sexta-feira, 3 de maio de 2013

A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (ii)

Escrito por António Quadros








«A Universidade quer alijar as suas responsabilidades e serve-se, para isso, de todos os meios que lancem confusão nos espíritos: em vez de afirmações claras, insinuações vagas; em vez de argumentos, pretextos fúteis. No simples reconhecimento da responsabilidade de um acto está contido, ainda que virtualmente, um propósito de regeneração; mas quando não se tem consciência dessa responsabilidade, nada há a esperar. Um organismo que se considera irresponsável na sua própria decadência, só consegue revelar, com isso, a sua incapacidade de reacção vital, a impossibilidade de ser autónomo. Zeus quis perder a Universidade e dementou-a...

(...) E quando num país a Universidade deixa de ser o centro dinâmico da vida intelectual, o foco que ilumina toda a vida do espírito, reduto de límpidas consciências, fortes perante a adversidade, inflexíveis nos altos princípios de humanidade e justiça, com uma verdadeira compreensão do seu papel social e das suas responsabilidades, para se tornar uma causa de inércia, uma fogueira que em vez de chama viva produz cinza e fumo, uma caverna lôbrega onde o arbítrio, a iniquidade e o conformismo medram, onde se forjam todos os atentados contra a vida espiritual da Nação, só há um caminho a seguir: suprimi-la».

A. Lobo Vilela («A Universidade falou!...», 1933).


«O mais profundo acontecimento político dos últimos seis anos foi, em Portugal, uma entrevista em que Braz Teixeira, como Secretário de Estado da Cultura, declarou que «o maior inimigo da cultura portuguesa é a universidade.

(...) O teatro leva-nos a tudo. Até a mostrar-nos que não é só em Portugal e agora que, como diz Braz Teixeira, "a universidade é a maior inimiga da cultura". No séc. XVI, em Inglaterra, um professor da Universidade de Londres, com o apoio dos seus colegas, requeria à rainha que proibisse um certo dramaturgo de escrever peças de teatro. O dramaturgo chamava-se William Shakespeare».

Orlando Vitorino («A Arte das Minorias», in Ensaio, Revista bimestral de cultura e opinião, dirigida por Francisco Moraes Sarmento, número de Fevereiro e Março de 1981).


Já sobre a chamada filosofia luso-brasileira, João Seabra Botelho dissera o que a Universidade omite (ver aqui) e o Professor Doutor Braz Teixeira, como bom universitário que é, também omite, mais particularmente no seu livro Diálogos e Perfis. Ora, o Doctus cum libro, consagrando pontes, confluências, afinidades e convergências entre estudiosos e pensadores portugueses e brasileiros, considera «dois momentos ou dois ciclos, correspondentes, o primeiro, ao período que vai da criação do Instituto Brasileiro de Filosofia (1949) até à revolução portuguesa de 1974 e, o segundo, ao quarto de século decorrido desde então até hoje». Assim, se o diálogo especulativo se pautara no primeiro daqueles ciclos por figuras tutelares e únicas como, por exemplo, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Luís Washington Vita, Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Delfim Santos e António Brandão (a chamada "Escola de São Paulo"), no segundo ciclo, mercê de graves circunstâncias e perturbações revolucionárias no meio universitário de aquém-Atlântico, temos então a saga dos professores portugueses acolhidos em Terras de Vera Cruz, entre os quais pontificam Eduardo Abranches de Soveral e Francisco da Gama Caeiro.


Agostinho da Silva

No ínterim, Braz Teixeira delicia-se a sobrevalorizar os cursos de mestrado e doutoramento em "Pensamento luso-brasileiro" na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro (década de 80), ou a acentuar as relações institucionais entre universidades em Portugal e no Brasil, e, no entanto, em tudo dissertando com esforçada erudição, omite escandalosamente duas personalidades que, em termos verdadeiramente especulativos, mais contribuíram para a alta cultura luso-brasílica, quais sejam Mário Ferreira dos Santos e Olavo de Carvalho. Parece mentira mas é verdade: omite dois pensadores que, na longa noite revolucionária que persiste em não findar, permitem reabilitar a filosofia clássica sob a égide de filósofos milenares como Pitágoras, Platão, Aristóteles, outros ainda. Braz Teixeira confunde assim - ou permite confundir - a actividade filosófica verdadeiramente dita com o bem-pensantismo universitário, o qual se escusa a enfrentar com coragem e inteligente determinação as ideologias materialistas, socialistas e globalistas em prol de um formalismo coloquial e conferencista onde prevalece a doutorice endémica.

António Quadros, sem embargo do que aprendera na filosofia portuguesa quanto ao saber erudito e simulado das instituições universitárias, também, de certo modo, se deixou embalar por uma certa sedução mais literária do que académica no seu percurso intelectual. Por conseguinte, a sua ambição como escritor e homem protagonista de cultura deixou entrever, em dados momentos, uma coquetterie como a demonstrada a propósito da digressão efectuada em várias cidades brasileiras, academias e centros culturais em Novembro de 1985 (cf. «A Filosofia Portuguesa de Bruno à Geração do 57, seguido de O Brasil Mental Revisitado», Instituto Amaro da Costa, Lisboa). Nisto, António Quadros ostentava a imagem do homem de mil compromissos, - seminários, ensaios, obras, prefácios, aulas quase diárias, a par de honras e homenagens entretanto prestadas no Brasil por entre almoços, chazinhos, concertos, guitarradas e Escolas de Samba locais. Isto para não falar na ênfase posta na «grande sala, alcatifada e com 3 bibliotecárias ao seu serviço, onde está instalada a Biblioteca por Marcello Caetano legada à Universidade [Gama Filho] que o amparara em momento tão difícil da sua vida: 24 000 volumes, impecavelmente arquivados e arrumados, com especial incidência em obras de Direito e sobre o antigo Ultramar português».

Entretanto, Olavo de Carvalho convida-me para ir aos Estados Unidos no próximo mês. É claro que vou, mas por favor, nada de universidades, tá bem!

Miguel Bruno Duarte


«Lisboa, 1 de Junho [de 1967] - Sessão na Academia Internacional de Cultura Portuguesa. Homenagem a Gilberto Freire, a quem entreguei a Grã-Cruz de Cristo em nome do Presidente português. Gilberto Freire mal consegue esconder a sua avidez de homenagens, honrarias, elogios, condecorações. Apenas se sentirá feliz, ao que parece, se homenageado de quarto em quarto de hora. Como a idade pode anuviar pessoas!».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se»).


«Foi em 1898 - quase há 100 anos - que o filósofo e doutrinário portuense Sampaio Bruno publicou o mais amplo estudo até hoje entre nós escrito sobre o pensamento brasileiro.

Decerto, o seu objectivo principal era analisar e refutar a filosofia positivista, cá e lá então em maré alta, antes focando a obra dos pensadores no Brasil adeptos de Augusto Comte ou de Littré, do que, talvez para não os ferir, a dos seus correligionários republicanos, como em especial Teófilo Braga ou Júlio de Matos.

O seu livro "O Brasil Mental" ultrapassa no entanto aquele propósito, pois, ao mesmo tempo que aprecia inteligentemente a obra dos filósofos dominantes no Brasil da época, tais Tobias Barreto, Sylvio Romero, Lycurgo Santos, Araripe Junior ou Luis Pereira Barreto, aproveita para expor a sua posição crítica perante o positivismo, por ele considerado uma filosofia para preguiçosos intelectuais e um traço passado por sobre a ontologia, ou também para nos deixar alguns traços de filosofia da história portuguesa e do clima das relações culturais luso-brasileiras.





Nem sempre as suas posições neste último aspecto parecem hoje acertadas. É no entanto significativo que, lembrando o Parecer sobre o projecto de pacto federativo fundamental entre o império do Brazil e o reino de Portugal, escrito em Paris em 1825 por Silvestre Pinheiro Ferreira - grande filósofo e diplomata que viveu no Brasil entre 1809 e 1821, adstrito à corte de D. João VI - haja Bruno escrito que, mau grado tais desejos terem tido em Portugal representação constante, ao contrário, nós, portugueses, no Brasil seríamos rejeitados.

Assim, se quiséssemos pugnar por uma aproximação cultural por um entendimento recíproco, teríamos de ir sós. Vale a pena transcrever a passagem completa no referido livro (p. 81):

"Na derrocada de todo um desenvolvimento histórico pervertido, sim, vamos trabalhar, isto é, vamos combater! Mas, infelizmente, trabalhando ou combatendo, teremos de ir sós. Não se cuide que os nossos irmãos d'além-Atlântico connosco se queiram acamaradar. Ao contrário, enjeitam-nos. A nossa companhia repugna-lhes".

Não sei nem interessa muito saber se Bruno à epoca tinha razão ou se exagerou polemicamente, talvez ferido por certas afirmações de nacionalismo brasileiro no sentido de uma cisão, até cultural, com a nação lusitana. Efectivamente, citando um pouco adiante algumas afirmações radicais de grandes personalidades, da estirpe de um Tobias Barreto ou de um Joaquim Nabuco, reincidia no seu pessimismo, assim escrevendo (p. 96): "É incontestável. O Brazil não quer nada connosco".

Tinha razão Sampaio Bruno? Não o creio. O autor de "A Ideia de Deus" tomou quanto a mim um momento da cultura brasileira na sua vida orgânica, pelo todo de um movimento mais amplo, transcendente aos radicalismos cujos exemplos, como hoje o de um Afrânio Coutinho, se vão tornando cada vez mais esporádicos e pouco significativos.

(...) Foi num dos almoços literários das quartas-feiras, organizados pelo editor José Olympio, que Guimarães Rosa, um dos maiores prosadores e romancistas de língua portuguesa, sentado ao meu lado, me confiou, o que foi ouvido por Manuel Bandeira: "os críticos julgam que o meu estilo é todo inventado, porque não sabem quanto me inspiro nos clássicos portugueses, sobretudo em Fernão Lopes". Vai longe o tempo em que Tobias Barreto sentenciava categoricamente (dizia com indignação Sampaio Bruno) que Alexandre Herculano não sabia escrever (p. 90 do livro citado)!».

António Quadros («A Filosofia Portuguesa, de Bruno à Geração do 57, seguido de o Brasil Mental Revisitado»).


«Com o seu inesgotável talento, aparentemente conciliador mas intimamente revulsivo, António Quadros descreve, numa palestra quase pública, como é que, há longos longos anos, o Estado não atende à voz dos "intelectuais", fenómeno que explica a crise que, há longos longos anos, se instalou entre nós. Não atende, quer dizer, não entende.

Porque é que os "intelectuais" não deitam mão ao Poder?

(...) Não quero saber do poder para nada. Afigura-se-me até que há uma certa obscenidade no poder político. Repugna-me mandar nos outros homens. Avilta-me a importância social. As escadarias atapetadas de vermelho já as fiz subir muitas vezes aos actores, no palco dos teatros. Aprendi com eles que tudo isso é fictício e só tem beleza quando se faz a fingir. O discurso de Marco António com o cadáver de César nos braços é tão belo na peça de Shakespeare como deve ter sido repugnante na realidade vivida. O que falta cada vez mais à humanidade é educação estética. Em especial aos políticos. Todos eles são actores sem personagem».

Orlando Vitorino («O processo das Presidenciais 86»).





Para uma transcensão da crise






Como fugir a este tecnicismo que afoga todas as Faculdades e Institutos constitutivos do moderno sistema de educação superior, dando-lhe como única finalidade - saber se o consegue perfeitamente ou não é já outro problema - dando-lhe como única finalidade, ia a dizer, a aprendizagem da profissão e o respectivo diploma de acesso?

Seria absurdo negar esta importante e indispensável função da Universidade - que corresponde não só ao interesse individual, como também ao interesse da colectividade. Mas o que me parece premente, é acrescentar-lhe a outra função, que se perdeu pelo caminho, a do interesse universal, a de dar a cada universitário a concepção viva e actual do homem, do ser, da verdade, notabilitando-o para uma existência dupla de profissional e de autêntico missionário, que, perante o dramatismo da vida, saiba actuar não dominado pela angústia, mas pela esperança, não entregue à revolta, mas à luta pela melhoria das condições, não confinado exclusivamente ao instante que passa, mas antes contribuindo para a redenção final do homem. «A Universidade deve ter um espírito, ou, se quiserem, uma alma» - disse o Prof. Marcelo Caetano (8), exprimindo uma carência dramática da nossa educação.

Eis porque defendemos, não um Instituto de Cultura exterior à Universidade, não uma Faculdade de Cultura ou de Filosofia, hierarquicamente acima das outras Faculdades e separada delas - mas um Instituto ou uma Faculdade Central de Cultura Superior, que todos os universitários deveriam frequentar, paralelamente aos cursos das suas respectivas Faculdades.

Essa Faculdade, que realmente centralizaria a unidade da cultura nacional, incluiria, não apenas disciplinas de índole propriamente cultural ou filosófica, mas também disciplinas integradoras do saber especializado numa concepção mais vasta. O aluno de Direito, por exemplo, além de ali se familiarizar com os problemas da Filosofia do Direito, sendo conduzido a reflectir sobre a especificidade do pensamento jurídico português, tomaria contacto com a nossa literatura, a nossa arte ou o nosso pensamento especulativo alargando a sua visão, do exclusivo ramo jurídico, até aos valores da cultura literária, artística e filosófica portuguesa.

Para não sobrecarregar os cursos das diferentes Faculdades, não seria grande o número das disciplinas de frequência obrigatória neste instituto ou Faculdade Central. Mas a simples frequência de semelhante Escola levaria sem dúvida os universitários a assistir a muitas aulas de frequência facultativa, a usar a biblioteca ou a assistir às projecções cinematográficas de uma instituição que, pela sua originalidade, se poderia afirmar modelar entre as demais instituições universitárias. O convívio entre alunos das diferentes Faculdades sob a égide da cultura superior seria outro aspecto benéfico da ideia que aqui apresentamos - ideia que a tendência para a concentração do ensino superior em Cidades Universitárias torna de relativamente fácil realização. Acrescentemos que a localização das residências dos professores nas Cidades Universitárias viria estreitar os laços culturais e humanos entre o corpo docente e o corpo discente.



Colunas do Theseion em Atenas




Embora dentro de um condicionalismo diverso e de acordo com um pensamento orientado por vias muito diferentes, vai ganhando corpo nos Estados Unidos uma corrente que aspira igualmente a dar novos rumos à educação universitária. Robert Maynard Hutchins, um dos mais notáveis teorizadores da educação norte-americana desenvolve no seu livro «O ensino superior na América» (9), a tese de que uma universidade que não seja ordenada segundo princípios superiores, não existe. Escreve Robert Hutchins: «A metafísica, como ciência superior, ordenava o pensamento do mundo Grego como a Teologia ordenava o mundo Medieval: Uma ou outra deve ser chamada para ordenar o pensamento dos tempos modernos. Se não podemos apelar para a Teologia, apelemos para a Metafísica. Sem Teologia ou Metafísica, não pode existir uma universidade unificada». E o escritor norte-americano acrescenta: «Se o mundo não tem significado, se se apresenta a nós como uma massa de factos equivalentes, então a busca da verdade pela verdade consiste numa indiscriminada acumulação de informações. Não as podemos perceber nem vale a pena tentá-lo. Compreendamos ou não o mundo, podemos dominá-lo, diz o povo. Mas as consequências educativas e científicas desta atitude são o vocacionismo, o empirismo e a desordem; e as suas consequências morais são uma moralidade imoral».

Para remediar a esta desordem sem finalidade superior de educação, Hutchins propõe que a universidade seja formada pelas Faculdade de Metafísica, de Ciências Sociais e de Ciências Físicas, assistidas de Institutos técnicos de especialização profissional. O padre ou pastor que frequente a primeira adquirirá no entanto noções de ciências sociais e da natureza, assim como o advogado que frequente a faculdade de ciências sociais aprenderá metafísica ou ciências físicas, e o engenheiro ou o médico que frequente a faculdade de ciências físicas fará o mesmo em relação à matéria das outras faculdades.

Esta concepção, que não pode, por muitos e variados motivos ser aplicada ao caso português, mostra no entanto como nos próprios Estados Unidos, o país da técnica e do especialismo, se rege hoje contra estas tendências de excessivo pragmatismo.

Entre nós, a Faculdade ou Instituto Central de Cultura Superior poderia assumir aquela missão de que falou Hutchins, a de unificar a universidade através de um pensamento coordenador dos seus diversos ramos. Pensamento coordenador e unificador que, modernamente, é substituído pela desagregação e pelo atomismo das opiniões individuais de cada professor de história, filosofia, filologia, direito, economia ou medicina.

É este um problema que, mais tarde ou mais cedo, terá de ser encarado de frente, se, através de uma solução parecida com a nossa ou através de reformas de qualquer outro tipo, se quiser dar realmente à Universidade uma missão cultural e altamente educativa. As duas alternativas de solução, com as suas vantagens e os seus inconvenientes, foram abordadas com a clareza que caracteriza o superior voo do pensamento, pelo grande filósofo alemão Karl Jaspers no seu livro «O ambiente espiritual do nosso tempo» (10). Diz Jaspers: «O Estado que em si mesmo é a forma da educação permanente de todos, ocupa-se da educação da juventude, pois é a ela que vai buscar os homens que depois hão-de sustê-lo.






Hoje, parecem oferecer-se ao Estado duas possibilidades extremas. Pode permitir-se a liberdade de ensino - e a realização do que a massa pede -, e pode tentar instituir-se, em luta contra a massa, um sistema aristocrático de educação». Quais os inconvenientes da primeira alternativa, isto é, da liberdade de ensino? Jaspers aponta-os, escrevendo: «A diversidade dos planos de ensino e de ensaios é tolerada até um extremo de imensa fragmentação, limitada pelo facto de que só pode subsistir o que encontra apoio num grupo de poder político. Aqui e ali consegue-se a formação de uma boa escola, se esta dispõe de liberdade na eleição dos professores. Mas, na totalidade, o resultado é o entrechocar de mestres que não se entendem entre si, preso a maquinais planos de ensino, em escolas sem verdadeiro espírito de comunidade, com fachadas de patetismo nacionalista, universalista ou socialista.

As inspecções e o regime de mútua oposição impedem a continuidade. Tudo é fragmentário e sempre diverso. Privam-se os estudantes das verdadeiras, das grandes e nobres impressões que podem determinar inolvidamente uma vida». E Jaspers conclui: «Deformado o jovem por este trazer e levar, encontra, talvez, os escombros de uma tradição, mas não um mundo em que possa ingressar com fé».

Por outro lado, o ensino excessivamente orientado pelo Estado pode obstar, acentua o autor de «A Fé filosófica», ao livre desenvolvimento espiritual dos estudantes, contribuindo para a indesejável tipificação do ser humano, para a uniformização das personalidades. Como resolve Jaspers este dilema? Sublinhando que «não podem oferecer-se receitas para o conseguir» e que «O poder do Estado não pode actuar aqui como criador: apenas pode proteger ou destruir». Concretamente, o Estado não pode amoldar todo o ensino, de alto a baixo, a uma ortodoxia filosófica, tal como não pode abandoná-la ao choque das forças contrárias. O que pode, é proteger uma direcção espiritual, propondo-a, apresentando-a com discreção, sem afastar violentamente todas as outras correntes culturais. Marcelo Caetano pensa no mesmo sentido, quando escreve: «Dizer-se que a Universidade tem de possuir uma doutrina não significa que ela abrace um partido político» (11).

É por isso que, num Instituto Central de Cultura Superior, ao lado das disciplinas obrigatórias, através das quais se procurará ministrar um saber teorético racionalmente ordenado, nas suas ramificações do pensar, do sentir e do querer, deverão figurar as disciplinas facultativas, que, dentro da universidade, dão ao estudante a possibilidade de uma liberdade de escolha, não apenas de temas, como de mestres. O corpo doutrinário que poderia constituir o núcleo central da universidade, o seu coração, o catalizador de todos os seus fragmentos, o sistematizador de todas as suas especializações, consistiria nas ideias explícitas e implícitas na cultura portuguesa, isto é, no que de actual, de original, de vivo, a nossa filosofia, a nossa arte, a nossa literatura, numa palavra, o nosso espírito, possam oferecer, no diálogo com outras culturas europeias.






Não se veja nestas palavras a intenção de afirmar a superioridade de uma determinada doutrina filosófica ou cultural com exclusão de todas as outras . Mas, se queremos que a cultura seja algo de concreto, e não apenas uma abstracção longínqua, que se admira cá de baixo, mas não interfere de modo algum no regime existencial, devemos reconhecer que ela se afirma «situadamente», filha de um tempo e de um espaço que se cruzam, para produzir uma actualidade intransferível para outro tempo e outro espaço. Já Leonardo Coimbra dizia, na sua tese sobre «O Problema da Educação Nacional», que começámos por citar: «Os valores da cultura são universais em sua essência abstracta, mas nacionais em suas formas actuais de existência». E Karl Jaspers no capítulo do seu livro sobre a «Inapreensibilidade da totalidade», aplica conceitos semelhantes à política e à educação, dizendo: «O actuar político acontece sempre numa situação histórica concreta, incluído numa imensa totalidade, cada grupo e cada Estado estão apenas num lugar único, e não em todas as partes; todos têm unicamente a sua possibilidade, que não é, em definitivo, aprender um ideal. Apenas se revela na situação concreta histórica universal».

Por outras palavras, ensina-nos Jaspers que é irrelevante pretender sujeitar a cultura, a educação, a política e a vida de um país - que é situação concreta e histórica, embora universalmente filiada - a um qualquer ideal abstracto e vago, ignorante do condicionalismo específico no qual as nações nasceram, respiram, têm o seu destino autêntico e próprio. É dentro da mesma linha de pensamento, embora segundo as determinações conceptuais da nossa cultura, que um filósofo português contemporâneo, Álvaro Ribeiro, pode dizer, logicamente, no seu último livro, «A Arte de filosofar»: «todo o drama cultural português resulta de uma absurda oposição tópica entre o cá dentro e o lá fora, e da mais absurda confusão crónica, que não permite ver na alheia Idade Moderna a nossa Idade Média, e vive-versa. Tentando acertar a nossa nomenclatura pelas nomenclaturas estrangeiras, por obediência a decisões tomadas em congressos internacionais ou por motivos ainda menos justificáveis, cada vez mais nos afastamos da significação primitiva do nosso culto, da nossa cultura e da nossa civilização.

Apreciamos erradamente o nosso sistema de ensino público todas as vezes que o comparamos com os sistemas estrangeiros. Quando, porém, relacionarmos a nossa pedagogia com a nossa filosofia, quando tivermos uma pedagogia portuguesa disciplinada pela filosofia portuguesa, veremos desenvolver-se as aptidões mentais e os valores éticos do nosso povo...».

Não queremos terminar a nossa exposição sem uma referência aos métodos pedagógicos que deverá utilizar um possível e modelar Instituto Central, cujos fins procurámos definir ou, pelo menos, sugerir. Duas obras recentes esboçaram uma crítica pertinente à pedagogia praticada no nosso ensino superior: a primeira, «A filosofia como objecto da pedagogia», de outro discípulo de Leonardo Coimbra, o dr. San'Anna Dionísio, foca especialmente, como o próprio título indica, as relações entre o pensamento e a pedagogia nas escolas da adolescência e na universidade; a segunda, «O drama do universitário», de Afonso Botelho, incide principalmente nas relações mútuas entre o corpo docente e o corpo discente, entre professores e alunos.

Não vou repetir as justas observações destes dois escritores, cujo pensamento vós podeis facilmente conhecer através dos próprios livros que citámos. Mas sonharia que, num Instituto Central de Cultura, servido por mestres escolhidos entre os que têm expresso o seu pensamento na nossa filosofia, na nossa arte, na nossa literatura, se não seguisse aquele espírito que porventura será um dos principais males de uma universidade que se estratificou, se burocratizou, se funcionalizou, desde que se iniciaram as reformas pombalina e positivista, que transformaram pouco a pouco, ressalvadas algumas nobres excepções, os antigos lentes em funcionários-burocratas do Estado ou em guardiões de dogmas cívicos que nenhuma revelação ou nenhuma razão garante.






Sonharia ver mestres e alunos como que unidos na mesma corporação de interesses, de anseios, de sentimentos; convivendo - e não separados pela distância enorme que hoje vai da cátedra às indiferenciadas carteiras dos alunos anónimos, que se apresentam a tantos regedores de cadeiras como meras unidades estatísticas que é preciso fiscalizar e julgar; dialogando nas aulas do seminário, no laboratório, na biblioteca, tipos de ensino, alguns dos quais se vão já ensaiando e que deverão um dia acrescentar-se à formal e académica prelecção; ou conversando dentro e até fora da Universidade, como o fez Leonardo Coimbra, cujas aulas, segundo contam os seus discípulos, se prolongavam até ao café, ao jardim, à rua. Assegurar a educação viva e concreta através da relação mestre-discípulo, não apenas dentro da esfera do saber, mas também da vontade e da afectividade, será o alto exemplo, a tentativa que semelhante Faculdade poderá propor às restantes. Os sistemas do exame e do concurso, que tantas vezes se revestem de aspectos dramáticos, não apenas para o examinando como até para o examinador obrigado a ser juíz e a condenar réus que muitas vezes o são unicamente por que há um desacerto entre as culturas respectivas do professor e do aluno, perderá a sua razão de ser quando, estreitados os laços entre o corpo docente e o discente, um conhecimento mútuo, nascido no convívio e no diálogo, bastará para aferir capacidades e encaminhar vocações.

Vivemos uma época de transição. Balançamos entre um presente angustiado e perplexo e um futuro incerto, com os seus possíveis benéficos e maléficos. Não nos podemos desinteressar desse futuro. Se não o moldarmos, se não o facetarmos, ninguém o fará por nós. Nós não somos responsáveis pela crise, cujas raízes de situam num passado em que muitos erros foram cometidos. Mas aqui, nesta hora, neste instante em que abrimos os olhos para os problemas do nosso tempo e do nosso país, aqui começa a nossa responsabilidade. Este problema da educação superior radica no próprio coração da crise. Saibamos olhá-lo de frente - pois é da sua resolução, da sua adequação à cultura, que depende em grande parte a transcensão de uma idade que na bomba atómica tem o seu terrível, o seu mortífero símbolo (in ob. cit., pp. 133-143).


Notas: 

(8) Marcelo Caetano - Universidade Nova - o problema das relações entre professores e estudantes - Lisboa, 1943.

(9) Robert Maynard Hutchins - The higher learning in América, Yale - New Haven, 1936.

(10) Karl Jaspers - El ambiente espiritual de nuestro tiempo.

(11) Marcelo Caetano - Ob. cit.





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