sexta-feira, 30 de março de 2012

Islão e Cristandade (i)

Escrito por Frithjof Schuon




Frithjof Schuon


«(…) o modo racional de conhecimento jamais ultrapassa o domínio das generalidades, nunca chegando a atingir qualquer verdade transcendente. Pode, porém, servir de modo de expressão a um conhecimento supra-racional, como foi o caso da ontologia aristotélica e escolástica, mas sempre ocorrerá em detrimento da integridade intelectual da doutrina. Alguns talvez objectem que a metafísica mais pura se distingue por vezes pouco da filosofia; que, como esta, faz recursos a argumentos e parece chegar a conclusões. Mas tal semelhança só se apoia no facto de que todo o conceito, desde que é expresso, se reveste forçosamente dos modos do pensamento humano, que é racional e dialéctico. O que distingue aqui essencialmente a proposição metafísica da proposição filosófica é que a primeira é simbólica e descritiva – no sentido em que se serve dos modos racionais como de símbolos para descrever ou traduzir conhecimentos que comportam mais certeza do que qualquer outro conhecimento de ordem sensível -, enquanto a filosofia, a que não foi em vão que se chamou ancilla theologiae, nunca é mais do que aquilo que exprime».

Frithjof Schuon («A Unidade Transcendente das Religiões»).


«As palavras faladas são símbolos das afecções de alma, e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é igual em toda a parte, também as palavras faladas não são as mesmas em toda a parte, ainda que as afecções de alma de que as palavras são signos primeiros, sejam idênticas, tal como são idênticas as coisas de que as afecções referidas são imagens».


Aristóteles («Periérmeneias»).


«(...) mesmo nas coisas que são intuídas pela mente, em vão todo aquele que as não pode intuir, ouve as palavras do que as intui, à parte ser útil acreditá-las enquanto se ignoram. Todo aquele porém que as pode intuir, esse interiormente é discípulo da Verdade, e exteriormente é juiz daquele que fala, ou melhor, da mesma locução, pois ele muitas vezes sabe as coisas que se disseram, quando as ignora aquele mesmo que as disse.




Santo Agostinho e o mistério da Santíssima Trindade



Suponhamos por exemplo que alguém, acreditando nos epicuristas, e julgando que a alma é mortal, expõe os argumentos que sobre a sua imortalidade foram elaborados por homens mais sábios, e que o está a ouvir uma pessoa capaz de intuir coisas espirituais. Esta pessoa julga que o tal epicurista diz coisas verdadeiras, mas o que as diz ignora se diz coisas verdadeiras, ou até as julga falsíssimas. Dever-se-á então pensar que ele ensina o que não conhece? Entretanto, usa das mesmas palavras de que também poderia usar, se fosse conhecedor...».

Santo Agostinho («O Mestre»).


«O mundo da natureza consiste em múltiplas formas reflectidas num único espelho. Não, melhor dizendo, é antes uma única forma reflectida em múltiplos espelhos».


Muhy-d-Dîn Ibn'Arabî



«Chamado Muhyî al-Dîn, isto é , Vivificador da Religião - para opor às eventuais mortificações derivadas que o averroísmo causara - Ibn Arabí deve definir-se em primeiro lugar pelo que não foi: nem um pensador do kalâm, nem um faylasûf ao modo aristotélico. O termo omisso define o que foi, um místico que, à prática, aditou a teoria da mística. (...) Ibn Arabí parte de um cepticismo acerca do entendimento humano para conhecer o que mais importa. O princípio do conhecimento consiste em negar a capacidade humana para o conhecimento divino só por humanos meios. O conhecimento é, porém, aquisitivo, destinado a conhecer as duas categorias do Ser: o Ser em si mesmo, e o ser criado».

Pinharanda Gomes («A Filosofia Arábigo-Portuguesa»).





Ibn Arabí









Islão e Cristandade


Indo ao fundo do problema, é-se obrigado a constatar – posta de parte toda e qualquer questão dogmática – que a causa da incompreensão intrínseca entre cristãos e muçulmanos reside no seguinte facto: o cristão vê sempre diante si a sua própria vontade. Essa vontade a que ele vem praticamente a reduzir-se -; acha-se, pois, perante um espaço vocacional indeterminado, espaço no qual ele se pode lançar dando largas à sua fé e ao seu heroísmo. Deste modo, o sistema islâmico de prescrições «externas», devidamente ponderadas e calculadas, surge a seus olhos enquanto expressão de uma mediocridade disposta a todas as concessões e incapaz de qualquer espontaneidade, de todo e qualquer impulso próprio ou voo espiritual. Em teoria – pois, na prática, ignora-se em absoluto -, a virtude muçulmana parece-lhe assim coisa superficial e vã. A perspectiva do muçulmano é radicalmente outra: ele tem perante si, perante a sua inteligência – inteligência que tomou uma opção, que escolheu o Único -, não um espaço volitivo, espaço que surgiria a seus olhos como uma tentação de aventura individualista, mas sim toda uma rede de canais divinamente predispostos com vista ao equilíbrio da sua vida volitiva. Este equilíbrio, longe de ser um fim em si, contrariamente ao que o cristão costuma pressupor habituado que está a um idealismo voluntarista mais ou menos exclusivo, não passa, em última análise, de uma base destinada a permitir-lhe evitar, no âmbito da contemplação pacificadora do Imutável, símbolo de serenidade e libertação, as incertezas e a turbulência do ego. Resumindo: se a atitude de equilíbrio que o Islão busca e concretiza surge aos olhos dos cristãos como mais não sendo que mediocridade calculista, incapaz de sobrenatural, também o idealismo sacrificial do Cristianismo corre o risco de ser mal interpretado pelo muçulmano, de ser por ele encarado enquanto individualismo egoístico, desdenhoso desse dom divino que a inteligência é. E, caso nos objectem que o muçulmano comum pouco se preocupa com contemplação, responderemos que o cristão médio também não se incomoda por aí além com a questão do sacrifício. A verdade é que, tal como todo o cristão acalenta no fundo da sua alma um impulso sacrificial, impulso que talvez nunca venha a assumir, também todo o muçulmano possui, por via da sua própria fé, uma predisposição para a contemplação, muito embora uma tal contemplação talvez nunca chegue a manifestar-se dentro de si, a despontar no seu coração. Mas, para lá disso, alguns poderiam contrapor que os místicos cristãos e muçulmanos, longe de serem tipos opostos, apresentam, bem pelo contrário, analogias de tal modo flagrantes que já se julgou pertinente concluir pela ocorrência de adopções, tanto unilaterais como recíprocas. A isso responderemos que, se se supõe que o ponto de partida dos sufis foi o mesmo do dos místicos cristãos, coloca-se então a questão de saber porque é que eles permaneceram muçulmanos e como é que suportaram continuar a sê-lo. Na realidade, eles não eram santos «apesar» da sua religião, mas sim «por via» dessa mesma religião. Longe de terem sido cristãos disfarçados, os Hallâj e os Ibn Arabi mais não fizeram, pelo contrário, que levar possibilidades latentes do Islão ao seu auge, tal como o tinham feito, aliás, os seus grandes predecessores. A despeito de determinadas aparências, como seja a ausência do monaquismo enquanto instituição social, o Islão, preconizando a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, comporta em si todas as primícias de uma ascese contemplativa.




Quando o cristão ouve a palavra «verdade», pensa de imediato no facto de que «o Verbo se fez carne», ao passo que o muçulmano, ao ouvir esta mesma palavra, pensa a priori que «não existe qualquer divindade à margem da própria Divindade», algo que, consoante o seu grau de conhecimento, interpretará ou em termos literais, ou em termos metafísicos. O Cristianismo baseia-se num «acontecimento», o Islão num «ser», numa «natureza das coisas». Aquilo que no Cristianismo surge como um facto único, designadamente a Revelação, tornar-se-á no Islão a manifestação ritmada de um Princípio (1). Se, para os cristãos, a verdade está no facto de Cristo se ter deixado crucificar, já para os muçulmanos – para quem a verdade está no facto de apenas existir um só Deus – a crucificação de Cristo não pode, pela sua própria natureza, ser «a Verdade», consistindo a rejeição muçulmana da cruz numa forma de expressar semelhante convicção. O «anti-historicismo» muçulmano – que, por analogia, poderíamos qualificar de «platónico» ou de «gnóstico» - culmina precisamente numa tal rejeição, no fundo meramente externa, até mesmo duvidosa, pelo menos para alguns, em termos de intenção (2).

A atitude reservada do Islão, não perante o milagre, antes perante o apriorismo judaico-cristão – e sobretudo cristão – do milagre, explica-se pela predominância do pólo «inteligência». Com efeito, o Islão entende fundamentar-se na evidência espiritual, no sentimento de Absoluto, e isto em conformidade com a própria natureza do homem, a qual é aqui encarada enquanto inteligência teomorfa, não enquanto vontade que apenas espera a vir seduzida no bom ou no mau sentido, logo, por milagres ou por tentações. Se o Islão, a última das recém-chegadas na série das grandes Revelações, não se fundamenta no milagre – muito embora tenha necessariamente de o admitir, sob pena de deixar de ser uma religião -, isso deve-se igualmente ao facto de que o Anticristo «a muitos reduzirá pelos seus prodígios» (3). Ora, acontece que a certeza espiritual, achando-se nos antípodas da «inversão» produzida pelo milagre – e que o Islão oferece sob a forma de uma lancinante fé unitária, de um agudo sentido do Absoluto -, é um elemento inacessível ao demónio. Este pode imitar um milagre, mas não uma evidência intelectual, pode imitar um fenómeno, mas não o Espírito Santo, excepção feita no caso daqueles que desejam ser enganados, e que, de qualquer das formas, não possuem nem o sentido da verdade, nem o do sagrado.






Aludimos mais atrás ao carácter não histórico da perspectiva do Islão. Um tal carácter permite explicar, não só a intenção de mais não ser que mera repetição de uma realidade intemporal ou simples fase de um ritmo anónimo, logo, uma «reforma» - porém, isto apenas no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, inclusive num sentido de transposição, visto que uma autêntica Revelação é forçosamente espontânea, proveniente apenas de Deus como de facto é, sejam quais forem as aparências -, mas também noções como a da criação contínua, pois se Deus não fosse sempre Criador, autor de uma criação a cada instante renovada, o mundo desmoronar-se-ia. Ora, visto Deus ser sempre Criador, criador contínuo e permanente, é Ele quem intervém em todos os fenómenos, não havendo, pois, causas segundas, princípios intermédios, leis naturais que possam interpor-se entre Deus e o facto cósmico, salvo no caso do homem que, sendo o representante (imâm) de Deus na Terra, possui os dons miraculosos que a inteligência e a liberdade representam. Contudo, em última análise estas também não escapam à determinação divina: assim, o homem escolhe livremente obedecer ou não àquilo que Deus quer, mas «livremente» apenas porque Deus assim o quer, e isto já que Deus não pode deixar de manifestar, no âmbito da ordem contingente, a Sua absoluta Liberdade. A nossa liberdade é assim real, porém, de uma realidade tão ilusória quanto a relatividade em que se vem a manifestar, relatividade na qual não passa de um mero reflexo d’Aquilo que existe, d’Aquilo que é.

Ao fim e ao cabo, a diferença intrínseca entre o Cristianismo e o Islão surge de forma bastante clara naquilo que cristãos e muçulmanos respectivamente detestam. No caso cristão, revela-se odioso, primeiro, a rejeição da divindade de Cristo e da Igreja, depois, todas as morais que sejam menos ascéticas do que a sua, isto sem falar já da luxúria. Quanto ao muçulmano, odeia a rejeição de Alá e do Islão, pois a Unidade suprema, assim como o carácter absoluto e a transcendência desta, surgem a seus olhos fulgurantes de evidência e de majestade, além de que o Islão, a Lei, representa para si a própria Vontade divina, a emanação lógica – em termos de equilíbrio – dessa Unidade. Ora, a Vontade divina – e é sobretudo aí que nos surge toda a diferença – não coincide forçosamente com o aspecto sacrificial, podendo mesmo, conforme os casos, «aliar o útil ao agradável». Por conseguinte, o muçulmano dirá: «É bom aquilo que Deus quer» e não: «O doloroso é aquilo que Deus quer». Logicamente, o cristão é da mesma opinião que o muçulmano, só que a sua sensibilidade e imaginação tendem mais para a segunda fórmula. No âmbito do islamismo, a Vontade divina tem em vista, não a priori o sacrifício e o sofrimento enquanto penhores de amor, mas sim o desenvolvimento da inteligência deiforme (min Rûhî, «do Meu Espírito»), inteligência determinada pelo Imutável, inteligência que, consequentemente, engloba em si todo o nosso ser, caso contrário incorrer-se-ia em «hipocrisia» (nifâq), visto que conhecer é existir, conhecer é ser. Na realidade, as aparentes «facilidades» do Islão tendem para um equilíbrio – já antes o dissemos -, um equilíbrio cuja razão suficiente reside, em última análise, no esforço «vertical», na contemplação, na gnose. Numa dada óptica, devemos fazer o contrário daquilo que Deus faz, enquanto, numa outra, devemos agir como Ele: é que, por um lado, assemelhamo-nos a Deus porque existimos, mas, por outro, somos-lhe opostos porque, dado existirmos, nos achamos separados d’Ele. Por exemplo, Deus é amor, logo, por um lado, e precisamente porque somos semelhantes a Ele, devemos amar, mas, por outro, Ele também julga e tira vingança, algo que nós, precisamente porque somos diferentes d’Ele, não podemos fazer. No entanto, dado estas posições serem meras aproximações, as morais podem e devem diferir, pois há sempre lugar em nós – pelo menos, em princípio – para um amor culpado e uma justa vingança. Neste ponto, é tudo uma questão de acento tónico e de delimitação, pelo que a escolha depende de uma dada perspectiva -, antes uma perspectiva conforme à natureza das coisas ou a este ou àquele aspecto preciso dessa mesma natureza (in Compreender o Islão, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 21-25).




Notas:

(1) Também a queda – e não só a Encarnação – é um «acontecimento que é suposto poder determinar de uma forma absoluta um «ser», nomeadamente o ser do homem. Para o Islão, a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, e isto apesar de o mal não poder determinar o ser específico do homem, pois este jamais pode perder a sua deiformidade. No Cristianismo, o «agir» divino parece, de certa forma, suplantar o «ser» divino, designadamente no sentido de que o «agir» vem a recair sobre a própria definição de Deus. Uma tal forma de ver pode parecer algo expedita; contudo, existe aí um distinguo extremamente subtil, facto que não é possível negligenciar quando se trata de comparar duas teologias.

(2) Tal é o caso de Abû Hâtim, citado por Louis Massignon em Le Christ dans les Évangiles selon Al-Ghazzâlî.

(3) Um autor católico da «belle époque» poderia muito bem exclamar: «Precisamos de signos, de sinais, de factos concretos!» Semelhante frase seria inconcebível da parte de um muçulmano, pois, na óptica do Islão, ela surgiria enquanto infidelidade, até mesmo enquanto apelo ao diabo ou ao Anticristo, e, em qualquer dos casos, enquanto uma extravagância das mais censuráveis.

Continua



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