quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Alberto Caeiro e o Menino Jesus

Escrito por Fernando Pessoa







«O meu olhar é nítido como um girassol...».

Alberto Caeiro


«(...) o sentimento da natureza tem hoje duas formas essenciais: é, por um lado, o sentimento estético da paisagem ou, mais precisamente, o sentimento fotográfico da paisagem; é, por outro lado, o sentimento higiénico das forças naturais, a pele queimada pelo sol, o ar puro dos pinheiros. Nestes dois aspectos se configura o desejo de um regresso à natureza numa humanidade lassa, fabril, ou febril, burocrática, vazia.

É curioso verificar que um grande poeta e um grande homem, Fernando Pessoa, não escapou, no modo como concebeu a vivência paradisíaca da natureza, ao fascínio fotográfico da paisagem, próprio de qualquer vulgar turista de fim-de-semana. Referimo-nos a Alberto Caeiro. Através deste herenónimo, Fernando Pessoa parece ter pretendido, entre outras coisas, resgatar a natureza de um romantismo que a personifica e macula de alma e de sentimento. Cai, porém, no engano de que é olhando as coisas em plena luz, na sua maior nitidez próxima, bem de frente, de chapa, que elas se revelam. Essa coisa, quase impossível, de querer ver o mundo do sol e de fixar as formas desse mundo por uma operação instantânea, em que não está o pensamento, constitui a consequência de uma superior teoria poética, que podemos resumir assim: não há natureza, o que há são coisas - as árvores, os montes, as pedras, os rios, as flores; "as coisas não têm nome nem personalidades", são o fenómeno puro, o fenómeno em si próprio, o autofenómeno; estão absolutamente presentes no próprio "aparecer".

Todavia, sob esta teoria interpretável à luz do "nominalismo" ou do "zen" ou da fenomenologia de Husserl, insinua-se o paradigma fotográfico. É assim que o poeta escreve que as coisas se revelam "em dias de luz perfeita e exacta", quando "a natureza bate de chapa na cara dos sentidos". Quase ouvimos o disparar da máquina. A impressão pura de luz no "olhar nítido como um girassol" não sofre a inversão nem se projecta numa câmara escura. A revelação é imediata sem passagem pelo negativo. A natureza é a paisagem, uma película luminosa de cor. Mas dentro, no interior da alma, também não há sombras; "Tive um sonho como uma fotografia". O célebre poema de Alberto Caeiro poderia ser todo traduzido sem erro ou distorção na forma de uma película cinematográfica».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).






«(...) "... tive um sonho como uma fotografia..." Claro que se não trata de um verso e o que nele se significa, e resume todo o sentido do poema, é ainda menos poético do que as palavras em que está dito. Perante o cadáver real de António, ali presente nos seus braços, Cleópatra sonha com "um imperador que também se chama António", isto no que é, talvez, o mais belo poema de Shakespeare que Pessoa tanto queria para modelo. Transitar da realidade ao sonho é, sim, sinal de poesia. Mas o contrário? E, para mais, não à realidade mas à fotografia, aos "fotógrafos" como Almada dizia de certos pintores realistas e abstractos...».

Ernesto Palma («A Inflação de Fernando Pessoa»).




«(...) Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única essência é não pensar...»

Alberto Caeiro



«Há sistemas para todas as coisas que nos ajudam a saber amar, só não há sistemas para saber amar!»







Alberto Caeiro e o Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter mãe e pai
Como as outras crianças -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam  fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o completamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno,
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

(in Poesias. Heterónimos, Porto Editora, pp. 37-42).


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