sexta-feira, 4 de abril de 2014

Conversando com Tomé Natanael

Entrevista a Tomé Natanael

«Diz Pinharanda Gomes, a páginas 401 do seu livro [A Filosofia Hebraico-Portuguesa], que "a escola formal é a iniciação esotérica e que este é o princípio da maçonaria".

O conceito de escola formal é de Álvaro Ribeiro, que o expõe no livro a que deu, precisamente, este título. Mas funda-se ele no conceito aristotélico de forma como o que dá origem, não princípio, à existência das coisas, dos seres e do mundo e só se distingue da categoria primacial, a substância, porque esta não dá origem, mas é o que faz substância, é o que faz perdurar. O conceito da escola formal, tal como Álvaro Ribeiro o pensou, destina-se a assegurar que o ensino seja uma imitação da criação, ou do espírito, tal como a arte é uma imitação da natureza. Estamos sempre seguindo e actualizando o aristotelismo.

Ao acrescentar ao conceito de escola formal o de escola material, Álvaro Ribeiro concedeu ao nosso calão pedagógico que chama matérias aos assuntos tratados nas disciplinas escolares. A palavra matéria tem uma longa história de múltiplos sentidos mas que, todos eles, sobretudo o do materialismo característico da filosofia e da ciência modernas, acabam por cair perante o de Aristóteles. Comprovam os eruditos que foi Aristóteles que primeiro deu conceito à palavra matéria (ou àquela que os latinos traduzem, com milagrosa correcção, por matéria). Ora, nesse conceito a matéria é, em si mesma, o nada. Não o nada no sentido que lhe deram os filósofos cristãos, como José Marinho, M. Heidegger ou Hegel, inspirados na imagem bíblica segundo a qual o mundo foi criado do nada, mas no sentido do nenhum, onde coisa alguma é, e do nenhures, onde coisa alguma existe.

Torna-se, portanto, surpreendente que Pinharanda Gomes transponha para a maçonaria o conceito de escola formal, e o conceito de escola, ou escolas materiais, dando o primeiro como o de iniciação esotérica e o segundo como o dos vários ritos maçónicos para, dentro deste quadro mental, desenvolver eruditamente as relações entre pensamento hebraico e a prática da maçonaria.

Não sei se o Pinharanda tem informações, que eu não possuo, de a maçonaria utilizar a designação de escola formal. Mas sei fundamentadamente que o aristotelismo é incompatível com a doutrina oculta de uma associação secreta. Acontece com Aristóteles o que ainda não acontecera com Platão: a filosofia, ou o saber autêntico, radicado no homem e no mundo, distinto do saber revelado, separa-se das religiões do oculto porque deixa de carecer do oculto para garantir a sua autenticidade, porque a autenticidade passa a ter a garantia no pensamento. É esta separação que dá origem à lógica.

O cristianismo herdou de Aristóteles a separação das religiões do oculto e é delas, sempre prontas a reaparecer onde e quando o pensamento se debilita e evanesce, que se alimentam os seus adversários. A maçonaria constitui um entre múltiplos exemplos históricos.

Pinharanda Gomes não estranhará que, a seguir à recensão de um livro tão rico e admirável como é o seu, eu me demore a discutir apenas uma questão. Trata-se, porém, de uma questão crucial nas circunstâncias culturais e políticas em que nos encontramos. E acresce o facto de eu ter sido o responsável por uma revista, publicada entre 1976 e 1978, e na qual colaborou, que teve o título, precisamente, de Escola Formal. Também aí não faltou quem visse o dedo da maçonaria a apontar o liberalismo, ou o neoliberalismo, que a revista preconizava e doutrinava.
A confusão da maçonaria com o liberalismo é uma imagem que nos ficou da monarquia constitucional e da 1ª República, que ainda não se desfez. Reaparece com frequência na linguagem dos políticos, o que não tem qualquer significado intelectual, mas figura em todas as pastorais emanadas do episcopado português nos últimos seis ou sete anos, o que nos deixa perplexos. Entre nós, como nalguns outros países, o chamado regime liberal que resultou da Revolução Francesa foi, efectivamente, o regime dos mações. Acontece, porém (e o actual neoliberalismo já o demonstrou à saciedade), que tal regime pouco ou nada teve a ver com o liberalismo, mas constituía a sua dissolução, com a consequente preparação do advento do socialismo. O rosto visível que, no nosso país, a maçonaria hoje oferece, impulsionando, apoiando e comandando o regime socialista constitucionalizado pela revolução de 25 de Abril, só serve de confirmação ao que estou esclarecendo. O neoliberalismo preconizado pela revista Escola Formal é o antípoda do socialismo.

Uma última observação: a escola formal é o que há de mais contrário, não só ao esoterismo maçónico como a todo o ocultismo. A filosofia tem, decerto, uma iniciação, mas não no sentido esotérico e ocultista que se tornou habitual atribuir a toda a iniciação. O ocultismo é um culto romântico, muito expandido nos nossos dias, e tanto mais sedutor quanto menos sábias são as inteligências e orgulhosas as subjectividades.

A filosofia é, por definição, o que se oferece, no seu todo, a todas as inteligências e só pode existir por residir totalmente na natureza de cada ser humano. «Um homem que não é um filósofo - disse o mestre da "filosofia portuguesa" que é José Marinho - é tudo menos um homem». Que a maior parte dos homens não tenha a consciência disso, nem a reflexão nem o saber, que a maior parte dos homens o ignore e se satisfaça nos actos da vida prática e da vontade dominadora, ou sublime essa ignorância nas imagens e ritos do culto religioso, não pode significar que a filosofia dependa de um saber secreto e oculto. O que só se tornou acessível a alguns, raros, não significa que tal acessibilidade seja negada ou condicionada por alguma secreta iniciação ocultista. É possível que os homens, movidos pelo espírito do mal, que é a vontade de persistir na ignorância, e atormentando-se, torturando-se e mentindo uns aos outros, forcem os melhores de entre eles a uma existência segregada e, portanto, a uma acção segregada. É possível que a história de Portugal seja mais verdadeira no que tem de secreto do que no que tem de patente. É possível até que a verdade "não venha nem se vá"... Mas nada é oculto.

Se tudo fosse oculto, como disse o poeta festejado, ou apenas o de que tudo depende, então não haveria, como também o poeta concluiu, nem procura nem crença, nem filosofia nem religião».

Orlando Vitorino («Post Scriptum Polémico sobre a Escola Formal», in «A Filosofia como Imagem da Pátria»).


«Na Universidade medieval que funcionava de acordo com o esquema iniciático, dando exotericamente para muitos aquilo que esotericamente era só para alguns, as sete ciências ou artes liberais escalonavam-se por dois grupos sucessivos, o trivium e o quadrivium, divisão que, em termos profanos, poderemos equiparar ao que hoje é o ensino inferior e o ensino superior. O trivium, isto é, o tríplice caminho pela Gramática, pela Retórica e pela Lógica (ou Dialéctica) e o quadrivium, caminho por quatro, com a Aritmética, a Geometria, a Música e a Astronomia envolvem toda a ciência da época pelo desdobramento de cada uma das sete em múltiplas aplicações ou pela convergência de várias para formar novas ciências. Ao compararmos trivium e quadrivium com os modernos ensino inferior e superior não é para que se pense que, hoje, nas escolas públicas, exista qualquer ligação com o ensino iniciático. Seria ridículo suspeitá-lo sequer, por muito que alguns professores universitários queiram aparentá-lo, trazendo para as suas aulas o que não passa de um vulgar ocultismo de anómalas repercussões místicas. A Universidade moderna é caracterizadamente profana e, por isso mesmo, é inteiramente certo dizer que, através dela, não se põe qualquer relação do exotérico com o esotérico, como acontecia na Universidade medieval. Há ainda quem confunda profano com exotérico; um e outro não são a mesma coisa. Profano é o que é alheio e até hostil ao Templo (Fanum); exotérico é relativo a esotérico, é a sua face exterior, visível, mas que revela o que encobre a quem saiba ver. A Universidade de D. Dinis, do rei templário, era exotérica. A que aparece mais tarde com a reforma do Marquês de Pombal, só possível pela degenerescência que sofreu a partir de D. João III, é de todo em todo profana, não obstante a sua muito provável relação com o iluminismo maçónico».

António Telmo («A Aventura Maçónica. Viagens à Volta de um Tapete»).


António Telmo

«Sob o governo do marquês de Pombal os maçons não foram perseguidos. Nada se encontra que lhes seja adverso, seja nas listas condenatórias da Inquisição, seja nos relatórios da Intendência da Polícia; parece mesmo que a Maçonaria se desenvolveu então em Portugal, sobretudo no exército e nas classes instruídas e elevadas. Evidentemente que isto se devia não apenas às ideias do marquês, mas também às individualidades que ele chamou a Portugal. Sebastião José de Carvalho e Melo tinha sido, antes da sua subida ao poder, o nosso embaixador em Londres e lá teve ocasião de observar que as pessoas da corte e dos níveis mais elevados da sociedade pertenciam à Maçonaria.

(...) Num pequeno livro publicado em 1822, intitulado Causa dos Frades e dos Pedreiros-Livres no Tribunal da Prudência, lê-se que o marquês de Pombal tinha sido maçon.

(...) Pouco depois do início do seu governo, sentiu necessidade de se opor às manobras dos Jesuítas e à influência de Roma. Ora a Maçonaria, inimiga mortal destes poderosos elementos da reacção, viria naturalmente em ajuda dos planos do ministro. Por outro lado, o marquês chamou ao país vários estrangeiros da milícia e da indústria e é mais do que provável que, pelo menos, alguns vindos de países protestantes, onde a Maçonaria estava divulgada entre os intelectuais, pertencessem à Ordem.

Os nomes de alguns deles aparecem no reinado seguinte incluídos na lista dos perseguidos. Entre os que vieram a Portugal no tempo do marquês devem-se destacar os oficiais suiços que, juntamente com vários soldados da mesma nacionalidade, formaram aqui dois regimentos às ordens do Governo Português, e entre eles alguns eram maçons, como Landerset...

Em 1762, o conde de Lippe, alemão, foi convidado oficialmente a comandar e a instruir o nosso exército. Militar rigoroso na disciplina e hábil artilheiro, adquiriu verdadeira preponderância e influência entre os nossos oficiais. O conde de Lippe tinha servido muito tempo como general no exército britânico e era príncipe, senhor de um pequeno Estado da Alemanha.

Na vida do conde, publicada em 1907 por Keller lê-se que tinha sido maçon e é a ele que José da Silva Carvalho faz referência a 9 de Fevereiro de 1846, no Senado, quando diz que a Maçonaria tinha sido fundada em Portugal por um príncipe ilustre e que a tinha frequentado em Inglaterra.

Durante toda a duração do Governo de Pombal encontramos apenas uma nota discordante contra a Maçonaria. No final de 1770, o governador da ilha da Madeira, capitão-general João António de Sá Pereira, fez perseguir alguns maçons. Disse-se nessa altura que o fez por vingança. Pelo menos é o que se pode concluir dos despachos oficiais que enviou ao marquês e de que os manuscritos, guardados na Biblioteca Nacional, formam um fascículo de 28 páginas, muito interessante e que examinei com curiosidade. A sua linguagem é empolada e atrabiliária; podemos reconhecê-lo por este período, que inicia o parágrafo 4.º:




"Por dever do meu cargo, e como súbdito leal, julgo-me obrigado a descrever-vos o horrível plano dos crimes mais monstruosos, da mais diabólica das seitas, e as sugestões mais bárbaras que nunca, neste século de luz, poderão chegar aos piedosos ouvidos de Sua Majestade.

Digo seita diabólica porque, sob o título de franco-maçons, e estendendo os seus braços sobre vários indivíduos de todas as nações do mundo, eles respeitam uma cabeça invisível sob o título capcioso de muito Venerável, o qual, ab instituto, deve ser eleito na Escócia, sendo súbdito da mesma nação"».

Do Franco-Maçon Manuel Borges Grainha («História da Franco-Maçonaria em Portugal - 1733-1912»).


«(...) Quanto ao regime autocrático estabelecido por Sebastião José, é um facto de que esmagou e destruiu todos os que, real ou virtualmente, estivessem na posição de resistir ao cruel despotismo de quem não olhava a meios para impor os seus estratagemas de pronunciada e sinistra ambição política. Tratava-se, pois, de um regime regalista que chegara ao ponto de estatizar o Tribunal do Santo Ofício, visto os inquisidores-gerais serem nomeados pela Coroa entre 1750 e 1777. E era, além do mais, um regime de concentração económica que levou à ruína várias actividades produtivas mediante a criação de companhias monopolistas.

Quanto à Inquisição, diz-nos J. Veríssimo Serrão: 

"A política de brandura do Santo Ofício foi uma realidade. A partir de 1761, quando do auto-de-fé que levou ao queimadeiro o jesuíta Malagrida, não tornou a haver vítimas corporais nas Inquisições de Lisboa, Coimbra e Évora. Tudo se reduzia a penas de degredo, de açoites ou de galés, pelos crimes de ateísmo, bruxaria e juramentos falsos". 

 Contudo, isto não é verdade: a Inquisição não enfraqueceu durante o período josefino, uma vez que em "1804 as alfaias inquisitoriais da casa dos tormentos eram ainda as mesmas com que se tinham servido Paulo de Carvalho e o Cardeal da Cunha, seu sucessor. Quando o marquês de Pombal foi demitido, os cárceres da Inquisição estavam repletos, e era grande o número de réus que tinha morrido desde 1761 até 1777 nos éculeos e nos segredos. A mobília da tortura não participou da influência reformatriz do marquês: eram do mesmo feitio os instrumentos e com os mesmos engenhosos artifícios flagelantes do tempo do rei-inquisidor, de D. Pedro de Castilho e de D. Francisco de Castro" [citação tirada de O Perfil do Marquês de Pombal, de Camilo Castelo Branco]. 
Lançamento da 1.ª pedra da estátua ao «Déspota Esclarecido» (1917).


Nenhum valor histórico pode ter então o Regimento que subordinou a Inquisição ao poder régio em 1774, até porque isso "não satisfaz um que lá passou alguns anos, e encontrou em vigor o sistema que Pombal deixou. 'Mas que se segue daí? – replica Hipólito da Costa – Lá os matam dentro à força de mau tratamento, porque os condenam a cárcere perpétuo, e o passadio e as prisões são tais que os inquisidores não padecem por muitos anos a pensão de os sustentar'" [ibidem]. Resumindo e concluindo: 

"A tortura continuou tal qual era, depois do regimento de 1774" [ibidem]. 

Ainda assim, basta recuarmos até à cruel e desumana condenação de Malagrida, ocorrida a 20 de Setembro de 1761, para vermos como já então as masmorras do Santo Ofício constituíam um pilar do Estado. Por outras palavras, ao Marquês não lhe convinha eliminar a Inquisição enquanto repartição útil para tormento dos seus adversários, mesmo quando, a partir de 1765, houvesse praticamente desaparecido, nos autos-de-fé, a cremação dos corpos vivos, como quatro anos antes se vira mediante o espectáculo proporcionado pela justiça eclesiástica. Daí o se ter prolongado "a agonia da lenta dilaceração nos subterrâneos do Santo Ofício", porquanto o "dominicano que não podia, sem ordem do marquês queimar em público, despedaçava a ocultas o judeu e o herege" [ibidem] . 

Que venham entretanto os pindaristas do Marquês e os universitários pregar o mito da historiografia objectiva e imparcial! E, já agora, venha também o merecido reparo de Camilo Castelo Branco a esses tresloucados: 

"Ó centenaristas, ó heresiarcas, ó inimigos do altar e do trono! Se o marquês de Pombal vos apanhasse, maganões!"».

Miguel Bruno Duarte


Vista aérea de 1958 da capital lisbonense (à esquerda, o "Hotel Ritz" em fase de acabamento).


 CONVERSANDO COM TOMÉ NATANAEL

Coube-nos em sorte sermos nós, exactamente os únicos que não conhecíamos pessoalmente Tomé Natanael, a entrevistá-lo. António Telmo comunicou-nos ter falado com ele, que se mostrou muito amável e inteiramente pronto a reber-nos.

Procurámo-lo na sua casa de campo, na Serra d'Arcos, a meio caminho de Estremoz para Borba. Sentámo-nos na grande cozinha alentejana, junto ao lume de chão.

- Não quis - disse ele - deixar de ser prestável. Não sou, porém, a pessoa mais indicada para satisfazer o que se pede a um entrevistado. Falta-me sobretudo notoriedade. Sou um simples antiquário. Sei alguma coisa do meu ofício, mas julgo que não estão interessados em ouvir-me falar de antiguidades.

REVISTA PRINCÍPIO:

"Lemos o conto de António Telmo e não ficámos com a impressão de que fosse apenas um antiquário".

Tomé Natanael:

"O conto do António Telmo é uma ficção. Somos muito amigos e não vou zangar-me por me ter utilizado daquele modo".

RP: "Mas conheceu o José Régio".

T:  "Sim. O meu pai tinha uma casa de antiguidades em Portalegre, onde José Régio ia quase todos os dias conversar com ele. Foi entre os meus dez anos e os meus vinte anos. Tenho quarenta e cinco. Conheci-o muito bem. Enquanto conversava com o meu pai, parecia que não dava por mim. Pergunto-me, porém, se a sua simples presença não foi mais importante para mim do que qualquer coisa que pudesse dizer-me. José Régio, sim, tem interesse para uma entrevista".

Ernesto de Oliveira, José Régio e Florindo Madeira

RP: "Poderíamos começar por ele".

T: "Era uma personalidade esquisita. Não cumprimentava ninguém quando se cruzava com uma pessoa sua conhecida nas ruas da cidade. No liceu tratava distintamente os alunos. Um dia, havia uma procissão e fiquei a alguns passos dele a vê-la passar. Vocês não têm idade para terem conhecido José Régio, mas de certo já o viram em fotografias. Imaginem um pigmeu com uns grandes olhos a observarem a procissão; procurem ver o que eram o andor, os anjinhos, as imagens dos Santos, os padres na profundidade daquele olhar, naquela profundidade. Era impressionante o seu rosto! E, no entanto, nas conversas com o meu pai parecia um espírito banal, despreocupado, prático. O seu vício público era o cinema. Via todos os filmes que passavam em Portalegre. Quando o meu pai morreu, deixou-me toda a biblioteca, pois sou filho único. Tenho os livros de José Régio com dedicatória. Isso vale alguma coisa?"

RP: "O senhor é que é antiquário. Gosta da poesia de José Régio?"

T: "O maior poeta do século XX não é Fernando Pessoa, é José Régio. É difícil concordar comigo, não é? Vocês são novos. Tiveram uma educação católica..."

RP: "Sim."

T: "Fernando Pessoa é um fascínio para todos aqueles que o catolicismo decepcionou e encheram o seu vazio de religião com o ocultismo, o orientalismo, o esoterismo ou como queiram chamar-lhe".

RP: "Já ouvimos ou lemos isso em qualquer parte. O que nos trouxe aqui foi exactamente o interesse pelo 'esoterismo'. O conto do António Telmo..."

T: "Já vos disse que é uma ficção. Um antiquário constitui uma óptima personagem para sugerir o misterioso. É uma profissão presidida por Saturno. Lembrem-se da Pele de Onagro de Balzac e do Rosto Verde de Meirink. No fim de contas, porque não há-de haver uma profundidade esotérica no catolicismo? Todos a admitem, pelo menos, no cristianismo. A poesia de José Régio põe-nos na intimidade do drama religioso do homem português, é uma poesia tragicamente séria, como se fosse pensada e escrita por um bode que tivesse consciência humana. O poeta não finge que é cristão. É sinceramente cristão e, por isso mesmo, não pode sê-lo. Daqui o drama. Fernando Pessoa não era capaz de ser inteiramente aquilo em que acreditava; daí o fingimento dos heterónimos, em que pode viver noutra pessoa, sentir e pensar nela, mas sem se comprometer, sem fazer depender o seu destino sobrenatural do que sente ou pensa. Como ele disse, era um histérico para o lado de dentro".

Saturno

RP: "Interpretávamos essa distanciação como uma condição necessária da realização iniciática".

T: "José Régio trata de assuntos que não queremos ver, porque não praticamos sinceramente a autognose. Quando Fernando Pessoa trata de assuntos análogos fá-lo para escandalizar os outros. Só assim arranja coragem. Já que falastes de iniciação: a recção que provocamos nos outros não deve interessar-nos. Mesmo que estejamos acompanhados, fazemos sempre sozinhos a descida aos infernos".

RP: "Para si, pois, Fernando Pessoa não é o poeta enorme que dizem."

T: "É. Mas não pelas mesmas razões dos que o dizem um poeta enorme. O que admiro nele é a profundidade mágica do seu patriotismo que a inferioridade dos políticos, que sendo os mesmos vão mudando de emblema ou de clube ideológico, obrigou a projectar-se no amor da língua. Quando escreveu "Minha pátria é a língua portuguesa" fê-lo por exaltação da Kabbalah e por "desdém por este povo humano entre quem lido", isto é, como disse eu, pelos políticos, e também pelos literatos. A esquerda democrática pode gostar de Fernando Pessoa, porque ele foi o maior reaccionário do séc. XX português; a direita democrática não poderá nunca perdoar-lhe o seu anti-catolicismo sistemático. Em todo este barulho à volta do seu nome há a intenção oculta de tornar banal o esoterismo sebastianista que o seu génio serviu e de , banalizando-o, destruí-lo. Fernando Pessoa expôs-se muito, "não cercou de altos muros o seu jardim". A baixa magia tem utilizado como suporte o famoso quadro de Almada Negreiros que o representa sentado  a uma mesa do Café".

RP: "Fiama Hasse Paes Brandão observa algures que Almada o imaginou pelo modelo da primeira lâmina do Tarot."

T: "Exactamente. Na primeira lâmina do Tarot, o Mago está de pé, em frente da mesa. Sobre a mesa estão uma espada, uma taça e moedas de ouro que toca com o dedo indicador da mão direita; na mão esquerda tem uma vara. Nestes objectos que significam os quatro naipes do Tarot estão representados os quatro elementos, que ele manipula sem esforço, como um Mercúrio que se diverte.


Se observardes o quadro de Almada Negreiros, vereis que Fernando Pessoa tem na mão direita, entre os dedos, um cigarro; toca com a mão esquerda um papel em branco, sobre o qual está abandonada uma caneta, espada inútil. Ainda sobre a mesa, há uma chávena de café e o número dois da revista Orfeu. Está sentado, olhando com olhar estúpido e vazio. Cruza os pés por debaixo da mesa. É a perfeita imagem inversa do mago, tal como a definem os livros sobre o Tarot: vã agitação, mentira, loquacidade, ilusionista, sugestionador, intriguista, arrivista, charlatão, político sem escrúpulos, explorador dos ingénuos.

Existe também um desenho de Almada em que se tirarmos o chapéu, os óculos e o bigode a Pessoa, ficarão umas linhas inexpressivas, a exacta imagem da miopia intelectual. Esta visão da aparência física do poeta tornou-se um paradigma. É assim que todos vêem Fernando Pessoa".

RP: "Agostinho da Silva disse, numa das suas frequentes entrevistas, que os mesmos que, hoje, exaltam Fernando Pessoa são os que o silenciariam se ele fosse vivo."

T: "Reparem como o patriotismo de Fernando Pessoa é considerado aspecto menor do que escreveu. Até D. Afonso V (Pessoa pensava que até D. João II) Portugal foi regido pelos Rosa-Cruzes; tal é, pelo menos, o ensino da Mensagem. A monarquia, com D. João III, passou para as mãos dos seus inimigos. Há o análogo disto na Europa, com a diferença que, nesta, a mutação dá-se mais cedo, quando aqui reinava D. Dinis. É então que se começa a trabalhar para a implantação do socialismo pela propaganda da noção de igualdade. Levou séculos, mas foi fácil. Bastou fazer passar a inveja por generosidade. O socialismo é, pois, obra dos Rosa-Cruzes. Tornou-se necessário para combater aqueles que se tinham apoderado da monarquia.

Hoje, porém, qualquer tentativa de derrubar os governos socialistas é aproveitada por estes últimos, que aparecem como os verdadeiros representantes da Pátria. Compreende-se assim que o monarquismo de Fernando Pessoa e o republicanismo de Sampaio Bruno sejam a mesma coisa. Não sei se me fiz compreender".

RP: "Perfeitamente."

T: "Chega-vos isto ou querem mais alguma coisa? Como vêem, sempre acabámos por falar de 'antiguidades'".

RP: "Como é que explica o interesse de José Régio pelas antiguidades?"

T: "E vocês, como é que explicam?"


RP: "Parece-nos uma coisa inferior num homem superior."

T: "José Régio coleccionava Cristos" (in Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005, pp. 93-97).


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