domingo, 4 de maio de 2014

Tefé e os missionários portugueses (i)

Escrito por Aura Miguel





Atentado ao Papa João Paulo II na Praça de S. Pedro (13 de Maio de 1981).



«(...) A visão de Fátima refere-se sobretudo à luta dos sistemas ateus contra a Igreja e os cristãos e descreve o sofrimento imane das testemunhas da fé do último século do segundo milénio. É uma Via Sacra sem fim, guiada pelos Papas do século  vinte.

Segundo a interpretação dos pastorinhos, interpretação confirmada ainda recentemente pela Irmã Lúcia, o "Bispo vestido de Branco" que reza por todos os fiéis é o Papa. Também ele, caminhando penosamente para a Cruz por entre os cadáveres dos martirizados (Bispos, Sacerdotes, religiosos, religiosas e várias pessoas seculares), cai por terra como morto sob os tiros de uma arma de fogo.

Depois do atentado de 13 de Maio de 1981, pareceu claramente a Sua Santidade que foi "uma mão materna a guiar a trajectória da bala", permitindo que o "Papa agonizante" se detivesse "no limiar da morte" [João Paulo II, Meditação com os Bispos Italianos, a partir da Policlínica Gemelli, em: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVII-1 (Cidade do Vaticano 1994), 1061]. Certa ocasião em que o Bispo de Leiria-Fátima de então passara por Roma, o Papa decidiu entregar-lhe a bala que tinha ficado no jeep depois do atentado, para ser guardada no Santuário. Por iniciativa do Bispo, essa bala foi depois encastoada na coroa da imagem de Nossa Senhor de Fátima...».

COMUNICAÇÃO DE SUA EMINÊNCIA O CARDEAL ANGELO SODANO, SECRETÁRIO DE ESTADO DE SUA SANTIDADE (in «A Mensagem de Fátima»).


«(...) Devo confessar que, no momento em que me apercebi do que era a terceira parte do segredo de Fátima, chorei, eu que não sou de lágrimas.  Espantosamente, fenomenalmente, inacreditavelmente, cruzando os textos de Lúcia e Nostradamus, surgia perante mim a visão de uma outra realidade.

(...) Para muitos, será uma asneira pegada o que aqui digo. Os humanos, por preguiça mental, têm a tendência de desacreditar aquilo que não são capazes de compreender. Não fazem sequer um esforço, não vão atrás, não investigam para tentarem ligar as pontas. Consideram-se muito inteligentes simplesmente negando. Imaginam-se espertos actuando como burros.






A interpretação que avanço, sinto-a. Salta dos documentos e dos meus sentidos. Por isso, como sou um membro do mundo, do universo, sinto-me com todo o direito de a dizer, de a proclamar. A minha voz também é som do Cosmos.

(...) Nesta tentativa, carregada de pequenez e meditação, comecemos por expurgar do texto da vidente as suas próprias interpretações, que estão a mais. A centúria diz o essencial, é sintética. O escrito de Lúcia tem demasiadas palavras.

(...) Hoje os tempos são outros. Dizem que fomos criados à imagem de Deus, mas actualmente somos nós que "criamos" os deuses à nossa própria semelhança. A Senhora de Fátima contrata assassinos para dar tiros no Papa e terroristas muçulmanos matam a eito em nome de Alá.

Os "anjos" que Lúcia diz ter visto podiam bem ser criaturas vestidas de branco. Diversos muçulmanos se vestem de branco. Esses "anjos" do maior país muçulmano estavam acima dos "mortais", detinham mais poder que o Bispo, obrigavam-no a ele e ao seu povo a uma repetida "penitência, penitência, penitência", ou seja a sofrimento, durante anos a fio. Até lhes roubavam a ajuda humanitária, Durou essa penitência 24 anos.

Não morreram os Bispos, mas morreram "sacerdotes, religiosos e religiosas, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições".

(...) No segredo de Fátima, o Bispo de Branco morre. O "meu" Bispo [Ximenes Belo] não morre. Como é que ele foi salvo?

No dia 7 de Setembro [de 1999], acreditando nos jornais, foi retirado por um helicóptero da polícia indonésia que o levou para Baucau.

"Há informação em Díli sobre a morte de 40 polícias que se recusam a disparar contra os refugiados que estavam na casa de D. Ximenes Belo".


Ximenes Belo, o 'Bispo Vermelho' de Díli (Timor-Leste).







Um helicóptero Sea King da Marinha australiana descarrega combustível no aeroporto Komoro/Díli.




M-113 australiano desembarca junto a Suai (130 km a sudoeste de Díli) a partir do HMAS Balikpapan (L-126).



Forças Armadas Australianas e seus aliados em Timor-Leste.



Um suspeito de pertencer às milícias pró-indonésias detido pela INTERFET (Força Internacional para Timor-Leste).



Mas o Bispo permaneceu no Inferno, pois, em Baucau, a casa de D. Basílio do Nascimento acabaria por ser incendiada.

Nesse mesmo dia 7 de Setembro, o jornal Comércio do Porto traz uma foto de D. Ximenes Belo. E como é que ele aparece vestido?

O que nós podemos ver, basta abrir o jornal... e eis um Bispo de Branco.

E como foi salvo do território timorense e da sua montanha sagrada, num tempo de inferno, de trevas, parecendo uma violência medieval executada por Mongóis?

"O Bispo que dentro de dois dias seguirá viagem para o Vaticano, onde se encontrará com o Papa, foi evacuado num avião das Nações Unidas, viajando sob um nome falso".

O jornal O Comércio do Porto fornece o pseudónimo usado pelo Bispo e por quem o ajudou: "O administrador apostólico de Díli... na manhã de ontem partiu para Darwin, na Austrália, a bordo de um avião das Nações Unidas e sob o pseudónimo de Luís Rocheta".

Avião da ONU. Afinal, o Bispo de Branco foi resgatado pelo organismo que representa a generalidade dos países do planeta: as Nações Unidas.

Um avião pertença das Nações Unidas no fundo pertence ao mundo. O Bispo, que se vestia de branco foi assim salvo pela Humanidade.

Não se podem mudar os factos, não é uma questão de crença ou não crença. Esta é a verdade histórica - um bispo que se vestia de branco, um Prémio Nobel da Paz, foi salvo por um avião que pertencia ao mundo, depois de atravessar uma cidade destruída, de ver uma "destruição sistemática que ultrapassava a imaginação de qualquer pessoa comum, como o senhor e eu", como diria Sérgio Vieira de Mello. Nada mais podia fazer, apenas caminhar "meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho".

Timor-Leste sob a tutela administrativa das Nações Unidas (1999-2002).


"Do céu descerá um grande rei assustador..." - Nostradamus. Um avião a descer do céu faz muito barulho, devia ser algo assustador, como um rei poderoso, para um homem do século XVI.

A ONU era o maior "rei" do mundo em 1999...».

Fina d'Armada («Fátima e as Profecias de Nostradamus»).


«Uma série de factos e acontecimentos entremeados com as baboseiras ostensivamente loucas e delirantes de Fina d'Armada, configuram um mestrado universitário ímpar em Portugal. Por outras palavras, a universidade, no seu apregoado rigor científico, chegou a envolver e, directa ou indirectamente, a galardoar a autora feminista e a activista rebelde segundo a praxe a que já nos tem habituado nas últimas duas centúrias. Hurra pela universidade!».



«(...) Lisboa, 18 de Janeiro [de 1963] (...) Chamei Elbrick e disse-lhe que a presença de tropas indianas mesmo na fronteira de Angola, ainda que integradas nos contingentes da ONU, era para nós insuportável. Quase a considerávamos uma provocação depois do que se passara em Goa. Não nos responsabilizávamos por qualquer incidente: se em Goa éramos poucos e fracos, em Angola estávamos muitos e fortes: e era preciso evitar que nos militares portugueses se instalasse o desejo de aproveitar uma oportunidade de desforra sobre a Índia. Pedíamos aos Estados Unidos, por isso, e em virtude da sua grande influência na política da ONU quanto ao Catanga, que obtivessem a retirada urgente dos soldados indianos. Elbrick concordou, classificou de absurda a atitude da ONU, e afirmou que ia agir em conformidade junto de Washington.

Lisboa, 31 de Janeiro - Recebidas notícias mais do que inquietantes quanto à política americana em África: socialização de toda a África como meio de aumentar a sua dependência do exterior; montagem de uma rede de informações sob a capa do Peace Corps; não rejeição (embora sem apoio directo) da eventualidade de os grupos terroristas solicitarem a intervenção de forças da ONU. De Gaulle opõe o seu veto à entrada da Inglaterra no Mercado Comum; a atitude é sobretudo antiamericana: trata-se de vincar uma oposição à interferência de Washington em África, e na própria Europa.

(...) Lisboa, 8 de Fevereiro - Conferência de imprensa. Resposta a Ben Bella: se entre os atacantes de territórios portugueses forem encontrados argelinos, estes serão sumariamente executados. Iniciadas negociações para a compra, por nós, do caminho-de-ferro da Trans-Zambézia. Por estranho que possa parecer, o meu ataque a Ben Bella foi bem recebido em Brazzaville, Tananarive, Léopoldville, etc. É o ódio ancestral entre o negro e o árabe.






Prisão de Ben Bella



Khrushchev e Ben Bella (1964).



Ben Bella e JFK



Ben Bella e Che Guevara


Lisboa, 11 de Fevereiro - Num grande comício em Argel, Ben Bella respondeu-me: "Sr M. dos N. E. de Portugal, saiba que nem o Sr. nem o seu governo, nem todos os fascistas do mundo poderão deitar a mão à Argélia". Pois não. Mas também não constam que queiram. Pelo menos nós certamente não queremos. Quanto aos fascistas do mundo, não sei: se existem, não os conheço, nem tenho deles novas ou mandados.

(...) Lisboa, 9 de Março - Visita-me no Ministério Sir Zaffrulla Khan, político paquistanês, e actualmente presidente da Assembleia Geral da ONU. Síntese do que me disse: as Nações Unidas geram uma emoção que obscurece os problemas e é perigosa; é incompreensível a política americana, que varia de seis em seis meses; Nehru demonstrou em Goa e demonstra em Caxemira que tem o génio da hipocrisia; o discurso de Salazar sobre a agressão a Goa é o de um "formidable man". Tudo isto quadra com quanto Portugal tem expresso ultimamente. Mas o que se passa é o seguinte: Sir Zaffrulla quer o voto português como candidato que é ao Tribunal Internacional da Haia: é só eleiçoeira a sua visita.

(...) Nova Iorque, 19 de Julho - Na sede da ONU encontro uma atmosfera de drama contra Portugal: os afro-asiáticos, mandatados pela Organização da Unidade Africana, convocaram uma reunião especial do Conselho de Segurança, e estão convictos de que este vai tomar resolução tamanha que nos fará ajoelhar. Quatro ministros dos Estrangeiros - Tunísia, Serra Leoa, Libéria, Madagáscar - tomarão parte nos debates para nos acusarem - de estarmos a ameaçar a paz e a segurança do Mundo. Apenas isto: do Mundo.







(...) Lisboa, 17 de Setembro - Afro-asiáticos lançam nova doutrina: a da incompatibilidade. São incompatíveis com delegados portugueses. Incompatíveis, simplesmente, Não se sabe onde começa ou acaba essa incompatibilidade: a dez, vinte metros, na sala ao lado, na mesma cidade, etc.

Lisboa, 20 de Setembro - Deputado trabalhista inglês Mellish visita-me: veio ver como é realmente a imagem de Portugal porque tem a sensação de que o seu partido não está de posse da verdade, sobretudo quanto ao Ultramar. Tópicos da conversa: política interna, censura à imprensa, Nações Unidas, Açores. Mellish diz que a Inglaterra está decadente.


Primeiro-Ministro da África do Sul prometeu toda a cooperação, salvo em tropas por escassez de recursos humanos. Também nada solicitámos neste particular. Presidente Kennedy, discursando na ONU, insistiu na criação de uma força militar das Nações Unidas. Não creio que isto seja possível; mas poderia ter para nós a maior gravidade.

Lisboa, 21 de Setembro - Delegado espanhol na ONU declarou que a Espanha aceita o espírito da "descolonização" e que colaborará com as Nações Unidas para "descolonizar" os seus territórios de África. Fraga Iribarne, ministro da Informação, faz em Madrid afirmação de igual teor. Quer tudo isto dizer que a Espanha cedeu à pressão dos Estados Unidos. Que preço teriam pago? Convoco o embaixador de Espanha - e perguntei se estas decisões, assim anunciadas e sem uma palavra a nós, estavam de harmonia com o espírito das conversas de Mérida. Não podia ficar mais sucumbido o embaixador. Pelo menos na aparência.

Kennedy e Mac Millan disseram que o ideal é constituir sociedades multirraciais em toda a parte. Está claro que se formos nós a fazê-lo - já não está bem. Apenas são rigorosamente multirraciais as sociedades que por sua conveniência os impérios considerarem assim.






(...) Nova Iorque, 18 de Outubro - Iniciam-se as conversas com os africanos. Preside o secretário-geral U Thant, urbano, correcto, e medíocre. Ao meu lado, Vasco Garin e os demais portugueses. Na nossa frente, os representantes da Nigéria, Libéria, Tanganica, Madagáscar, Serra Leoa, Tunísia, Ghana, Marrocos e Guiné. Sugiro que se distribuam os temas assim: condições factuais nos territórios portugueses: paz e segurança na África Central e Austral; problema político que consiste em definir o conceito de autodeterminação. Só este último interessa no fundo aos africanos. Proponho uma definição: autodeterminação consiste no consentimento expresso dos governados à forma de governo e à política geral da administração. Isto divide os africanos: alguns, mais moderados, estão prontos a examinar esta fórmula; outros - sobretudo Ghana e Tunísia - opõem-se violentamente. Por vezes, os delegados africanos, na minha frente, discutem tão asperamente entre si, que eu julgo de intervir, e digo com benevolência e simpatia: "meus senhores, por quem são!" Duração das conversas faz espantar os americanos e outros, que receiam a hipótese de um eventual acordo luso-africano. Diz-me o Milton Moniz que os mais furiosos contra nós são os escandinavos, em especial os suecos, que temem a perda de grandes mercados se houvesse um acordo luso-africano. São exercidas pressões, desencadeia-se propaganda. Lançam-se rumores - para ver se se rompem as conversas.

Nova Iorque, 1 de Novembro - Duram duas semanas os contactos luso-africanos. Comunistas estão suspeitosos; e americanos e escandinavos estão suspeitosos. Acaso será possível um entendimento entre portugueses e africanos? Há que evitá-lo. Pressões invencíveis pretendem levar os africanos à ruptura. Sucedeu hoje. Num corredor da ONU cruzo-me com Diallo Telli, secretário-geral da Organização da Unidade Africana, e natural da Guiné. Diz-me sem pestanejar: a OUA aprova a realização de um plebiscito na África portuguesa, como sugerido por mim nas conversações, mas os seus resultados apenas seriam aceites se fossem favoráveis à África, e isso porque os africanos não aceitam que haja um milímetro quadrado de território africano que tenha ligações políticas com um país não africano. Também não pestanejei ao elogiar esta concepção de democracia e de respeito pela vontade dos povos.

(...) Nova Iorque, 7 de Dezembro - Um bocado de Conselho de Segurança neste fim-de-semana. Tudo se desenrolou como de hábito e como previsto. Os mesmos - Libéria, Tunísia, Serra Leoa, Madagáscar - procuravam atirar sobre nós a responsabilidade pela ruptura das conversas luso-africanas - e isso porque não aceitámos a sua ideia de autodeterminação. Pelos corredores da ONU também anda Henrique Galvão, ao que me dizem, e acarinhado pelos afro-asiáticos, mas não o vi ainda.

























Regresso do Paquete Santa Maria






















(...) Nova Iorque, 10 de Dezembro - Respondi ontem no Conselho de Segurança às acusações dos afro-asiáticos. Réplica da Tunísia, Libéria, Ghana e Marrocos. Tréplica minha, quase imediata, e em tom áspero, Quanto aos membros efectivos, desta feita foram de infinita moderação. Sobretudo a Noruega e o Brasil: pronunciaram-se com muito cuidadinho. Franceses, excelentemente correctos; ingleses e americanos, um tanto desagradáveis, mais na forma do que na substância. Resolução no fim aprovada segue as linhas habituais: os afro-asiáticos já compreenderam que há uma fronteira política que não podem cruzar. Atmosfera no Conselho é a dos grandes dias - mas sem espectáculo e o drama da reunião anterior.

Uma coincidência. Ao tempo que eu esgrimia no Conselho de Segurança, no andar de baixo, na sala da Quarta Comissão, fazia Galvão o seu depoimento. Pois bem: Galvão chamou aos africanos irresponsáveis formigas; acusou-os de não representarem nada nem ninguém; e nada de conceder independências a Angola e Moçambique. Africanos ficaram irritados; Argélia saiu da sala; Togo, os dois Congos, a Costa do Marfim criticaram-no sem piedade. Ao fim da tarde, disse-me o delegado do Gana no Conselho de Segurança: Galvão está velho, o seu depoimento desapontou-nos, e se aquela é a voz da oposição, então isso quer dizer que, em matéria de Ultramar, os portugueses pensam todos da mesma forma, e não podemos contar com Galvão. Eu disse que sentia profundamente o seu desapontamento.

(...) Lisboa, 12 de Setembro [de 1964] - Regressou de Moçambique e de Angola Gilpatric, Resumo do que afirmou: sentia-se altamente impressionado; Portugal estava a construir sociedades civilizadas; era elevado o calibre da administração; era elevado o moral das tropas; verificou a grande competência dos técnicos, eram esplêndidos os oficiais da "inteligence"; excelente sistema de educação; boa rede de aeroportos; tremendo potencial económico de Angola, enquanto Moçambique é mais território de trânsito; ordem pública era evidente; sentimento geral de contentamento, não obstante as críticas ao governo; sociedades abertas, apesar de cercadas de perigos; não teve a menor sensação de que estivesse numa sociedade policial; os cônsules americanos apenas relatavam o que sabiam agradar ao Departamento de Estado, conforme comprovou pela leitura dos seus despachos; ficou muito impressionado com os dois cardeais portugueses, sendo Cerejeira mais filosófico e Costa Nunes mais missionário; há que estabelecer um cordão sanitário para defender toda a África meridional; e o general Andrade e Silva, comandante-chefe em Angola, havia-lhe dado a impressão de ser uma "tower of strenght" e tinha-lhe afirmado que, se Salazar não seguisse a actual política ultramarina, a opinião pública impor-lha-ia.


Roswell Gilpatric


(...) Cidade de Carmona, 29 de Setembro - No mercado do café, nos arredores da cidade, há o ambiente que deve ter sido, nas caravanas que cruzavam África, o dos mercadores antigos, ao ar livre, em que o negócio e a avidez do lucro estão gravados no rosto de cada qual, seja negro ou branco, e tudo entrecortado de gestos, de gritos, de ofertas, de recusas, de jogos de astúcia para obter o melhor preço na venda e na compra. Ainda que seco, há calor que chega para todos; e a poeira da terra encarnada sufoca-nos, empasta-se no cabelo, infiltra-se por entre a roupa. Com Silvério Marques, com Rebocho Vaz, com todas as senhoras que nos acompanham, percorremos a pé o terreiro dos mercadores, misturamo-nos com vendedores e compradores, e ninguém pensa em tomar cautelas de segurança nesta zona que se diz ser de terroristas. Almoçamos na fazenda de Pemba Loge, sob um telheiro, e alguém me aponta uma encosta fronteira, plantada de café, a meio quilómetro de distância, e diz-me: ali há terroristas. Precisamente depois do almoço, vamos de automóvel por essa encosta. À frente, um jeep com dois soldados a conversar. Um dos nossos carros tem uma avaria, os soldados não reparam, o jeep continua e perdemo-lo de vista. Saímos dos automóveis, conversamos, e digo para o governador-geral: e os terroristas? Diz aquele serena e naturalmente: "bem, devem andar por aí, mas esperemos que entretanto o jeep dê pela nossa falta e venha em nosso auxílio". Não há dúvida: Angola é Portugal. Até o terrorismo é à portuguesa.

(...) Lisboa, 27 de Dezembro [de 1966] - No dia de Natal, houve um formidável ataque terrorista a Teixeira de Sousa, mesmo na fronteira. Avaliados em 500, os terroristas sofreram para cima de 200 mortos. Foi uma estrondosa vitória dos nossos - mas é a esta sangria que a política da ONU conduz os povos. Correu viva a conferência de imprensa.

(...) Nova Iorque, 8 de Novembro [de 1967] - Nas Nações Unidas, tudo que é afro-asiático e comunista está em pé de guerra contra Portugal. Acusações, as de uso: somos uns criminosos que lançam o mundo inteiro no terror e no sobressalto. Quanto a África, nem é de falar: aí somos a incarnação viva do demónio. No Conselho de Segurança, ruge a tempestade, ainda que em surdina, na esperança de que eu compareça; mas quando se percebe que o não farei, e que assim significo a pouca importância que damos ao barulho, então somos fustigados sem mercê. Por ligação directa, oiço os debates na sede da nossa missão: cada delegado afro-asiático, ao findar a sua catilinária, parece convicto de que com as suas últimas palavras decretou para Portugal o último sopro de vida. São entre ridículos e inúteis. Depois, vou à sede da ONU para me avistar com U Thant. Digo-lhe da nossa posição na matéria, e repudio de uma penada as acusações afro-asiáticas. Thant escuta, sereno e original. É personalidade correcta e afável, mas sobretudo oca e desnecessária. E é este homem o papa laico do mundo. Claro que o não é, nem coisa nenhuma, salvo o instrumento dos interesses das potências, neste particular os dos Estados Unidos, segundo a voz unânime.

Sede das Nações Unidas (Nova Iorque).


(...) Luxemburgo, 14 de Junho - De Bruxelas, sigo de automóvel com o Eduardo Brazão, através das Ardenas: montanha e mais montanha, bosque e mais bosque, uma paisagem agreste e com grandeza, tão exuberante como autêntica, e não manchada em excesso por civilização e turismo. E mais uma reunião da NATO. Na cidade de Luxemburgo não tenho a sensação de uma capital mas de uma cidade média de província: talvez pior que Braga, como diria Eça de Queiroz. Não é alemã, nem francesa, nem belga, nem holandesa, e não é tão-pouco luxemburguesa, porque não chega a ser típica e a ter carácter. Tão depressa lembra um bocadinho de Berna, como um recanto de Londres, ou um traço de Viena, ou ângulos de Hamburgo, ou perspectivas de um arrabalde de Paris - não chega a ser nada de próprio. São uma maravilha as florestas circundantes e têm sortilégio os bosques densos, e todos os tufos de verdura que enchem este paisinho. Mais que agradáveis, os Grão-Duques. O Grão-Duque João é o Senhor Dom Duarte Nuno em mais novo: é nitidamente um Bragança. A Grã-Duquesa é uma irmã de Balduíno, e portanto uma Brabante, Nassau e Saxe-Coburgo, salvo erro. Mas a Grã-Duquesa mãe, Carlota, é uma segunda Infanta Dona Filipa, talvez com menos personalidade do que esta. Uma nota interessante: no palácio ducal, à entrada e na sala nobre, grandes medalhões com as armas portuguesas. O Grão-Duque João falou-me minuciosamente de Portugal como se também fosse o seu país. No Conselho da NATO, a reunião teve aspectos de desfazer de feira ou varrer de casa. Houve que confessar o esbarrondamento de grandes mitos da Aliança: a coexistência, a détente, a força de paz da ONU, a amizade árabe, a confiança e fé nas Nações Unidas, tudo está em ruínas. Salientei-o em dez minutos de zargunchadas sarcásticas: então os senhores ministros estavam ali sem confiançazinha nenhuma na ONU? Então agora sentiam pavor das maiorias da ONU? Então a ONU já não reflecte a consciência da humanidade nem é sagrada a sua autoridade? Na sessão da tarde, George Brown, da Inglaterra, num momento de lucidez veio para mim, e disse-me sem ambages: "Ao ouvir hoje você, senti que a única atitude possível para mim era a de cobrir a cara com as mãos para esconder a minha vergonha". E Paul Martin, do Canadá, disse a André de Staerk, embaixador da Bélgica, que mo repetiu: "O tipo (eu) viu uma porta aberta e passou logo". Todo o Conselho foi dominado pela crise do Médio Oriente, e mais uma vez revelou a impotência da NATO em assumir uma linha comum. Pelo seu ressentimento antibritânico e antiamericano, para aquela situação muito têm contribuído os franceses. Repousada e minuciosa conversa com Dean Rusk. Destaco uma parte: "O problema para nós consiste em saber se vocês se aguentam e duram, porque nesse caso saberemos adaptarmo-nos doutrinariamente à vossa posição em África". E mais outra frase: "A raça branca está em minoria no mundo, e cercada, e temos de arranjar maneira de sobreviver sem ser pela força". Esta última frase revela um estado de espírito que só o pânico esplica. É mais do que grave. E torno a Bruxelas, também de automóvel. Tem crescido em grande espectáculo a capital belga: monumental, a sede do Mercado Comum; por toda a parte novos arranha-céus; e toda a Bélgica parece uma ilha de americanismo na Europa. Está a Bélgica, de verdade, sendo equipada, amaneirada, mentalizada e colonizada à americana. Confinar-se-á o fenómeno à Bélgica - ou estender-se-á a toda a Europa Ocidental?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se. Diário: 1960-1968»).


«Durante toda a sua reclusão, a Lúcia, influenciada pelos seus confessores jesuítas, leituras conventuais, guerra civil de Espanha (residia lá durante esse conflito), movimentos de Roma contra a situação anticlerical católica vivida na Rússia, na década de trinta, enfiou na ideia que "a Rússia espalhava os seus erros pelo mundo", ou seja o comunismo. Numa carta ao Papa, em 1982, até a visão do Bispo Branco tinha a ver com os tais erros russos, como se os outros países fossem todos santos. E quando o Papa foi alvejado, em 1981, houve quem pensasse que tinha por detrás a mãozinha da Rússia...


Aquando da eleição do Papa João Paulo II







João Paulo II com o atirador turco Mehmet Ali Agca, membro dos "Lobos Cinzentos" (1983).










(...) Se a Ouraniana [derivação de Ouranos ou Urano, deus do Céu] falou do comunismo, ou em algo que levou Lúcia a intuir tal coisa, é difícil de acreditar que fosse como um "erro". Razões:

- Os comunistas podem ser cristãos e os cristãos podem ser comunistas. No seu estado puro, o comunismo e o cristianismo têm muitas semelhanças. Com o tempo, foram ambos adulterados, mas aquela ideia de que Cristo foi o primeiro comunista tem muita razão de ser. A diferença mais significativa é que Cristo apontava para um reino do PAI, após a morte, onde reinaria a justiça, pois todos seriam julgados. O comunismo defende que a justiça se faça na terra, enquanto somos vivos.

Posto isto, o meu racionalismo leva-me a concluir:

- O segredo de Fátima aponta para uma "salvação" de vivos. A Aparição age como uma transgressora do tradicional. A salvação não se localizaria algures após a morte. Ela veio acompanhada de símbolos e de expressões "quero que aprendam a ler" que têm em vista soluções para o futuro VIVO da Terra.

- A "Rússia" não seria a Rússia propriamente, país europeu, mas a expansão dum "comunismo cristão" vivido e sacrificado em Timor. A Lúcia é que provavelmente só ouvira falar no comunismo da Rússia».

Fina d'Armada («Fátima e as Profecias de Nostradamus»).




Palácio do Governo em Timor Lorossai (1967 a 1969 - fotos de João José Simões Rocha).







Praça do Palácio Episcopal Nossa Senhora da Conceição.




Monumento a Nossa Senhora de Fátima no alto com vista para o mar.




Igreja de Díli








Transporte público (o Machimbombo).



Aeroporto de Díli (Torre de Comando).



Praia da Areia Branca


«O governo português abandonou Timor em 1975. A conjuntura da época é hoje mais clara. As Forças Armadas foram para Timor para promover os 3 D's — descolonização, democracia, desenvolvimento — mas tingidas pelas cartilha marxista. O governador enviado, e primeira figura militar, era o então Coronel Lemos Pires, prometedor oficial de estado maior com uma missão talvez impossível. Na sua equipe contava-se o depois vice-ministro comunista dos governos provisórios vermelhos, o Tenente-Coronel Arnão Metelo.

Nascem em Timor-Leste partidos políticos, alguns dos quais advogam a integração na Indonésia. As divergências degeneram em confrontos armados. Entretanto, as Forças Armadas portuguesas entregaram armas de guerra modernas e munições à resistência timorense, então FRETILIN, hoje FALINTIL, onde Xanana Gusmão era um membro apagado do comité central. Tentaram substituir a liderança dos liurais, chefes tradicionais, por líderes eleitos "democraticamente". Uma grande parcela de timorenses mais tradicionais se revoltou contra os marxistas com o apoio dos movimentos UDT e APODETI, sendo algumas das armas fornecidas pela polícia portuguesa do Capitão Maggioli, anti-comunista.

Cumprida o que era sua missão de deixar cair o poder na rua para que a FRETILIN dele se apoderasse, os militares portugueses evacuaram dia 26 de Agosto de 1975 para a ilha de Ataúro e depois para Portugal. Não foi bonito. Timor está a 11 horas de fuso horário de Lisboa, e na realidade está tão longe de todos e tão perto da Indonésia...

A guerra civil alastra por todo o território e enquanto se multiplicam as ameaças de intervenção indonésia, a Fretilin, liderada por Nicolau Lobato, expulsa de Díli os movimentos rivais da União Democrática Timorense e Apodeti e proclama unilateralmente a República Democrática de Timor-Leste, em 28 de Novembro de 1975, tendo como Presidente Francisco Xavier do Amaral.

Havia indicações ténues dos serviços militares de que a Indonésia interviria mas não foram levadas a sério no plano português. Especula-se hoje se o PC da URSS e o PC português de então contariam com o Vietnam para cumprir o papel de cubanos da Ásia. Em 25 Abril de 1975 os vietnamitas entravam em Saigão e poderiam fazer novos focos revolucionários na Ásia, como os cubanos na Etiópia e em Angola. Era a idade de ouro do expansionismo soviético...».

Mendo Castro Henriques (ver aqui).




Elementos da FRETILIN (1975).












































Tefé e os missionários portugueses


Quando se espreita pela janela do avião, a vista é deslumbrante. Os nossos olhos não são suficientes para alcançar tamanha grandeza, que se estende até à linha do horizonte. A vastidão verde e compacta é apenas entrecortada pelo traço ondulado e amarelo de um rio que parece uma serpente. Esta imensidão verde é a floresta Amazónica, o maior pulmão do Mundo; e o rio é o Solimões, que nasce no Peru e, ao juntar-se perto de Manaus ao rio Negro, dá origem ao Amazonas.

A bordo do avião, as hospedeiras distribuem, como habitualmente, uma caixa de plástico com algumas coisas para comer. Trata-se de uma refeição ligeira, igual a tantas outras, que inclui umas sanduíches e um pacote de bolachas. Mas são poucos os que comem a bordo: para meu espanto, a maioria dos passageiros guarda, num saco, o recipiente com a refeição.

Será que no sítio para onde vamos não há comida? A minha apreensão aumenta tendo em conta que, também durante este voo, distribuem a todos um folheto do Governo do Estado do Amazonas e do Ministério da Saúde intitulado «Você pode ficar doente de CÓLERA», com uma elucidativa caveira na parte superior do papel e uma detalhada explicação sobre o que é a doença, quais são os seus sintomas e o que fazer para a evitar.

O avião da Varig cumpre a sua carreira normal em direcção ao interior da Amazónia. A distância que liga Manaus à cidade de Tefé é de 600 km e só há duas maneiras de lá chegar. A viagem de barco dura mais de 24 horas e realiza-se em condições muito precárias, com centenas de passageiros apinhados numa embarcação sem o mínimo de higiene e onde os primeiros a chegar estendem as suas redes para passar a noite. A alternativa é uma ligação áerea que parte de Manaus, três vezes por semana, e cujo voo dura cerca de uma hora.

Floresta Amazónica






Amazónia (Brasil).


Alguns dias antes, o Papa, durante a sua visita pastoral, tinha-se encontrado com uma centena de índios de várias tribos do Brasil. Agora, que João Paulo II já regressou a Roma, vale a pena conhecer de perto esta realidade. Parto, pois, em direcção a esta cidade desconhecida, ao encontro dos indígenas e do trabalho dos missionários da região.

O avião vai relativamente cheio. A cidade de Tefé tem cerca de 30 000 habitantes e é o entreposto mais importante entre Manaus e a fronteira com a Colômbia. Recentemente, sobre esta zona do Brasil abateu-se o pesadelo da cólera. A epidemia tem vindo a crescer através das águas contaminadas do rio.

«Atenção. Você está vindo numa área de risco de CÓLERA, que é uma doença transmissível e extremamente grave, especialmente se não for tratada a tempo». O papel que distribuíram no avião não tranquiliza ninguém: «Os vómitos começam de repente, a diarreia não pára mais e a desidratação é rápida e intensa, com grande perda de peso. Tudo isso acontece muito depressa, entre cinco a 12 horas. Ao primeiro sinal, procure orientação médica imediatamente».

Quando o avião aterra no aeroporto de Tefé, recebemos ordens para permanecer nos nossos lugares. «Ninguém pode sair do aparelho, até indicação das autoridades locais. É favor permanecerem sentados!», diz uma voz nos altifalantes. É a primeira vez que me acontece semelhante coisa. O que se passará? Alguns minutos depois, entram dois militares e dois civis no aparelho. Um deles pega no microfone e pergunta se algum passageiro se sentiu mal durante a viagem, se alguém vomitou ou foi de urgência ao «banheiro». O silêncio dentro do avião é total. Os delegados de saúde e oficiais da Prefeitura de Tefé explicam que estamos numa zona contaminada pela cólera, «uma doença muito perigosa, que se não for imediatamente tratada, mata em poucas horas». Depois, obrigam-nos a preencher um detalhado interrogatório sobre o nosso estado de saúde, a morada e o período de permanência em Tefé.

Desço do avião com uma mistura de sentimentos. Por um lado, é fascinante chegar a uma terra desconhecida, no coração da Amazónia, com tudo o que há de novo para descobrir. Mas, por outro lado, interrogo-me: «Onde é que eu vim parar?! Como será o sítio onde vou ficar? E que tipo de protecção haverá contra a cólera?

Um missionário espiritano está no aeroporto à minha espera. O percurso que fazemos de carro permite constatar a pobreza da cidade, as dificuldades dos seus habitantes, a sujidade e as condições precárias das casas e, sobretudo, os esgotos que correm a céu aberto. Timidamente, pergunto ao meu anfitrião holandês, o padre Paulo, se a cólera já chegou a Tefé. «Sim», responde enquanto conduz a carrinha. «Aqui morrem, por dia, cinco a seis pessoas com cólera».





O nosso destino é o Seminário de Tefé, a sede da Congregação do Espírito Santo, presente nesta cidade desde 1895. O edifício é muito bonito e imponente, mas já se encontra degradado. Constituído no início do século XX, todo em tijoleira por fora e madeira por dentro, o seminário tem uma clara influência holandesa. A sua arquitectura deixa adivinhar a grandiosidade que, nessa época, tiveram as opções evangelizadoras da Igreja Católica. Com capacidade para albergar mais de 100 estudantes, o imenso edifício está agora deserto, sem seminaristas. E aquele casarão com longos corredores cheios de quartos vazios é, nesse momento, apenas habitado por três padres espiritanos, todos com mais de 60 anos.

É ali que vou ficar alojada nos próximos dias. Conduzem-me ao quarto e explicam-me onde ficam a casa de banho e os duches. O aviso mais importante diz respeito à utilização da água: muito cuidado para não a engolir durante o duche e nem pensar em lavar os dentes com água da torneira! Para esse efeito, existe na cozinha água fervida, filtrada e desinfectada com cloro. Fecho a porta do meu quarto e olho à volta. Junto à janela, existe um lavatório e, em cima de uma pequena secretária, está uma ventoinha eléctrica desligada. As paredes e o tecto são em madeira, como alíás a maioria das partes comuns do edifício. É tudo muito simples e sem preocupações decorativas. E, principalmente, é muito velho.

A primeira coisa que faço é arredar a cama da parede, por causa das baratas. Desde que uma vez, na Índia, vi esses bichos horrorosos subirem por um armário junto à cama e meterem-se entre os lençóis, tento sempre dificultar-lhes a vida. «Talvez arrastando a cama para o meio do quarto, assim desamparada, elas não tenham hipótese», digo para mim mesma, enquanto espreito os cantos do quarto, quase certa de que «elas andam por aí»...

A segunda preocupação, que sempre me atormenta nos países tropicais, são as picadas dos mosquitos. É claro que, na Amazónia, com um calor húmido e sufocante, de certeza que eles atacam impiedosamente. A reserva de repelente que trago é suficiente, mas, sobretudo de noite, é importante não atrair os insectos com a luz acesa. Olho para a janela do meu quarto e cai-me o coração aos pés. Por cima das vidraças, há uma espécie de postigo, sem vidro, apenas com uma rede, por onde é evidente que os mosquitos mais pequenos conseguem passar.

Saio para a rua e vou dar uma volta.

O seminário está situado mesmo junto ao porto principal de Tefé. É aí que se verifica o maior movimenrto de chegada e partida das embarcações. Agora, em Outubro, a época é seca e as águas estão com pouco volume, mas normalmente sobem até às traseiras do próprio seminário, onde atracam os barcos dos missionários. É que na região de Tefé há várias paróquias, quase todas espalhadas pelo interior e de difícil acesso, e a única maneira de lá chegar é, evidentemente, através do barco a motor. O movimento neste porto é razoável. Vêem-se alguns vendedores e comerciantes que fazem os seus negócios, mas, nesta altura do ano, as embarcações maiores não podem aproximar-se devido à seca.

Porto de Tefé



Área de Tefé


A cidade é muito feia. A maioria das casas são barracas de madeira sujas que, vistas de fora, têm um aspecto miserável. Uma delas tem a porta aberta e, lá dentro, uma mulher está sentada no chão a catar piolhos nos cabelos do seu filho pequeno. Quase todas as ruas são de pedra batida e é preciso prestar atenção a onde se põe os pés, por causa dos esgotos. Há um fervilhar de comércio por todo o lado. O mercado do peixe está cravejado de moscas. As outras bancas vendem, essencialmente, fruta e produtos da terra. Alguns vendedores vêm do interior com os produtos agrícolas e, à noite, regressam às suas aldeias em pequenos barcos. Há várias tascas, de aspecto nojento, que têm cartazes contra a cólera afixados nas paredes. Numa delas, o negro acumulado da sujidade e da gordura dos fritos contrasta ainda mais com a faixa de pano branco pendurada na porta de entrada: «A falta de higiene pode ser a gota de água. Comissão Mun. de Combate contra a Cólera. Bar e Restaurante Stylo Drink».

Ainda falta muito para anoitecer, mas é tempo de regressar ao seminário, porque há horários para cumprir. Foi, aliás, uma das poucas instruções que recebi do padre Paulo, o superior da casa. Apesar de me darem a chave da porta, as horas das refeições são taxativas. Ao aproximar-me do velho edifício de estilo holandês, reparo que o telhado está coberto de corvos, gordos e negros, que rasgam a quietude com o seu grasnar. São seis horas da tarde. O jantar é dali a meia hora.

O ambiente à mesa é soturno. Interiormente, prefiro pensar que aquela refeição é um lanche, mas, para aqueles padres holandeses, há várias décadas que as horas das refeições são sempre as mesmas: jantar às 18h30 e almoço às 11h30.

Em cima da mesa há pão, feito na cozinha do seminário, manteiga, compota e queijo. A cozinheira deixou algumas coisas preparadas em cima da mesa. Os dois padres mais velhos são holandeses e o outro é português.

O padre Domingos está em Tefé desde 1986 e explica que toda aquela zona é uma prelazia, ou seja, uma diocese confiada a uma congregação religiosa, neste caso à Congregação do Espírito Santo. A prelazia de Tefé tem uma extensão enorme: 264 000 km2 (três vezes maior que Portugal Continental). «São doze paróquias. A maior é também a que fica mais longe de todas, «Itamarati», explica o padre Domingos. «Fica a uma distância de dois mil quilómetros daqui e são necessários quinze dias de barco para lá chegar».

A nossa conversa é entrecortada por pesados silêncios. Os outros padres parecem mergulhados numa rotina, cansados de tudo. Arrisco perguntar o que acharam da visita do Papa ao Brasil. Respondem que não ouviram nada, por terem muito que fazer.

A empregada que trata da cozinha é a mais faladora. Explica aos missionários que uma pessoa conhecida da sua vizinha começou com os sintomas de cólera e está no hospital. Mas o hospital de Tefé é tão rudimentar que lhe faltam os medicamentos. À mesa comentam-se as condições precárias daquele serviço de saúde que nem tem comida capaz para dar aos doentes internados. «São os familiares dos doentes que tratam de tudo. E nós, aqui na paróquia, já fizemos uma campanha para arranjar lençóis», explica-me um dos missionários holandeses. A empregada mantém um ar preocupado. Depois, vira-se para mim e avisa: «Tenha cuidado com a água do duche, porque a água vem do lago. Deve-se tomar banho sempre com a boca fechada. Não coma coisas lá fora e nunca beba água sem ser daqui, deste recipiente!», insiste, apontando para um bidão de plástico.


Rio de Tefé


Depois do jantar, o padre Domingos deixa-se ficar na conversa. A prelazia de Tefé tem cerca de 20 barcos a motor para poder chegar às várias comunidades que existem à beira-rio. A população ronda os 150 000 habitantes. No interior há várias tribos indígenas e, na cidade, vivem sobretudo caboclos (miscigenação de índios e brancos) e nordestinos. «As comunidades do interior só têm Missa uma vez por ano», explica o padre português. «Quase todas as paróquias têm rádio-transmissor e nós, todos os dias de manhã, contactamos uns com os outros». A prelazia de Tefé tem apenas 13 padres. Assim, aos Domingos, as comunidades mais isoladas organizam-se e fazem um culto que inclui oração e reflexão sobre a Bíblia. «Nós escolhemos um líder da comunidade e damos-lhe formação. Uma vez por ano reunimos todos. Alguns vêm a Tefé; outros actualizam-se através da rádio», explica o missionário.

O bispo de Tefé, D. Mário Clemente neto, também é espiritano. Para se organizar melhor, dividiu a pastoral desta vasta região em dois campos de acção: a cidade e os índios. «Neste momento,  a prelazia tem preocupações ecológicas e está a desencadear uma luta a favor da preservação dos lagos e dos peixes», explica o padre Domingos. «Há muitas multinacionais na Amazónia. O governo doou-lhes muitas destas terras quase de graça, ou através de vendas simbólicas. No fundo, estas multinacionais estão destruindo a Amazónia». Neste contexto, a Igreja em Tefé definiu como opção a defesa dos pobres. «E o tal negócio: quem usa fato e gravata pode. Agora, pé de chinelo, quem anda com um chinelo de enfiar no dedo está perdido mesmo!», conclui o espiritano.

«Então e a evangelização?», pergunto, com uma estranha sensação de ingenuidade. A resposta do padre Domingos não se faz esperar: «Em relação às comunidades indígenas, a primeira coisa a fazer é devolver-lhes a dignidade, não é propriamente anunciar o Evangelho. Porque, na verdade, o maior problama é que eles não são donos da terra». Mesmo assim, insisto em perguntar se nunca falam de Cristo. Então, o missionário desabafa: «Estou ligado à pastoral das vocações, mas não gosto do trabalho. Não sei mesmo se faz sentido propor o celibato aos jovens dessas comunidades». Pergunto então porque é que aquele grande seminário está vazio... Mas as minhas considerações interiores são interrompidas pelas palavras do padre Domingos: «gosto mais da formação das lideranças meigas, às quais estou ligado directamente».

Com efeito, as prioridades missionárias definidas pelo bispo centram-se em três actividades fundamentais: alfabetização, sindicalismo e comunicação, com vista à consciencialização política. Para tentar pôr tudo isto em prática, a prelazia de Tefé pediu ajuda ao MEB, Movimento de Educação de Base. Este trabalho conta, assim, com a participação de agentes leigos, na sua esmagadora maioria filiados no PT, o Partido dos Trabalhadores (de inspiração marxista), que vêm de São Paulo e outras cidades para «esclarecer as pessoas sobre os seus direitos, sobre a importância das organizações sindicais, das associações de moradores, etc.». Dois desses agentes políticos - Mariana Toledo e Assis Moreira - estão temporariamente alojados no seminário e ocupam quartos vizinhos do meu.
















Papa João Paulo II, na sua chegada a Manágua, repreende publicamente a teologia da libertação. Na foto, com o ex-sacerdote jesuíta sandinista, Ernesto Cardenal.







João Paulo II e Joseph Ratzinger



Joseph Ratzinger e Aura Miguel




Finalmente, dou-me conta de onde estou. Tefé é um baluarte da teologia da libertação.

(...) «... Escuto!»

«Sim, já partiu ontem para Manaus... Escuto!»

Do outro lado do aparelho, uma mulher de voz metálica recebe a mensagem e pergunta se está tudo bem.

«Sim, está tudo bem. E vocês?... Escuto!», responde outra mulher do lado de cá.

Isabel é natural do rio Juruá, vive em Tefé e a sua aparência já deixa adivinhar o peso da idade. Tem os filhos dispersos pelo interior. Uma delas, Maria Luísa, está a três dias de barco dali. É com ela que acaba de falar através do aparelho rádio-transmissor dos padres espiritanos. «A vida é difícil», explica a cabocla. «Esta minha filha disse que está tudo caro e, além de caro, não tem onde comprar». Depois, conta que os outros filhos «fazem trabalho grosseiro, tiram madeiras para vender». Estão em zonas distantes e ela raramente os vê. Então, sempre que tem assuntos para tratar, recorre aos padres. «A vida é dura, mas Deus toma conta!», conclui a sorrir.

A irmã Lúcia acaba de entrar no secundário, à minha procura. A sua vivacidade é contagiante. De nacionalidade espanhola, esta religiosa, franciscana missionária de Maria, está em Tefé há 20 anos. Já fez parte da equipa de «evangelizadores» que percorreu as comunidades mais longínquas e chegou mesmo a ir, acompanhada por um padre e um leigo, falar aos trabalhadores seringueiros, às escondidas dos patrões. Enquanto tomamos um café no refeitório, a freira explica, de brilho nos olhos, que «para a Igreja, o que interessa é a fraternidade, a partilha com os irmãos e a justiça social». Mas agora, que está mais velha e cansada, e já não tem tanta energia para percorrer as comunidades, tornou-se assistente social junto dos leprosos da cidade. É ela que, antes de partir, me apresenta ao advogado da prelazia.

O Dr. Claudemir Queiroz é quem dá, a pedido do bispo, orientação jurídica nas paróquias, nas comunidades de base e é quem defende os índios e os mais pobres na questão da regulamentação das terras. Na cidade de Tefé, além dele, só há mais três juristas. «Eu sou o único advogado da Igreja e o único que trabalho para os pobres aqui na região», explica, orgulhoso. «A maior dificuldade é económica. Processo significa dinheiro e o nosso caboclo, muitas vezes, nem tem um centavo para pagar as custas. Então, quando surge um problema de um rico, cobro alto, para pagar as custas dos pobres!».

Este jurista é caboclo. A sua avó, segundo diz, era uma índia pura. «Os índios aqui têm uma capacidade jurídica limitada. Eles não têm o direito de demandar o que é seu», começa por explicar. «Por isso a Igreja tem lutado muito pela defesa dos índios, com a ajuda do CIMI, o Conselho Indigenista Missionário, ligado à conferência episcopal. Esta é uma das grandes prioridades que o bispo D. Mário tem realizado.











A conversa prossegue em tom relativamente cordial, até ao momento em que o advogado perde a calma: «Sabe porque é que há tantos preconceitos contra o índio? Por causa dos Portugueses! Os missionários dizimaram a cultura indígena e acabaram com os seus deuses!». Apanhada de surpresa, tento recordar-me dos sermões do padre António Vieira e do trabalho paciente dos primeiros missionários, tal como o tinha valorizado o Papa, alguns dias antes, durante a sua visita pastoral, mas o advogado do bispo nem me dá tempo para responder: «Pedro Álvares Cabral invadiu o Brasil. Na colonização da América do Norte, o povo veio para ficar, mas o povo que veio de Portugal veio unicamente para explorar o ouro, o pau-brasil, as ervas do sertão, as aves falantes, as madeiras preciosas, enfim, veio para explorar e levar. Portugal representa para nós uma invasão e uma dizimação!».

A fúria de Claudemir aumentou a olhos vistos: «O Brasil hoje é um país do Terceiro Mundo. É um país onde cada brasileiro que nasce, nasce devendo 500 dólares, enquanto que cada norte-americano que nasce, nasce com um saldo de 18,430 dólares!». Na opinião do jurista, a culpa é dos Portugueses, claro está: «Portugal levou toda a nossa riqueza, explorou tudo e, além disso, quando aqui chegaram havia 12 milhões de índios, enquanto hoje só existem 200 000. Foram mortos de propósito!». E, num clímax de ódio, o advogado enche o peito de ar e acusa: «Os Portugueses são assassinos, criminosos, passíveis de uma acção criminal a nível da ONU. Se eu tivesse mais condições, eu moveria uma acção contra Portugal por genocídio!».

Se o advogado do bispo é assim, como será o bispo? Pergunto por D. Mário Clemente Neto, mas não está. Ainda não regressou a Tefé, desde que saiu para participar na visita de João Paulo II ao Brasil. Então, procuro saber a opinião do Dr. Claudemir Queiroz sobre o que disse o Papa, há poucos dias em Salvador da Baía, referindo-se ao «inestimável património de fé e religião que Portugal levou a Brasil» e ao importante papel dos missionários, quer na evangelização, quer na defesa dos direitos e na promoção da dignidade dos habitantes dali. O advogado dos pobres e dos índios responde que não teve tempo para prestar atenção ao Papa e remata, em jeito de despedida: «Nada me tira da ideia de que o Brasil seria melhor sem a presença de Portugal em 1500» (in «"Porque Viajas Tanto"», Lucerna, 2003, pp. 125-135).


João Paulo II na sua chegada ao Brasil (Junho de 1980).




Continua

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