quinta-feira, 29 de agosto de 2013

José Marinho

Escrito por António Telmo








«REVISTA PRINCÍPIO: "Agostinho da Silva disse, numa das suas frequentes entrevistas, que os mesmos que, hoje, exaltam Fernando Pessoa são os que o silenciariam se ele fosse vivo"

TOMÉ NATANAEL: Reparem como o patriotismo de Fernando Pessoa é considerado um aspecto menor do que escreveu. Até D. Afonso V (Pessoa pensava que até D. João II) Portugal foi regido pelos Rosa-Cruzes; tal é, pelo menos, o ensino da Mensagem. A monarquia, com D. João III, passou para as mãos dos seus inimigos. Há o análogo disto na Europa, com a diferença que, nesta, a mutação dá-se mais cedo, quando aqui reinava D. Dinis. É então que se começa a trabalhar para a implantação do socialismo pela propaganda da noção de igualdade. Levou séculos, mas foi fácil. Bastou fazer passar a inveja por generosidade. O socialismo é, pois, obra dos Rosa-Cruzes. Tornou-se necessário para combater aqueles que se tinham apoderado da monarquia.

Hoje, porém, qualquer tentativa de derrubar os governos socialistas é aproveitada por estes últimos, que aparecem como os verdadeiros representantes da Pátria. Compreende-se assim que o monarquismo de Fernando Pessoa e o republicanismo de Sampaio Bruno sejam a mesma coisa. Não sei se me fiz compreender...».

«Conversando com Tomé Natanael» (entrevista inserta em António Telmo, Viagem a Granada).


«Os Budistas, para trabalharem para a convergência dos homens para o Segundo Advento, apresentaram sempre Jesus aos seus sequazes como um Adepto, pois, se o apresentassem como Deus, ou como Deus e Adepto ao mesmo tempo, nem seriam compreendidos nem aceites pelas populações budistas. Precisavam manter nelas o respeito preparador de Jesus; fizeram-no pondo-o como respeitável no nível que seria compreendido. Só a Teosofia é que, finalmente, declarou o Segundo Advento, e, ainda assim, como deveras lhe compete, não insiste muito na outra face da Figura, na face transcendente e divina.

Os Rosa-Cruz, por outra parte, tendo de ministrar, embora veladamente, o mesmo ensinamento a outras populações, apresentaram-no de diverso modo. Não se referiram, senão de modo tão velado que só o compreendesse quem pudesse compreendê-lo, a Jesus, ao Adepto; apenas aludiram ao Cristo, ao Filho de Deus. Assim nada, no que diziam, feria a fé católica ou cristã dos seus leitores.

Do mesmo modo não aludiram os Rosa-Cruz, em seus escritos, claramente à doutrina da reincarnação, elemento físico do ocultismo todo. Tal doutrina, embora contida em verdade no verdadeiro cristianismo, não está nele dada esotericamente. Ensiná-la seria ferir as populações cristãs, erguer o ódio das Igrejas cristãs, prejudicar a preparação que os seus livros serviam de efeituar». 

Fernando Pessoa (in António Quadros, Fernando Pessoa – Iniciação Global à Obra).






Zoroastro



«Entre os Egípcios, como entre os Persas da religião mazdeana de Zoroastro, como depois de Jesus, em Israel, como para os cristãos dos dois primeiros séculos, a ressurreição foi interpretada de duas maneiras: uma material, absurda; a outra espiritual, teosófica. A primeira é uma ideia popular, adoptada pela Igreja, depois da repressão do gnosticismo. A segunda é a ideia profunda, a ideia dos iniciados. No primeiro caso, o corpo material volta à vida, o que é, numa palavra, a reconstituição do cadáver decomposto ou disperso. Isso era o que se supunha que iria acontecer com a volta do messias no dia do juízo final. É inútil acentuar o materialismo grosseiro e absurdo de tal concepção.

Para o iniciado, a ressurreição tinha um significado diferente: ela relacionava-se com a doutrina da constituição ternária do homem, significando a purificação e a regeneração do corpo sideral, etéreo e fluídico, que é o próprio organismo da alma e de algum modo a cápsula do espírito. Essa purificação pode ocorrer desde esta vida, pelo trabalho interior da alma e um certo modo de existência. Para a maioria dos homens, ela só se efectua depois da morte. Isso para aqueles que de um modo ou de outro aspiraram à justiça e à verdade. No outro mundo, a hipocrisia é impossível. Lá, as almas aparecem como elas realmente são. Manifestam-se fatalmente sob a forma e a cor da sua essência. Se são más, aparecem tenebrosas e feias. Se são boas, aparecem irradiantes e belas. Tal é a doutrina exposta por Paulo, na Epístola aos Coríntios. Ele diz formalmente: "Há um corpo animal, há um corpo espiritual" (CORÍNTIOS, XV, 39-46). Jesus diz isso, simbolicamente, porém, com mais profundeza, para quem sabe ler entre as linhas, na entrevista com Nicodemos. Ora, quanto mais espiritualizada a alma, maior será o seu afastamento da esfera terrestre; quanto mais longínqua a região cósmica que a atrai, por sua lei de afinidade, mais difícil a sua manifestação aos homens.

Assim, as almas superiores só se manifestam aos homens no estado de sono profundo ou de êxtase. Então, fechados os olhos físicos, a alma, meio liberta do corpo, algumas vezes vê almas. Acontece entretanto que um grande profeta, um verdadeiro filho de Deus, manifesta-se aos seus de uma maneira sensível, em estado de vigília, a fim de melhor persuadir e impressionar os seus sentidos e imaginação. Nesse caso, a alma desencarnada consegue dar, momentaneamente, ao seu corpo espiritual, uma aparência visível por meio de um dinamismo particular que o espírito exerce sobre a matéria, mediante forças eléctricas da atmosfera e forças magnéticas dos corpos vivos.

Foi o que aconteceu com Jesus, segundo parece. As aparições mencionadas pelo Novo Testamento entram, alternadamente, numa ou noutra dessas categorias: visão espiritual, aparição sensível. É certo que, para os apóstolos, elas tiveram o carácter de uma verdade suprema. Seria mais fácil eles duvidarem da existência do céu e da terra do que da sua comunhão viva com Cristo ressuscitado. Essas visões comoventes do Senhor eram o que havia de mais radioso e mais profundo na consciência deles.






A ressurreição, entendida no sentido esotérico, como acabei de indicar, era ao mesmo tempo a conclusão necessária da vida de Jesus e o prefácio indispensável à evolução histórica do cristianismo. Conclusão necessária pois Jesus tinha anunciado isso muitas vezes aos profetas. Se ele teve o poder de aparecer-lhes depois da morte, com aquele esplendor triunfante, foi graças à pureza e força inata da sua alma, centuplicada pela grandeza do esforço e da obra realizados.

Visto do exterior e do ponto de vista terrestre, o drama messiânico termina na cruz. Embora sublime, falta-lhe o cumprimento da promessa. Visto de dentro, do fundo da consciência de Jesus, do ponto de vista celeste, ele tem três actos. A Tentação, a Transfiguração e a Ressurreição marcam os pontos altos. Em outros termos, essas três fases marcam: a iniciação do Cristão, a revelação total e o coroamento da obra. Correspondem àquilo que os apóstolos e os cristãos iniciados dos primeiros séculos chamaram os mistérios do Filho, do Pai e do Espírito Santo».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).


«Cristianismo é coisa dificílima e cristão homem raríssimo.

(...) Mas tudo está corrupto no homem porque lembramos a Cristo e queremos ser cristãos. É muito difícil, senão impossível, que as coisas fossem de outra maneira. E entretanto ser cristão retira a tudo o sentido e leva-nos a conhecer o espírito pelas exterioridades e a repetir em vez de criar.

O segredo de Cristo é que foi ele, sem querer ser o análogo do que antes fora».

José Marinho («Ensaios de Aprofundamento e outros textos»).




José Marinho


Lembro-o melhor na Brasileira do Rossio, junto a uma das colunas do velho templo maçónico, que hoje é Banco e então era Café, nos meus anos moços. Movia a cabeça com o garbo de uma águia, atento e flexível aos sopros invisíveis do Espírito, uma espécie de núncio apostólico da luz única. Aquela cabeça era um sol.






Tenho a honra de ter pertencido ao círculo que a sua palavra traçava. Naquele Café de mulheres perdidas, de actores vencidos, de traficantes e de chulos, de bombistas sem préstimo ou de revolucionários sem emprego, a filosofia, que não encontrávamos na Universidade, era uma lâmpada. Formávamos roda sobre a mesa preta, traçávamos o círculo por entre nuvens de fumo. As káfkicas baratas, pré-históricas, tão antigas como o tempo, corriam por todo o lado. À esquerda e à direita, ladeando o rectângulo da grande sala, havia límpidos espelhos paralelos que multiplicavam as imagens até ao infinito.

José Marinho produzia em quem teve a ventura de o conhecer a impressão de se estar, não perante um homem, mas perante o próprio pensamento. A postura do corpo, a maneira de olhar, a subtil e doce ironia do sorriso, o movimento aéreo das mãos,o próprio jeito de compor a gravata acompanhavam o movimento do seu espírito reflexivo. Era muito difícil segui-lo por onde ia. Quando um de nós, entusiasmado com uma ideia, lha dizia com alguma empáfia, não o contradizia, deixava-o para trás para que imaginasse à frente outras e melhores ideias e isto com um simples "Já passei por aí". Ele ensinou-nos a única religião irrefutável: a de uma inteligência cujo acto é impossível se não regressa continuamente à origem, ao segredo do próprio pensar, ao ponto sem dimensão donde tudo emerge. O pensamento nele era a demonstração de Deus. Por isso foi para nós, seus discípulos, um dos últimos rosacruzes.

Escreveu nessa época a Teoria do Ser e da Verdade, onde, pela visão unívoca e pela cisão, une, numa sucessão de logismos e de intuições, segundo o processo mental da corrente alterna, o que de mais revelador significam a cruz e a rosa. Nunca, porém, nos foi dado racionalizar a filosofia de José Marinho, de tão ligada ao seu misterioso ser singular, tão sua e de Deus e por isso inacessível.

Quinze anos volvidos, nos últimos meses que passou connosco, quis a fortuna que todos os dias almoçássemos juntos. Vi-o pela derradeira vez nesta vida numa cama de hospital. Levei os meus dois filhos, ele com cinco, ela com oito. A magreza de Marinho era impressionante. Era já só espírito. Dois dias depois falecia. Os médicos disseram que morreu em êxtase.

Nos últimos anos da sua vida, foi funcionário da Fundação Gulbenkian. Exactamente, FUNCIONÁRIO DE PSICOLOGIA, uma monstruosidade concordante com um mundo em que se desalojam Cafés para se edificarem Bancos e se evanesceu de todo a ideia arqueológica de iniciação filosofal.

Funcionário de psicologia! E de psicologia científica!... Com que suspicaz e penetrante ironia, mas também infinita cautela e até alguma caridade para seus confrades doutos, se referia ele à vil ocupação inglória do tempo da vida, em que fingia ou fazia por seguir uma ciência definitivamente refutada em todos os livros de gente e, portanto, também nos seus. Este conflito entre a secreta, séria e honrada obediência à luz da verdade e amor aos seus próximos que, enquanto homens e mulheres, participavam e comungavam, por este ou aquele modo, dessa mesma verdade, explica em grande parte o seu estilo de viver, em que compreensão e interrogação apareciam como um só movimento.

Fundação Gulbenkian


Entende-se assim por que José Marinho não tenha concitado o ódio dos outros homens. Um por um, evidentemente, na terrível miséria cheia de dignidade do seu seu individual. Mas o ser genérico dos homens reunido pela força dos egrégores, a que os poetas chamam molusco e a teologia diabo, na impossibilidade de o absorver e integrar, haveria de catapultá-lo para lá das portas da morte.

Que Deus tenha em paz a sua alma! (in Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005, pp. 217-218).


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