terça-feira, 30 de abril de 2013

A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (i).

Escrito por António Quadros





Manuel Kant




Avant-propos

Decorridos cerca de 40 anos após a publicação do opúsculo de António Quadros, A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (1956), passava o signatário destas linhas pela Faculdade de Letras de Lisboa onde o positivismo, designadamente o alemão – Kant, Husserl, Feuerbach e Marx-, dominava num departamento em que a história da filosofia surgia segmentada em antiga, medieval, moderna e contemporânea. Continuava, pois, a máquina universitária a enfermar dos mesmos males e vícios tão cuidadosamente descritos e apontados por António Quadros, tais como a entropia sociológica e uniformizadora do ser humano, o funcionalismo burocrático, rotineiro e amanuense do corpo docente, o sistema inquisitorial do esbirro judicativo ou do professor examinador inapto para aferir talentos e encaminhar vocações, além do preconceito didáctico secundado em esquemas e modelos estrangeiros inibidores do mais original pensamento português.

De facto, António Quadros, sendo um literato, um escritor e um intelectual, propunha uma reforma da mentalidade que passasse por uma Universidade cujo núcleo dinamizador postulasse um Instituto Central de Cultura Superior destinado a um saber teorético actual, vivo e original capaz de vencer forças e tendências fragmentárias em prol da situação concreta da filosofia portuguesa. Enfim, uma ilusão do foro existencial, já que, na linha de pensadores como Unamuno, Ortega, Camus e Karl Jaspers, não era de todo indiferente a um positivismo do sentimento por contraponto ao positivismo do pensamento idealmente abstracto, vago e sem radicação espácio-temporal.

Não obstante, estamos em crer que António Quadros sabia perfeitamente que a especulação filosófica, no que tem de mais verdadeiramente criador, não nasce propriamente em institutos de cultura nem muito menos se rege por um conjunto livresco de revistas eruditas e universitárias, ou até mesmo se limita a roteiros bibliográficos ou a trabalhos especializados de divulgação, crítica ou comentário do pensamento alheio. Nessa medida, o mais que se pode realmente esperar da Universidade é o recorrente registo fóssil do pensamento pensado segundo critérios textuais, metodológicos e pseudo-científicos que aproximam estudantes e professores no mais lamentável repúdio pelo pensamento em cumulativo e incessante acto. 


Faculdade das Tretas de Lisboa



A chamada "filosofia" nas Faculdades de Letras equivale, pura e simplesmente, à revolta das Letras contra o Espírito. Por outras palavras, a filosofia não é nem nunca foi uma inútil actividade de gabinete onde estudantes ou candidatos a "profissionais da filosofia" se prestam ritualmente a uma panóplia de exames e interrogatórios com a mera finalidade de passar às diferentes cadeiras para assim obter o diploma de fim de curso. De resto, a maioria dos filodoxos em questão tem apenas por destino o engrossar das fileiras de funcionários públicos do chamado ensino secundário, onde limitar-se-ão a inculcar aos adolescentes um programa curricular praticamente ditado pelas directrizes supranacionais da UNESCO enquanto agência especializada das Nações Unidas.

No mais, todo este processo encontra-se suficientemente explicado no nosso livro intitulado Noemas de Filosofia Portuguesa: um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada. Na verdade, é praticamente o único estudo actualizado que não só desenvolve e aprofunda o que já António Quadros e Afonso Botelho haviam parcialmente dito e diagnosticado sobre a falência moral e espiritual da Universidade, como ainda põe a nu a actividade antipatriótica perpetrada por uma cediça instituição que praticamente tem permanecido incólume nas duas últimas centúrias.

Miguel Bruno Duarte





A crise da universidade


«Para os que gostam das catalogações analógicas, nós diríamos que Álvaro Ribeiro ocupa, em relação à cultura portuguesa, situação semelhante à que Karl Jaspers, o teorizador existencialista do "englobante" e da "fé filosófica" ocupa na actual cultura alemã...».

António Quadros ( «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade»).


«A doutrina positiva é a doutrina do porto seguro, enquanto a doutrina existencial é a doutrina do naufrágio, da navis fracta. Entre esses extremos domina a virtude que corresponde à vocação dos Portugueses, a virtude do Infante de Sagres. A filosofia portuguesa, outrora referida a Aristóteles, ao actualizar-se no período em que está ameaçada pelo existencialismo, não necessita mais do que recorrer a Bergson para deixar de se apavorar perante o ídolo do nada, e de recorrer a Hegel para verificar como se supera a dúvida entre o ser e o não-ser».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).







Ser homem é uma situação que se pode pois desenvolver em duas instâncias: a primeira corresponde ao interesse individual; a segunda, ao interesse universal. Na primeira, o homem fecha os olhos ao universo que o rodeia, vendo nele apenas os obstáculos a transpor para a realização dos ideais egoístas; na segunda, o homem, depois de ter procurado atingir uma concepção do universo, busca fazer de si mesmo um elemento dinamizador desse universo, assumindo a responsabilidade do poder espiritual que lhe foi dado e que, no mundo, ele possui em mais elevado grau do que qualquer outro ser da criação.

Acredito que é na conjugação destas duas razões, a individual e a universal, e não no predomínio de uma sobre a outra, que conduz sempre a um misticismo pessoal, estatal ou religioso, em qualquer dos casos violentando a realidade física ou espiritual da natureza humana, que merece ser respeitada, embora guiada - acredito que é na conjugação destas duas razões, ia a dizer, que o homem pode transcender a crise de angústia, de perplexidade, de contínuo problematismo que vive - nesta idade à beira do extermínio, em consequência do desiquilíbrio entre o progresso dos meios materiais de destruição e o retrocesso dos meios espirituais de elevação.

O mundo medieval, de que não vou fazer a apologia, pois conheço-lhe as imperfeições e as insuficiências, logrou no entanto, nalguns períodos em que o rei, a nobreza, o clero e o povo souberam entender-se, unindo-se numa tarefa comum, conseguir uma atmosfera exemplar, em que cada um, entregando-se sem olhar para os lados, à sua função específica, contribuiu para o bem de todos os outros e para o progresso material e espiritual do homem.

Entre nós, temos o caso flagrante dos descobrimentos, que só foram possíveis porque reis, príncipes, cientistas, estudiosos, eclesiásticos, marinheiros, soldados e artífices, se tornaram harmoniosamente as peças complementares de uma empresa, à primeira vista vedada às possibilidades de um país pequeno, pobre e com poucos habitantes, e que no entanto, desenvolvendo-se ininterruptamente através de cinco reinados, cada geração e cada rei pegando no testemunho que os anteriores lhe passavam, resistiu com uma voluntariedade admirável, porque em escala nacional e secular, às contingências e aos infortúnios da política, das forças contrárias, das pressões externas, da própria inércia da rotina, do hábito, do tempo que gasta energias e consome entusiasmos.


Neste mundo medieval no que ele teve de melhor, a educação do homem realizava-se nas duas instâncias do interesse individual e do interesse universal que há pouco mencionámos: a primeira, correspondente à preparação profissional, tinha como esfera a corporação; a segunda, correspondente ao saber e à missão universal deste saber, tinha como esfera a universidade.

Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde esses tempos em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.

Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.

Proclamada a República em 1910, constituíram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.

Em que consiste, na verdade, esta Universidade, que um dos seus mais lúcidos e recentes críticos, Afonso Botelho, disse com razão dever chamar-se, mais propriamente «diversidade» do que «universidade?» (1). Sob a influência, por um lado, da crescente complexidade da vida contemporânea, exigindo uma cada vez mais intensa especialização profissional, e por outro lado, das ideias positivistas, proclamando a redução da filosofia ao saber fragmentado e desunido das ciências particulares, isto é, do saber espiritual ao saber material, a universidade tornou-se, pura e simplesmente, num aglomerado de escolas técnicas.



Afonso Botelho




Estas escolas técnicas, visando quase exclusivamente a preparar o aluno para a profissão, realizam assim apenas uma das instâncias da educação do homem, a que nos referimos há pouco: a instância do interesse individual, independente de qualquer outra finalidade, princípio ou ideia. Quanto à segunda instância, a do interesse universal, em vão a podemos procurar na universidade profissionalista de hoje. Ela está ausente - e esta ausência dir-se-ia não ser reconhecida pela maioria dos professores que, emparedados no seu especialismo, não sentem a inquietação espiritual das gerações de estudantes que lhes passam sob a cátedra. Inquietação espiritual que o liceu, com o seu enciclopedismo dispersivo, e que a idade liceal, menos dada à reflexão do que aos jogos e aos anseios da adolescência, não souberam ou não puderam resolver ou encaminhar. A chamada crise da universidade corresponde acima de tudo, quanto a mim, ao vazio deixado pelo desaparecimento das antigas funções culturais que lhe competiam. A Universidade abandonou a Verdade para servir a Utilidade.

Em face desta situação, rigidamente estabelecida, profundamente vinculada aos interesses pessoais de alunos e professores - ambos aprendendo e ensinando para viver, grande número dos que se debruçam sobre o problema, resolvem-no reconhecendo e admitindo a falência da universidade como formadora do saber, como integradora do homem numa existência transcendente à simples luta pelos bens materiais ou mesmo à mera afirmação de personalidade.

Formulando-a deste modo, a crise da universidade portuguesa é apenas um aspecto da crise da universidade europeia, afirmada e reconhecida pelos espíritos mais lúcidos do nosso tempo. Ortega y Gassett, já escrevia, em 1930: «Comparada com a medieval, a Universidade contemporânea complicou imensamente o ensino profissional que aquela proporcionava em gérmen, e acrescentou a investigação, abandonando quase por completo o ensino ou transmissão da cultura.

Isto representou, evidentemente, uma atrocidade, cujas funestas consequências, a Europa está agora a pagar. O carácter catastrófico da situação presente deve-se ao facto de o inglês médio, o francês médio, o alemão médio, serem incultos, não possuírem um sistema vital de ideias sobre o mundo e o homem correspondentes ao tempo. Esse personagem médio é o novo bárbaro, atrasado em relação à sua época, arcaico e primitivo em comparação com a terrível actualidade e data dos seus problemas. Este novo bárbaro é principalmente o profissional, mais sábio do que nunca, mas também mais inculto - o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista» (2).




Benedetto Croce, o conhecido filósofo italiano que, como Ortega y Gassett, a Europa perdeu há pouco tempo, dizia há cinco anos a um escritor brasileiro que o foi entrevistar em Nápoles: «No melhor dos casos, o estudante excepcional sai dos bancos académicos munido apenas de instrumentos de pesquisa; apura o orgão para uma função posterior. E, se esta não tiver oportunidade, acaba por se atrofiar. Além disso, o verdadeiro saber, a Universidade é incapaz de o dar» (3).

Como quiseram resolver Ortega e Croce esta «importância cultural» da universidade moderna? Através de institutos extra-universitários de cultura. Ortega, juntamente com um pequeno núcleo excepcional de pensadores entre os quais é justo destacar Xavier Zubiri e Julian Marias, fundou em Madrid o «Instituto de Humanidades». Croce, que foi um dos criadores, em Itália, de um instituto correspondente, mas de orientação muito diversa, o «Instituto italiano dos estudos históricos», chegou a dizer: «Daí, a imperiosidade dos Institutos, que nestes últimos anos vêm surgindo nos centros mais densamente culturais do mundo. O curioso é que tais institutos como o de Jean Wahl em Paris ou o de Ortega em Madrid - surgiram sem uma prévia consulta: as condições universitárias hodiernas, absolutamente incapazes de atender aos reais anseios das autênticas vocações, acabaram por impor a nova fórmula de estudos, às vezes programaticamente paralela à Universidade, às vezes supletiva e, quase sempre, contraposta ao espírito universitário actual, que hoje naufraga no seu especialismo estéril e meramente propedêutico. Diante disto, não há a menor dúvida de que a crise universitária só será resolvida... fora da Universidade» (4).

Afigura-se-me que esta solução, correspondendo ao pensamento dos que defendem a inutilidade da salvação da universidade como tal, deixando-a confinada à sua tecnicidade, e transferindo os problemas da formação cultural e da universalização do saber para fora das suas portas, ignora ainda o nódulo da questão universitária. Abandonar a segunda instância da educação do homem aos sabores e caprichos comerciais da imprensa, da rádio, do cinema ou da televisão, à multiplicidade dispersa do movimento editorial, à irresponsabilidade filosófica de uma arte que se dirige pelas modas e que perdeu a ciência dos símbolos, ou ao pequeno grupo de mestres de elite que possam reunir-se em volta de um Instituto extra-universitário, que as exigências da vida moderna necessariamente obriga a ser escassamente frequentado - é no final de contas o mesmo. Um Instituto desses pode sem dúvida formar uma elite de altos espíritos, uma dezena de vocações para a cultura superior que de outro modo talvez não tivesse campo para se desenvolver. Vou mais longe: creio na utilidade e até na necessidade desses focos de alta cultura. Mas não lhes podemos pedir que formem gerações inteiras. E, nesta viagem em que todos estamos empenhados, a salvação não pode repousar apenas nos ombros de uma dúzia de intelectuais.




Por outro lado, tanto Croce, profundamente ligado ao idealismo trágico alemão, como Ortega, que promoveu a fusão de certos valores da cultura espanhola com as traves mestras das vias do pensamento germânico, como Jean Wahl, aliás um dos mais inteligentes representantes do existencialismo francês, como tantos outros teorizadores da cultura centro-europeia, acreditam que os mais altos cumes do esforço intelectual são a investigação da matéria e o exercício da razão pura, ou seja, as ciências e a metafísica. Mas as ciências, se podem analisar a composição dos corpos, nada nos dizem sobre as causas e os fins da própria existência do homem e do mundo; e a metafísica, mesmo quando esgotasse toda a capacidade da razão humana, não nos levaria mais longe no plano ético do que aquela situação existencial de angústia, de náusea, de lúcida perplexidade, de lógico desespero, de dialéctica do ser e do nada de que falámos ao princípio destas considerações.

Não é senão natural, por conseguinte, que os mais profundos teorizadores da nossa universidade, pensando-a a partir dos conceitos próprios da filosofia portuguesa, se afastem da metodologia proposta pelos pensadores franceses, alemães, espanhóis ou italianos. Não me é possível aceitar que a educação superior fique sujeita à dispersão, à multiplicidade, ao jogo caótico de jornais de todas as índoles, livros de todos os géneros, expressões publicitárias de todas as intenções, tendo no cume um instituto para uso exclusivo de élites intelectuais - o que teria de equivaler não só a uma aristocratização cultural, como a uma entronização do saber puro.

Porque é finalista, porque crê que o conhecer, o sentir e o agir devem andar sempre indissoluvelmente ligados, para que a nau possa efectivamente navegar, em vez de permanecer parada, afundando-se, enquanto o capitão e os oficiais examinam as estrelas ao telescópio - o pensamento português defende que a educação verdadeira não é apenas transmissão de saber, mesmo superior, como o querem Ortega e Croce, é igualmente formação de sensibilidade, pela arte, e da vontade, pela adequação do acto à ideia. A responsabilidade cultural da Universidade não pode, por conseguinte, ser adiada ou transposta para outros campos. Não é desejável que seja criado um abismo demasiado profundo entre os filósofos e cientistas, de um lado, formando-se fora da Universidade, entregues exclusivamente a problemas racionais e materiais de conhecimento - e os técnicos, do outro lado, cada um dedicado à sua parcela profissional, restrita e desligada do conjunto. Pelo contrário - parece-me que a boa doutrina consistiria em unir, comunicando-lhes por igual uma visão unívoca do universo, que lhes dê consciência da posição relativa e da função superior da respectiva técnica, profissão ou especialização, filósofos e cientistas - engenheiros, arquitectos, advogados, professores, médicos ou economistas.

Leonardo Coimbra, um dos fundadores da filosofia portuguesa, que na desaparecida Faculdade de Letras do Porto formou toda uma geração de pensadores que ocupam hoje um relevante lugar na vida cultural do nosso país, foi dos primeiros a defender um conceito dinâmico de cultura, quando afirmou que o «fim da educação é a cultura nacional-humana» (5), e que «educar é cultivar as liberdades criadoras da cultura nacional-humana» (6). Por outras palavras, educar não será unicamente desenvolver a inteligência do educando ou transmitir-lhe conhecimentos - será também fazer de cada educando, a peça essencial de uma pátria em movimento de ascensão. Não é mais educado, neste sentido, o grande sábio que se recolhe egoistamente na sua torre de marfim, do que o trabalhador rural rude e analfabeto.




Leonardo Coimbra




Álvaro Ribeiro, discípulo de Leonardo Coimbra, ampliou os conceitos do mestre, propondo um sistema universitário em que a cada Faculdade seja dado um grau de responsabilidade cultural superior ao que existe actualmente, seja pela criação de disciplinas teoréticas, especialmente adequadas às matérias constantes do programa, seja pelo progresso da relação mestre-discípulo, relação quase desaparecida do ensino universitário, seja pela diversificação e enriquecimento dos tipos de ensino. No cume do sistema universitário, ficaria colocada a Faculdade de Filosofia, à qual competiria a «centralização das experiências pedagógicas e das investigações filosóficas que, pelas suas características perturbadoras, afectam a normalidade das outras escolas»; nela se reflectiria, «dinâmica e vivente», afirma o autor de «Apologia e Filosofia», «a unidade da cultura nacional» (7).

O ensino da filosofia está hoje, como se sabe, entregue à Faculdade de Letras, instituição que reúne vários Cursos díspares, desde o de Filologia Clássica ao de Ciências Históricas e Filosóficas. Uma Faculdade de Filosofia teria necessariamente que sair de uma reforma da Faculdade de Letras, separando a Filologia da História e esta da Filosofia. Mas semelhante divisão, que não deixaria de ser benéfica, acrescente-se, conservaria possivelmente a estrutura do ensino da filosofia tal como ali é praticado actualmente. Neste aspecto, o núcleo teorético da Faculdade de Letras está longe, muito longe mesmo de poder assumir o papel de promotor e activador da «unidade da cultura nacional».

Um ensino de feição positivista, historicista, indiferente aos valores específicos da cultura portuguesa, limitando-se a transmitir sínteses históricas de correntes estrangeiras, nivela-se ao das escolas de especialização profissional, usando os mesmos processos para o desenvolvimento espiritual do aluno que usam as faculdades de medicina ou engenharia para a aptidão técnica dos seus licenciados. Para obter a licenciatura, o aluno do actual curso de Ciências Históricas e Filosóficas não tem que saber pensar, sentir ou agir - apenas aprender de memória as noções históricas de compêndio, que encerram em meia dúzia de frases, os pensamentos de Descartes, Kant ou Espinosa. Na realidade, este curso pode ser considerado, no condicionalismo já descrito no capítulo anterior, simplesmente como outra escola técnica (in «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade», Cidade Nova, 1956, pp. 121-132).


Notas: 

(1) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Lisboa, 1955.

(2) Ortega y Gassett, Mission de la universidad, Madrid.

(3) In Acto, n.º 1, Lisboa, 1951. Entrevista de Luís Washington.

(4) In Acto, n.º 2, Lisboa, 1952. Entrevista de Luís Washington.

(5) Leonardo Coimbra, O Problema da Educação Nacional, Porto, 1926.

(6) Ob. cit.

(7) Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1943.








Continua


sábado, 27 de abril de 2013

Sobre os males que assolam a Universidade (ii)

Discurso pronunciado por Henrique Veiga de Macedo





«Lisboa, 7 de Maio [de 1962] - Pelo fim da tarde, vou ainda à residência da Rua da Imprensa e relato a Salazar o que se passou em Atenas. À despedida, Salazar diz-me: "Informam-me que amanhá haverá tiros por aí, mas como não devem chegar até aqui, apareça às seis para continuarmos".

Lisboa, 12 de Maio - Jantar em casa de Teixeira Pinto. Está Pinto Barbosa. Fala-se de tumultos nos dias 16, 18, 26 e 28, com assaltos e atentados. Porquê nestes dias? Continua o desassossego dos estudantes.

(...) Lisboa, 16 de Maio - Dia calmo, não se produziram incidentes nem os distúrbios anunciados. Recebo o jornalista americano Constantine Brown: deixou Kennedy escavacado. Chega a Lisboa Vassalo e Silva: recebido com o gelo do público e dos meios oficiais. No Conselho de Ministros de ontem, ao comentar um manifesto comunista a propósito dos estudantes, disse o chefe do governo: "fora com Salazar, é a única coisa que está certa no manifesto".

(...) Lisboa, 25 de Agosto [de 1964] - (...) A propósito não sei já de quê, o Presidente do Conselho diz-me: "faltam-nos homens, o nosso sistema de educação é mau, sempre o foi"».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«As organizações comunistas têm feito tudo para exercer influência decisiva junto da opinião pública e deve reconhecer-se que lograram já entrar em certos meios ligados à informação ou à cultura. Por outro lado, estão a actuar com particular interesse junto dos trabalhadores dos escritórios, das oficinas e do campo.

Pois há que opor um dique a tais infiltrações, começando por desmascarar certos intelectuais ou pseudointelectuais que à sombra de pretensas preocupações científicas ou literárias tentam difundir os princípios marxistas e apoiar, com a sua propaganda directa ou camuflada, as actividades do comunismo internacional.

No mundo do trabalho, importa redobrar de vigilância na certeza de que, se o fizermos, os trabalhadores não se deixarão manobrar pelos agitadores profissionais, tantas vezes estimulados, numa inconsciência pasmosa, por alguns dirigentes de empresa que, dessa maneira, julgam a poder salvar a fazenda e a vida se um dia, por desgraça, eclodir a insurreição comunista.






(...) Quem não semeia não pode colher. Se à acção comunista não opusermos o exercício efectivo de um magistério político e social bem orientado, não poderemos queixar-nos se perdermos terreno. Os êxitos dos comunistas só são possíveis quando nós recuamos ou transigimos. É assim no plano das relações internacionais e também assim é, dentro de cada comunidade nacional, no domínio das actividades culturais, sociais ou económicas.

Eis quanto a mim, a grande lição a tomar em conta nestes tempos cruciais que atravessamos. Se a tivermos bem presente, não prevalecerão contra nós nem as calúnias, ataques e crimes dos inimigos, nem a incompreensão e hesitações dos que, dizendo-se amigos ou aliados, esquecem que estamos a defender os verdadeiros interesses e a própria honra do Ocidente».

Henrique Veiga de Macedo («Renovação na continuidade», in Três Campanhas Eleitorais Um Pensamento).


«Lisboa, 25 de Janeiro [de 1962] - Referindo-se aos americanos, Salazar disse-me: "Que queiram deitar-me a terra, compreendo; mas irrita-me que me tomem por tolo".

(...) Lisboa, 14 de Maio [de 1962] - (...) A propósito de uma notícia sobre os Açores na imprensa dos Estados Unidos, troquei rápidas impressões com Salazar. Diz: "se não houver mudança americana, não poderemos negociar; então terá de ser outro governo a fazê-lo". Exprimo a convicção de que nenhum governo português assinaria um acordo contra os interesses nacionais. Reage Salazar. "Meu caro senhor, está muito enganado. Há homens que querem ser ministros seja em circunstâncias for, e para isso estão dispostos a assinar seja o que for, ainda que subordinem, entreguem ou vendam o país. O senhor é muito ingénuo, está muito enganado".

(...) Lisboa, 10 de Dezembro [de 1962] - Por nossa parte, disseminámos novas "notícias" quanto à ONU e ao Catanga - e os telegramas portugueses entraram já no circuito internacional. Trabalho com o Presidente do Conselho. Fala-se da última remodelação, que considerou uma tortura. Mais conversa sobre a ONU. Diz o chefe do governo: "Ainda havemos de sobreviver às Nações Unidas. Os Ocidentais não estão de boa-fé em África". Recebidas notícias de um plano anglo-americano, concertado em Oxford, para dividir a África em duas fatias: a oriental, para os ingleses; a ocidental, para os americanos. Querem os ingleses sossego em Moçambique para garantir a vida económica das Rodésias. Também se realizariam conversas entre católicos e protestantes para definirem esferas de influência religiosa em África. Sinto dificuldade em acreditá-lo.

(...) Lisboa, 31 de Janeiro [de 1963] - Recebidas notícias mais do que inquietantes quanto à política americana em África como meio de aumentar a sua dependência do exterior; montagem de uma rede de informações sob a capa do Peace Corps; não rejeição (embora sem apoio directo) da eventualidade de os grupos terroristas solicitarem a intervenção de forças da ONU. De Gaulle opõe o seu veto à entrada da Inglaterra no Mercado Comum; a atitude é sobretudo antiamericana: trata-se de vincar uma oposição à interferência de Washington em África, e na própria Europa.






(...) Nova Iorque, 8 de Novembro [de 1965] - Já suscita interesse menor a reunião do Conselho de Segurança contra Portugal. Poucos jornalistas, escasso público nas galerias; delegados de outros países, esses, ainda são numerosos, acicatados pela curiosidade. E cá temos a Libéria, a Tunísia, a Serra Leoa e Madagáscar a brandir o gládio contra nós, a zurzir-nos com as acusações já puídas pelo tempo e pelo uso. É o ritual: Portugal não cumpre a Carta da ONU, temos câmaras de tortura e conduzimos uma operação planificada de genocídio, ameaçamos a paz e a segurança do mundo; e o homem da Serra Leoa diz mesmo que andamos pelo mundo a comprar jactos de combate e submarinos, assim como quem se fornece de brinquedos para os filhos pequenos. Não tenho dúvidas no meu espírito de que reduzi a estilhas as barbaridades dos africanos. E até é já fácil fazê-lo: os argumentos são tão ingénuos e as acusações tão descomunais de exagero e extravagância que a sua refutação não é tarefa de monta. Mas isso a nada leva: o problema não é de lei, de lógica, de razão, de justiça, de direito, de dialéctica: é político: e consiste em que umas forças e uns interesses se querem apoderar, no sentido literal do termo, do Ultramar português. Mais nada. O resto - é a paisagem do costume.

(...) Lisboa, 27 de Dezembro [de 1966] - No dia de Natal, houve um formidável ataque terrorista a Teixeira de Sousa, mesmo na fronteira. Avaliados em 500, os terroristas sofreram para cima de 200 mortos. Foi uma estrondosa vitória dos nossos - mas é a esta sangria que a política da ONU conduz os povos».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«Na preparação do 1.º de Maio de 1964, o PCP evocava manifestações e a enorme combatividade de 1962, expressa em violentos confrontos com a polícia. Apelava-se à organização de grupos que dirigissem as manifestações e respondessem à repressão policial com acções violentas.

Esta era a orientação da Comissão Executiva, o orgão dirigente do partido no interior do país. Por isso, em Lisboa planeia-se incendiar com cocktails Molotov os carros da PSP, lançar granadas para o interior de esquadras e até cortar os postes de alta tensão que alimentavam a cidade. À porta das fábricas realizar-se-iam comícios-relâmpago, apoiados em grupos de estudantes armados, que utilizariam carros roubados com matrículas falsas. Até se decidiria raptar o reitor da Universidade e um inspector da PIDE. Cinquenta grupos distribuiriam propaganda, fariam pinturas nas paredes e colagens de cartazes.

A organização partidária em Lisboa era numerosa, mas faltava-lhe experiência para este tipo de acções. Nenhuma pôde ser concretizada. A manifestação teve a participação de sete a onze mil pessoas, mas a desorganização foi grande. Do Largo do Rato arrancaram dezenas de estudantes, juntando-se-lhe grupos de operários que, apesar da polícia, conseguem descer pela Avenida da Liberdade e entrar nos Restauradores, agregando muitos populares e apedrejando o Palácio Foz, sede do SNI. Os confrontos ocorreram aí, com vários feridos e um morto, mas com a manifestação a reorganizar-se para subir de novo a Avenida, sendo interceptada e desbaratada por cargas da polícia de choque e jactos de água».

João Madeira («Martins Rodrigues e a Cisão do PCP», in Os Anos de Salazar, 20).


«...a oligarquia financeira, conjugada com "liberais" e tecnocratas, dera a mão à esquerda invasora. O próprio Marcello Caetano, que se abrira a tais sectores nominalmente liberais, também acabou por reconhecer ter sido a SEDES paulatinamente infiltrada por marxistas. Aliás uma infiltração fora tão patente na Universidade que um inspector da PIDE/DGS (Fernando Gouveia), especializado em subversão comunista, constatou "que os grupos radicais praticantes do combate armado ou influentes nas universidades consumiam mais energia à PIDE/DGS do que a estrutura clandestina comunista, que era a que 'dava menos trabalho'”.






A confirmar a incidência comunista aquando do antigo regime, está o facto de 128 oposicionistas das prisões de Caxias e Peniche serem, na sua maioria, "militantes do PCP e da CDE, organização de frente dos comunistas", para não falar de uns poucos "membros de associações cristãs e 10 militantes do MRPP". Quanto ao PS, segundo Freire Antunes, zero. Por conseguinte, é um facto que os comunistas estavam bem infiltrados na Universidade para, em Maio de 1962, provocar o caos e a turbulência académicas por via dos mais variados recursos, tais como: cartas, manifestos, jornais anti-situacionistas, boicotes a aulas e exames, subversão ideológica da “estudantada” por associações e movimentos sindicais universitários, assim como a ocupação de instalações como a que ocorrera numa cantina universitária em que foram presos um milhar de estudantes já exímios nas baladas de Zeca Afonso, ou ainda a mobilização de intelectuais comunistas como Baptista-Bastos, Fernando Namora, Cardoso Pires, Saramago, Sophia de Mello Breyner, Urbano Tavares Rodrigues, etc.

(...) Consequentemente, o intuito do regime era, com base numa intervenção policial sobre as manifestações estudantis, neutralizar os indubitáveis focos de infiltração e propaganda comunista no redil universitário. A questão era certamente delicada, até porque Oliveira Salazar sabia muito bem, a partir da sua experiência em Coimbra, quão perigosa podia ser a confrontação do poder político com a “estudantada”. Mais: o próprio tinha profunda noção da capacidade de intriga provinda da classe universitária em geral».

Miguel Bruno Duarte («Portugal e os Americanos»).


«A decisão de continuar no Ultramar era (...) a única que o País, em 1961, aceitava.

(...) É evidente que, se esta decisão era a que a maioria da opinião pública, na Metrópole e no Ultramar, esperava e exigia, também tinha os seus opositores, mesmo entre os partidários do regime então vigente. Os mais aguerridos eram naturalmente os membros das organizações das esquerdas - comunistas e socialistas - que actuavam na clandestinidade. Por eles foi desencadeada, a nível nacional e internacional, uma campanha activíssima contra o que chamavam "a guerra colonial", defendendo o direito dos povos das "colónias" à independência imediata.

O alvo principal desta propaganda era a juventude, nomeadamente a que frequentava as Universidades, na qual eram recrutados os futuros oficiais dos quadros de complemento das Forças Armadas.

Comunistas e socialistas foram muito auxiliados por certos membros do clero católico e por leigos partidários do "Progressismo", que, depois do Concílio Vaticano II, começara a minar os alicerces e a disciplina da Igreja.

Esta acção desenvolvia-se na Metrópole e no Ultramar, mas com mais insistência na Metrópole.

No Ultramar distinguia-se a propaganda antiportuguesa, principalmente em Moçambique, de algumas congregações religiosas, como a dos Padres Brancos e a dos Combonianos, que tiveram o apoio do Bispo da Beira, D. Sebastião de Resende, e do Bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto.

A propaganda entre a juventude durante muito tempo teve resultados quase nulos. Os jovens portugueses, quando chamados às fileiras, cumpriam briosamente o seu dever.

Os refractários ao serviço militar eram muito poucos. As deserções, em número insignificante. Uns e outras, na maioria dos casos, eram manifestações de cobardia individual.




A juventude, na sua esmagadora maioria, estava moralmente sã e não regateou a colaboração que lhe era pedida para o esforço de defesa.

A situação começou a modificar-se quando, na Universidade, primeiro, nos liceus e escolas técnicas, depois, começaram a formar-se grupos de feição maoísta que, além de lançarem a perturbação sistemática no funcionamento das instituições, faziam hábil e intensa propaganda contra a defesa do Ultramar.

(...) Muitas vezes estive em desacordo com o Doutor Marcello Caetano, principalmente no que respeitava à falta de firmeza verificada na repressão da agitação estudantil e na incompreensível transigência a respeito da política do Dr. Veiga Simão no Ministério da Educação Nacional, grande responsável pelo início do descalabro das instituições universitárias portuguesas e pela instalação da desordem endémica nas Escolas. Muitas vezes fui forçado a, em Conselho de Ministros, criticar severamente o modo como a política de Educação estava a ser conduzida. Nunca concordei com a preocupação excessiva de abertura política, pois sempre considerei que esta atitude não era consentânea com as necessidades da luta contra a subversão, que pretendia, como aconteceu, minar a retaguarda, já que, pelas armas, no Ultramar, não conseguia vencer. Nunca deixei de manifestar esta opinião».

Silva Cunha («O Ultramar, a Nação e o '25 de Abril'»).




Intervenção do Deputado H. Veiga de Macedo, na Assembleia Nacional, na sessão de 17 de Abril de 1970


Reivindica-se muito a participação dos estudantes na vida da Universidade? Pois a participação cabe perfeitamente na perspectiva de uma remodelação de raiz e de escopo corporativo. Se foi possível afastar ou atenuar grandemente os choques sociais no mundo do trabalho, por que não aplicar os mesmos princípios na resolução das questões universitárias? Desta forma, afastar-se-á, com naturalidade e vantagem, a tese sindicalista, inspirada na luta de classes, que deve pôr-se de parte como se fez nos sectores económicos e sociais.

Haverá, porventura, nos regimes comunistas qualquer espécie de participação dos estudantes no funcionamento das escolas superiores ou ser-lhes-á, ao menos, consentido escolher livremente o curso ou a actividade profissional? Não se sabe que, aí, o Estado é o denominador absoluto e implacável, tanto no domínio da economia como no do ensino e da educação?

Não aludiria a estes aspectos se a isso não me obrigasse o facto de, em diversos processos da agitação, terem tido uma acção preponderante elementos mentalizados por ideias confessadamente antinacionais.



Se preconizo a maior tolerância e simpatia com a juventude que, sem perder o aprumo e a noção das responsabilidades, defende com firmeza os seus direitos e aponta deficiências do ensino - seja-me lícito recordar o louvável exemplo dos milhares de bolseiros da Previdência, sempre presentes no meu espírito -, não poderia, por outro lado, deixar de verberar a actuação daquelas minorias que têm suscitado ou agravado o desassossego em vários meios académicos.

É a pensar nelas que reproduzo estas palavras impressionantes:

Uma tolerância inoportuna, ou uma vergonhosa tibieza, ou uma espantosa leviandade, ou uma perplexidade inexplicável em vários casos, ou preconceitos bem mal experimentados sobre a educação moderna - são posições pelas quais não só se colocam mal eles mesmos, adultos, à mercê de diversos perigos, como também recusam a uma juventude desorientada a educação a que tem direito. Que se esquive ou negue essa mesma juventude a recolher a tal educação - não justifica a desistência dos que deveram propor-se dar-lha [...].

Há, actualmente, no Mundo legiões de jovens que parecem divertir-se atacando, destruindo, negando a  torto e a direito, rebelando-se nem sabem contra quem ou quê?! Esses jovens são ou podem ser os nossos filhos, os nossos netos, os nossos alunos ou educandos, os nossos irmãos e companheiros de menos idade [...].

Aos interesseiros e interessados aduladores dos jovens, que os próprios jovens mais inteligentes deveriam repelir, cabe, sim, grande parte da responsabilidade na desorientação de certa juventude actual. Se os mais novos precisam de ser compreendidos [...] não significa isso que devam adulá-los no intuito de conquistarem a seu favor [...] ou devam desistir do poder que ainda têm nas mãos [...].

Por isso mesmo compete aos mais velhos a dignidade, a inteligência e a caridade de a não lisonjearem, como se ela valesse por si e independentemente das maneiras como se afirma.

Estas palavras não são minhas. É seu autor José Régio, esse insuspeitíssimo espírito de eleição, cujo depoimento aqui deixo registado, porque tem a força e a ressonância das melhores mensagens.

Sr. Presidente:

Depois de na minha intervenção anterior ter aludido aos fins da Universidade, aflorei hoje o tema da autonomia e o da participação.






Desejaria ainda deter-me sobre mais alguns problemas. Não me sendo possível fazê-lo, limitar-me-ei a sumariar os que mais facilmente consentem este esforço de síntese.

1.º Começarei por salientar a necessidade de não se perder a visão de conjunto das questões referentes aos vários ramos e graus do ensino, conhecida, como é,  a tendência entre nós verificada, por parte do escol intelectual, para se olhar apenas ou predominantemente à Universidade.

Para obviar, na medida do possível, a este inconveniente, se lutou, através do Plano de Educação Popular de 1952, contra inveteradas deformações do espírito, que não se mostram ainda completamente corrigidas ou eliminadas.

Os problemas do ensino são de tal maneira interdependentes que não é possível resolvê-los se os encararmos em separado e fora de um plano global, em que as relações íntimas sejam tomadas em conta.

A este propósito, é de perguntar, por exemplo, se o liceu, tal como está a funcionar, entrega à Universidade alunos preparados para se integrarem nela e a ajudarem a cumprir a sua missão, ou se, na instrução primária, todas as crianças em idade escolar recebem normalmente o ensino, pois julgo que, neste domínio, está a perder-se terreno que tanto custou a desbravar.

2.º Facilitar o acesso à instrução foi sempre para mim problema verdadeiramente apaixonante. Do propósito de ir ao seu encontro nasceram, quer a campanha contra o analfabetismo, quer a instauração nas obras sociais da Previdência de um regime de bolsas de estudo ao alcance dos trabalhadores, e seus filhos, merecedores desse auxílio, quer a política de promoção social em que também me foi dado cooperar ao longo de muitos anos.

Pode mesmo dizer-se que a política de expansão do ensino primário visou também o importantíssimo objectivo de alargar a base de recrutamento do escol dirigente português. E não será ousado dizer que desse movimento emerge, em grande parte, o crescente interesse das populações pela instrução, embora deva lamentar-se que, a tempo, não hajam sido tomadas as providências requeridas pelo previsível acréscimo de alunos nos diferentes ramos de ensino.

Sem dúvida, deve continuar a combater-se qualquer forma de privilégio e a advogar-se uma política de verdadeira democratização cultural, visando o aproveitamento dos melhores. Mas, ao mesmo tempo, têm de evitar-se desperdícios de dinheiro e energias com aqueles que, falhos de inteligência e de vontade, não estão em condições de frequentar cursos superiores altamente especializados. Por outras palavras: a Universidade deve estar aberta a todos os que o mereçam e, por isso, uma política de educação esclarecida, se tem de procurar a selecção gradual e criteriosa dos melhores, há-de ser acompanhada por uma política económica e social que propicie o acesso à cultura de todos quantos, independentemente da sua posição social ou material, se mostrem capazes de seguir, com êxito, as carreiras universitárias.

O Sr. ALBERTO de MEIRELES - Muito bem!

O ORADOR: - Neste dominio é ainda longo o caminho a percorrer, mas seria injusto negar o muito que já se fez.

E importa evitar que neste assunto, à ideia generosa de uma promoção social e cultural de base democrática e de sentido hierárquico (idênticas possibilidades a todos e diferenciação de posições de acordo com os méritos de cada um), se substituam preconceitos de baixa política e intenções de pura demagogia, ou até leviandade e impreparação na análise estatística dos resultados obtidos.

3.º Esta preocupação do aproveitamento dos melhores há-se incidir na própria constituição do corpo docente das escolas superiores. Quando chegará o momento de, nesta tarefa selectiva, se atender não apenas às elevadas qualificações escolares, mas às vocações e aos atributos pedagógicos dos candidatos? Acaso estas qualidades primordiais serão apenas de exigir aos professores dos outros graus de ensino?

O saber é necessário, mas, no plano específico da transmissão dos conhecimentos, tem de ser servido por vocação marcada e por sólida preparação pedagógica.

Ora, o que neste campo se tem passado e passa não abona a política de recrutamento do nosso professorado universitário.

É preciso remunerá-lo com justiça, alargar-lhe os quadros, levá-lo a devotar-se em profundidade ao magistério e a participar na vida da comunidade universitária, estimulá-lo com meios de acção e prestigiá-lo socialmente? Ninguém o contestará, desde que, em compensação, se lhe exija competência e zelo, assiduidade e fecundidade no trabalho, e ainda faculdades de adaptação e aquela propensão de espírito para comunicar e transmitir própria dos verdadeiros mestres.

Eis uma questão que continua à espera de quem saiba e queira enfrentá-la com decisão e largueza de espírito.

4.º Este e outros objectivos não os alcançará, por si ou só por si, a Universidade. Também sou dos que pensam que esta não se auto-reformará: é da história e da natureza das coisas. Mas, se estimulada pela Nação e pelas instâncias oficiais, a sua cooperação, aliás imprescindível, poderá assumir o maior interesse.

Todavia, só o Estado será capaz - nem outro é o seu dever - de lançar os caboucos e levar a termo uma política universitária renovadora. Tudo está em que, animado de um pensamento e de uma vontade, conquiste a adesão dos espíritos e vença as resistências da rotina, a menor das quais não será, por certo, a da própria cátedra quando convertida em mero e inamovível privilégio pessoal.

Direi mesmo que quanto maior for a autonomia da Universidade, mais forte tem de ser o poder público quer para impedir que as prerrogativas outorgadas se convertam em abusos e os interesses pessoais ou dos grupos prevaleçam sobre os do País, quer para defender a instituição dos perigos do imobilismo e da ancilose.

5.º A par das remodelações que importa levar a cabo, penso ser altura de se pensar na criação de mais algumas Universidades, de modo a descongestionar as existentes, a favorecer uma legítima emulação entre os diferentes estabelecimentos de ensino e a criar, sempre que possível, através delas, pólos de desenvolvimento económico e social em regiões carecidas e estímulos especiais, para se não agravar o desnível em que se encontram em relação a outras mais progressivas. E tudo aconselha a que essas Universidades se estruturem em novos moldes, de maneira a poderem adaptar-se com facilidade às exigências crescentes e versáteis da vida moderna e a constituírem instrumentos vivos da renovação geral que se impõe e paradigmas perfeitos para os diferentes establecimentos de ensino superior.

6.º Assinale-se ainda a clamorosa necessidade de dotar o Ministério da Educação Nacional com uma nova orgânica e os meios indispensáveis ao cabal desempenho da sua missão.

A Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes quase se reduz ao director-geral, sobre cujos ombros de funcionário proficientíssimo, devotadíssimo e esclarecido têm recaído os mais pesados encargos. Mas esse homem extraordinário, quase só, porque coadjuvado por um quadro reduzidíssimo de pessoal, não pode, por maior que seja o seu empenho, fazer o que, dia a dia, passa, em avalancha, pelo importante serviço público à sua directa responsabilidade.






O Governo, que tem sido mãos-largas para com serviços novos criados em diferentes sectores, alguns dos quais dispensáveis e outros a actuarem de modo desordenado, quando não contra os fins superiores do Estado, tem-se mostrado avaro por de mais quando se trata de remodelar ou apetrechar os orgãos clássicos dos Ministérios.

Já aqui chamei a atenção para o assunto em termos incisivos, e por isso dispenso-me de reproduzir essas considerações que, no entanto, mantêm plena actualidade.

7.º Por último, seja-me permitido realçar que não basta comprometer na politica de educação verbas vultosas. Nós estamos, felizmente, a atingir índices de gastos neste domínio expressivos.

Segundo as previsões do Orçamento Geral do Estado para o ano em curso, as despesas com os serviços culturais da administração civil e com os investimentos de fins culturais deverão ser superiores a 15 por cento do total das despesas públicas, o que, mesmo em confronto com os gastos, no capítulo das actividades educativas, registados noutros países, é já muito significativo.

No entanto, isso não chega, pois é mister extrair desse enorme esforço financeiro todo o possível rendimento, através de uma distribuição criteriosa, atenta às deficiências mais gritantes, como as que se registam nas bibliotecas. O que importa não é gastar muito, mas resolver os problemas com os menores dispêndios possíveis.

O apontamento aqui fica, tanto mais que começa a formar-se uma mentalidade quantitativista que parece considerar a escola como simples máquina para a produção de mão-de-obra ao serviço da industrialização do País. Mas a escola há-de ser, sobretudo, meio para dar corpo e vida, dentro de uma efectiva política cultural, à valorização do homem e, como tal e especificadamente, do homem português.

Sr. Presidente:

Procurei ser objectivo nas minhas considerações destinadas a evidenciar que não é com palavras fáceis e sonoras dos slogans, nem com programas ambiciosos desligados das realidades, nem tão-pouco com o estudo casuístico das questões ao sabor das preferências pessoais ou sob a pressão de exigências emocionais, alheias à essência do debate ou do interesse nacional, que os problemas pendentes encontrarão a solução apropriada.

Quero dizer: é preciso definir um pensamento. Mas uma vez definido, após audiência das instituições interessadas, tem de intervir uma vontade que o realize. Essa vontade há-de ser a do Governo, na fidelidade às aspirações e ao querer da Nação.

Pela minha parte, no debate em curso, só me cabia formular alvitres. Foi o que fiz, embora correndo o risco de haver ocupado por demais o tempo da Assembleia.

É possível. Mas como me justificaria perante mim próprio se me esquivasse a dizer o que penso num assunto tão importante e oportuno como este?

Mais: como me absolveria se, nesta Câmara essencialmente política, não pusesse o acento tónico nos aspectos que, nesta época singular da vida colectiva, conferem aos problemas universitários, tal como se apresentam, o maior significado político e o mais largo alcance nacional?

Vozes: Muito bem! (in ob. cit., pp. 50-66).





terça-feira, 23 de abril de 2013

Sobre os males que assolam a Universidade (i)

Discurso pronunciado por Henrique Veiga de Macedo





Marcello Caetano na varanda da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa



«Lisboa, 5 de Abril [de 1962] - Publicada nota oficiosa. Demite-se Marcello Caetano, reitor da Universidade Clássica de Lisboa. Sensação no país. Atitude de Marcello Caetano é interpretada como de oposição ao governo. Ao que parece, Lopes de Almeida havia-lhe dado a entender que o Dia do Estudante seria autorizado. À noite, estou com Azeredo Perdigão e Marcello Mathias: ambos acentuam a importância e mesmo a gravidade da crise universitária. Desencadeou-se um claro estado de tensão e nervosismo. Luís Teixeira Pinto e André Gonçalves Pereira telefonam-me a acentuá-lo. Fervem boatos de greves universitárias».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«(...) A ambiguidade da figura de Caetano, de acordo com o The New York Times, tinha ficado bem demonstrada na sua atitude em duas situações distintas. Em 1962, Caetano demitira-se do cargo de reitor da Universidade de Lisboa, pouco depois de a polícia ter invadido a Universidade e "prendido estudantes que se manifestavam". No entanto, o mesmo Caetano escreveria, pouco depois, um artigo no qual defendeu punições "severas" para os estudantes que se haviam manifestado. Uma "ambiguidade semelhante" rodeava a carta que Caetano tinha escrito recentemente a Mário Soares, um "líder da oposição ao regime que se encontra exilado na ilha de São Tomé". Nessa carta, o futuro Presidente do Conselho defendeu a existência da legislação que justificava o exílio de Soares mas, por outro lado, manifestava ao seu "colega advogado" as suas "maiores simpatias pessoais e profissionais"».

Luís Nunes Rodrigues («A Sucessão de Salazar e os Estados Unidos», in Os Anos de Salazar, 25).


«Lisboa, 17 de Abril [de 1962] - Agitação estudantil em larga escala, demissão de alguns directores de Faculdades, rumores de tumultos sérios para o primeiro de Maio. Em Conselho de Ministros, Salazar diz: "muitos vão precisar de injecções de vitaminas". E analisando a acção que atribui aos comunistas em toda a agitação, comenta: "se nada fizermos, antes de dez anos eles estão sentados a esta mesa"».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«A proibição em 1962 da realização do Dia do Estudante (...) marcou definitivamente a ruptura do regime com as futuras elites. Basta cotejar os nomes dos dirigentes associativos desse ano com as personalidades políticas actuais (...). Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo, António Sousa Franco, Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa, uns à esquerda, outros ao centro demo-cristão, todos eles desempenharam um papel nessa contestação ao regime de Salazar».

António Melo («Crise Académica: a Greve de Fome», in Os Anos de Salazar, 19).








«Mais importante, porém, é o estado de espírito que parece ser o de alguns sectores das Forças Armadas. Dentro de pouco, cumprem-se seis anos sobre o início da luta no Ultramar. Nos termos e com os seus objectivos iniciais, foi o terrorismo frustrado em Angola, contido em Moçambique, controlado na Guiné. Militarmente, não há para as forças portuguesas a perspectiva da derrota, ou desaire, salvo pela intervenção de meios internacionais poderosos, ou de uma grande potência; mas as duas possibilidades têm de ser havidas como remotas. E no entanto transpira dos círculos militares um mal-estar, um sentimento de insatisfação que não se define com nitidez. Alguns oficiais do quadro fizeram já várias comissões em África, com todos os incómodos e problemas pessoais e familiares que o facto acarreta; e consideram que uma carreira de longo serviço activo se torna desconfortável. Por outro lado, e pela escassez de quadros, tem de ser cada vez maior o recurso à mobilização de oficiais milicianos, recrutados entre os estudantes universitários ou jovens recém-formados, que assim têm os seus estudos ou estágios suspensos por algum tempo. E em alguns meios da juventude há um novo fervilhar de ideias. Do entusiasmo ou pelo menos da naturalidade inicial com que era encarado o serviço militar, passou-se a uma relutância que está conduzindo ao repúdio dos próprios motivos que impõem a mobilização. Para este estado de espírito convergem factores vários: a intensificação da propaganda pacifista nas escolas, feita por elementos oposicionistas de esquerda, e apoiada pelas potências estrangeiras que em seu proveito pretendem o colapso da política portuguesa; a difusão dos princípios do Concílio Vaticano II, ou que lhe são atribuídos, e a que é dado um conteúdo que não possuem mas que permite apresentá-los como reprovando toda a guerra, ainda que defensiva, e condenando, por velharias, as noções de pátria e de nacionalismo; a alegação de que a guerra movida a Portugal em África é consequência apenas do carácter autoritário do governo de Lisboa, cessando logo que este seja democratizado; a atribuição de algumas dificuldades na metrópole às despesas com a luta em África, e cujas cifras circulam exageradas; a arguição de que Portugal é autor, e o único autor, de crimes contra a humanidade e de que a ONU é um tribunal com os portugueses no banco dos réus por não acatarem obedientemente as resoluções da organização (esta arguição é tradicionalmente muito comum na história de Portugal. Aparece sempre invocada por espíritos débeis, ou enfeudados ao estrangeiro, e em épocas de política mole. Ela supõe esta ideia: a de que os interesses nacionais se devem subordinar a leis internacionais, elaboradas por outros, difundidas por outros, para defesa e protecção dos seus interesses, e não dos interesses portugueses); o argumento derrotista de que para a luta só cabe uma solução política, dando-se à frase o sentido de paz nos termos exigidos pelo adversário ou seja a entrega do ultramar, e não o sentido da busca de uma fórmula para o manter português por meios não militares; e finalmente a descrença, a tibieza de ânimo, a ilusão de algumas classes da sociedade portuguesa, convencidas de que a África tem importância de somenos ou de que os negócios se continuam a fazer, ou até se fazem com mais lucros depois de abandonado o ultramar, acreditando que uma vez quebrados os vínculos políticos se podem manter os demais. Estas são as ideias difundidas por mil modos e organizações: os progressistas, alguns elementos da Acção Católica, as Igrejas protestantes, muitos intelectuais e artistas, alguns círculos económicos e financeiros, os crentes do mundo novo e melhor, os apóstolos da fraternidade universal, os paladinos de uma nova civilização em marcha, os arautos do amor entre os homens para substituir a guerra entre os homens, os defensores da abolição das fronteiras e das pátrias, os mensageiros do homem que só pode ser livre se for rico e não tiver passado, outros ainda. Estudantes universitários e jovens licenciados sucumbem à barragem da propaganda; e, mobilizados como milicianos, transportam-na, e reproduzem-na pelas unidades, quartéis, salas de oficiais. E de tudo provêm o mal-estar, a inquietação, a atitude crítica que está permeando alguns sectores militares, sobretudo na metrópole. Está consciente do facto o ministro da Defesa, Gomes de Araújo; intensifica a doutrinação e o esclarecimento entre os oficiais de carreira; mas as influências são exteriores, e são essas que importaria eliminar ou corrigir. É todo um problema de pedagogia da sociedade civil que está posto. "Que querem os senhores?", pergunta Salazar, e explica: "Deixamos invadir o Ministério da Educação pelo progressismo, pelo internacionalismo, pela anti-nação. Era novo, era avançado, era estar em linha com as grandes teses dos novos génios. Muito bem. Mas agora não nos queixemos!" Então não se deve fazer nada?  Não se deve voltar a ensinar Portugal nas escolas portuguesas? "Sim, decerto, mas a única pessoa do meu conhecimento que está preocupada com o problema é a Infanta D. Filipa. Não sei de mais ninguém". Por detrás de tudo, há uma vasta paisagem humana, há todo um povo miúdo que constitui a poderosa reserva moral da nação, e nesse não se percebem os mesmos sintomas, e os seus descontentamentos não se apresentam ligados às lutas de África.


Franco Nogueira


(…) Mas entra a primeira quinzena de Março de 1967. Cumprem-se seis anos sobre o início da luta em África. Continuam a não ser perceptíveis na massa popular sintomas vivos de rejeição da política ultramarina; e nos matos e nas picadas de África o soldado bate-se como sempre. Mas desde o princípio do ano parece agravar-se o estado de espírito do escol social e político, tanto governamental como oposicionista. Em 1960, a geração nova, atingida pelo deflagrar da luta, mergulha na mística colectiva e sente-se motivada pela aventura africana; mas é outro o estado de espírito da geração de hoje; e na verdade o ambiente familiar e social que os novos jovens encontram é também diverso. Elementos da alta burguesia, famílias tradicionais, homens da finança e da economia, figuras da alta-roda política, têm sido partidários incondicionais da defesa de África; mas agora, ao cabo destes seis anos, os seus filhos atingem a idade militar, são mobilizados, têm de seguir para o ultramar; e então, salvo excepções, revelam uma clara mudança de atitude. Com a típica e estreita mentalidade burguesa, de visão do imediato, as grandes elites são em favor de todos os sacrifícios, se outros os suportarem; mostram-se fervorosos patriotas se o patriotismo for gratuito; e os grandes valores nacionais e a integridade territorial são para defender, decerto, contanto que essa defesa não comporte perigo para a vida própria, ou mesmo risco para um negócio ou prejuízo para um investimento. E então estas elites sucumbem à influência das ideias lançadas no Mundo, deixam-se subjugar pela dúvida, abrem o espírito às razões do adversário, e tudo que seja opção fácil, transigência, ilusão, recebe favor e aplauso. Surgem as perguntas: mas quanto tempo durará a luta? então durará indefinidamente? então os representantes dos guerrilheiros não afirmam que respeitarão os interesses portugueses? não será possível um entendimento? então as potências amigas não se mostram ansiosas de ajudar Portugal a conceder a autodeterminação ao ultramar? não se estarão a despender no ultramar somas consideráveis que seriam melhor empregues no fomento da metrópole, que assim se está a prejudicar e a atrasar? não será a luta em África a grande responsável por alguns aumentos de preços ou dificuldades de vida? Estas e mil outras questões circulam de boca em boca, em surdina quase sempre, às vezes já em voz audível. E no escol que apoia o governo, levanta-se um estado de apatia, de desinteresse, de derrotismo e resignação. E idêntica se diria ser a evolução dos oposicionistas democráticos tradicionais. Acérrimos defensores do ultramar durante a I República, mantiveram depois a mesma atitude; e em 1961, nos alvores da guerrilha em Angola, eram partidários confessos e declarados da resistência, da defesa a todo o preço, "Até à exaustão se necessário", escrevia Cunha Leal a Salazar. Mas agora é igualmente diversa a sua posição política e ideológica. São múltiplas as razões que influem nos oposicionistas: pressão da extrema-esquerda, e o seu desejo de se não deixarem ultrapassar por esta; partilha de novas ideias e conceitos, na convicção de que importa segui-los porque são o caminho de um futuro sem regresso; pendor nacional para a crítica pela crítica; opinião muito sincera em alguns de que está em erro o governo; tibieza habitual perante o clamor do terceiro mundo, da ONU, de uma parte da grande imprensa internacional; influência de partidos políticos e governos estrangeiros; inconsciência dos resultados inevitáveis das soluções que recomendam e que, se aplicadas, conduziriam a realidades que não previam nem desejavam; e a necessidade política, no plano interno, de manter viva a oposição a Oliveira Salazar e ao regime.»

Franco Nogueira («Salazar. O Último Combate - 1964-1970», VI).







«Correio da Manhã – Qual o papel histórico de Marcello Caetano? Teria sido uma charneira entre a plutocracia e o socialismo?

Orlando Vitorino – Marcello Caetano nutria uma grande admiração pela União Soviética e pela organização soviética.

Houve, nos anos trinta, um congresso de certos monárquicos em Condeixa-a-Nova, no qual participou Marcello Caetano. Nesse congresso, disseram-me que por proposta de Marcello Caetano, saiu uma conclusão com a legenda ou "slogan": "O Rei e os Sovietes".

Depois, Marcello Caetano abandonou a Monarquia mas não deixou de ter admiração pelos sovietes. Aliás, a reforma administrativa de Marcello Caetano, com o seu código, parece inspirada na organização soviética».

Orlando Vitorino («O socialismo montou cerco a Portugal»). 




Intervenção do Deputado H. Veiga de Macedo, na Assembleia Nacional, na sessão de 17 de Abril de 1970


O Sr. Presidente: - Continua o debate do aviso prévio do Sr. Deputado Miller Guerra sobre as Universidades tradicionais e a sociedade moderna.

Tem a palavra o Sr. Deputado Veiga de Macedo.

O Sr. VEIGA de MACEDO: - Sr. Presidente: Poderá dizer-se que no problema universitário se concentram todas as questões acerca da posição e da organização do Estado e das estruturas sociais.

Da Universidade medieval, corporativa, religiosa e autónoma à Universidade napoleónica, burocrática, laica e integrada no Estado como mero serviço público e às Universidades dos nossos dias, em busca de estruturas e métodos adaptados às exigências da vida moderna, decorreram séculos de fundas transformações sociais.

A história da Universidade reflecte, naturalmente e em larga medida, a evolução do pensamento filosófico e das formas políticas através dos tempos. Há, contudo, aspectos da vida universitária medieval que resistiram a essas mutações. Por outro lado, algumas das reformas que tiveram por objecto a Universidade, como a de 1806, devida a Napoleão, deixaram vincadas marcas que perduram e perdurarão.



Napoleone Buonaparte (nome de baptismo).



Se as modificações operadas através da história são enormes, certo é que o homem continua a ser o centro da vida, na linha da ordem divina. E o homem não se modifica tanto como à primeira vista pode parecer. As próprias estruturas da sociedade, por mais que evoluam, tendem, passadas as horas das mudanças revolucionárias, a adaptar-se à natureza humana no que ela tem de mais profundo e característico.

Por isso, os extremismos políticos ou as transformações bruscas e radicais, embora bem intencionados, raro logram servir a causa do homem. À paixão dos prosélitos e aos exageros revisionistas devem os responsáveis opor a reflexão serena dos problemas e o poder construtivo dos reformadores esclarecidos.

Seria utópico tentar fazer ressurgir, na pureza das suas linhas mestras, a Universitas ou a Communio medieva, a cuja função pedagógica a traça corporativa da sociedade da época conferiu a forma de uma corporação hierarquizada ao serviço do conhecimento e ciosa da sua autonomia e independência. Mas seria também compreensível se se procurasse instaurar uma Universidade sem espírito comunitário, despojada de todas as prerrogativas e manietada pelo Poder Público, como a que, na concepção da reforma napoleónica, não passava de instrumento passivo do Estado.

Quanto mais reflicto no problema, mais me convenço de que a Universidade há-de constituir uma verdadeira comunidade.

Se a própria palavra «Universidade» significa «conjunto» ou «corpo unitário de elementos distintos», só haverá Universidade, como ensina um grande mestre, se houver ligação estreita, quer entre pessoas que a integram (universitas magistrorum, universitas scholarium, universitas scientiarium), quer nos institutos parcelares que a compõem (universitas facultatum) e, portanto, também nos fins que se propõe.

Não se pense, todavia, que a Universidade pode viver à margem do Estado ou contra o Estado. Se a este cabe a missão de salvaguardar o bem comum, como poderia ele alhear-se do problema de interesse geral que é o do ensino e o da formação do escol?

A Universidade pode e deve ser instituição, mas o Estado terá de interferir, na justa medida das conveniências colectivas e da posição hierárquica superior que ocupa na vida nacional. Instituição, porque dotada de personalidade e de atribuições específicas para o estudo e resolução de importantes problemas próprios, para o estabelecimento de normas e estilos de vida interna visando a discussão em comum de assuntos do seu foro de competência e a aproximação e o convívio dos seus elementos, e até para a representação em orgãos do Estado em que a sua voz deva ouvir-se. Mas ligada ao Estado, porque criada pelo Estado para servir altas finalidades de interesse nacional e humano, não pode este desligar-se dela, deixando de a acompanhar, coordenar e fiscalizar e de a prover com os meios indispensáveis ao cumprimento da sua missão.






Esta natureza mista da Universidade decorre de razões doutrinais e de circunstâncias de facto iniludíveis e enquadra-se na própria concepção do Estado Português, que proclama a autolimitação do seu poder como consequência lógica da ética em que repousa toda a nossa estrutura política e social.

A Constituição consagra o sistema institucional como processo de organização e de representação das actividades. Esse sistema assenta, assim, no princípio corporativo, ou seja, o da unidade moral e cultural, política e económica da Nação. E o princípio corporativo não é, pois, e apenas, o princípio da organização e personificação das categorias económicas, a fim de que participem na vida da comunidade política. Pelo contrário, a ideia vivificadora do regime corporativo estende-se também ao domínio das actividades desinteressadas, visto que postula a existência de instituições culturais e morais com objectivos científicos, literários, artísticos, de educação física e de assistência, beneficência e caridade.

As Universidades não podem, de acordo, com estas premissas constitucionais, deixar de revestir, embora parcialmente, essa índole institucional. E só parcialmente, porque não se está perante entidades que visem de modo directo fins particulares de ordem sectorial, empresarial ou pessoal e sustentadas pela iniciativa privada.

Mesmo em relação às organizações meramente económicas e profissionais, o Estado não lhes concede, nem o poderia fazer, autonomia total ou ilimitada. São bem claros, a este respeito, os textos legais e doutrinais de maior relevância da nossa vida corporativa. Atente-se, por exemplo, no preâmbulo da proposta de lei de que resultou o Estatuto Jurídico das Corporações (Lei n.º 2086, de 22 de Agosto de 1956), e no qual o próprio Governo adverte que, «para fugir ao totalitarismo do Estado, não pode cair-se no estatismo da corporação».

Por maioria de razão, poderá dizer-se que, para fugir ao mesmo totalitarismo, não pode cair-se no estatismo da Universidade, pondo-se esta à margem do Estado ou contra o Estado.

Já em 1940, o Doutor António de Almeida Garrett, essa admirável figura de homem e de mestre, perante cuja memória me curvo com viva saudade e respeito, dizia que foi da intervenção directa do Estado, através de medidas autoritárias, como as das reformas joanina, pombalina e a de 1911, que advieram os mais notáveis benefícios do alto ensino. E acrescentava que, em matéria de actividade escolar, a história da Universidade de Coimbra mostrava que as fases de maior esplendor foram aquelas em que enérgicos e sábios reitores, com toda a autoridade de delegados do poder real, governaram a instituição, e que, quando o governo desta foi entregue a fracas mãos, campearam as discórdias entre os professores, ateou-se a indisciplina nos escolares e veio a decadência geral.






Decorridos trinta anos sobre estas impressivas palavras, assiste-se a uma ofensiva destinada, ao que se diz, a assegurar autonomia à Universidade e nela tomam parte, com especial vigor, aqueles que servem ideologias totalitárias.

Quem se der ao cuidado de ler a abundante literatura em que o tema é versado logo se certificará do facto, que não deve causar estranheza a ninguém, sabendo-se que, por toda a parte, as forças comunistas ou anarquistas não hesitam nunca na adopção, sem quaisquer preocupações de legitimidade ou legalidade, de tácticas e métodos que mais facilmente assegurem a instauração, a curto ou longo prazo, da sua «ordem» ou da sua «desordem».

O ilustre Deputado avisante, no seu denso trabalho Tradição e Modernidade nas Faculdades de Medicina, qualifica, judiciosamente, a autonomia de conceito sedutor, mas confuso, e adverte que, talvez pela imprecisão de que sofre, ela constitui uma reivindicação pertinaz, mas difícil de satisfazer. Salienta, ainda que a autonomia completa, a ser possível, tem o risco de encerrar as Faculdades em particularismos, afastando-as dos interesses gerais da Nação, pelo que é preciso encontrar uma solução intermédia que acabe com o estado presente, sem cair no oposto.

Aliás, os males que assolam a Universidade derivarão de excessivas intervenções estatais ou serão consequência do abandono a que terá sido votada? Terá o Estado abusado dos seus poderes ou, pelo contrário, terá pecado por omissão, incúria ou falta de um pensamento orientador e de uma vontade firme para o realizar?

Acaso têm sido compelidos os professores menos escrupulosos a dedicarem-se, a sério, à sua missão, a prepararem e actualizarem as lições e a acompanharem os alunos na sua vida escolar? E os mestres que cumprem e ensinam, devotadamente, terão asseguradas as condições indispensáveis ao exercício do seu labor, a começar pela instauração de um clima de ordem e respeito?

Os alunos que desejam, na realidade, estudar e cooperar com espírito ordeiro na melhoria da Universidade, e são, felizmente, a maioria, têm sido acautelados da agitação que se instalou em diversos estabelecimentos de ensino?


Henrique Veiga de Macedo (o 2.º a contar da direita).



E os pais e encarregados de educação, muitíssimos deles suportando encargos pesados e lutando com dificuldades de toda a ordem para assegurarem o futuro dos filhos, têm sido ouvidos num processo em que, como partes legítimas e altamente interessadas, também devem participar?

Há poucos dias, o presidente Pompidou, que à eminente posição política junta o prestígio da inteligência e do título de «normalien», depois de aludir às enormes despesas com as Universidades, afirmava que ele e os ministros tinham de prestar contas à Nação do sacrifício que a esta custam os seus estudantes, considerando intoleráveis as perturbações que impedem de trabalhar quem não deseja outra coisa, as injúrias a professores e autoridades e os estragos nos edifícios e material escolar.

Apetece perguntar onde está a Universidade autónoma ou o Estado intervencionista (quando a ordem pública é afectada, o termo do dilema pouco importa) que ponha cobro a uma situação alarmante para o País e afrontosa para a juventude que se bate nas frentes africanas. Não se diga que exagero, pois continua por aí às escâncaras, através de livros, folhetos e cartazes, de canções ou baladas, e até de colóquios contra a nossa luta no Ultramar, realizados em estabelecimentos universitários, a propaganda que defende a ideia de se pôr termo, pelo abandono ou pela entrega, à guerra travada pela Nação em obediência a irrefragáveis imperativos de honra e de sobrevivência, e movida, pelos vistos, não apenas de fora, pelos verdadeiros colonialistas, mas também de dentro, pelos seus servidores.

O Sr. ALBERTO DE MEIRELES: - Muito bem!

O Orador: - Os mortos na Guiné, em Angola e Moçambique hão-de clamar sempre menos contra as balas que os prostraram do que contra as campanhas e os conluios inqualificáveis que na retaguarda visam tornar inútil o seu sacrifício.

A confrontação das ideias, o diálogo vivo em que os estudantes sejam interlocutores válidos, as críticas construtivas, a participação de professores e alunos nas actividades universitárias - tudo isto deve fazer-se, mas num clima de compreensão mútua e de respeito pelos valores e interesses essenciais da comunidade portuguesa (in Problemas da Universidade, 1972, pp. 35-49).




Continua