segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

De Charlot a Chaplin

Escrito por Orlando Vitorino






1. Há quem prefira o Charlot, palhaço, mudo, sempre extremamente indignado com a injustiça dos poderosos, das máquinas e das organizações, sempre extremamente enternecido com a variada inocência das crianças, das adolescentes virginais e da natureza. Mas há nessa preferência qualquer coisa de saudade de nós próprios, de uma infância perdida, de que Charlot foi, para a maior parte dos nossos contemporâneos, o último boneco ou o último brinquedo.

2. Até quando pôde, Chaplin deixou-se ser esse boneco articulado e mudo, até quando o cinema fez sentir o maquinismo no momento das personagens e para mais do que até quando as suas personagens não tinham voz.

Mas na infância perdida se esquece e se deixa a natural inocência que só a palavra pode substituir e transcender. O boneco sabiamente, fez-se homem, o palhaço cedeu ao actor como a pantomima à representação, e às situações extremas do riso e das lágrimas, da farsa grotesca e da tragédia melodramática substituiu-se a serena ironia intelectual quando se trata da inocência (veja-se a discussão entre o rei e a criança no colégio de Nova Iorque), ou a radical negatividade do humor quando se trata da injustiça (que é o que domina, veja-se, todo o «M. Verdoux»).




3. Fora de uma «carpintaria» espectacular ninguém se lembrará de refutar a superioridade da ironia e do humor sobre o melodrama e a farsa. No que consiste tal superioridade é nisso mesmo, de estas últimas dispensarem a palavra enquanto aquelas só pela palavra se podem manifestar. Compare-se uma cena de farsa e uma cena de ironia em seus exemplos extremos: a farsa do polícia que ensina a um professor as regras do trânsito rigorosamente deverá evitar o uso de palavras; a ironia de Sócrates que ensina ao escravo Ménon a ignorância e a ciência, só pode exprimir-se através da palavra: «Repara, Ménon, que nada mais faço senão interrogar».

4. Não pode, porém, o escravo ser interrogado sobre a sua situação de escravo (ou sobre a injustiça que é o assunto de metade da obra e da figura de Charlot) porque a interrogação se dirige, precisamente, ao homem livre ou, em termos socráticos, ao que no homem é livre, ao conhecer-se ignorante para poder conhecer-se a si mesmo.

Substituindo o palhaço pelo actor, o boneco mudo pela personagem que fala, Chaplin substituiu, ou, melhor, desenvolveu a luta contra a injustiça na luta pela liberdade. Diríamos para cá, entre nós, que o socialista cedeu ao anarquista se C. Chaplin não fosse, sobretudo, como desde Sócrates todos os ironistas, um mestre da libertação psicológica, anímica, reflexiva.

5. O monstro que, em defesa da liberdade, Chaplin combate neste «Rei em Nova Iorque» , é a propaganda, e conduz tal combate através da destruição dos sofismas que a constituem. Esses sofismas consistem no seguinte: a propaganda começa num juízo a que se não dá nem pode dar qualquer fundamento. Por exemplo: esta pasta de dentes é a melhor do mundo. Porque não tem fundamento, este juízo é indiscutível ou seria vão discuti-lo; e porque se não pode discutir, é um juízo definitivo, ou seja, inapelável.




Da propaganda não viria grande mal ao mundo se o seu inicial juízo apenas se referisse a pastas de dentes ou a coisas como pastas de dentes. Mas os seus sofismas alargam-se a outros domínios e pretendem atingir até aquela liberdade que o escravo Ménon possuía. O próprio Chaplin nos tem dado outros exemplos da mesma propaganda. Este: se desço o passeio com o pé esquerdo. Logo nos EUA haverá quem judique: este homem é comunista, se desço o passeio com o pé direito, logo na Rússia haverá quem judique: este homem é fascista. Assim se obtém o juízo final, e como o descer do passeio o não possibilita, trata-se de um juízo sem fundamento, logo indiscutível, logo inapelável.

Em Portugal (queremos dar um exemplo nosso, mas como havemos de o dar ironicamente?) é a vida cultural que está sendo sujeita ao processo da propaganda. Por motivos de grupo dominante ou homogéneo, de amizade ou de hostilidade política de ser da extrema-direita (que entre nós se considera direita), e de ser da direita (que entre nós se considera esquerda), por motivos, portanto, que não são fundamentos, judica-se: este livro é o melhor, este autor ganha o prémio, este livro é o pior, este autor silencia-se. Alberto de Lacerda, há dias, sem se referir ao filme de Chaplin, comparava os escritores portugueses às vedetas de Hollywood.

6. Proibida a discussão, proclama-se como atributo da verdade isso mesmo de não ser discutida. E o que nos ocorre é o «Ensaio sobre a Liberdade», de Stuart Mill: «Os que julgam defender a liberdade impedindo os homens de a discutir, o que conseguem é apenas transformá-la em superstição» (in Diário de Notícias, ano 98, n.º 34607, Lisboa, 1960, pp. 76-82).














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