quarta-feira, 23 de maio de 2012

Franco-Atirador (i)

Escrito por António Quadros








«INTERNACIONAIS», INTERNACIONALISMO, NACIONALISMO E IDEAL UNITIVO


ABATER AS FRONTEIRAS:








Abater fronteiras! Riscá-las dos mapas! Apagá-las das almas.

Eis um ideal que se renova em cada geração: um ideal romântico, que aspira à imediata realização do homem universal, do homem transcendente às nações e aos nacionalismos, às pátrias e aos patriotismos. Ideal que mergulha as suas raízes no «passado» cultural da humanidade. Podemos detectar as antigas pegadas deste ideal na civilização helenística supranacional, visionada por Alexandre; no romano-centrismo imperial de César e de Augusto; na afirmação cristã de que os homens pertencem a uma pátria que não é deste mundo, e de que portanto só tem sentido a cidade universal dos homens enquanto potencial cidade de Deus; consequentemente, nas tentativas e nas teorizações de uma República Christiana, dos Impérios sonhados por Frederico, ou por Carlos V, ou até mesmo do V Império lusocêntrico, Império do Espírito Santo, conciliador de todas as desavenças e todas as cisões através do Espírito da Verdade, ou ainda do Império Napoleónico, agora galocêntrico...

Com a crise do conceito de Império - pois que a supranacionalização era conquistada e imposta afinal de contas por uma pátria centralizadora e absolutista -, deu-se a canalização do mesmo ideal para um princípio a que podemos chamar o internacionalismo.


AS «INTERNACIONAIS»


O facho do antinacionalismo teórico e revolucionário foi levantado pelos partidos socialistas e comunistas. Mas as Internacionais não conheceram melhor fortuna do que os Impérios. A I Associação dos Trabalhadores durou dez anos. A sua existência não resistiu à cisão entre os comunistas, dirigidos por Marx e Engels, e os anarquistas, encabeçados por Bakunine. Não resistiu sobretudo à guerra europeia de 1870, que despertou o espírito nacional na França e na Alemanha. A segunda guerra europeia - de 1914-18 -, marcou o fim da II Internacional, cujos adeptos, na sua maioria, fraquejaram perante o apelo patriótico. A III Internacional, inspirada por Lenine, foi russo-cêntrica, o famoso Comintern. O seu fim foi apressado pela luta entre Trostky e Estaline e, é bem evidente, pela terceira guerra europeia. O domínio soviético, a reaparição do velho nacionalismo russo foram postos em relevo pela cisão da Jugoslávia de Tito e pela satelização da Europa de Leste; mais recentemente, pela revolta da Hungria e pela invasão da Checoslováquia. Em vez do Internacionalismo, a ressurreição do antigo conceito de Império, com a Rússia a exercer a função desempenhada nos tempos passados por Roma, pela Alemanha, pela Espanha, com homens de confiança do tipo sátrapas a dirigir os países satélites, com Partidos transformados em grupos de pressão, trabalhando a favor da «pátria-mãe do socialismo mundial».

Situação que não podia deixar de explodir: todos estes países e partidos lutam hoje por «vias nacionais» para o socialismo, insatisfeitos perante a ideia de uma vassalagem contrariante da sua liberdade. Fala-se de uma IV Internacional, que seria a Internacional dos estudantes, inspirada por Mao-Tsé Tung, por Che Guevara, por Trostky, Internacional simultaneamente anticapitalista e anti-soviética, mas a sua realização seria por certo ainda mais frágil do que as tentativas anteriores.




Em escala um pouco mais reduzida, outras Internacionais agitam as almas e atraem muitos espíritos: por exemplo a chamada Tricontinental - Organização de solidariedade dos povos da África, da Ásia e da América Latina -, concebida para lutar contra o capitalismo e a aliança euro-norte-americana; por exemplo a OEA, a Organização dos Estados Africanos; num pólo oposto, as Internacionais dos países capitalistas, cujas dificuldades de realização não são menores: a Europa-nação, a Europa do Mercado Comum, a Europa das democracias liberais; o pan-africanismo e o pan-europeísmo foram precedidos pelo pan-americanismo mas também este está em regressão, tão ténues são as afinidades sociais, económicas, culturais e políticas entre as três Américas: a da língua inglesa, a da língua espanhola e a da língua portuguesa.

Em suma, em qualquer das suas interpretações - a imperialista ou a internacionalista, a capitalista ou a socialista, a democrática ou a absolutista -, o ideal de um mundo sem fronteiras desfaz-se constantemente contra o rochedo forte da realidade.

Ideal defendido retoricamente, ardorosamente, teimosamente, em vez de progredir, no entanto retrocede. Continuam as utopias de ficção científica a figurar uma era futura em que já não há guerras porque já não há nações. Mas, entretanto, a tendência do real é para a pulverização em número cada vez maior de países: tal acontece na África e na Ásia, por exemplo; e são inúmeras as reivindicações separatistas de províncias que querem voltar a ser pátrias, como por exemplo o país Basco, na Espanha; a Bretanha, na França; a Escócia e o País de Gales na Grã-Bretanha; o Quebec, no Canadá; a Ucrânia, na União Soviética; o Biafra, na Nigéria - para citar apenas alguns casos de agitação muito recente e para não mencionar os países divididos em dois pela estratégia internacional das grandes potências: a Alemanha, a Coreia, o Vietname. Há quem demonstre, por outro lado, que a única forma de resolver o problema do totalitarismo russo ou chinês - países que, pelas suas dimensões excessivas não poderiam ser governados senão em regimes de ditadura - é a sua divisão em várias nações, de acordo com os vários grupos étnicos.

O último desenvolvimento teórico do ideal supranacional - ideia inteligente, sem dúvida - é o que, inspirado no pensamento federalista de Denis de Rougemont, preconiza a substituição das nações por regiões. É uma tese que mergulha as suas raízes no microcosmos sui generis da Suiça. Mas podemos transformar o mundo inteiro numa Suíça? Talvez.


O FENÓMENO NACIONAL


Talvez. Mas o certo é que - e é o objectivo deste comentário - não se avançará jamais um passo no sentido do ideal supranacional, enquanto não se meditar apropriadamente nas causas de tantas dificuldades. É costume atribuírem-se as resistências a maquiavelismos e a interesses económicos ou políticos de toda a sorte. Termos de ir bem mais fundo, para apreender na sua complexidade o fenómeno nacional.



Aristóteles



Aristóteles compreende-o, quando mostrou que o homem, ser da natureza, está submetido às categorias: categorias de tempo e espaço, categoria de modo, entre outras. Cada comunidade humana vive na sua hora e no seu tempo: não é possível unificar este horário das evoluções civilizacionais por um acto político; cada comunidade habita no seu ponto do espaço, frio ou tropical, continental ou insular, montanhoso ou desértico: não é possível atribuir a todas, indistintamente, o mesmo clima; cada comunidade tem o o seu modo de ser, isto é, a sua maneira de se colocar perante os problemas do nascer, do viver, do morrer, perante a natureza ou Deus, perante a sociedade ou o Homem, e manifesta-o não só na sua religião, na sua filosofia, na sua arte e na sua cultura erudita, mas também na sua língua, nos seus costumes, no seu folclore: uma pátria é uma estrutura e parece ainda muito cedo para resolver o mundo pluralista das estruturas diferentes, numa só estrutura uniforme, ainda quando a técnica pareça acelerar o processo de aculturação. (A técnica não tem ao seu alcance criar comunidades concretas e vivas).

Unificar a Europa, unificar o mundo? Eis o que só será possível quando todos nos pusermos de acordo sobre o sistema político ideal, sobre o sistema educativo ideal, sobre o sistema de moral ideal, sobre o sistema religioso, ou místico, ou ideológico que efectivamente coincide ou mais se aproxima da Verdade última. Grande tem sido a tentação de cortar o nó górdio e fazer como Alexandre: impor um sistema, criar um Império. Mas seria apenas a aparência artificial de um sistema, seria um Império condenado ao ciclo sem fim das rebeliões e das contestações, como as dos países helenizados ou romanizados ontem, como os das nações sovietizadas hoje.


A UNIDADE VIÁVEL


Teremos então de aceitar a realidade multinacional como definitiva, com o seu risco permanente de guerras catastróficas? Sejamos sensatos. Se a pátria é uma comunidade estrutural, todavia a aliança e a fraternização supranacional e sobretudo supranacionalista é uma possibilidade que podemos e devemos desenvolver. Simplesmente: tem-se mandado o carro à frente dos bois, o que não é maneira de andar para a frente. Por outras palavras, tem-se querido realizar por intermédio da dialéctica política e, portanto, sem respeito ao outro o que deveria principiar pelo diálogo intelectual e filosófico, não contaminado pelo espírito da intolerância e da paixão.

Cada pátria tem em primeiro lugar que ser ela própria, desenvolvendo ao máximo todas as suas virtualidades e potencialidades peculiares e irredutíveis a uma generalidade vaga, pois só assim poderá dialogar activamente com as restantes. E tem em segundo lugar que aprender a ouvir as outras, sem juízos preconcebidos, sem complexos de inferioridade ou de superioridade, sem teimosias. Enquanto tal não suceder - e estamos muito longe desse escopo -, é prematuro pensar em unidade. Pois que a unidade terá um dia que se fazer, mas sem diminuições, sem abandonos, sem perdas, sem a destruição, em suma, da variada riqueza cultural do mundo. O sistema aprenderá de todos os sistemas, em vez de os desprezar ou ignorar. Será tão maleável quanto o é a múltipla insatisfação do homem de todos os meios e todos os espaços. Será tão exigente quanto o são os valores e os movimentos de ideias mais profundos e elevados do grande leque multicultural. Mas só assim será. Ou então o mesmo ideal unitivo não cessará de causar tiranias, totalitarismos, absolutismos e a sua contrapartida, contestações, revoltas e revoluções, quando não guerras por uma imagem do internacionalismo (a democrática, a comunista...), mais do que por um conceito de nação... (in Franco-Atirador, Espiral, 1970, pp. 165-169).










Continua


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