terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Princípio e manifestação (ii)

Escrito por René Guénon








«As noções específicas da matemática, e os seus específicos raciocínios, hão-de ter lugar no quadro dos conceitos fundamentais das ciências, seriados estes pelo critério de maior interesse para a inteligência humana. Noções como identidade, igualdade, majoração, minoração, quantidade, grandeza, etc., qualquer que seja o respectivo quadro de categorias, hão-de depender do estudo da noção de número. Habilitado pela análise dos conceitos fundamentais, poderá então o filósofo estudar concretamente as noções primitivas, primordiais e formativas dos números, que foram representados por palavras antes de se reconhecer a vantagem do uso de sinais, e, consequentemente, o comportamento dessas noções com as outras que tornam real ou fecunda, a chamada generalização ou extensão da ideia de número.

Todos os números que os matemáticos modernos ou antigos inventaram para a conveniência de medir ou calcular, - os transfinitos, os imaginários, os irracionais e os fraccionários, - são provas de idealismo. A generalização ou extensão da ideia de número, admirável exercício de inteligência, resulta de uma ansiedade metafísica que não beneficia da comprovação analógica que assegure aos números a sua característica de realidade. A aritmologia é, pois, a ciência matemática que mais interessa ao filósofo relacionista, porque não se limitando ela à categoria de quantidade, permite que a operação numérica se articule com a distinção do ser nos três planos da existência.

A aritmologia não progride, porém, sem o recurso a noções de ordem física no sentido aristotélico, como as de raiz, produto, potência, etc. O estudo etimológico dos termos na aritmética, hermenêutica desprezada por aqueles matemáticos que nos símbolos vêem apenas sinais, levar-nos-ia a recordar as altas noções de ordem cosmogónica que os números condensam na sua economia representativa. Os atributos de quadrado e de cubo, usados na teoria da potenciação, representam já a ordem mais baixa do mundo físico, o sólido em contacto com a terra, a geometria.

A geometria, que da relação com o espaço qualificado tende para a expressão homogénea, representa já, com o platonismo, uma forma menos pura da matemática. Dela derivam todas as noções úteis, como a de continuidade divisível, a de potenciação espacial, a de série ilimitada, a de grandezas positivas e negativas, noções com as quais o pensamento humano vai constituindo a geometria analítica, novas aplicações de cálculo, enfim, instrumentos mais para a resolução de problemas técnicos do que para a notação de argumentos científicos. Por fim, as noções de infinito e de zero, não aplicáveis a qualquer multidão numerável nem a qualquer quantidade concebível, parecem facilitar a ambição do trânsito da matemática para a metafísica».

Álvaro Ribeiro («As Portas do Conhecimento. Matemática e Metafísica»).




Tetraktys




«Para o pitagorismo, as categorias são dinâmicas e dialécticas, porque o ser, considerado em si, é tomado abstractamente, e é necessário considerar as predisponências que permitem que ele seja, pelo correlacionamento que há entre os seres finitos. São também 10.

As categorias de Aristóteles, por exemplo, são lógicas. O Estagirita partiu da observação filosófica para estabelecê-las, e verificou que elas correspondem à classificação última que se pode fazer dos seres.

No exemplo que vamos dar, vemos as categorias aristotélicas consideradas, como presentes: João é um homem (indivíduo), pequeno (quantidade), moreno (qualidade), filho de Pedro (relação), sapateiro (acção), que foi acidentado num desastre (paixão), e que se encontra junto à porta (lugar), agora (tempo), sentado (posição), vestido de preto (habitum) ou que é sábio (também habitum, porque a sabedoria é um hábito adquirido, não quando é ingénita, o que seria uma graça, em sentido teológico)».

Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).


«Na época moderna, e mais particularmente na época contemporânea, os matemáticos parecem ter chegado ao ponto de ignorar o que é verdadeiramente o número; logo, como é óbvio, não nos referimos somente ao número entendido no sentido analógico e simbólico tal como o entendiam os pitagóricos e os kabbalistas, mas também, estranha e paradoxalmente, ao número na sua acepção quantitativa. Com efeito, os matemáticos reduzem toda a sua ciência ao cálculo segundo a concepção mais estreita que se possa imaginar, porquanto equivalente a uma simples série de procedimentos mais ou menos artificiais que, ao fim e ao cabo, somente valem em função das aplicações práticas a que podem dar lugar. No fundo, os matemáticos substituem o número pelo algarismo, de modo que, a confusão entre ambos, alargou-se de tal forma nos nossos dias que facilmente a podemos encontrar, a todo o momento, nas expressões da linguagem quotidiana. Ora, o algarismo não é, certamente, nada mais do que o invólucro do número, embora não o seu corpo, já que é a figura geométrica que, de um certo ponto de vista, pode ser legitimamente considerada como o verdadeiro corpo do número, tal como o atestam as teorias dos antigos sobre os polígonos e os poliedros na sua relação directa com o simbolismo numérico. Aliás, isto liga-se perfeitamente com o facto de que toda a «incorporação» implica necessariamente uma «espacialização».

René Guénon («Os Princípios do Cálculo Infinitesimal»).




Renato Descartes




«(...) No que respeita àquelas coisas que consideramos como tendo alguma existência, necessário é que as examinemos aqui uma após outra, a fim de distinguir o que é obscuro e o que é evidente em a noção que temos de cada uma. Quando concebemos a substância, concebemos somente uma coisa que existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para existir. Mas pode haver obscuridade no que toca à explicação desta frase: só ter necessidade de si próprio. Porque, falando com propriedade, só Deus é isso, e não há nenhuma coisa criada que possa existir, um só momento, sem ser sustentada e conservada pelo seu poder. Por isso há razão para dizer na Escola que o nome de substância não é «unívoco» aos olhos de Deus e das criaturas, isto é, que não há nenhuma significação desta palavra que concebamos distintamente, que convenha a ele e a elas. Todavia, porque, entre as coisas criadas, algumas são de tal natureza que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando então, a estas, substâncias, e, àquelas, qualidades ou atributos das substâncias.

(...) A noção que assim temos de substância criada refere-se da mesma maneira a todas, isto é, tanto às que são imateriais como às que são materiais ou corpóreas, porque para compreender o que são substâncias, basta tão só que vejamos que podem existir sem o auxílio de qualquer outra coisa criada. Mas quando é questão de saber se alguma dessas substâncias existe verdadeiramente, isto é, se está presente no mundo, digo que não é suficiente que exista dessa maneira para que nós a apercebamos. Porque isto, só por si, nada nos faz descobrir que excite algum conhecimento particular no nosso pensamento. É necessário, além disso, que tenha alguns atributos que possamos notar; e não há nenhum que não seja suficiente para este efeito, porque uma das noções comuns é que o nada não pode ter nenhuns atributos, nem propriedades ou qualidades. Por esta razão é que logo que encontramos algum, temos motivo para concluir que é o atributo de alguma substância, e que tal substância existe.

(...) Embora cada atributo seja suficiente para fazer conhecer a substância há, no entanto, um em cada uma, que constitui a sua natureza e a sua essência e de que todos os outros dependem. Assim, a extensão em comprimento, largura e altura, constitui a natureza da substância corporal e o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com efeito, tudo quanto pode atribuir-se ao corpo, pressupõe a extensão e não passa de dependência do que é extenso. Igualmente, todas as propriedades que encontramos na coisa pensante, limitam-se a serem diferentes maneiras de pensar. Assim não poderíamos conceber, por exemplo, uma figura, sem ser uma coisa extensa, nem movimento sem espaço que é extenso; assim a imaginação, o sentimento e a vontade dependem de tal maneira da coisa pensante que não os podemos conceber sem ela. Podemos, pelo contrário, conceber a extensão sem figura ou movimento e a coisa pensante sem imaginação ou sem sentimento, e assim por diante».


René Descartes («Os Princípios da Filosofia»).







A materia secunda do nosso mundo não deve, no entanto, ser desprovida de determinação, porque se assim fosse confundir-se-ia com a própria materia prima na sua completa «indistinção»; e, por outro lado, não pode ser uma materia secunda qualquer, mas deve ser determinada de acordo com as condições deste mundo, e de tal modo que seja efectivamente em relação a este e não em relação a qualquer outra coisa, que ela esteja apta a desempenhar o papel de substância. É necessário, pois, precisar qual a natureza desta determinação, e é o que faz Tomás de Aquino ao definir a materia secunda como materia signata quantitate; o que lhe é inerente e a faz ser o que é, não é, portanto, a qualidade, mesmo encarada só na ordem sensível, mas, pelo contrário, a quantidade, que é realmente assim ex parte materiae. A quantidade é uma das condições da existência no mundo sensível ou corporal; de todas estas condições, ela é até, uma das mais exclusivamente próprias a ele, e, por isso, como era de esperar, a definição da materia secunda em questão não pode dizer respeito a outra coisa que não seja este mundo na sua totalidade, porque tudo o que nele existe está necessariamente sujeito à quantidade; esta definição é, pois, plenamente suficiente, sem que seja necessário atribuir à materia secunda, como fizemos para a «matéria» moderna, propriedades que não lhe podem pertencer de modo nenhum. Podemos dizer que a quantidade, constituindo propriamente o lado substancial do nosso mundo, é, por assim dizer, a sua condição «básica» ou fundamental; mas é preciso ter cuidado em não lhe atribuir uma importância de outra ordem diferente da que tem realmente, e sobretudo querer tirar dela a explicação deste mundo, do mesmo modo que não se devem confundir as fundações de um edifício com o telhado: enquanto há só as fundações, ainda não há edifício, embora essas fundações sejam indispensáveis; identicamente, enquanto há só a quantidade, ainda não há manifestação sensível, embora esta tenha aí a sua própria raiz. A quantidade reduzida a si mesma é só um «pressuposto» necessário, mas não explica nada; é uma base realmente, mas não é nada mais, e não devemos esquecer que a base é, por definição, aquilo que se situa num nível mais baixo; por isso, reduzir a qualidade à quantidade não é mais do que a «redução do superior ao inferior», com a qual alguns quiseram caracterizar o materialismo: pretender fazer sair o «mais» do «menos», é, com efeito, uma das mais típicas de todas as aberrações modernas!

Outra questão se levanta ainda: a quantidade apresenta-se-nos de modos diferentes, nomeadamente a continuidade descontínua, que é propriamente o número (6), e a quantidade contínua, que é representada principalmente pelas grandezas de ordem espacial e temporal; qual é, de entre estes modos, o que constitui mais precisamente aquilo a que podemos chamar a quantidade pura? Esta questão também tem a sua importância, tanto mais que Descartes, base de uma boa parte das concepções filosóficas e científicas especificamente modernas, quis definir a matéria pela extensão, e fazer desta definição o princípio de uma física quantitativa que, se ainda não era «materialismo», era, pelo menos, «mecanismo»; é que poderíamos ser tentados a concluir que a extensão, porque é directamente inerente à matéria, representa o mundo fundamental da quantidade. No entanto, inversamente, Tomás de Aquino ao dizer que o «numerus stat ex parte materiae» parece sugerir que é o número que constitui a base substancial deste mundo, e que é ele, por conseguinte, que deve ser olhado verdadeiramente como a quantidade pura; este carácter «básico» do número está perfeitamente de acordo com o facto de, na doutrina pitagórica, ser ele que, por analogia inversa, é tomado como símbolo dos princípios essenciais das coisas. É preciso notar que a «matéria» de Descartes já não é a materia secunda dos escolásticos, mas sim um exemplo, e talvez o primeiro em data, de uma «matéria» dos físicos modernos, embora aquele filósofo ainda não tenha posto nesta noção tudo o que os seus sucessores lá introduziram pouco a pouco, para chegar às teorias mais recentes sobre a «constituição da matéria». Há, pois, motivo para supor que pode haver na definição cartesiana da matéria algum erro ou confusão, que lá se deve ter imiscuído, mesmo sem o seu autor querer, elemento que não é de ordem puramente quantitativa; com efeito, como veremos mais adiante, a extensão, embora tendo um carácter quantitativo, como, aliás, tudo o que pertence ao mundo sensível, não pode ser vista como pura quantidade. Além disso, é de notar também que as teorias que vão mais longe no sentido da redução ao quantitativo são geralmente «atomistas» sob esta ou aquela forma, quer dizer, introduzem na sua noção de matéria uma descontinuidade que a aproxima mais da natureza do número do que da extensão; e mesmo o facto da matéria corporal não poder ser, apesar de tudo, concebida de outra maneira que não seja a da extensão, é para o «atomismo» uma fonte de contradições. Outra causa e confusão nisto tudo, e sobre a qual voltaremos a falar, é o hábito que se tem de considerar «corpo» e «matéria» como mais ou menos sinónimos; na realidade, os corpos não são de modo nenhum a materia secunda, que não se encontra em nenhum lado nas existências manifestadas neste mundo, mas procedem dela só como o seu princípio substancial.






É o número que, também ele não percebido directamente e no estado puro no mundo corporal, deve ser considerado em primeiro lugar no domínio da quantidade, como constituindo o seu modo fundamental; os outros modos são só derivados, isto é, são quantidade porque participam no número, o que se reconhece, aliás, implicitamente, quando consideramos, como sempre foi feito, que tudo o que é quantitativo deve poder exprimir-se numericamente. Nestes outros modos, a quantidade, mesmo sendo o elemento predominante, aparece sempre mais ou menos misturada de qualidade, e é por isso que as concepções do espaço e do tempo, a despeito de todos os esforços dos matemáticos modernos, não poderão ser exclusivamente quantitativas, a menos que se consinta em reduzi-las a noções inteiramente vazias, sem nenhum contacto com uma qualquer realidade; mas não será a ciência actual feita, em grande parte, destas noções vazias, que não têm mais que um carácter de «convenções» sem o mínimo alcance efectivo? Explicar-nos-e-mos mais completamente a propósito desta última questão, sobretudo no que diz respeito à natureza do espaço, porque este ponto tem uma relação estreita com os princípios do simbolismo geométrico e, ao mesmo tempo, fornece um excelente exemplo da degenerescência que vai das concepções tradicionais às concepções profanas; e chegaremos a isso examinando primeiro como é que a ideia de «medida», na qual se baseia a própria geometria, é tradicionalmente susceptível de uma transposição que lhe dá um significado completamente diferente daquele que tem para os sábios modernos, que só vêem nela o meio de se aproximarem o mais possível do seu «ideal» ao invés, isto é, de operar pouco a pouco a redução de todas as coisas à quantidade.


MEDIDA E MANIFESTAÇÃO

Se achamos preferível evitar o emprego da palavra «matéria», enquanto não temos que examinar especialmente as concepções modernas, deve compreender-se que a razão por que o fazemos reside no facto desse emprego fazer nascer inevitavelmente, porque é impossível que não evoque logo mesmo para aqueles que conhecem o sentido diferente que a palavra tinha para os escolásticos, a ideia daquilo que os físicos modernos designam desse modo, já que esta acepção recente é a única que se liga a este emprego na linguagem corrente. Ora esta ideia, como já dissemos, não se encontra em nenhuma doutrina tradicional, quer oriental, quer ocidental; isso mostra que, mesmo na medida em que fosse possível admiti-la legitimamente libertando-a de alguns elementos heteróclitos ou mesmo nitidamente contraditórios, uma tal ideia não tem nada de verdadeiramente essencial e só se adapta a uma maneira muito particular de encarar as coisas. Ao mesmo tempo, visto que se trata de uma ideia muito recente, verifica-se que não está implícita na palavra, que lhe é bastante anterior, cujo significado original deve, por conseguinte, ser-lhe inteiramente independente; é preciso, aliás, reconhecer que esta palavra é daquelas a que é difícil determinar exactamente a verdadeira derivação etimológica, como se uma obscuridade devesse decididamente envolver tudo o que diz respeito à «matéria». Portanto não é possível fazer mais do que dilucidar algumas ideias que estão associadas à raiz da palavra, o que, de certo modo, não deixa de ter algum interesse, mesmo se não pudermos precisar qual é, dessas ideias, aquela que está mais próxima do sentido primitivo.






A associação que parece ter sido mais correntemente notada é a que liga materia a mater, e isso convém perfeitamente à substância, enquanto princípio passivo, ou simbolicamente «feminino»: pode dizer-se que Prakriti tem um papel «maternal» em relação à manifestação, ao mesmo tempo que Purusha tem um papel «paternal»; e é igualmente assim em todos os graus em que se possa ver analogicamente uma correlação de essência e de substância (7). Por outro lado, é possível também ligar a mesma palavra materia ao verbo latino metiri, «medir» (veremos que há em sânscrito uma forma mais próxima ainda); mas quem diz «medida» diz também determinação, e isto não respeita só à indeterminação da substância universal ou da materia prima, mas deve antes referir-se a algum outro significado mais restrito; é este precisamente o ponto que nos propomos analisar agora mais em pormenor.

Como escreve Ananda K. Coomaraswamy, «para tudo o que pode ser concebido ou percebido (no mundo manifestado), o sânscrito tem só a expressão nâma-rûpa, cujos termos correspondem ao «inteligível» e ao «sensível» (considerados como dois aspectos complementares que se referem respectivamente à essência e à substância das coisas) (8). É certo que a palavra mâtrâ, que significa literalmente «medida», é o equivalente etimológico de materia; mas aquilo que é «medido», não é a «matéria» dos físicos, mas as possibilidades de manifestação inerentes ao espírito (Atmâ) (9). Esta ideia de «medida», posta assim em relação directa com a própria manifestação, é bastante importante, e, aliás, está longe de ser exclusiva da tradição hindu, que Coomaraswamy visa particularmente; com efeito, poderíamos dizer que ela se encontra, sob uma ou outra forma, em todas as doutrinas tradicionais, e embora não tenhamos a pretensão de indicar agora todas as concordâncias que se poderiam fazer a este respeito, tentaremos, no entanto, dizer o suficiente para justificar esta asserção, ao mesmo tempo que esclareceremos, enquanto nos for possível, este simbolismo da «medida» que tem, nomeadamente, um grande lugar em certas formas iniciáticas.

A medida, entendida no seu sentido literal, liga-se principalmente ao domínio da quantidade contínua, isto é, de modo mais directo, às coisas que possuem um carácter espacial (porque o tempo, embora igualmente contínuo, só pode ser medido indirectamente, ligando-se, de certo modo, ao espaço, por intermédio do movimento que estabelece a relação entre um e outro); isto quer dizer que ela se relaciona, em suma, quer com a extensão, quer com aquilo que se combinou chamar a «matéria corporal», devido ao carácter extenso que esta possui necessariamente (o que, aliás, não quer dizer que a sua natureza, como pretendeu Descartes, se reduza pura e simplesmente à extensão). No primeiro caso, a medida é mais propriamente «geométrica»; no segundo caso, poder-se-ia dizer que ela é mais «física», no sentido comum desta palavra; mas, na realidade, este segundo caso reduz-se ao primeiro, porque, é enquanto se situam na extensão e ocupam certa porção bem definida, que os corpos são imediatamente mensuráveis, e as suas propriedades só são susceptíveis de mensuração na medida em que podem ter de certo modo uma relação com a extensão. Tal como tínhamos previsto, estamos aqui longe da materia prima, que, com efeito, na sua «indistinção» absoluta, não pode ser medida de nenhum modo, nem servir para medir o que quer que seja; devemos, contudo, perguntar se esta noção de medida não está ligada mais ou menos estreitamente com o que constitui a materia secunda do nosso mundo, e, efectivamente este laço existe, pelo facto desta ser signata quantitate. Na verdade, se a medida diz respeito directamente à extensão e ao que está contido nela, é pelo aspecto quantitativo dessa mesma extensão que ela se torna possível; mas a quantidade contínua, como já explicámos, não é mais do que um modo derivado da quantidade, isto é, só é propriamente quantidade quando participa na quantidade pura, que, essa, é inerente à materia secunda do mundo corporal; e, acrescentaremos nós, é porque o contínuo não é a quantidade pura, que a medida apresenta sempre uma imperfeição na sua expressão numérica, já que a descontinuidade do número torna impossível a sua aplicação adequada à determinação das grandezas contínuas. O número é realmente a base de todas as nossas medidas, mas, enquanto considerarmos só o número, não podemos falar de medida, porque esta é a aplicação do número a qualquer outra coisa, aplicação que é sempre possível dentro de certos limites, isto é, tendo em conta a «inadequação» que acabámos de indicar para tudo o que está submetido à condição quantitativa, ou, noutros termos, para tudo o que pertence ao domínio da manifestação corporal. Só que, e voltamos aqui à ideia expressa por A. Coomaraswamy, é preciso ter em atenção que, a despeito de certo abuso na linguagem corrente, a quantidade não é o que é mensurável, mas, pelo contrário, aquilo através do qual as coisas são medidas; e, além disso, pode dizer-se que a medida é para o número, em sentido inversamente analógico, o mesmo que a manifestação é em relação ao seu princípio essencial.






Agora, facilmente se compreende que, para estender a ideia de medida para além do mundo corporal, é necessário traduzi-la analogicamente: como o espaço é o lugar de manifestação das possibilidades de ordem corporal, poderemos servir-nos dele para qualquer domínio de manifestação universal, que de certo modo não era «representável»; e assim, a ideia de medida que a ele se aplica, pertence essencialmente ao simbolismo espacial de que daremos exemplos. No fundo, a medida é nesse caso uma «marca» ou «determinação» necessariamente implicada por qualquer manifestação, seja de quem for e tome o modo que tomar; esta determinação é naturalmente conforme às condições de cada estado de existência, e até, num certo sentido, identifica-se com essas próprias condições; só é verdadeiramente quantitativa no nosso mundo, já que a quantidade, tal como o espaço e o tempo, não é mais do que uma dessas condições especiais de existência corporal. Mas há em todos os mundos uma determinação que pode ser simbolizada por essa determinação quantitativa que é a medida, que é o que lhe corresponde, tendo em conta a diferença de condições; e pode dizer-se que é através desta determinação que estes mundos, com tudo o que contêm, são realizados ou «actualizados» como tais, porque ela está unida com o próprio processus da manifestação. Coomaraswamy nota que o conceito platónico e neoplatónico de «medida» - métpov - concorda com o conceito indiano: o «não-mensurável» é o que ainda não foi definido; o «mensurável» é o conteúdo definido ou finito do «cosmos», isto é, do universo «ordenado»; o «não-mensurável» é o infinito fonte, ao mesmo tempo, do indefinido e do finito, e que continua não contaminado pela definição do que é definível, isto é, pela realização das possibilidades de manifestação que traz consigo.

Vê-se aqui que a ideia de medida está em ligação com a de «ordem» (em sânscrito rita), que se liga à produção do universo manifestado, que é, segundo o sentido etimológico da palavra grega kósmos, uma produção da «ordem» a partir do «caos»; este último é o indefinido, no sentido platónico, e o «cosmos» é o definido (10). Esta produção é assimilada em todas as tradições a uma «iluminação» (o Fiat Lux do «Génesis»), sendo o «caos» identificado simbolicamente com as «trevas»; é a potencialidade a partir da qual se «actualizará» a manifestação, isto é, em suma, o lado substancial do mundo, que é assim descrito como o pólo tenebroso da existência, enquanto a essência é o pólo luminoso, já que é a sua influência que ilumina efectivamente esse «caos» para dele tirar o «cosmos»; por outro lado, este concorda com a aproximação dos diferentes significados implicados em sânscrito na palavra srishti, que designa a produção da manifestação, e que contém ao mesmo tempo as ideias de «expressão», de «concepção» e de «radiação luminosa» (11). Os raios solares fazem aparecer as coisas que iluminam, tornam-nas visíveis, e por isso, pode dizer-se que as «manifestam» simbolicamente; se considerarmos um ponto central no espaço e os raios emanados desse centro, diremos que os raios «realizam» o espaço, fazendo-o passar da virtualidade à actualidade, e que a sua extensão efectiva é, em cada momento, a medida do espaço realizado. Estes raios correspondem às direcções do espaço propriamente dito (direcções muitas vezes representadas pelo simbolismo dos «cabelos», que também se referem aos raios solares); o espaço é definido e medido pela cruz a três dimensões e, no simbolismo tradicional dos «sete raios solares», seis destes raios, opostos dois a dois, formam esta cruz, enquanto o «sétimo raio», o que passa pela «porta solar», só pode ser representado pelo próprio centro. Tudo isto é perfeitamente coerente e encadeia-se da maneira mais rigorosa; acrescentaremos ainda, que na tradição hindu, os «três passos» de Vishnu, cujo carácter «solar» é bem conhecido, medem os «três mundos», o que equivale a dizer que eles «efectuam» a totalidade da manifestação universal. Sabe-se, por outro lado, que os três elementos que constituem o monossílabo sagrado Om são designados pelo termo mâtrâ, o que indica que eles representam também a medida respectiva dos «três mundos»; pela meditação destes mâtrâs, o ser realiza em si os estados ou graus correspondentes da existência universal e torna-se assim ele próprio a «medida de todas as coisas» (12). A palavra sânscrita mâtrâ tem como equivalente exacto em hebreu a palavra middah; ora na Cabala os middoth estão assimilados aos atributos divinos, e diz-se que é por eles que Deus criou os mundos, o que, além disso, se relaciona precisamente com o simbolismo do ponto central e das direcções do espaço (13). Podemos também relembrar as palavras bíblicas, segundo as quais Deus «dispôs todas as coisas com conta, peso e medida» (14); esta enumeração, que se refere manifestamente a modos diversos da quantidade, só é aplicável literalmente ao mundo corporal, embora por uma transposição apropriada se possa ver nela uma expressão da «ordem» universal. O mesmo sucede com os números pitagóricos; mas, entre todos os modos da quantidade, aquele a que corresponde propriamente a medida, isto é, a extensão, é que está mais vezes e mais directamente ligado com o próprio processo da manifestação, em virtude de uma certa predominância natural do simbolismo espacial a este respeito, que resulta do facto de ser o espaço que constitui o «campo» (no sentido do sânscrito kshêtra) no qual se desenvolve a manifestação corporal, também ela tomada forçosamente como símbolo de qualquer manifestação universal.

Templo de Apolo em Delfos


A ideia de medida evoca imediatamente a da «geometria», porque não só toda a medida é essencialmente «geométrica», como já vimos, mas também se pode dizer que a geometria não é mais do que a própria ciência da medida; é claro que se trata aqui de uma geometria extensiva, no sentido simbólico e iniciático, do qual a geometria profana não é mais do que um simples vestígio degenerado, privado do significado profundo que tinha originalmente e que se perdeu inteiramente para os matemáticos modernos. É nela que se baseiam essencialmente todas as concepções que assimilam a actividade divina, enquanto produtora e ordenadora dos mundos, à «geometria», e também, por consequência, à «arquitectura» que é inseparável dele (15); e sabemos que estas concepções se conservaram e se transmitiram de maneira ininterrupta, desde o Pitagorismo (que, aliás, não foi mais do que uma «adaptação» e não uma verdadeira «origem»), até ao que ainda subsiste das organizações iniciáticas ocidentais, mesmo que estas últimas tenham pouca consciência disso. É ao que se refere a frase de Platão: «Deus geometriza sempre» (para uma tradução exacta, somos obrigados a recorrer a um neologismo, já que em francês - e em português - não existe um verbo que designe a operação do geómetra), frase a que correspondia a inscrição que ele mandou colocar, segundo a tradição, na frontaria da sua escola: «Que ninguém entre aqui se não for geómetra», o que implicava que o seu magistério, pelo menos no aspecto esotérico, só poderia ser compreendido verdadeira e efectivamente por uma «imitação» da própria actividade divina. Há um último eco disto na filosofia moderna (pelo menos quanto à data, embora, na realidade, seja uma reacção contra as ideias especificamente modernas), quando Leibniz diz que «enquanto Deus calcula e exerce a sua cogitação (isto é, estabelece os planos), o mundo faz-se» (dum Deus calculat et cogitationem exercet, fit mundus); mas para os antigos havia outro sentido bem preciso, porque, na tradição grega, o «Deus geómetra» era Apolo hiperbóreo, o que nos conduz mais uma vez ao simbolismo «solar», e, ao mesmo tempo, a uma derivação bastante directa da tradição primordial; mas isso é outra questão, que não poderíamos desenvolver aqui sem sair totalmente do nosso assunto, e temos de contentar-nos em dar, à medida que as ocasiões se apresentam, alguns traços destes conhecimentos tradicionais tão esquecidos pelos nossos contemporâneos (16).

(Ibidem, pp. 23-33).


Notas:

(6) A noção pura do número é essencialmente a do número inteiro, e é evidente que a continuação dos números inteiros constitui uma série descontínua; todas as extensões que esta noção tem recebido e que deram lugar à consideração dos números fraccionários e dos números não mensuráveis, são verdadeiras alterações, e, na realidade, representam unicamente os esforços que foram feitos para reduzir o mais possível os intervalos do descontínuo matemático, a fim de tornar menos imperfeita a sua aplicação à medida das grandezas contínuas.

(7) Isto está de acordo com o sentido original de hyle, que indicámos mais atrás: o vegetal é, por assim dizer, a «mãe» do fruto que sai dele e que se alimenta de substância, mas que só se desenvolve e amadurece sob a influência vivificante do sol, o qual é, por assim dizer, o «pai»; e, por conseguinte, o próprio fruto assimila-se simbolicamente ao sol por «co-essencialidade», se me é permitido a expressão, como se pode ver naquilo que dissemos algures a propósito do simbolismo dos Adityas e de diversas outras noções tradicionais semelhantes.



René Guénon



(8) Estes dois termos, «inteligível» e «sensível», assim empregues correlativamente, pertencem propriamente à linguagem platónica; sabe-se que o «mundo inteligível» é, para Platão, o domínio das «ideias» ou dos «arquétipos», que, como já vimos, são efectivamente as essências no sentido próprio desta palavra; e, relacionado com este mundo inteligível, o mundo sensível, que é o domínio dos elementos corporais e do que vem das suas combinações, está do lado substancial da manifestação.

(9) Notes on the Katha-Upanishad, 2.º parte.

(10) A palavra sânscrita rita apresenta-se, pela sua raiz, no latim ordo, e seria quase escusado fazer notar que está mais ligada à palavra «rito»: o rito é, etimologicamente, o que se cumpre segundo a «ordem», e que, por consequência, imita ou reproduz ao seu nível o próprio processus da manifestação; e é por isso que, numa civilização estritamente tradicional, qualquer acto reveste um carácter essencialmente ritual.

(11) Cf. A. K. Coomaraswamy, ibid.

(12) L'Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. XVII.

(13) Le Symbolisme de la croix, cap. IV.

(14) «Omnia in mensura, numero et pondere disposuisti» (Provérbios, XI, 20).

(15) Em árabe, a palavra hindesah, cujo primeiro sentido é o de «medida», serve para designar ao mesmo tempo a geometria e a arquitectura, já que a segunda é uma aplicação da primeira.

(16) A. Coomaraswamy mostrou-nos um curioso desenho simbólico de William Blake que representa o «Ancião dos Dias» aparecendo no orbe solar, para fora do qual estende um compasso que tem na mão, o que é uma ilustração destas palavras do Rig-Vêda (VIII, 25, 18): «Com o seu raio, mediu (ou determinou) os limites do Céu e da Terra (e entre os símbolos de alguns graus maçónicos aparece um compasso cuja cabeça é formada por um sol e os raios). Trata-se manifestamente de uma figuração deste aspecto do Princípio que as iniciações ocidentais chamam o «Grande Arquitecto do Universo», que, em alguns casos, se torna o «Grande Geómetra do Universo», o que é idêntico ao Vishwakarma da tradição hindu, o «espírito da Construção Universal»: os seus representantes terrestres, isto é, os que «encarnam» este espírito relativamente às diferentes formas tradicionais, são os que designámos mais atrás, por esta mesma razão, os «Grandes Arquitectos do Oriente e do Ocidente».





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