terça-feira, 16 de julho de 2013

Os Sete Pilares da Sabedoria (i)

Escrito por Thomas Edward Lawrence




A Esfinge e a Pirâmide de Queops (Egipto).


«Ao longo dos vinte meses em que Churchill deteve a pasta das Colónias - é a época em que o império alcança a sua expansão máxima -, o seu principal campo de acção foi o Médio Oriente, apesar da sua pouca competência para o mesmo. Manda criar de imediato o departamento especial, o Departamento para o Médio Oriente, no seio do Ministério das Colónias. Tanto para ele como para a Grã-Bretanha, o principal problema, na sequência da derrota do Império Otomano, e da atribuição de mandatos da Sociedade das Nações aos dois países colonizadores, é organizar naquela zona-chave do globo uma esfera de influências em que o poderio britânico seria preponderante, apoiando-se sobre dois pólos, a Palestina e a Mesopotâmia, e frustrando o mais possível as ambições francesas. Assim, o vasto espaço geopolítico que se estende de Gibraltar ao golfo Pérsico, passando por Malta, Egipto e o canal, seria rigorosamente controlado por Londres, com o apoio da Royal Navy e da Royal Air Force.

Nesta perspectiva, Churchill convoca, em Março de 1921, uma conferência no Cairo, com os responsáveis da região (arranjando tempo para pintar as Pirâmides, e depois para visitar Jerusalém). Para os assuntos árabes, recorreu ao coronel Lawrence, como conselheiro. Graças à audiência deste junto da dinastia Hachemita, a Mesopotâmia (a partir de então denominada Iraque), que, em 1920, fora varrida por uma sublevação, rapidamente reprimida, acolhe como rei o emir Fayçal - que faz figura de fantoche dos Ingleses - enquanto o seu irmão, o emir Abdallah, é colocado no trono da Transjordânia.

Na Palestina, pelo contrário, Churchill pisa um solo muito menos seguro. A sua concepção pessoal é a de um duplo dever frente aos Árabes e aos Judeus, de forma a conciliar, senão a reconciliar, os dois povos. Por um lado, ele reafirma oficialmente a adesão de Londres à Declaração Balfour de 1917, ou seja, à promessa de criar uma pátria nacional na Palestina; tal promessa, confirmando os direitos dos imigrantes judeus no país, provoca a fúria dos Árabes. Por outro lado, ele deixa os sionistas profundamente desiludidos, ao reconhecer os direitos dos Árabes palestinianos sobre a sua própria terra. É verdade que neste caso o secretário das Colónias se via confrontado com o problema da quadratura do círculo.


Finalmente, no sector do mar Egeu, Winston, em total desacordo com a política obstinadamente pró-Grécia de Lloyd George, e que, aliás, detesta os Gregos, vê na Turquia de Ataturk um pólo de equilíbrio para o Mediterrâneo Oriental, ao mesmo tempo que uma defesa contra a União Soviética e a ameaça bolchevique.

Quanto a África, cuja sedução nunca deixou de o influenciar, Churchill opõe a riqueza potencial do continente, cujas populações se comportam de forma tão sensata, aos espaços desérticos e agitados do Médio Oriente. Para dizer a verdade, ele não nutre simpatia alguma pelos Árabes. "Em África", declara ele, "a população é dócil e o território produtivo; na Mesopotâmia e no Médio Oriente, o território é árido e a população violenta. Com pouco dinheiro consegue-se muito em África, com muito dinheiro não se consegue nada na Arábia". Ao mesmo tempo, os seus preconceitos de cor e de raça, profundamente enraizados, levam-no a pensar na segregação num país como o Quénia, onde se deve proceder à separação de brancos (proprietários das boas terras), índios e negros, pois "os princípios democráticos da Europa não estão adaptados ao desenvolvimento dos povos da Ásia e da África" (Discurso frente à British Cotton Growing Association, Manchester, 7 de Junho de 1921: citado por Ronald Hyam, "Churchill and the British Empire", in Robert Blake W. Roger Louis, ed., Churchill, Oxford University Press, 1993, p. 174; discurso de 27 de Janeiro de 1922: citado por H. Pelling, Churchill..., op. cit., p. 267)».

François Bédarida («Winston Churchill»).




Os Sete Pilares da Sabedoria


"Lawrence da Arábia" (ver aqui).


A primeira dificuldade do movimento árabe consistia em definir quem eram os Árabes. Sendo um povo criado, o seu nome ia mudando de sentido lentamente, ano após ano. Outrora, um árabe era uma pessoa natural da Arábia. Havia um país chamado Arábia; mas nada tinha a ver com o caso. Havia uma língua chamada árabe; e aí residia a dificuldade. Era a língua corrente da Síria e da Palestina, da Mesopotâmia e da grande península a que se chama Arábia nos mapas. Antes da conquista muçulmana, essas zonas eram habitadas por diversos povos, que falavam línguas da família arábica. Chamámos-lhes Semitas, mas (como sucede com a maioria dos termos científicos) incorrectamente. Contudo, o arábico, o sírio, o babilónico, o fenício, o hebreu, o aramaico e o siríaco eram línguas aparentadas; e os sinais de influências comuns no passado, ou mesmo de uma origem comum, eram reforçados pelo conhecimento de que o aspecto e os costumes dos actuais povos de expressão árabe da Ásia, embora tão variados como um campo de papoilas, tinham uma semelhança regular e essencial. Poderíamos, com absoluta propriedade, chamar-lhes primos - e primos sem dúvida conscientes, ainda que tristemente, do seu parentesco.

As zonas de expressão árabe da Ásia, neste sentido, constituíam mais ou menos um paralelograma. A face norte partia de Alexandreta, no Mediterrâneo, atravessando a Mesopotâmia, para oriente, até ao Tigre. A face sul era o contorno do oceano Índico, de Adem a Muscat. A ocidente era limitado pelo Mediterrâneo, o canal de Suez e o mar Vermelho até Adem. A oriente, pelo Tigre e pelo golfo Pérsico até Muscat. Este quadrilátero de terreno, tão grande como a Índia, constituía a pátria dos nossos semitas, onde nenhuma raça estrangeira se fixara em permanência, embora os Egípcios, os Hititas, os Filisteus, os Persas, os Gregos, os Romanos, os Turcos e os Francos o tivessem tido por diversas vezes. Todos tinham acabado por ser dominados e os seus elementos esparsos submersos pelas fortes características da raça semita. Os Semitas forçaram por vezes a saída para o exterior desta área, tendo eles próprios sido submersos pelo mundo exterior. O Egipto, a Argélia, Marrocos, Malta, a Sicília, a Espanha, a Cilícia e a França absorveram ou obliteraram as suas colónias semíticas. Apenas em Trípoli, na África, e no eterno milagre da Judeia, os semitas distantes da sua zona conseguiram conservar parte da sua identidade e da sua força.

A origem destes povos era uma questão académica; mas, para o entendimento da sua revolta, as suas diferenças sociais e políticas actuais eram importantes e podiam ser compreendidas pelo estudo da sua situação geográfica. O continente que eles formavam atravessava algumas grandes regiões, cujas imensas diversidades físicas impunham a diversidade de hábitos dos seus habitantes. A ocidente, o paralelograma era enquadrado, de Alexandreta a Adem, por uma cadeia montanhosa, chamada (ao norte) Síria, e a partir daí, progressivamente para o sul, chamada Palestina, Midian, Hejaz e, finalmente, Iémen. Tinha uma altitude média de cerca de novecentos metros, com picos de três mil metros e três mils e seiscentos metros. Estava voltada para ocidente, era bem provida de água da chuva e das nuvens que vinham do mar e, de maneira geral, estava totalmente povoada.




Uma outra cadeia de montes desabitados, voltada para o oceano Índico, formava o contorno meridional do paralelograma. A fronteira oriental era, a princípio, uma planície de aluvião chamada Mesopotâmia, mas a sul de Basra era um litoral plano, chamado Kuweit, e Hasa, até Gattar. Grande parte dessa planície era habitada. Esses montes desabitados e as planícies rodeavam um golfo de sedento deserto, em cujo coração existia um arquipélago de oásis providos de água e habitados, chamados Kasim e Aridh. Neste grupo de oásis ficava o verdadeiro centro da Arábia, a reserva do seu espírito nativo e a sua mais consciente individualidade. O deserto envolvia-a e conservava-a pura de contactos.

(...) Dado que os homens das tribos e os homens das cidades, na Ásia de expressão árabe, não eram de raça diferente, mas apenas homens em diferentes fases sociais e económicas, seria de esperar que houvesse semelhanças familiares no funcionamento das suas mentes, e, por isso, era perfeitamente razoável que surgissem elementos comuns no produto de todos esses povos. Logo de início, ao encontrá-los pela primeira vez, deparava-se-nos uma limpidez universal ou rigidez de crença, quase matemática na sua limitação e repulsiva na sua forma insensível. Os Semitas não tinham meios-tons no seu registo de visão. Eram um povo de cores primárias, ou, antes, de preto e branco, que via o mundo sempre em contorno. Eram um povo dogmático, que desprezava a dúvida, a nossa moderna coroa de espinhos. Não compreendiam os nossos problemas metafísicos, as nossas interrogações introspectivas. Só conheciam a verdade e a não-verdade, a crença e a descrença, sem a nossa hesitante série de tons menores.

Este povo era a preto e branco, não somente na visão, mas por íntima guarnição: preto e branco não apenas na claridade, mas na justeza. Os seus pensamentos só estavam à vontade nos extremos. Residiam em superlativos voluntariamente. Por vezes, os inconsequentes pareciam possuí-los simultaneamente em sentidos diferentes; mas nunca se rendiam: perseguiam a lógica de diversas opiniões incompatíveis até alcançarem fins absurdos, sem se aperceberem da incongruidade. Com a cabeça fria e um julgamento tranquilo, imperturbavelmente inconscientes da fuga, oscilavam de assimptota em assimptota (1).


Eram gente limitada, de mente estreita, cujos intelectos inertes jaziam em pousio, numa negligente resignação. A sua imaginação era viva, mas não criativa. Existia tão pouca arte árabe na Ásia que quase se poderia considerar inexistente, embora as suas classes superiores fossem patronos liberais e tivessem encorajado todos os talentos, na arquitectura, ou na cerâmica, ou noutras artes, que os seus vizinhos e hilotas manifestassem. Também não se dedicavam a grandes indústrias; não tinham organizações relacionadas com a mente e o corpo. Não inventaram sistemas filosóficos, nem mitologias complexas. Orientavam o seu curso entre os ídolos da tribo e da caverna. Sendo o menos mórbido dos povos, tinham aceitado o dom da vida incondicionalmente, como sendo axiomático. Para eles era uma coisa inevitável, vinculada ao homem, um usufruto, algo sem controlo. O suicídio era algo impossível e a morte não era um desgosto.

Eram um povo de espasmos, de convulsões, de ideias, a raça dos génios individuais. Os seus movimentos eram tanto mais chocantes quanto contrastavam com a humanidade da sua multidão. As suas convicções eram ganhas por instinto, as suas actividades intuitivas. A sua maior produção era de credos: quase tinham o monopólio das religiões reveladas. Três desses esforços tinham-se tornado estáveis entre eles: dois deles tinham sido mesmo exportados (em formas modificadas) para povos não semitas. O cristianismo, traduzido para os espíritos diversos das línguas grega e latina e teutónica, conquistara a Europa e a América. O islamismo, com diversas transformações, estava a sujeitar a África e partes da Ásia. Ambos eram êxitos semitas. Os fracassos, guardavam-nos para eles próprios. As fronteiras dos seus desertos estavam semeadas de credos falhados.


Era significativo o facto de este naufrágio e religiões falhadas se encontrar no ponto de encontro entre o deserto e os terrenos plantados. Explicava a geração de todos esses credos. Eram afirmações, não argumentações; por isso necessitavam de um profeta para as espalhar. Os Árabes diziam que tinha havido quarenta mil profetas: nós conhecemos, pelo menos, algumas centenas. Nenhum deles viera do deserto, mas as suas vidas seguiam um padrão determinado. O seu nascimento situava-os em lugares superpovoados. Uma ânsia apaixonada e ininteligível arrastava-os para o deserto. Aí viviam durante maior ou menor tempo em meditação e abandono físico; e daí regressavam com a mensagem imaginada e já elaborada, para pregar aos seus antigos, e agora duvidosos, companheiros. Os fundadores dos três grandes credos cumpriram este ciclo: a sua possível coincidência transformou-se em lei pelas histórias das vidas paralelas de miríades de outros, os infelizes que fracassaram, que não devemos considerar de profissão menos verdadeira, mas para quem o tempo e a desilusão não se tinham ainda acumulado nas almas secas, prontas a serem incendiadas. Para os pensadores da cidade, o impulso em direcção a Nítria foi sempre irresistível, provavelmente por não encontrarem Deus a morar aí, mas porque, na solidão, ouviam com maior certeza o mundo vivo que tinham levado com eles (in «Os Sete Pilares da Sabedoria», Publicações Europa-América, 2004, pp. 33-34 e 38-39).


(1) A metáfora da oscilação «de assimptota» teve origem na conversa com um amigo que me disse que tinha aplicado, por engano, o termo «assimptota» para designar as curvas da hipérbole.

Continua


Nenhum comentário:

Postar um comentário