quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

A Revolta dos Boxers (i)

Escrito por Bertrand Solet





A Imperatriz Ts'eu Hi



«A ocupação europeia vai durar perto de um ano, sem que a pilhagem se interrompa, e no meio de uma reconstrução precipitada empreendida pelos Chineses, que reedificaram à europeia os edifícios destruídos.

O governo chinês vê ser-lhe imposta uma indemnização de guerra que ascende a cerca de um bilião e oitocentos milhões de franco-ouros, cujas anuidades deverão ser pagas até 1940. Guarnições europeias permanecerão em Pequim e nas principais cidades chinesas: só serão evacuadas alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial, sob a pressão dos novos ocupantes, os Japoneses.

Os aliados, por fim, exigiram a punição dos culpados, isto é, dos chefes dos Boxers. Tseu Hi resiste durante muito tempo antes de castigar aqueles que tinha apoiado. Sacrifica-os por motivos de Estado, para salvar o trono que, depois dela, passará para o pequeno príncipe Pu, filho do príncipe Tuan. Sob o nome de Pu Yi, será ele o último imperador da dinastia manchu. A derradeira humilhação da velha imperatriz é a publicação do decreto que condena os autores da revolta dos Boxers:

"Examinando as causas deste desastre, chegámos à conclusão de que é preciso procurá-las na ignorante arrogância de alguns dos nossos príncipes e ministros. Acreditando estupidamente no pretenso poder sobrenatural dos Boxers, foram levados a desobedecer ao Trono e a negligenciar as ordens expressamente dadas por nós a respeito do extermínio desses rebeldes.

Foi a loucura desses homens que levou o general Tung Fusiang a bombardear as legações.

Os ministros das potências amigas não deixarão de reconhecer que a revolta dos Boxers foi inclusivamente obra desses funcionários e que a acção ou a vontade do Trono não tiveram nela qualquer interferência. Castigámos os culpados sem fraqueza, e os nossos súbditos compreenderão assim a gravidade da recente crise..."».

Paul Ulrich («A Morte da Velha China», in Os Grandes Enigmas das Civilizações Desaparecidas).





A Revolta dos Boxers


Estou tão preocupado que mal noto a chegada de Sílvia ao gabinete do telégrafo. A mãe acompanhava-a de sombrinha na mão.




- Pode começar, senhor - acaba de lhe dizer o empregado - consegui uma linha. Dite lá...

- Para o jornal Le Gaulois, Paris. Aqui, Maurice Bardier a falar de Tien-tsin onde as autoridades francesas acabam de ser informadas de notícias graves. Há dois dias, 10 de Junho de 1900, a imperatriz-mãe, Ts'eu-hi, declarou ao Grande Conselho ser indispensável expulsar os estrangeiros. Imediatamente surgiram perturbações em Pequim onde foram mortos missionários, assim como o ministro da Alemanha, assassinado dentro do riquexó quando se dirigia ao palácio a protestar contra a expulsão dos diplomatas... Parece que a populaça sitia o bairro das legações onde os europeus se reuniram para tentar a defesa...

Levanto os olhos: a senhora de Montelon ouviu-me e parece sentir-se mal. Sílvia ampara-a... Impossível ir socorrê-la, pois o empregado do telégrafo continua a enviar, imperturbável, os seus pontos e traços para o espaço. Portanto continuo, erguendo os braços ao céu para mostrar o meu embaraço:

- O movimento da revolta conduzido pela imperatriz é organizado pela seita do Sino de Ouro saído da sociedade secreta do Lotus Branco, a que hoje chamamos os participantes Boxers. Recordemos que há dois anos os Boxers se declaram, principalmente, contra os estabelecimentos alemães na província de Xantungue...

- Senhor Bardier - interrompeu-me o empregado -, não vale a pena continuar, pois a linha foi cortada.

Não consegui evitar uma exclamação de contrariedade. Entretanto, a senhora Montelon viera a si:

- Meu Deus, Maurice, que notícias tremendas! Sempre pensei que os chineses eram velhacos e ingratos. Trouxemos-lhes a civilização, o caminho de ferro...

- Para melhor transportar as mercadorias que lhes compramos ao preço da chuva...

Não consegui evitar este remoque. Mas isso não impede que a mãe da Sílvia continue:

- E quanto à imperatriz... o Maurice sabe que ela não tem uma gota de sangue nobre nas veias?

- Sei, sim, minha senhora.

-Vínhamos mandar os parabéns a uma prima que faz anos... Um tumulto em Pequim; só nos faltava isso!... E eles abraçam-se!...


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De facto, Sílvia e eu estávamos quase a abraçar-nos. Estamos noivos e é para a encontrar que venho regularmente de Pequim, onde trabalho, até T'ien-tsin de noventa quilómetros de distância.

Entretanto, tento acalmar a minha futura sogra:

- Acabo de falar com o nosso cônsul que se dirigia para casa do cônsul inglês a fim de examinarem juntos as medidas a tomar, no caso de a revolta dos Boxers alastrar...

A senhora de Montelon, mulher de oficial, não se deixa abater por muito tempo. Ainda suspira quando se dirige ao empregado do telégrafo a quem vai entregar um telegrama para a prima, a expedir logo que a linha seja restabelecida.

Sílvia sorri e murmura-me ao ouvido:

- Liu está de acordo. Diz que é perigoso, mas mesmo assim está de acordo. Vai ter contigo amanhã de madrugada e leva-te roupas chinesas, para não dares nas vistas...

- Obrigado, minha querida!

- Mas tem cuidado contigo! Não quero ficar viúva antes de casar...

O dia decorre tranquilo. Não vem mais nenhuma notícia de Pequim, o que se justifica. Em T'ien-tsin, a cidade chinesa parece agitar-se. Os consulados distribuíram armas às famílias europeias: revólveres e carabinas. Há corpos de voluntários para montar guarda. Somos um milhar de europeus, dos quais a maior parte ingleses. Os chineses que nos rodeiam são novecentas vezes mais numerosos, e isso apenas na cidade!

Apesar do ambiente febril, não abandono o meu projecto, antes pelo contrário: Liu, o criado de Sílvia, prometeu-lhe deixar-me assistir a uma explicação dos Boxers, num dos bairros. Parece que são frequentes. Para eles, trata-se de galvanizar a população... Em todo o caso, isso interessa-me bastante. Há aí matéria suficiente para um artigo de arromba para o meu jornal.

Moro num dos dois hotéis da concessão inglesa, na margem de Pei-ho, um rio de fraco débito, arrastando vasa e onde a navegação só é possível em barcos de fundo chato ou house-boats, essas grandes barcaças cobertas que vão até Pequim. Eu prefiro o caminho de ferro, pois sempre é mais rápido...




Como combinado, Liu veio buscar-me de madrugada. No entanto, teve dificuldade em passar por causa das patrulhas europeias. Estranho rapaz, este Liu. Veio de Pequim e fala muito bem o francês e o inglês. Admiro-me que seja um simples criado, um empregado doméstico. Quando lhe fazemos perguntas, limita-se a rir.

No entanto, nessa manhã não ri. Enquanto visto, à pressa, uma túnica curta e umas calças largas e coloco na cabeça o barretinho preto, ele interroga-me:

- Não mudou de ideias, Senhor? A ocasião talvez seja mal escolhida.

- Não mudei, não!

- Tenha cuidado, senhor, nada de imprudências...

E diz isso quando me vê guardar uma pistola no bolso.

Saímos. Atravessamos a concessão inglesa e, depois, a francesa. Há uma ponte sobre o rio e que leva à estação, onde os japoneses se queriam instalar.

Nós vamos para o bairro chinês de Machiaku. As ruelas estão desertas. Liu caminha apressado. A dado momento pára e encostamo-nos a um muro de terra. Ouvem-se vozes, passa um grupo que distingo mal: são chineses que se afastam...

Retomamos o caminho. E em breve chegamos, felizmente. Liu manda-me entrar numa casa de tijolo. A porta abre-se depois de ele ter arranhado com a unha.

Está demasiado escuro para ver onde me encontro. Subimos umas escadas. Depois, sombras pequenas agitam-se à minha volta: adivinho crianças que uma ordem faz manter tranquilas.






- Sente-se aí - murmura Liu -, e verá tudo, senhor!

Aí é o ângulo de uma janela que dá, segundo me parece, para uma praça vazia a essa hora.

- Sobretudo, não se deve mexer, nem tocar na portada, senhor!

Aquiesço com uma certa impaciência. Por quem é que ele me toma?

A espera começa... Pouco a pouco aparece a luz do dia e com ela os primeiros mercadores chineses. Instalam-se mesmo no chão, apesar da sujidade, tirando dos cestos os produtos habituais: raízes, frutos, peixes... A praça está rodeada por casebres miseráveis. Em breve está cheia de gente e apercebo-me de que o barulho cresceu, quase sem dar por isso, e se tornou ensurdecedor!

De repente, Liu toca-me num braço.

- Aí estão, senhor! - murmura.

Acaba de sair, de uma ruela ao fundo da praça, uma vintena de homens armados de varapaus e chuços, saudados por um movimento geral de interesse. Os homens gritam, parecem chamar a multidão e tomá-la por testemunha. Na maneira de vestir não se distinguem dos outros camponeses chineses.

Em breve, homens e mulheres andrajosos os rodeiam e calam-se para ouvir um dos recém-vindos que lhes fala empoleirado num caixote.

- Que diz ele, Liu?

- Mais baixo, senhor!... Conta uma história, a de um letrado de aldeia que vai procurar um mandarim. Lamenta-se da invasão... e... dos estrangeiros desdenhosos... e.. dos ladrões de riquezas... Mas o mandarim é corrupto, não quer ouvir nada, nem fazer nada e o letrado concluiu que só tem um remédio contra os estrangeiros: aprender boxe, porque os camponeses não têm espingardas nem canhões.

A história é muito aclamada.






- Liu, o que é que diz a multidão?

- Prefiro não traduzir, senhor... Não são palavras amáveis para vós.

- Chamam-nos "diabos estrangeiros"?

- Isso não é nada, senhor, comparado com o resto...

E o criado de Sílvia sorri-me.

- Que fazem agora, Liu?

Queimam incenso sobre folhas amarelas e fazem súplicas às divindades. Pensam que os espíritos e os imortais vão sair das grutas e descer das montanhas para ajudarem os homens na prática do boxe...

- Aí está!

Aí está, de facto. Os Boxers acabam de instalar uma espécie de estrado improvisado, com caixotes e tábuas e sobem dois homens armados de varapaus.

Durante cerca de dois minutos assisto a um extraordinário combate simulado. Com maravilhosa rapidez, os combatentes atacam, defendem-se, recuam, avançam... Por momentos executam movimentos lentos, exemplificando como se pode desarmar um soldado com uma espingarda ou um revólver e, ainda, como atacar o inimigo.

- De perto, está bem, mas quando o inimigo está mais afastado? - pergunto.

- Os Boxers pretendem que têm fórmulas mágicas que os tornam invulneráveis às balas...

Fito Liu. Impossível descobrir-lhe no rosto se fala a sério ou se graceja, se acredita ou não no que diz.

Os gritos aumentam de instante para instante. Mas ainda não vi o melhor. Colocam dois caixotes no estrado a altura suficiente para que todos possam ver o que se vai passar... Mais uma tábua grossa. Um Boxer, de aparência vulgar, sobe ao estrado, depois à tábua. Salta de pés juntos para lhe provar a solidez e, depois, desce... A tábua fica à sua frente, à altura do peito. Concentra-se um instante e abate o cutelo da mão sobre a tábua.





A multidão ulula porque a tábua ficou partida em duas. Os Boxers aproximam caixotes e colocam-lhe em cima uma das metades da tábua partida. De novo o braço se ergue, se abaixa, e parte de novo a meio a tábua.

Confesso que estava pasmado. O Boxer tem uma força prodigiosa. A menos que se trate de um truque admiravelmente executado...

E ainda não acabou. Outros Boxers sobem ao estrado, com pesados tijolos de terra. E partem esses tijolos a murro, em conjunto, sempre aclamados pela multidão.

- Como é possível?

Liu parece ter compreendido o que penso. Há um brilho divertido nos seus olhos quando me responde:

- Foram os nossos antepassados que nos ensinaram isto, senhor. Não há batota alguma no que acaba de ver.

Não tivemos tempo de discutir o assunto porque a situação na praça acaba de evoluir rapidamente.

No estrado, um Boxer arenga para a assistência. Parece extremamente excitado. Liu muda de expressão:

- É preciso... é preciso que volte imediatamente... imediatamente.

- Que se passa?

O criado hesita, tem um ar extremamente aborrecido e parece não saber o que há-de fazer. Mas compreendo imediatamente, sem que ele precise de me explicar, porque os Boxers, brandindo os varapaus, preparam-se para abandonar a praça a correr, seguidos por grande parte dos espectadores. É uma revolta como em Pequim.






- Sílvia!

Não consegui evitar o grito, erguendo-me imediatamente:

- Vem daí, Liu.

- Senhor, senhor...

Nem sequer o ouço e corro para fora, galgando as escadas. Abro a porta da rua e corro em direcção das concessões... Lá fora há pouca gente e ninguém repara em nós.

Apenas, já é demasiado tarde. À medida que nos aproximamos, ouvimos cada vez mais nitidamente os tiros: as concessões estão a ser atacadas! Em breve temos a multidão à nossa frente. Impossível passar! Tento, ainda, duas ou três ruelas diferentes... nada a fazer!

Liu pára junto de mim, meio sufocado. Repousamos um pouco.

- Talvez - digo-lhe - consigamos aproximarmo-nos do Pei-ho e chegar a nado às concessões!

- Com certeza que há barricadas de juncos, senhor...

Mesmo assim, decido tentar. Mas tínhamo-nos aventurado demasiado, e em pleno dia! É um autêntico milagre ainda ninguém ter reparado no meu rosto pálido, como se diz na América. E os milagres não duram muito... Um grito. Outros mais. Os chineses, embora apressados a correr para as concessões, pararam e apontam-me o dedo.

- Fujamos, senhor!

O perigo dá-nos asas. Atrás de nós... uma autêntica multidão a perseguir-nos. Se parasse, seria imediatamente massacrado... (in «15 Histórias de Artes Marciais», Editorial Verbo, 1981, pp. 175-181).

Continua


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