segunda-feira, 13 de agosto de 2012

A Cabra

Escrito por António Telmo








«Como o meu próprio nome de Salvador indica, quero salvar a pintura moderna da preguiça e do caos, quero integrar a experiência cubista na divina proporção de Lucas Pacciolli, e sublimar o surrealismo ateu, último resíduo do materialismo dialéctico, na grande tradição da pintura mística e realista de Espanha».

«Cumpro as duas coisas mais subversivas que podem ocorrer a um ex-surrealista: tornar-se místico e saber desenhar».

Salvador Dalí


«(...) Não aceito hoje, como nos meus trinta anos, a doutrina de Jung que compara a descida aos infernos à descoberta do subconsciente própria da psicanálise. Estava eu então "no meio do caminho da nossa vida" e tinha o espírito confuso como uma espessa floresta. A minha Arte Poética vale pelo último capítulo que foi escrito para a segunda edição há recentes anos...».

António Telmo (Entrevista à revista brasileira Encontro, conduzida por Ângelo Monteiro). 
 



A Cabra


Passei folha a folha o álbum de desenhos de Teixeira de Pascoaes organizado pela Assírio e Alvim.

Num posfácio de Bernardo Pinto de Almeida, que me pareceu excelente, são esses desenhos valorizados pelo seu aspecto simultaneamente expressionista e surrealista e é Pascoaes apresentado como um espírito povoado de espectros ou de fantasmas até à alucinação.

O álbum tem como portal um belo e subtil, esplêndido poema de Cesariny, onde as imagens e os conceitos se articulam pelas leis do delírio.

Bernardo Pinto de Almeida, em dado momento, interpreta os desenhos de Pascoaes, a que chama bonecos (coisa infantil), como imagens hipnagógicas. Tenho experiência da coisa através do meu alter-ego. Mas esse, quando as imagens surgem na atmosfera translúcida do seu olhar interior, recebe indiferente o seu fascínio, indiferente mas atento, e isso é talvez o que faz que se formem insistentemente umas após outras, alterando-se e modificando-se, do belo até ao pavoroso, até que o olhar tranquilo as devolva por fim ao nada de onde emergiram.

Pela etimologia, hipnagógico significa o que conduz ao sono. O meu alter-ego usa-as também para adormecer.Não nos suportamos num corpo acordado mais do que doze horas. O rei sábio «dormia, mas o seu coração estava vigilante». «Oh, quem pudera saber os sonhos que o homem sonha!». Os fotismos formam-se entre a vigília e o sono, um sono que é como a morte. Há imagens que são de uma natureza superior impressionante como um Arcanjo São Miguel que vem no álbum e Pascoaes pintou; são como se fossem visões de Deus. Todavia, tais como se representam nos desenhos do poeta são como que resíduos da grande operação alquímica que é a sua obra em verso e em prosa.






A impressão geral que resulta do lento folhear do álbum (aconselha-se que se o faça depois de ter lido a Elegia do Amor ou então, em aparente convergência, um poema de As Sombras) é a de que estamos perante um aspecto da alma de Pascoaes que não a é essencialmente e que só conta de verdade compondo-se com outros aspectos de longe mais significativos. É esse aspecto o nocturno ou espectral, exactamente como o define o posfaciador. A tê-lo só em conta, o poeta aparece como um bruxo, lidando com cães-demónios uivando à luz da lua que é uma barca transportando as almas dos mortos.

É muito mau em quem, como Teixeira de Pascoaes, se ergueu àquele plano de espírito em que as palavras iluminam tudo à volta. É mau e inquietante. Digo isto a pensar sobretudo na insistência com que o animal de Tiphon aparece nos desenhos centaurizado com o homem ou sozinho, associado com o mocho e com a lua. Dir-se-á que tudo isto tem o encanto do mistério. Mas sentir a noite como misteriosa está ao alcance de toda a gente; o que é raro é sentir como misterioso o dia e a luz do sol.

A lua é imaginada como a barca que transporta a alma do morto e o seu daimon; o mocho, a ave de Minerva, o pássaro sófico, com olhos que sugerem óculos, é representativo do intelecto que medita o irracional; este é o asno. São duas orelhas enormes como asas, às vezes implantadas na testa como cornos. O asno apresenta a figura animal e humana ao mesmo tempo do anjo decaído que tem o segredo da noite e da música das estrelas.

Quem veja só este aspecto inquietantemente nocturno de Pascoaes há-de querer ligá-lo consubstacialmente às doutrinas do subconsciente e, em consequência, ao surrealismo.

O termo surrealismo é ao contrário de si por dentro. Talvez uma palavra francesa que se compõe de sur (sobre) e de réalisme (realismo); no termo surrealismo conserva-se o francês sur, é o que se chama um híbrido. Em boa tradução deveria ser sobrerrealismo; como ficou (surrealismo) o que se entende no sur é sub. Isto é, o mundo subliminal. Das larvas, dos espectros, dos fogos-fátuos psíquicos. Até espanta que tenham vivido de respirar nessa atmosfera asfixiante poetas tão aparentemente verdadeiros como António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos.






Fernando Pessoa já foi corrido. Parece que chegou a hora de correr Teixeira de Pascoaes. A expressão tauromáquica tem esse sentido: depois de corrido, mata-se. Aqui, morrer equivale a ser roubado à filosofia portuguesa, para a qual contribuiu enormemente com a sua filosofia da saudade e com a Arte de Ser Português. Repare-se bem: a arte de ser português. Quer dizer: quando se nasce em Portugal e de pais portugueses, nascer significa apenas um esboço de português. A arte está em fazer passar da potência ao acto. E Pascoaes dizia que, em Portugal, só havia dez espíritos superiores. Muito mais generoso era José Marinho que calculava uns quinhentos.

Quem não gosta que Teixeira de Pascoaes seja ligado à filosofia portuguesa é precisamente Cesariny, como se vê pelo que se segue: "Sendo uma das que mais barulho produziu e concitamentos em espiral causou, estou muito longe de pensar que a Saudade como expressão suprema do génio português seja a criação mais importante e a mais original da obra de Pascoaes. A indiscutível singularidade desta pede aferições mais ou menos ambiciosas, das quais muito conviria deslastrar a que volta a ficar com barbas cínzeas, já as teve brancas, e é o sim e o não sobre o talvez da existência profícua de uma Filosofia Portuguesa. Esta questão, periodicamente socalejada num só plano, tem dois: o primeiro cabe inteiro a Pascoaes e a não importa que outro português, do mais mindinho ao maior: é onde o poeta diz que o meu jerico é filósofo, e a alegria uma bêbeda, ó Santa Mónica! O outro é a função de magisters que parecem ter encontrado no "existencial" torneio bastante para ir mostrá-lo à portuguesa ao mundo. E agora, no existencial, é que vai caber tudo: D. Duarte e o Leal Conselheiro, Heidegger e D. Francisco Manuel de Melo, Duarte Nunes de Leão e Kierkegaard, Bernardim Ribeiro e Pascoaes. Mas Pascoaes cabe tanto na Menina e Moça como um elefante na cama de uma cabra. Sem desprimor para o gato e para a girafa. E o que me surge que anda aqui à obra é uma tentativa de obrigação do poético aos funerais gerais da filosofia tida e exercida pela medida velha".

No "existencial" subentende-se António Quadros, na menção de D. Duarte e do Leal Conselheiro alude-se talvez a Afonso Botelho. O elefante não cabe na cama da cabra, mas a cabra cabe na cama do elefante. Sem desprimor para Cesariny em cuja cama Pascoaes não cabe (in Congeminações de Um Pitagórico, Al-Barzakh, 2006, pp. 87-90).







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