amam através da união dos corpos até ao amor pelo intelecto que espelha o divino».


António Telmo



«Camões pensava que no futuro se ia completar tudo aquilo que Atenas lançou ao Mundo porque, na realidade, o Mundo de hoje é, ainda, um produto que saiu de Atenas e que, de uma maneira mais geral, podemos dizer que saiu da Grécia.

O Mundo, até hoje, foi todo construído por dois elementos que de lá vieram e que tiveram um intermediário fundamental no Império Romano, pois foi este que tornou prático aquilo que para os gregos era, apenas, teórico.

Trata-se da Filosofia, a qual nos incita a pensar, sempre, coerentemente os fenómenos que aparecem. A tendência humana seria a de pensar disperso, mas o grego lançou a ideia de que o importante é pensar coerentemente o Universo.

Por outro lado, o grego inventou a Geometria que, sobretudo, depois do "casamento" que Descartes lhe fez com a Álgebra, na Geometria Analítica, nos deu todas as possibilidades de construirmos um Mundo Técnico e um Mundo Científico.

Duas coisas que se herdaram de lá.

São duas coisas inteiramente aproveitáveis? Eu, por mim, creio que não.

A Filosofia tem um perigo terrível, que é o de cada homem, por esse pensamento filosófico, acabar de construir uma verdade e achar que é o senhor da Verdade e, portanto, ter quase à mão uma Inquisição pronta a agir.

Quanto à Ciência é a mesma coisa. Quanto à Ciência, também o perigo de pensarmos que o Universo é inteiramente racional, que o Universo é inteiramente matemático, que tudo está dentro de uma determinação de lógica matemática quando, hoje, a própria Física Quântica está a chegar ao ponto de ter de concordar que a Vida tem mais imaginação do que a Matemática.

Assim como o Universo é mais complicado, mais complexo, mais incompreensível, fundamentalmente, do que a lógica da Filosofia, do mesmo modo a Vida nos aparece com mais imaginação que a Matemática.

Foram bons instrumentos para subirmos, como são os degraus da escada e o corrimão, mas talvez não um patamar em que fiquemos, nem um terraço para contemplarmos o verdadeiro Céu».


Agostinho da Silva





O Portugal de Agostinho da Silva






Victor Mendanha – O que devemos fazer para enriquecer, espiritualmente, as nossas vidas?

Agostinho da Silva
O que interessa é ver de que maneira poderemos trazer à nossa vida aquilo que não veio. Os gregos possuíam a tal Mitologia e a Mitologia não se desenvolveu, pois aparece o Cristianismo a trazer a disciplina ao Mundo. Primeiro, sem a disciplina das legiões romanas e da burocracia romana – mesmo com todos os males de que sofria -, segundo, a disciplina marcada pelo pensamento cristão, não haveria a possibilidade de levar o Mundo ao ponto em que, efectivamente, está hoje.

V. M. – E a tal possibilidade, sonhada por Camões, de sermos plenamente homens e, ao mesmo tempo, livres do Tempo e do Espaço?

A.S. – Já lá chegaremos…

Vamos ficar na pluralidade da Mitologia grega, dos tais deuses e deusas, da tal malandragem que fazia o que queria no mundo? Não, porque o Cristianismo introduziu, nessa evolução, nesse progresso, um ponto fundamental quanto ao Ocidente – pois no Oriente as coisas foram de outra maneira – concluindo-se que o importante é pensar a Unidade do divino.

A vida plena do homem, quanto ao fenómeno e o seu interesse fundamental em atingir o Eterno, fora do Tempo e do Espaço, tem de ser posta não daquela maneira que os gregos a puseram, com a pluralidade dos deuses e das deusas, mas com a questão do Divino que se encontrou no Ocidente com a ideia de um Deus Todo-Poderoso, Omnisciente que criou o mundo e promove o seu desenvolvimento.

No Oriente, quando ali se pensou o Divino, chegaram fundamentalmente à conclusão, com Buda, de que o essencial do Mundo é alguma coisa à qual nós podemos chamar o Nada. Mas, na realidade, o que vem a ser o Nada? O Nada foi, sempre, a possibilidade de Tudo.

Então parece que, tendo o Ocidente chegado à ideia de um Divino Todo-Poderoso, Omnisciente, e tendo o Oriente chegado à ideia de o Divino ser o Nada, com a possibilidade de Tudo haver, talvez o esforço de pensamento e procedimento da Humanidade para o futuro seja esse, o de juntar as duas ideias.

Não será através do entendimento que ela irá atingir essa junção, pois torna-se logicamente impossível conseguir a união do Nada e do Tudo mas, apenas, pelo seu procedimento.

Isto é, portando-se ora como Nada ora como Tudo, exactamente como quando marchamos, avançando ora com o pé direito ora com o pé esquerdo…

Como lhe disse, não creio ser possível a qualquer espécie de Filosofia, a qualquer espécie de pensamento metafísico, juntar as duas coisas numa relação lógica mas torna-se viável pensar em procedimento humano.

No entanto, aceito a viabilidade das pessoas, quando iluminadas por esta ideia, começarem a portar-se, quando necessário, como aquelas que são capazes de Tudo e, quando é preciso, como aquelas que são capazes de Nada.

V. M. – Há, no Mundo, algo comparável a esse futuro comportamento ideal?



A.S. – Existe, agora, algo de interessante para observar, como a má consciência com que os japoneses estão a ser ricos. A vontade com que eles se atiram ao domínio do fenómeno, o espírito militar de Samurai com que se atiram à indústria.

Coisa curiosa e digna de meditação pois foi o arcabuz português, transportado pelos portugueses para o Japão, que permitiu a um senhor feudal, entre os muitos, vencer outro e outro senhor feudal, acabando por unificar o país, pondo todos os japoneses apostados num triunfo mecânico, num triunfo técnico sobre o futuro.

Isso foi conseguido por terem ido para a indústria com um espírito militar, um espírito de disciplina e ordem.

A.S. - O que lhes trouxe um bom nível de vida, o que já não é mau de todo…

A.S. –
Trouxe-lhes a riqueza mas, como o seu pensamento fundamental era o de que o Divino é o Nada e que, como pessoas agregadas ao Divino, deviam fazer por isso, subitamente encontraram-se numa contradição por serem um dos países mais ricos do Mundo…

Estão a ter um procedimento curioso, procurando livrar-se do dinheiro dando grandes subsídios aos chamados países subdesenvolvidos, chegando a ajudá-los mais do que os norte-americanos, caso entre nas contas o produto nacional bruto dos dois países.

Ao mesmo tempo, procuram fazer com que os outros países ricos do Mundo, como os Estados Unidos da América ou a Alemanha Federal, comecem por acordar com os devedores desse Terceiro Mundo o não pagamento dos juros.

O Japão, apesar de ser um país oriental, orientado pelo conceito do Nada, chegou ao máximo a que poderia ter chegado o Ocidente onde existe e se persegue o conceito de Tudo, através do seu espírito fortemente militarista.

Monte Fuji (Japão).

Agora, chegados ao máximo, os japoneses estão a encontrar a «parede» também encontrada pelos ocidentais: essa ofensa do Poder sobre a ideia de que o importante é o não Poder.

V. M. – Toda essa situação faz lembrar a filosofia das Ordens religiosas ocidentais.

A.S. -
Exactamente. Os monges ocidentais, esses as quem se deve a construção da Europa, tiveram a mesma ideia.

Os seus votos de pobreza, de castidade, de obediência, são votos de ser Nada, de se libertarem pelo Não Ser.

Por não terem coisas; por não possuírem pessoas prisioneiras através do afecto – substituindo o afecto pessoal pelo afecto por todos -, e não se terem sequer a si próprios, ficaram livres.

Sobretudo através do voto de obediência, que funciona como argumento principal porque, quando decido obedecer a outro estou a dar-lhe o que eu era, não procurando ser.

Provavelmente, é o voto mais difícil, por colocarmos a nossa natureza à disposição do outro, já que faremos o que nos for possível fazer mesmo contrariando a nossa personalidade.

Os japoneses que levaram ao máximo esse voto de obediência, agora estão atrapalhados porque têm o Poder na mão e vão ser obrigados a resolver o mesmo problema posto a todo o Mundo.

V. M. – A qual problema se refere?

A.S. – As pessoas julgam irem ser pagas as grandes dívidas internacionais deste país àquele ou daquele ao outro?

Se o Brasil deve 3 biliões e não sei quê e os Estados Unidos da América 5 biliões e não sei quanto, quem vai pagar as dívidas a quem?

Rio de Janeiro (Brasil).


Haverá uma altura em que já nem se saberá quem é o credor e quem é o devedor.

Só então o problema se irá resolver.

V.M. – Irá resolver-se politicamente?

A.S. – Por política, por pensamento político? Não creio muito nisso, sabe?

A situação é tão complicada como a textura da Terra, com as suas placas tectónicas que, de vez em quando, chocam umas com as outras, provocando um terramoto.

Então, poderíamos censurar o mundo dos engenheiros por não terem encontrado, ainda, as máquinas suficientes para evitar os terramotos, não deixando chocar umas placas com as outras.

Não fazemos essa censura por pensar tratar-se de uma atitude idiota, no entanto continuamos a censurar os políticos porque eles não arranjam as máquinas necessárias para evitar os terramotos políticos.

Os actuais problemas do Mundo são de tal ordem que excedem toda a capacidade humana de os pensar.

Não sabemos, por exemplo, como iremos resolver o problema de manter vivos os desempregados já que serão cada vez mais por uma razão muito simples: eles não são desempregados, o que desapareceu no Mundo foi o emprego.

Não poderei dizer não estar o meu casaco pendurado se não houver cabides, sucedendo a mesma coisa com o desemprego: se não existe emprego como pode o desgraçado estar desempregado?

V.M. – Qual vai ser a saída desse impasse?

A.S. –
O Mundo vai ter de os matar, deixando-os morrer, ou vai ter de os alimentar.

Quando optar pela segunda solução, o Mundo entrará num tipo de Economia completamente diferente. Já não se trata de uma economia de produção organizada mas, isso sim, de uma economia de distribuição organizada. Curiosamente, aquela que os portugueses criaram, na Idade Média, com o culto do Espírito Santo: o banquete gratuito na vida.

V.M. – Essas mudanças provocarão situações surpreendentes.

A.S. – Pois provocarão.






Por que é que os pais mandam os filhos para a escola? Porque sabem não haver outra forma de lhes arranjar emprego, que os empregos serão muito difíceis sem isso.

Mas se, agora, milhões de meninos já nascem reformados como passará a ser isso da instrução obrigatória e da escolaridade, tal como a temos, para preparar os meninos para as profissões?

O pensamento do Ministro da Educação Roberto Carneiro, quanto à necessidade de haver escolas que, ao mesmo tempo, possam dar capacidade de emprego para uns e liberdade para outros, através da instrução nas artes de que eles gostam – pode ser a agricultura, pode ser a pintura, pode ser a modelagem – é um pensamento certo.

V.M. – Não concorda com os tempos livres?

A.S. –
Toda a gente sabe ser, o tempo livre, o pior presente que um homem pode receber.

Suponhamos que se conseguia que todos os meninos tivessem, como agora se diz, sucesso escolar mas, amanhã, não encontrando emprego, apenas lhes restava o tempo livre.

Não possuindo nada para preencher esse tempo livre, fariam toda a espécie de disparates, desde o suicídio até o assassínio dos outros.

V.M. – O tempo livre é assim tão pernicioso?

A.S. –
O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo.

É a razão porque morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente.

O facto de haver desemprego no Mundo é como o fermento que entrou na massa e faz o verdadeiro pão comido hoje por todos nós. A existência de desempregados irá obrigar o Mundo a prover os indivíduos das artes e das ciências de forma a permitir-lhes serem livres e criadores no tempo livre, assumindo na vida uma atitude completamente diferente, seja qual for a especialidade escolhida.

As coisas vão mudar nesse sentido.

V.M. – Qual a relação do banquete do Espírito Santo, de que falou, e o Canto IX de Os Lusíadas?

A.S. – Essa é a profecia de Camões, expressa na Ilha dos Amores. Através dessa história do fenómeno, ao mesmo tempo que o homem está atento ao fenómeno ele será capaz de pensar fora do Tempo e do Espaço, de se elevar à Eternidade.




Embora use algumas imagens da Mitologia greco-latina, Camões manifesta-se realmente apostado em algo mais importante, sendo esse algo mais importante o Divino que não se multiplica, que não é vários mas Ele, o fundamental do Universo, para nós impossível de definir nos termos próprios.

Somente o definimos com aquilo que nos é inteligível e necessário, afinal o nosso amparo na vida, pois seja qual for o nome dado ao Divino ele apenas consegue tornar a situação ainda mais difícil porque, diante do Divino, só o silêncio é capaz de o exprimir.

Sobretudo, não nos sendo possível imaginar o futuro da Humanidade, é conveniente assumir a humildade externa e interna capaz de levar a pessoa a sentir-se mais nada além de um clarão do Divino.

Um clarão do Divino e nada mais.

V.M. – Mas existem futurólogos, fazendo previsões.

A.S. –
Só conseguimos imaginar o futuro da Humanidade presos dentro da mecânica conhecida mas ela pode mudar completamente.

Repare no movimento das galáxias, afastando-se umas das outras a uma velocidade cada vez maior à medida que se torna maior a distância entre elas. Ao atingirem a velocidade da luz ninguém mais consegue saber o que é feito das galáxias…

Também nós, devido ao progresso contínuo da Humanidade, considerado por toda a gente cada vez mais rápido quando se lembra a vida de há dez, vinte ou trinta anos atrás, consideramos ter andado o chamado progresso a uma velocidade extraordinária.

Quem sabe se esta lei não é a mesma das galáxias?

Quem sabe se não estamos a avançar com velocidade cada vez maior e, a certa altura, não ultrapassaremos a possibilidade de imaginar, podendo haver uma Humanidade futura sobre a qual não podemos fazer nenhuma ideia?

Quando falamos no progresso apenas podemos ajustar, cada vez mais, as nossas vidas pobres, pequenas, mesquinhas e limitadas, arranjando o melhor possível aquilo que não é inteiramente bom.

Mas quando tudo for, se for, inteiramente bom como iremos imaginar qualquer espécie de arrumação?

V.M. – Outro dilema, sem dúvida?

A.S. – Camões, porque os portugueses fizeram no Mundo uma Terra e fizeram o Mar, incita-nos a tentarmos fazer, agora, o Céu aberto na Terra e deixarmos andar, para vermos o que é que a Máquina Interna do Mundo é capaz de nos trazer.

Espero que Portugal cumpra isso e, quando falo de Portugal, não falo só do Portugal da Península mas falo do Portugal no Mundo.

V.M. – No Portugal da língua portuguesa?

A.S. –
Quando se cita Fernando Pessoa, e se diz que a Pátria é a língua portuguesa, temos de compreender que ele afirmava isto a respeito do português aprendido depois de regressar da África do Sul, principalmente a propósito das mudanças ortográficas de 1911.



Fernando Pessoa




Podemos colocar, agora, a questão de outra forma, da maneira como ele gostaria que se colocasse: quem fala a língua portuguesa, onde se fala a língua portuguesa, quem se interessa pela língua portuguesa.

Mesmo não tendo nascido em nenhum território onde, oficial ou nativamente, se fale o português o indivíduo pode ser português. Quando vejo um inglês muito interessado por Fernando Pessoa ou um francês muito interessado por Camões, eles estão interessados em quê? Estão interessados pela Pátria da língua portuguesa e mostram que gostariam de ser nativos dessa Pátria.

Então é um Portugal a multiplicar-se pelo Mundo.

Está, por exemplo, dentro de outra «península ibérica», a que ocupa a chamada América Latina, com uma posição até melhor, devido ao tamanho do território, daquela existente no lado de cá do Atlântico. E a colaboração dessas duas penínsulas já deu rebentos na África e no próprio Pacífico, até no Índico, com Moçambique.

Deverá esse Portugal, tão diferente de região para região, ser atentamente pensado, pese embora constituir-se como um problema para os políticos, principalmente quando a gente se lembra que Manuel Bandeira considerou, certo dia, ser todo brasileiro um português à solta.

V.M. – Eu próprio sinto-me um prisioneiro no meu país.

A.S. – Parece ser esse o pensamento de Manuel Bandeira e, se o português tem de ir para o Brasil para ser um português à solta, é porque há reformas necessárias e urgentes a fazer, para Portugal deixar de ser uma cadeia.

Portugal tem, todo ele e em todas as partes do Mundo, de rumar para uma liberdade em que o Homem se possa interessar pelo aspecto dos fenómenos para si mais atraentes, seja da Física, seja da Pintura ou da Mística, sentindo-se atraído, simultaneamente, para o intemporal e para o não-espacial.

Por isso me parece serem Os Lusíadas, para além de um poema narrativo, histórico e épico – por relatar acções heróicas – também um poema profético, tendo Camões uma ideia do heróico muito curiosa.

Por exemplo, é heróico Afonso Henriques quando diz a Deus «que estais vós a animar-me a mim? Ide pregar aos infiéis»; ou a pobre Inês de Castro, abatida pela razão de Estado quando, para ela, o que imperava era o afecto e lá aguenta aquela morte como pode.

Camões mostra esse Povo heróico na Terra e heróico no Mar, também capaz de heroísmos no Céu.

Nesta situação, costumo lembrar-me do monumento aos Descobrimentos que está virado para o Tejo, junto do Mosteiro dos Jerónimos, no qual podemos ver aquela gente a elevar-se da Terra como se elevou Portugal. Eles vêm do solo, vão subindo por aquelas duas rampas, vão a caminho já do Mar e, subitamente, param.

Não há mais nada porque falta construir o resto da rampa.

Falta continuar o resto dessa rampa que iria chegar, espero que vá chegar, ao que nós chamamos Céu e que seria o verdadeiro destino de Portugal.

Mas chegar ao Céu não é ir, como os americanos e os russos, instalar fábricas no espaço.

V.M. – Haverá possibilidade de continuar a rampa?

A.S. – Espero que sim, pois fizemos coisas mais difíceis do que Ser. O que existe de mais fácil à pessoa é Ser, só que o terrível são as circunstâncias que, à volta dela, a impedem de Ser.

V.S. – Essas circunstâncias poderão ser afastadas?

A.S. Havia uma tribo no Amazonas que gostava das crianças com a cabeça cúbica e, quando elas eram pequenas, punham-lhes umas talas na cabeça para obrigá-las a crescerem cúbicas.

Afinal de contas, é o que sucede a todos nós, pois no fundo, a nossa cabeça é cúbica visto as circunstâncias externas obrigarem a isso. Mas quando a Sociedade não nos colocar as suas talas, para nos impedir o crescimento normal, será possível que cheguemos ao mais pleno de nós próprios.

Então aí, como cada homem nasce diferente mesmo em cinco biliões de homens, teremos possivelmente uma pluralidade extraordinária no Mundo e faremos algo quase impossível de fazer hoje, que é amarmos a diferença.



Camões na Ilha do Amor



Ainda gostamos muito de amarmos as semelhanças, damo-nos muito bem com aqueles que se parecem connosco, quando o nosso gosto também devia ser por aquilo que é diferente.

Quando se diz ter sido Camões um platónico, e isso mostra-se bem quando ele afirma atingir-se a beleza geral através da particular beleza, digo sempre existir aí um defeito por ele não nos referir o que acontecia à fealdade particular a conduzir-nos, tanta vez, à fealdade geral.

É necessário, igualmente, pôr esse ponto: ver no diferente o que existe de fundamental e dirigirmo-nos a esse fundamental.

Só quando o homem se dirigir ao seu fundamental é que se cumpre (Conversas com Agostinho da Silva, Pergaminho, 1994, pp. 95-109).


sábado, 18 de fevereiro de 2012

A Esfera

Escrito por Luís de Camões







Depois que a corporal necessidade
Se satisfaz do mantimento nobre,
E na harmonia e doce suavidade
Viram os altos feitos que descobre,
Tethys, de graça ornada e gravidade,
Para que com mais alta glória dobre
As festas deste alegre e claro dia,
Para o felice Gama assim dizia:

- «Faz-te mercê, Barão, a Sapiência
Suprema de cos olhos corporais
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.» -
Assim lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.

Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto,
Volvendo, ora se abaixe, ora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem, e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte.

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual enfim o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo, ali ficou.
Diz-lhe a deusa: o transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em redor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

(Os Lusíadas, Canto X).


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A filosofia operativa de António Telmo

António Telmo entrevistado por Ângelo Monteiro




Narciso e Eco





Esta entrevista foi publicada na revista Encontro, da cidade de Pernambuco, onde quis Deus criar um grupo de Filosofia em língua portuguesa que prolonga além-mar o espírito de Sampaio Bruno e Teixeira de Pascoaes. Damos apenas dois nomes: o grande poeta Ângelo Monteiro e o grande filósofo Olavo de Carvalho.


ENCONTRO - Gostaria de uma interpretação mais detalhada, para os leitores brasileiros, de sua distinção entre filosofia especulativa, quando se trata da filosofia mesma, e filosofia operativa, ao referir-se à Arte e, nela, à poesia.


ANTÓNIO TELMO – À data em que pus no meu primeiro livro esta distinção, parecia-me estéril o pensamento que se julgasse garantido pela sua própria actividade raciocinativa, separadamente de uma experiência fundada no conhecimento esotérico de nós próprios e, por conseguinte, do mundo e de Deus. Erradamente, adjectivei tal pensamento de especulativo, como se o conhecimento que de si próprio teve Narciso pudesse ter dispensado o espelho. Por operativo significava eu eficaz, capaz de nos curar da dor e de nos libertar do mal por uma espécie de encantamento, o qual diria transfigurante, depois de o ter ouvido a si em Évora. O encantamento é o que é próprio da poesia, que para tanto dispõe do ritmo e da imagem. O ritmo embala e adormece a alma. Ai daquele que no ritmo incorpora imagens contrárias aos impulsos do ser que se rendeu ao encanto por aspirar ao Bem e à Verdade.

Não quero eu dizer, nem queria dizer então, que se substitua a filosofia pela poesia. O que eu propus e proponho ainda é uma filosofia que seja essencialmente uma arte poética, criadora de força, de sabedoria e de beleza pela virtude dos conceitos.

ENCONTRO – Em que momento irrompeu o conto em sua obra literária, na feição original que encontramos, principalmente, em Le Bateleur?

ANTÓNIO TELMO
– De tudo quanto publiquei nos meus livros a coisa mais antiga é o conto A Dama de Ouros, que fui encontrar perdido entre os meus papéis dos anos moços quando, sete lustros mais tarde, reuni em Filosofia e Kabbalah outros escritos dispersos. Esse conto tem por núcleo irradiante o mistério da imaginação e a experiência pessoal desse mistério. As palavras com que escrevi ensinaram-me a conhecer melhor esse mesmo mistério e o que é dado na sua experiência.

ENCONTRO – Em que medida o vitalismo de Bergson coincidiu, no seu ensaio Arte Poética, com sua visão iniciática da Vida e da História?

ANTÓNIO TELMO – A minha visão iniciática da Vida e da História não vem de Bergson, mas sim de Álvaro Ribeiro e de Eudoro de Sousa que foram quem me mandou ler o filósofo francês. Servi-me dele para dizer a minha Arte Poética.



Henrique Bergson



ENCONTRO – Poderia explicar-nos de modo mais exotérico a obra de transmutação do mental em espiritual?

ANTÓNIO TELMO – Vejo que a sua pergunta não confunde mente com espírito e também que, na sua qualidade de poeta, admite entre ambos relações que podem ir até à transmutação do mental no espiritual.

É algo muito complicado porque a mente é o lugar onde se urdem as mentiras e o espírito é o sopro criador da verdade. Não podemos, porém, eliminar a mentira, dado que possuímos mente e por ela nos caracterizamos como homens (inglês: men). Não podemos nem devemos, como certas correntes místicas neo-orientalistas, condenar o pensamento em nome do inefável. «A razão é o espírito do homem», ensinava Álvaro Ribeiro para nos defender a nós, discípulos, dos animais e dos anjos. Por um motivo análogo, São Paulo ordenou às mulheres que cobrissem a cabeça dentro do Templo. Há aqui um grande mistério porque, já antes dele, os judeus ordenavam o mesmo, mas para os homens.

O supremo paradoxo artístico é, pois, este: dizer a verdade com a mentira. É o que acontece, no melhor exemplo, com os contos tradicionais. E o que é perturbante é que não há nenhum outro modo de dizer a verdade. Eis, com o supremo paradoxo, o supremo privilégio da arte.

ENCONTRO – Até que ponto a simbólica descida aos infernos teria a propriedade de distinguir a grande obra poética daquela que não conheceu a mesma experiência?

ANTÓNIO TELMO – Um poeta pode ter tido a experiência da descida aos infernos, mas, por este ou aquele motivo, não a tornar explícita nos seus versos. Convém por isso determinar o que seja essa experiência que simbolicamente aparece como uma descida aos infernos.

Sabe? Não aceito hoje, como nos meus trinta anos, a doutrina de Jung que compara a descida aos infernos à descoberta do subconsciente própria da psicanálise. Estava eu então «no meio do caminho da nossa vida» e tinha o espírito confuso como uma espessa floresta. A minha Arte Poética vale pelo último capítulo que foi escrito para a sua segunda edição há recentes anos. Não aceito aquela doutrina porque Eneias, que desce aos infernos para consultar o Pai sobre o futuro de Roma, Ulisses que ali vai interrogar Tirésias, o adivinho, e fala com a própria Mãe, Fausto que desce até onde estão as terríveis Mães para de lá trazer Helena, Jesus que dos infernos retirou os Patriarcas, Orfeu, Dante, Pascoaes não podem nem devem ser confundidos com o pobre indivíduo neurótico que se deixa conduzir por um sujeito mais ou menos louco, não por um homem com «um saber de experiências feito», mas por um experimentalista. Quem faz «a peregrina viagem», peregrina na expressão de Camões significativa da descida aos infernos que são Os Lusíadas, é sempre, nos relatos poéticos ou sagrados, um herói ou um deus, plenamente consciente e seguro de si enquanto se deixa guiar pelo Mestre interior, representado ou não na figura do homem. Compreende-se que Jesus Cristo a tenha feito sozinho. Também é verdade que mais vale só do que mal acompanhado.

Nos exemplos que dei de descidas aos infernos, há uma constante que devemos, sobretudo, ter em conta se quisermos saber o que, de facto, elas simbolizam. As palavras significativas dessa constante são PAI, MÃE, MÃES, PATRIARCAS. É, pois, uma descida até onde estão os progenitores. Não é este o momento próprio para discorrer sobre a memória do sangue, do nosso sangue onde residem os nossos antepassados. A verdade é que, se me salvo, salvo todos eles comigo. Eis que uma luz desponta para podermos vislumbrar o que seja a redenção por Jesus Cristo. Parece-me, porém, que não devemos conspurcar a sublime ideia que fazemos da relação com as matrizes do nosso ser imaginando essa relação como complexo de Édipo ou de Jocasta.






Com isto tudo, dirá que não respondi à sua pergunta. Mas alguma vez eu disse que não se pudesse ser grande poeta sem a experiência da descida aos infernos? Valha-nos Deus! As migalhas que caiem da mesa dos deuses também fazem parte do pão substancial.

ENCONTRO – Qual é a seu ver, a verdadeira missão da língua portuguesa no mundo?

ANTÓNIO TELMO - A meu ver, a língua portuguesa não provém, no essencial, do latim, porque é a expressão, para não dizer a criação, de um génio diferente. O latim deu a matéria, a base; a forma e o ácido vêm de outro lado. A resultante é a nossa língua, com a sua peculiar estrutura fonológica que, em tempos, estudei num livro à luz da Cabala. O pensamento deve ser possível, como em telepatia, independentemente das palavras, se é verdade o que ensinaram Plotino ou São Tomás de Aquino sobre a comunicação dos anjos; mas para o homem, que tem por espírito a razão poética, precisa da língua para pensar, pensa com palavras, isto é, desenvolve em imagens e conceitos as ideias que o intelecto superior lhe comunica. Se todos os homens pensassem do mesmo modo, isto é, se não houvesse como há formas de pensar heterogéneas em correspondência com as diferentes línguas, os anjos não teriam qualquer interesse em ensinar-nos ou em aprender connosco.

Dizendo de outro modo o mesmo: é no mundo intermediário, intermediário do mundo para Deus e de Deus para o mundo, que tudo se decide. Não é na terra; aqui todos são jogados. A filosofia portuguesa é uma criação da língua, é o que resulta da língua se pensar no espírito dos humanos. As suas teses, sobretudo os seus teoremas actuam no mundo intermediário, são tidas em consideração ali, pois, como ensinou Leibniz, «os anjos também investigam». Porque eu creio, com Fernando Pessoa e outros, meu caro Ângelo Monteiro, que, se explodir a Tarde do Mundo, essa tarde que V. tão bem definiu num dos seus poemas, «postiça tarde, sem o ocaso do Sonho ou o ocaso da morte», eu creio que uma Nova Terra nascerá tendo por matriz a matéria do mundo intermediário ou imaginal, «essa matéria de que os sonhos são feitos». E convém observar aqui que essa matéria é a luz que nos faz ver até quando dormimos.

ENCONTRO – Que lição, sobretudo para os europeus, mas também para os brasileiros, pode ser essencialmente extraída da filosofia portuguesa?

ANTÓNIO TELMO
– Faça o favor de tirar os brasileiros cuja língua é a mesma que a dos portugueses. Quanto a europeus, aos europeus de fora, creio que já estão aprendendo alguma coisa com o Fernando Pessoa e que, por fim, cansados de tecnologia e de progresso, venham pedir socorro a este povo subdesenvolvido e nos ajudem a expulsar os europeus de dentro tão desgraçadamente servis perante os estrangeiros, como muito bem sabe quem escreveu A Lavação da Burra.

ENCONTRO – Existe uma diferença fundamental entre a filosofia portuguesa e a filosofia europeia dominante?

ANTÓNIO TELMO
– Dada a variedade das correntes filosóficas europeias, não sei qual seja a filosofia dominante. O que aparece como dominante na Europa, na esfera do pensamento é a Ciência, isto é, o sistema das autoproclamadas ciências exactas. Mais do que filosofia europeia é filosofia mundial, a mãe da tecnologia e da telestesia, a filha da matemática experimentalista e laboratorial. Todos se curvam diante do seu poder e sabedoria. Para que pensar, se temos quem pense por nós e tudo resolva? Hoje estão os burgueses para a Ciência como outrora estavam para a religião. Hoje, a religião uniu-se à Ciência para não perder os burgueses. Por burgueses entendo todos, excepto o povo que já quase não existe.

Aqui, em Portugal, só têm direito de cidade para os nossos intelectuais os estudos que tragam anexada a palavra científicos. Quanto mais estúpido um trabalho, por exemplo, de análise literária mais científico, quanto mais científico mais credível. A isto e outras coisas a filosofia portuguesa bate o pé. Disse só isto: é necessário pensar em língua portuguesa. E disse isto: a língua portuguesa é superior à alemã. E ficou condenada porque a Alemanha dominou a Europa com a Ciência e estendeu-se para a América e daí desceu ao Brasil e está estragando a sua língua. Mas estamos preservados, porque o nosso mito essencial é o do Rei Encoberto.




ENCONTRO – Qual deva ser o papel da ocultação tanto na literatura como na filosofia?

ANTÓNIO TELMO
– Permita que lhe leia um trecho que escrevi em Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões a propósito da ocultação n’Os Lusíadas.

«O leitor comum nunca aceitará a existência de uma pluralidade de sentidos incluídos uns nos outros – profundidade da profundidade -, pela razão simples de que esse leitor é ainda para si mesmo alguém que tem em si um conhecimento à superfície, alguém que consiste por ora em alguma coisa que ainda se não reconheceu como mistério. Significa isto que há correspondência entre o grau do leitor na escala espiritual e o estrato profundo ou superficial que n’Os Lusíadas toca. Sendo assim, parece inútil e ilícito um estudo, como este nosso, de sondagem do que o poeta ocultou. Inútil, na medida em que também não será compreendido; ilícito, porque pretende mostrar aquilo que, por amor, o poeta ocultou, condição inevitável de quem pretende mostrar».

Eis aqui todo o sentido das palavras velar e revelar. Isto é tão verdade em poesia como em filosofia, é o que é próprio do que veridicamente se diz em literatura.

ENCONTRO – Como se situa o António Telmo ante a literatura portuguesa contemporânea? E também no quadro da literatura mundial?

ANTÓNIO TELMO – Tenho setenta e dois anos de literatura portuguesa contemporânea. Quando nasci, ainda viviam Pessoa, Régio e Pascoaes. Dos escritores vivos, os melhores não são por vezes os mais famosos, porque não dispõem de propaganda. Muitos só são escritores por imitarem escrever em português. Escrevem em português, mas pensam em alemão ou russo. Deviam ler A Lavação da Burra. Como fui criado dentro do grupo da filosofia portuguesa, é natural que toda a minha simpatia vá para aqueles plumitivos que vêem em Portugal, com o Agostinho da Silva, um dos nomes de Deus. Não é que eu não saiba que há uma filosofia perene anterior às línguas e às nações. René Guénon é muito lido entre nós. Há sempre um francês no coração de cada escritor português. Junqueiro e Pascoaes tinham Victor Hugo, Leonardo Coimbra ensinava entusiasmado Bergson. Descartes e Comte explicam quase tudo quanto aconteceu em Portugal antes da invasão germano-russa. Só Fernando Pessoa foi uma excepção. Tinha literariamente duas nacionalidades, a portuguesa e a inglesa. Pergunta-me como é que eu me situo no meio disto tudo. Sei lá! Prefiro a todos os livros que nos chegam do estrangeiro os de Gustavo Meyrink, um romancista quase desconhecido que Jorge Luís Borges traduziu para a Argentina e que constitui a melhor versão actual de Henrique Corneille-Agrippa, autor de um famoso tratado de Filosofia Oculta escrito no século XVI (in Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005, pp. 77-83).



Victor Hugo



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

O inimigo é um só

Escrito por Olavo de Carvalho








Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2007

O marxismo não começou com Marx e não nasceu de nenhum estudo científico da economia. Tudo o que Karl Marx viria a pensar e dizer – com exceção do pretexto materialista-dialético e das estatísticas que ele falsificou dos célebres Blue Books do parlamento britânico – já estava nas doutrinas dos heresiarcas messiânicos desde o século XIV. Tudo: a luta de classes, a revolução, a socialização dos meios de produção, a ditadura do proletariado, a missão da vanguarda revolucionária. Até as idéias de Lênin e de Gramsci já estão ali claramente antecipadas.

John Knox, John Huss, Thomas Münzer e outros “profetas” das origens da modernidade não são apenas precursores do movimento revolucionário mundial: são seus criadores. As homenagens entre ambíguas e reticentes que lhes são prestadas de tempos em tempos por tal ou qual intelectual esquerdista só servem para inflar as contribuições da esquerda mais recente, diminuindo a daqueles pais fundadores mediante o artifício de jogá-los para trás numa série histórica supostamente ascendente em cujo topo se encontra sempre, é claro, o autor da homenagem.

A idéia central da revolução messiânica pode-se resumir em quatro pontos: (I) a humanidade pecadora não será salva por Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por ela mesma; (II) o método para alcançar a redenção consiste em matar ou pelo menos subjugar todos os maus, isto é, os ricos; (III) os pobres são inocentes e puros, mas não entendem seu lugar no projeto da salvação e por isso têm de colocar-se sob as ordens de uma elite dirigente, os “santos”; (IV) o morticínio redentor gerará não somente a melhor distribuição das riquezas, mas a eliminação do mal e do pecado, o advento de uma nova humanidade.

Uma heresia não é “outra religião”: é, por definição, uma oposição interna, nascida de dentro do próprio cristianismo, em geral mediante algum enxerto exótico que distorce completamente a mensagem originária e lhe dá os sentidos mais estapafúrdios que se pode imaginar. (1) Não é de estranhar, pois, que a evolução subseqüente do movimento revolucionário fosse marcada por uma permanente tensão entre a fé herética e a negação de toda fé, entre o pseudocristianismo e o anticristianismo, entre a ambição de destruir o cristianismo e o desejo de conservar algo dele para poder parasitar a sua autoridade. Esse jogo dialético confunde o observador leigo, que iludido pelas diferenças aparentes perde de vista a unidade profunda do movimento revolucionário e acaba não raro servindo a uma das suas subcorrentes acreditando piamente servir a um propósito contra-revolucionário, conservador ou até mesmo cristão ou judaico no sentido estrito dos termos.

Extinta a epidemia das revoluções messiânicas, a segunda onda do movimento revolucionário assume a forma do anticristianismo e antijudaísmo explícitos. Os iluministas do século XVIII não só pregaram abertamente a eliminação dessas duas fés tradicionais, mas não hesitaram em inventar contra elas as mentiras mais aberrantes, achando isso lindo e divertindo-se a valer. As polêmicas anticristãs de hoje em dia parecem até primores de polidez quando comparadas à virulência da invencionice setecentista (2). Cada vez mais parece confirmar-se a tese do abade Antonin Barruel, exposta na sua Histoire du Jacobinisme (1798) , de um plano urdido entre Voltaire, d'Alembert, Diderot e o imperador Frederico II da Prússia para uma vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis.





O caso de Diderot é particularmente ilustrativo. Em A Religiosa ele conta a história de uma pobre moça mantida num convento contra a vontade. A imagem abominável das freirinhas prisioneiras, posta em circulação por ele e por outros iluministas muito antes da publicação póstuma do livro em 1796, tornou-se um símbolo condensado de todos os crimes que o furor da propaganda anticristã atribuía à Igreja. Na voragem da Revolução de 1789, o símbolo transfigurou-se em crença literal. Muitos dos revolucionários que invadiam conventos, matando monges e freiras a granel, juravam piamente estar fazendo isso para libertar as virgens encarceradas que, segundo imaginavam, deviam superlotar os porões dos claustros. Quando oitenta abadias, monastérios e casas de religiosas de Paris já tinham sido invadidos e muito sangue derramado, a Assembléia Constituinte, perplexa, recebeu a notícia de que por toda parte as freiras e noviças tinham sido unânimes em proclamar a fidelidade ao seu estado, mesmo quando já iam subindo a escada da guilhotina. Tal era o espírito das “prisioneiras”.

Diderot, embora morresse cinco anos antes da Revolução, não pode no entanto ser facilmente desculpado pelos efeitos criminosos de um ódio que ele instigou conscientemente. Não o pode, sobretudo, porque ele sempre esteve informado de que não havia e não podia haver nenhuma prisioneira nos conventos, de que todas as freiras estavam ali por vontade própria, inclusive aquela em que ele se inspirou para escrever o romance, a irmã Delamarre, do convento de Longchamps. Foi tudo uma falsificação premeditada.

Durante muito tempo, o mundo inteiro acreditou na versão de Diderot, que afirmava ter em seu poder a documentação completa do caso Delamarre. De fato, o dossiê estava nas mãos dele, mas desapareceu logo depois de publicado o romance. Reencontrado em 1954 pelo pesquisador George May, sua leitura mostra que Diderot estava ciente dos seguintes fatos:

1) Em Paris havia quatro tribunais, eclesiásticos e civis, para julgar solicitações de dispensa da carreira monástica, e a regra geral era atender a todos os pedidos.

2) A seleção das monjas era rigorosíssima. O empenho da Igreja era livrar-se das falsas vocações, e não retê-las à força.

3) Exatamente ao contrário de uma prisioneira do convento, a irmã Delamarre era a porteira, tinha as chaves e podia entrar e sair quando quisesse.

4) O único processo aberto pela sra. Delamarre era uma pendência de espólio com uma parente. Para receber a herança, um título nobiliárquico, a freira tinha de deixar a ordem religiosa. Mas logo depois, tendo desistido de disputar o legado, ela voltou alegremente ao convento.

Diderot sabia de tudo isso, e a correspondência entre ele e seu amigo Jacob Grimm mostra que o romancista “estourava de rir” (sic), com a falsificação meticulosa que ia armando em torno da história. Divertia-se não só com a alegria feroz de caluniar, mas chegava ao requinte de uma crueldade mental muito mais direta. Ao marquês de Croismarre, cristão piedoso que entre lágrimas lhe escrevia preocupado com a sorte da moça, Diderot respondia com invencionices inquietantes, enfatizando os sofrimentos da infeliz no claustro e degustando até o fim o prazer de manter angustiado o pobre homem. Não espanta que Diderot fosse o escritor predileto de Karl Marx, outro sociopata sádico.

Outros documentos encontrados por Georges May, posteriores ao falecimento de Diderot, mostram que a irmã Delamarre morreu trinta anos depois do romancista, ainda como porteira do convento, após ter enfrentado bravamente, ao lado de suas irmãs, os comissários da Revolução. A única opressão que ela sofrera viera pelas mãos dos inimigos da Igreja. (3)









Se eu fosse enumerar e analisar todas as mentiras inventadas pelos iluministas contra os cristãos e os judeus, um ano inteiro de edições do Diário do Comércio não bastaria para comportá-las. Mas o fato é que essas mentiras atravessaram os séculos, impregnaram-se profundamente na imaginação popular, ressurgindo sob novas e variadas formas e servindo para legitimar o massacre dos cristãos na Rússia e dos judeus na Alemanha. Intelectuais e artistas de grande prestígio não hesitam em colaborar com esse crime hediondo. Tudo sobre o caso Delamarre já era arquiconhecido dos historiadores quando, em 1970, o filme de Jean-Luc Godard, La Religieuse, renovou o efeito do símbolo odioso inventado por Diderot.

Mas – voltando ao argumento central -, o advento dos jacobinos ao poder ocasionou a mudança de pólo da tensão dialética: da propaganda anticristã passou-se ao esforço aberto de criar um simulacro de cristianismo para consumo das multidões revolucionárias. A retórica do Terror imita de perto a dos pseudoprofetas messiânicos: a idéia do apocalipse terreno, a condenação radical do capitalismo, a purificação do universo pela matança dos ricos, a missão privilegiada dos “santos”, o retorno da humanidade a uma era de pureza originária – tudo aí ressurge, mas agora com o Contrato Social de Rousseau como texto sagrado em vez dos Evangelhos. Cada vez mais a imitação caricatural do ethos cristão adquire autonomia, desligando-se do sentido patente da mensagem de Cristo e parasitando sentimentos morais profundamente arraigados na população cristã para torná-los instrumentos de legitimação do terrorismo estatal, sob a inspiração – como escreveu Thomas Carlyle – “do quinto e novo evangelista, Jean Jacques, conclamando todos e cada um a que emendassem a existência pervertida do mundo”.

Luciano Pellicani, no seu estudo sobre Revolutionary Apocalypse. The Ideological Roots of Terrorism (London, Praeger, 2006), que pretendo comentar em detalhe numa das próximas colunas, observa: “Assim a elite revolucionária, agindo na base do diagnóstico-terapia dos males do mundo contido na ‘verdadeira filosofia', vem a assumir o papel típico do Paracleto na tradição gnóstica: só ele sabe o que é bom para a cidade.” Fundada nessa autoridade onissapiente, a salvação tem de assumir a forma do morticínio redentor. Robespierre deixa isso bem claro: “O governo popular... é ao mesmo tempo Virtude e Terror. O Terror nada mais é que a justiça severa e inflexível. É portanto uma emanação da Virtude.” Pellicani conclui: “Esse conceito da redenção da humanidade exige uma sociedade organizada como se fosse um convento militarizado.” A fórmula ressurgirá nos padres-guerrilheiros da teologia da libertação e nos projetos mais recentes do “arcebispo” Hugo Chávez.

Mas, muito antes disso, o pêndulo da revolução oscilará uma vez mais para o outro lado. Findo o ciclo jacobino, com o advento do império napoleônico, da Restauração e da democracia burguesa, as novas fórmulas da ideologia revolucionária, com Marx e Bakunin, fazem um upgrade do anticristianismo, transfigurando-o em ateísmo militante. Karl Marx professa “odiar todos os deuses” e define o ateísmo como “a negação de Deus, por meio da qual se afirma a existência do homem”. Deus, para o marxismo, inspirado nesse ponto em Feuerbach, surge da auto-alienação dos poderes do homem projetados num céu metafísico – como se o homem tivesse criado o céu e a terra e depois se esquecido disso, transferindo as honras para uma entidade inexistente: teoria suficientemente idiota para parecer sedutora a milhões de intelectuais.



Com a ascensão do ateísmo, multiplicam-se as matanças de padres e crentes em medida jamais sonhada pelo próprio Robespierre. Entre a guerra civil mexicana (1857) e o início da II Guerra Mundial (1939), não menos de vinte milhões de cristãos morreram em perseguições religiosas destinadas, segundo Lênin, a “varrer o cristianismo da face da terra”. E o massacre dos judeus nem havia começado ainda.

Mas talvez o ateísmo não seja o traço mais autêntico dessa etapa do movimento revolucionário. Tanto Marx quanto Bakunin tomaram parte, reconhecidamente, em rituais satânicos (leiam Richard Wurmbrand, Marx and Satan, Living Sacrifice ,Book Company, 1986, jamais contestado). E pelo menos na Itália a apologia de Satanás tornou-se explícita com o poeta Giosue Carducci, um dos maiores inspiradores do movimento revolucionário local:



Salute, o Satana
O ribellione
O forza vindice
De la ragione! (4)


Qualquer que seja o caso, o impacto das matanças acabou por incomodar os próprios revolucionários, que, nos anos 30, já estavam pensando em algum meio de contorná-la. Antonio Gramsci, nos “Cadernos do Cárcere”, ensina que a Igreja não deve ser combatida, mas esvaziada de seu conteúdo espiritual e usada como caixa de ressonância da propaganda comunista. O sucesso obtido posteriormente nesse empreendimento pode-se medir por dois fatos:

1) A influência avassaladora que os comunistas conseguiram exercer desde dentro e desde fora sobre o Concílio Vaticano II, dividindo a Igreja Católica e ocasionando a maior evasão de fiéis em dois milênios de catolicismo. (5)

2) O Conselho Mundial das Igrejas, a maior organização protestante do mundo, que congrega centenas de igrejas em todos os países, nominalmente para objetivos “ecumênicos”, é notoriamente uma entidade pró-comunista, que apóia e subsidia movimentos revolucionários terroristas. (6) Os vários Conselhos Nacionais das Igrejas são entidades independentes, mas pelo menos o dos EUA é ainda mais abertamente pró-comunista do que o Mundial. (7)





Paralelamente e em estreita associação informal com os esforços comunistas, veio-se desenvolvendo, desde os fins do século XIX, um movimento mundial destinado a criar a maior confusão religiosa possível através da propaganda ocultista em massa e da revivescência forçada do gnosticismo. Fenômenos como o surto de orientalismo pseudomístico da Nova Era, o culto das drogas como “via de iluminação interior”, a onda de experimentos psíquicos perigosos que partiu de Esalem (CA) e se espalhou pelo mundo, a proliferação de seitas empenhadas em escravizar seus discípulos através de práticas mentais destrutivas, podem ser apresentados ao público como uma convergência espontânea de tendências ou como uma fatalidade histórica impessoal ditada pelo “espírito do tempo”, mas basta pesquisar um pouco as fontes para descobrir que se trata de uma iniciativa unitária, organizada e bilionariamente financiada pelas mesmas forças auto-incumbidas de transformar a ONU em governo mundial até no máximo o fim da próxima década. (8)

A oscilação dialética e pendular do movimento revolucionário entre a anti-religião e a pseudo-religião, somada à multiplicidade alucinante das correntes que o alimentam, desorienta a quase totalidade do público. A ânsia de tomar posição, infindavelmente alimentada pela mídia e pelo sistema escolar, leva muita gente a apoiar movimentos e idéias cuja ligação com a corrente central não parece evidente à primeira vista. Quantos cristãos conservadores, querendo salvar a Igreja, não aderiram a idéias antijudaicas, por imaginar que a revolução era essencialmente obra de judeus? Quantos intelectuais judeus não se filiaram a partidos revolucionários, sem notar que com isso cavavam a sepultura do seu povo? Quantos protestantes, confundindo o catolicismo com a sua contrafação revolucionária, não acham que o melhor que têm a fazer é destruir a Igreja Católica? Quantos católicos, embriagados de pureza doutrinal não vêem o americanismo como um inimigo, movendo portanto guerra contra a única nação que criou uma síntese funcional de cultura cristã, economia próspera e democracia política? Quantos adeptos da democracia capitalista não se inspiram em idéias iluministas por lhes parecerem equilibradas e racionais, sem saber que, pelo seu conceito redutivista da razão, elas contêm em seu bojo a semente do irracionalismo revolucionário romântico, e sobretudo sem notar que o iluminismo, com toda a sua aparência elegante e educadinha, criou a primeira campanha de difamação anticristã organizada, pondo em circulação mentiras escabrosas que até hoje milhões de idiotas repetem como papagaios em todo o mundo? Quantos defensores das posições liberais em economia não acreditam poder conciliá-las com um ateísmo militante que, corroendo os fundamentos espirituais e morais do capitalismo, o convidam a transformar-se precisamente na “idolatria do mercado” que a propaganda comunista o acusa de ser, e assim ajudam a transferir aos revolucionários, bem como aos radicais islâmicos, o monopólio da autoridade moral? Escolhendo o inimigo conforme as feições mais salientes que se oponham às suas preferências subjetivas, todas essas pessoas não fazem senão botar lenha na fogueira da tensão dialética da qual o movimento revolucionário mundial se alimenta e se fortalece. Na verdade o inimigo é um só. Não se pode combatê-lo eficazmente sem apreender sua unidade por trás da variedade alucinante das suas versões, encarnações e aparências. Algumas décadas atrás, essa unidade era difícil de enxergar, pois não havia documentação suficiente para prová-la. Hoje suas provas são tão abundantes, que continuar a ignorá-la começa a se tornar uma espécie de cumplicidade criminosa. (9)








NOTAS:

(1) O amor apaixonado que muitos intelectuais de hoje em dia têm por essas aberrações revela não somente seu ódio ao cristianismo, seu desejo de exterminá-lo por todos os meios possíveis, mas uma falta de inteligência que raia o monstruoso. Bart D. Ehrman, o badalado autor de The Lost Gospel of Judas Iscariot. A New Look at Betrayer and Betrayed (Oxford University Press, 2006), por exemplo, não é senão um fanático gnóstico travestido de erudito universitário, apto a realizar pesquisas filológicas em várias línguas antigas mas incapaz de atinar com as contradições mais pueris do seu próprio texto. Para esse tipo de estudioso, empenhado em impugnar os evangelhos originais com base em textos gnósticos escritos dois séculos depois deles, estão sempre abertas as cátedras universitárias, a NBC, o History Channel, o National Geographic e a mídia chique inteira, pela simples razão de que essas instituições são financiadas e dirigidas pelo mesmo núcleo de bilionários empenhados em fabricar uma religião biônica para substituir o cristianismo no terceiro milênio (v. nota 8).

(2) Vejam, sobre isso, Paul Hazard, La Pensée Européenne au XVIIIe. Siècle (Paris, Boivin, 1946), um clássico da história das idéias.

(3) Sobre o episódio, leiam Jean Dumont, La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège, Paris, Criterion, 1984.

(4) “Salve, ó Satanás, ó rebelião, ó força vingadora da Razão!” Da ode “A Satana”, que os conhecedores do italiano podem ler em http://digilander.libero.it/interactivearchive/carducci_satana.htm.

(5) V. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, Madridejos (Toledo), Fénix, 1995, e La Hoz y la Cruz. Auge y Caída del Marxismo y la Teología de la Liberación, id., ibid., 1996.

(6) V. Bernard Smith, The Fraudulent Gospel. Politics and the World Council of Churches, London, The Foreign Affairs Publishing Co., 1977.

(7) Confira em C. Gregg Singer, Unholy Alliance. The Definitive History of the National Council of Churches and Its Leftist Policies - From 1908 to the Present, em http://www.freebooks.com/docs/39be_47e.htm.

(8) V. extensa documentação sobre isto em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.

(9) A questão do lugar ocupado pelo islamismo no processo aqui descrito requer um exame em separado, que será feito num dos próximos artigos.