segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Vestígios da Passagem dos Portugueses no Japão (ii)

Escrito por Wenceslau de Moraes





Chegada dos Portugueses ao Japão











«Mas realmente, há cerca de quatro séculos, comia-se em Portugal com as mãos, como a Peregrinação leva a supor?... Oh, não, não pode ser!... Imagino que Mendes Pinto e os outros quatro, habituados por longos anos aos costumes indianos, haviam posto de parte os próprios usos para adoptarem os estranhos. Ainda hoje, quem viaja nos grandes paquetes pode observar, como eu observei por muitas vezes, os índios, ao serviço das máquinas, sentarem-se no convés, em volta de uma selha, de onde sacam às mãos cheias o caril dos seus repastos».

Wenceslau de Moraes («Fernão Mendes Pinto no Japão»).


«A história de Saigo Takamori, mais particularmente a sua acção final na rebelião Satsuma, foi retratada no filme The Last Samurai, de 2003. Ken Watanabe personificou Takamori, embora sob a designação de Moritsugu Katsumoto».

Miguel Bruno Duarte







Saigo Takamori, Parque de Ueno (Tóquio).






















Hiroyuki Sanada






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Koiyuki  Kato



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«Com a presença dos Holandeses em Nagasaki manteve-se algum contacto com o Ocidente. Havia também interesse no "conhecimento ocidental" (Yogaku ou Rangaku), especialmente nas ciências, e até uma considerável admiração. Estudiosos médicos como Engelbert Kaempfer (1651-1716) e, mais tarde, Philipp Franz von Siebold (1796-1866), que eram alemães mas empregados como médicos pela colónia holandesa de Nagasaki, causaram uma impressão particularmente forte.

De tempos a tempos, alguns ocidentais desembarcavam sem autorização neste país fechado, umas vezes intencionalmente outras não. Com muito poucas excepções, foram executados ou expulsos. A partir do fim do século XVIII, à medida que as potências ocidentais se tornaram mais activas no Pacífico e no Leste da Ásia, alguns países fizeram tentativas de restabelecer relações, pelo menos de modo a permitir-lhes o direito de reaprovisionamento dos seus navios. Também estas ficaram votadas ao fracasso. A Rússia tentou e falhou em 1792 e de novo em 1804. A Grã-Bretanha tentou em 1797, 1808 e 1818. A América, cujos navios baleeiros operavam em águas próximas do Japão, tentou em 1791, 1797 e 1837 e, de modo particularmente insistente, em 1846 e 1849.

Em meados do século XIX, o xogunato tinha chegado à conclusão de que os ocidentais, provavelmente, não iriam deixar o Japão no seu isolamento. Porém, tendo visto o que estava a acontecer à China com as suas guerras do ópio induzidas pelos ocidentais, estava ainda mais determinado a mantê-los ao largo. Com o apoio de nacionalistas dedicados, ainda tentou evitar o debate da questão das relações com os ocidentais. Takano Choei (1804-1850) foi preso e depois obrigado a suicidar-se pela sua "audácia" em insistir na abertura do país ao contacto estrangeiro. Até mesmo a perspectiva de compromisso de Sakuma Shozan (1811-1864), que advogava uma mistura de pontos fortes japoneses e ocidentais e que criou o lema "Toyo no Dotoku, Seyo no Gakugei" ("Ética Oriental, Ciência Ocidental!), bastou para que fosse assassinado.


Os nacionalistas mais radicais popularizaram o lema "Sonno Joi" ("Reverenciemos o imperador, expulsemos os bárbaros"). O sentimento xenófobo pode ter encontrado acolhimento no xogunato, mas a outra parte do lema não foi tão bem recebida, porque revelava uma ameaçadora falta de respeito pelo próprio xogunato.

A partir de cerca de 1830, em particular, havia um sentimento crescente de que o xogunato estava a perder o controlo e com isso veio a falta de respeito. Não conseguira responder com eficácia a uma grave fome nos anos de 1833-1837. Em 1837, houve mesmo apelo à insurreição liderada por Oshio Heihachiro (1793-1837), um funcionário confucionista em Osaca, que há muito se indignava com a ineficiência e a corrupção da administração. A insurreição de Oshio foi de pequena dimensão, mas provocou uma acrescida falta de respeito pelo xogunato, devido à incompetência revelada na tentativa de a dominar. O próprio Oshio, embora obrigado a suicidar-se, transformou-se num símbolo da luta do povo comum contra a corrupção e a ineficiência da administração e os mercadores gananciosos tolerados pelo regime. O xogunato encetou algumas reformas, mas estas revelaram-se ineficazes.

Deste modo, os samurais, que constituíam, na maioria dos casos, essa mesma administração, também perderam o respeito. Este facto veio juntar-se às suas frustrações anteriores por terem sido privados do seu papel de guerreiros. E até a sua competência militar estava agora a ser posta em causa.

O comodoro Matthew Perry


A questão atingiu o auge com a visita, em Julho de 1853, do comodoro norte-americano Matthew Perry (1794-1858), que entrou na baía de Edo com quatro navios a vapor. Perry tinha ordens oficiais para pedir três coisas: tratamento mais humano para os náufragos, a abertura dos portos para aprovisionamento e fornecimento de combustível e uma idêntica abertura ao comércio. Era um homem determinado, disposto a usar a força, se necessário fosse, e teve o cuidado de se certificar de que os Japoneses estavam cientes da sua determinação e do potencial do seu armamento, tendo-lhes mesmo oferecido bandeiras brancas para facilitar a sua rendição. Depois de os presentear também com uma carta do Presidente americano para o Imperador do Japão, zarpou com a promessa de voltar no ano seguinte para uma resposta.

Houve muita confusão e discussões depois da partida de Perry. O xogunato tomou mesmo a iniciativa sem precedentes e humilhante de solicitar a opinião dos dáimios. No entanto, foi, de facto, incapaz de resistir. Quando Perry regressou, em Fevereiro de 1854, com uma frota maior de nove navios, o xogunato concordou com o tratado. No tratado de Kanagawa, de Março de 1854, o xogunato aceitava os pedidos americanos, incluindo o direito de ter um funcionário consular no Japão. O primeiro cônsul, Townsend Harris (1804-1878), assumiu formalmente o seu cargo no porto de Shimoda, em 1856. As portas do país fechado tinham sido obrigadas a abrir.

Sucederam-se rapidamente tratados semelhantes com outras potências: a Grã-Bretanha em 1854, a Rússia em Fevereiro de 1855 e a França e a Holanda pouco depois. Qualquer concessão futura a uma delas conduzia a concessões semelhantes às demais, pois todas beneficiavam do estatuto de "nação mais favorecida". O Japão perdeu o controlo das suas próprias pautas aduaneiras. Estes "tratados desiguais", impostos pela "diplomacia de canhoeira", eram humilhantes para os Japoneses. Concessão particularmente vexatória era o direito de extraterritorialidade, segundo o qual os estrangeiros que transgredissem a lei eram julgados pelo seu próprio cônsul, e não pelas autoridades legais da nação de acolhimento. Tal significava, claramente, relegar o Japão para um estatuto de "nação não-civilizada", o que ofendeu bastante o orgulho e a sensibilidade dos Japoneses, porque eram os diabos estrangeiros, e não eles, que supostamente eram bárbaros.





Comerciantes e aventureiros ocidentais chegaram em elevado número. Nem sempre procediam bem nem eram, politicamente, os melhores diplomatas. Aliás, alguns nacionalistas, sobretudo entre os samurais, precisavam de pouca provocação, ou nem precisavam dela, para os atacar.

A incapacidade do xógum para lidar efectivamente com a "ameaça" estrangeira, apesar da sua função como suposto protector militar do Japão, foi o dobre de finados para o xogunato. Aumentou a oposição que lhe era movida, representando os opositores uma mistura de oportunismo político e genuína preocupação com o bem-estar da nação.

Não surpreende que a maior oposição tenha vindo dos domínios tozama, em particular de Satsuma, no sul de Kyushu, e de Choshu, na ponta oeste de Honshu. Satsuma e Choshu eram domínios extensos e poderosos, que tinham como traço comum a antipatia pelo xogunato, embora tradicionalmente não tivessem muitas simpatias um pelo outro.

Os nacionalistas de Choshu eram especialmente fervorosos. Um dos seus homens, Yoshida Shoin (1830-1859), tinha tentado, sem sucesso, partir clandestinamente a bordo de um dos navios de Perry para conhecer o Ocidente e, desse modo, tornar o Japão mais forte. Pouco depois, foi executado por ter conspirado para assassinar um representante do xogunato, tornando-se um mártir da causa Sonno Joi.

Em Julho de 1963 e de novo em Setembro de 1864, enfurecido com a inacção do xogunato, Choshu começou a disparar contra navios estrangeiros no Estreito de Shimonoseki (adjacente ao seu domínio). Sofreu represálias das forças britânicas e americanas, perdendo muitos dos seus navios e vendo destruídas muitas das suas bases militares. O xogunato concluiu que também ele tinha de castigar Choshu, enviando forças punitivas em 1865 e 1866. Todavia, as forças reorganizadas de Choshu, que usavam agora milícias camponesas, para além dos samurais, resistiram com sucesso a estas forças do xogunato.

Tokugawa Iemochi (1846-1866), 14.º Shogun do Japão de 1858 a 1866.


A histórica resistência de Choshu contra o xogunato dos Tokugawa, pois fora a primeira vez que um domínio o desafiara com êxito, foi favorecida pela decisão de Satsuma de não se juntar às forças do xogunato. Ambos os domínios rivalizavam pelos favores de uma corte imperial que aproveitou então a oportunidade para se reafirmar, após muitos séculos em que apenas tivera um papel simbólico. Ambos os domínios tinham lutado entre si recentemente (em 1863), por causa dessa rivalidade, e Satsuma tinha ganho. No entanto, pouco depois formaram uma aliança. Também esta aliança era histórica.

Em Janeiro de 1867, houve novo xógum, Yoshinobu (1837-1913), também conhecido por Keiki). Parecia ser um indivíduo capaz, contra o que era hábito, levando a cabo algumas reformas administrativas úteis. Parecia também desejar bastante a reaproximação construtiva do xogunato com a corte. Os opositores a este tinham agora de agir com rapidez. Um adiamento poderia ser-lhes fatal e permitir que o xogunato restruturado continuasse.

Uma aliança de domínios tozama, liderada por Satsuma e Choshu e auxiliada por Iwakura Tomomi (1825-1883), um nobre da corte com ligações a Choshu, conseguiu obter um rescrito imperial apelando à abolição do xogunato. A 3 de Janeiro de 1868, apoiados neste rescrito, ocuparam o palácio e declararam a "restauração imperial". Embora a oposição dos defensores do xogunato continuasse durante algum tempo, após um período breve de indecisão e resistência descoordenada, o próprio Yoshinobu aceitou esta declaração. Retirou-se para Shizuoka, onde viveu pacificamente os restantes 45 anos da sua existência.



Imperador Meiji (Mutsuhito, 1872).



O Imperador Meiji recebendo a Ordem da Jarreteira do Príncipe Arthur de Connaught em 1906, por ocasião da Aliança Anglo-Japonesa.


O imperador, que via agora restaurado o seu poder, era um rapaz de 15 anos de nome Mutsuhito (1852-1912) e ficaria conhecido postumamente como Meiji ("poder iluminado"). Tinha ascendido ao trono apenas um ano antes, em Janeiro de 1867, por morte do pai, Komei (1831-1867, r. 1846-1867). A morte de Komei está envolta em controvérsia, podendo ter sido envenenado. Não tinha apoiado totalmente o movimento de restauração imperial, preferindo a união entre a corte e o xogunato. A sua morte foi com certeza conveniente, porque permitiu obter o importantíssimo rescrito de autorização imperial. Também afastava a possibilidade de o imperador ser um adulto relutante e difícil, deixando em seu lugar, como chefe de Estado, um rapaz potencialmente manipulável.

Em todo o caso, o poder dos xóguns, que durara quase 700 anos, tinha terminado. Os diabos estrangeiros estavam de volta e parecia que não se iriam embora. Quando estes diabos apareceram pela primeira vez, um desenho humorístico popular, baseado na tradição japonesa dos "concursos de peidos" (he-gassen), mostrava os ocidentais despedaçados por peidos japoneses. Mas este cenário era, por assim dizer, apenas vento. Os diabos estrangeiros não iriam ser varridos desta maneira. Pelo contrário, tinham sido os estrangeiros a, metaforicamente falando, rebentar com as portas do país fechado. O poder dos peidos ocidentais prevalecera.

(...) O Japão tinha sorte em poder dar-se ao luxo de aprender ao seu próprio ritmo e à sua maneira, porque - precisamente como se passara com a China, em tempos antigos ou, neste aspecto, em relação aos europeus no século XVI - as potências ocidentais não estavam de facto interessadas em colonizá-lo, embora tal não significasse que não havia qualquer ameaça quanto a isso e que se podia confiar. Ao entrar no Japão, em 1853, Perry tinha hasteado a bandeira americana no "posto avançado" japonês das ilhas Ogasawara (Bonin), embora os Japoneses a tenham posteriormente arreado sem sofrerem retaliação, e Perry também recomendou a Washington que considerasse ocupar as ilhas de Ryukyu. De facto, mais tarde, em 1887, o jovem geógrafo e intelectual Shiga Shigetaka (1863-1927), na sua popular obra Nanyo Jiji (Assuntos Correntes nos Mares do Sul), lançaria um aviso sobre a possibilidade de o Ocidente se apoderar do Japão, baseando-se na sua observação do desenvolvimento da Austrália e da Nova Zelândia pelas raças anglo-saxónicas, que muito admirava, mas que, de certo modo, não deixava de temer. Shiga escreve acerca da sua conversa com o chefe maori Wi Tako, na Nova Zelândia, em 1886:







"Wi Tako perguntou-me se o Japão alguma vez tinha entrado em guerra com a Grã-Bretanha e eu respondi que, no Japão, também tínhamos tido chefes de clã locais em todas as províncias, que mantinham vastos domínios por todo o país, e que alguns clãs tinham tido disputas com os Britânicos. Felizmente, não tinham sido tão graves que envolvessem a ameaça de uma invasão. Por isso, tínhamos conseguido manter até hoje a nossa independência, mas tive de admitir que tal poderia ter ficado a dever-se a mera sorte. Voltando a reflectir no assunto, podemos verificar como fomos afortunados por ter mantido tal liberdade, ao considerarmos as vantagens limitadas que tínhamos em relação ao Ocidente. [...] Wi Tako afirmou que a causa da rápida opressão no seu país foi a confrontação constante com os Britânicos e parecia triste e zangado ao dizê-lo. Infelizmente, o Japão pode ser outra Nova Zelândia. Quando olho para o céu outonal destes mares do Sul, temo a ameaça lá longe sobre o meu país. Tendo presenciado tal opressão cultural e racial na Nova Zelândia, eu, como filho do novo Japão, tenho de agir de imediato para dar a conhecer ao meu povo que esta possibilidade nos pode tocar a nós".

A sorte do Japão foi que os Britânicos e outras potências ocidentais tinham presas mais fáceis noutras paragens, desta vez não no Novo Mundo, porque a própria América era agora uma dessas potências, mas no mundo antigo da China. Tradicionalmente, é a Austrália que é conhecida como "País Afortunado", mas, para Shiga e para os que partilhavam os seus pontos de vista, talvez esse epíteto se aplicasse melhor ao Japão.

No seu curto preâmbulo, a Carta de Juramento também prometia uma constituição. Na verdade, esta foi promulgada, com alguma pressa, três meses depois, mas tinha, surpreendentemente, pouca substância. A chamada "Constituição de 1868" seria relegada para segundo plano por uma constituição posterior muito melhor, conhecida como Constituição Meiji, mas estabelecia, em teoria, uma Assembleia Nacional, sufrágio político e um Grande Conselho de Estado. O Grande Conselho seria o único orgão no Japão a ser instituído nessa altura e os seus vários ministérios e serviços deram uma legitimidade acrescida aos jovens líderes governamentais.

Uma vez mais repetindo a prática do governo Yamato-Nara, o governo Meiji queria que uma capital única constituísse o eixo do poder centralizado, em contraste com as "duas capitais" de Edo e Quioto. Foi Edo a escolhida, a que foi dado o novo nome de Tóquio ("capital oriental"). O imperador mudou-se de Quioto para lá em 1869. O novo Grande Conselho também ali ficou sediado.







Imitando ainda outra política ao estilo de Nara, a terra foi nacionalizada. O anterior território do xogunato, que totalizava um quarto do total, foi o primeiro a ser nacionalizado. Depois, em Março de 1869, os líderes do governo Satsuma-Choshu persuadiram os dáimios dos seus domínios de origem a devolver os seus territórios ao imperador para que fossem reorganizados em Prefeituras. Outros dáimios se lhes seguiram. Nalguns casos, a renúncia aos seus territórios não foi realizada com total boa vontade, embora não quisessem incorrer no desagrado do governo e tivessem poucas alternativas na matéria. Em Agosto de 1871, o governo deu mais um passo, abolindo legalmente os domínios e substituindo-os por Prefeituras.

Os dáimios foram convencidos a aceitar estas mudanças, em parte mediante generosos acordos financeiros e/ou cargos de governadores nas novas Prefeituras. Não só os dáimios receberam rendimentos avultados, mas o governo assumiu as dívidas dos seus domínios e a responsabilidade de pagar os salários dos seus servidores samurais, que reduziu a cerca de um terço. Este tratamento generoso dos dáimios e, em menor medida, dos samurais foi importante politicamente, porque ajudou a reduzir o risco de resistência armada contra o regime.

(...) Outra medida importante levada a cabo pelo novo governo para abrir caminho à modernização foi a abolição do restritivo sistema de classes. Esta abolição não era, evidentemente, um reflexo da influência do Período de Nara. Cumprindo as promessas da Carta de Juramento de 1868, as restrições às profissões, fundadas na classe social, foram eliminadas em 1869. As classes foram restruturadas, do sistema shi-no-ko-sho para kazoku (nobres, incluindo dáimios), shizoku (samurais) e heimin (povo comum), com a família imperial a constituir uma "classe" à parte, a kozoku. Em 1870, foi oficialmente permitido ao povo o uso de apelidos. Em 1871, os párias eta e hinin deixaram de ser considerados subclasses e foi-lhes atribuída a igualdade plena com o povo comum, embora na prática a discriminação continuasse a ser grande. Também para promover a igualdade, a educação universal foi considerada um objectivo em 1872, mas ainda teriam de passar vários anos antes de se tornar realidade.







Seppuku



Talvez o maior golpe contra o antigo sistema de classes tenha sido a eliminação faseada da classe dos samurais. Na prática, as transformações da Revolução significaram que a maioria dos samurais ficou sem ocupação real, mesmo de natureza burocrática. Esperava-se cada vez mais que se desenvencilhassem, encontrando uma nova forma de emprego. Alguns continuaram a trabalhar como administradores, agora para o governo, e outros tornaram-se homens de negócios de sucesso, ou polícias, ou agricultores, mas muitos optaram por salários cada vez mais reduzidos. No entanto, em 1873, no mesmo ano em que foi introduzido o serviço militar obrigatório, de acordo com o qual os homens de todas as profissões eram agora potencialmente soldados, o governo ofereceu a opção de um pagamento único com títulos seus, em substituição dos salários. Esta possibilidade tornou-se obrigatória em 1876. Neste mesmo ano, aos shizoku/samurais que não a tinham já abandonado foi finalmente proibido o porte da espada.

Estas várias reformas foram substanciais, mas, apesar de serem sinal de uma confiança e de uma autoridade tranquilizadoras por parte do governo, a verdade é que não foram sempre bem recebidas. Muitos camponeses opunham-se fortemente ao recrutamento militar, conhecido como "imposto de sangue", e ao novo imposto sobre a terra. Em muitas ocasiões, expressaram a sua posição em manifestações violentas.

A expressão mais grave de insatisfação, contudo, veio de antigos samurais, não dos camponeses. O seu culminar foi a Revolta de Satsuma ou de Seiman (no Sudoeste), em 1877. Ironicamente, no centro da revolta estava uma das figuras mais proeminentes do novo governo, Saigo Takamori.



Saigo Takamori



Saigo Takamori e outros samurais



Samurais de Satsuma liderados por Saigo Takamori






Saigo sofreu uma derrota política em Outubro de 1873. Quando muitas figuras mais velhas do governo, como Okubo, Kido, Ito e Iwakura, estavam fora do país na Missão Iwakura de 1871-1873, Saigo propôs a invasão da Coreia. Para salvaguardar as aparências, era considerada uma invasão punitiva, uma vez que alguns julgavam que a Coreia tinha insultado o Japão por não ter encetado relações directas com o novo governo. Todavia, apesar do seu envolvimento neste, Saigo era um dedicado samurai à moda antiga e podemos interpretar a sua proposta como uma maneira de proporcionar um sentimento de utilidade e valor aos antigos samurais. Por fim, após o regresso da Missão Iwakura, em Setembro de 1873, o plano foi posto de parte pelo Grande Conselho.

A história parece indicar que a sua proposta foi apenas adiada, e não rejeitada imediatamente, mas Saigo levou a questão a mal e sofreu mesmo um colapso cardíaco. Regressou a Kagoshima, a principal cidade do antigo domínio de Satsuma, com alguns apoiantes, Em breve se  tornaria o centro de antigos samurais descontentes e do sentimento antigovernamental em geral.

Nos anos seguintes, a tensão foi aumentando em Kagoshima. O governo suspeitou que se preparava um levantamento e, em Janeiro de 1877, mandou à cidade uma unidade naval para retirar as munições. Esta foi atacada e a partir daí houve uma escalada na luta. No fim de Fevereiro, forças de Saigo, num total de 40 000 homens, enfrentaram forças pró-governamentais em Kumamoto, mais para norte. A batalha que se seguiu durou seis semanas, mas, por fim, a vitória foi do novo exército regular do governo. Saigo e cerca de 400 soldados, um centésimo da sua força inicial, recuaram lentamente para Kagoshima, combatendo. Suicidou-se a 24 de Setembro, depois de uma última valorosa investida.


Saigo Takamori batendo-se contra o Governo Meiji






General Saigo Takamori e os 'rebeldes' em Kagoshima





A insatisfação e os actos de violência envolvendo antigos samurais prosseguiram durante mais alguns anos. Um destes actos foi o assassínio de Okubo, em Maio do ano seguinte, por um antigo samurai de Satsuma, que o considerava um traidor. No entanto, a Revolta de Satsuma foi, de facto, o acto final em que "samurais da velha escola" participaram em número significativo. Foi quase como se Saigo e os que morreram com ele soubessem perfeitamente, desde o princípio, que os tempos dos samurais tinham acabado, preferindo morrer com eles».

Kenneth Henshall («História do Japão»).





Vestígios da Passagem dos Portugueses no Japão


No museu de Ueno, em Tóquio, encontram-se hoje, em exposição, curiosos documentos da acção evangelizadora dos missionários portugueses. Figuram, entre outros, os seguintes: um retrato a óleo, de Hashikura Rokuemon, em prece, em frente de um crucifixo; o título de cidadão romano, conferido ao mesmo Rokuemon, que visitou o papa Paulo V, em 1615, como embaixador do príncipe de Sendai; várias pinturas sagradas, rosários, crucifixos, um livrinho de devoções escrito em japonês, etc. Ali figuram também exemplares célebres fumi-ita, placas de metal com emblemas cristãos, que nos tempos de perseguição os japoneses calcavam a pés juntos, e parece certo que também os holandeses no intuito de provarem às autoridades do país, quando preciso, que não seguiam o credo de Jesus.

A sua história e a crítica da perseguição japonesa contra os missionários portugueses, contra os estrangeiros em geral, cheia de horrores como todas as perseguições religiosas, não é para aqui. No entretanto, ao natural ressentimento que os factos apontados, descritos em minúcia pelos nossos velhos cronistas, possam ter induzido a alma portuguesa, devem fazer-se alguns reparos. Os nossos padres mostram-se desde logo intolerantes; e os nobres convertidos foram mais do que intolerantes, foram despóticos, foram cruéis, obrigando pela força os seus vassalos a abraçarem a nova fé, incendiando os templos budistas e assassinando os bonzos. O comércio tornou-se cedo o monopólio dos cristãos, Padres portugueses e frades espanhóis, mercadores portugueses de pouca lisura de costumes, e mais tarde os holandeses e alguns ingleses, todos começaram intrigando uns contra os outros, e intrigando contra o império, ingerindo-se na política interna, conspirando, espalhando a revolta, a confusão e a anarquia. Os dirigentes japoneses almejavam por estabelecer em bases firmes o comércio do país com o Ocidente, no propósito de engrandecê-lo pela indústria e pelos progressos adquiridos; mas não podiam admitir tamanha influência moral, exercida por estranhos, tendente à desintegração da família japonesa, ao fanatismo, à opressão religiosa, à inquisição e certamente, como remate, ao domínio político dos brancos no solo dos Mikados. A opinião é correntia, entre os modernos escritores ocidentais mais competentes, que o perigo jesuíta foi uma das mais ameaçadoras conjunturas que puseram em risco a independência japonesa, durante a longuíssima existência da nação. Hideyoshi, Yeyasu, foram bárbaros; mas salvaram da escravidão a sua pátria.






Toyotomi Hideyoshi








Símbolo da família de Toyotomi Hideyoshi




Passemos adiante, para encarar agora o lado mercantil do nosso assunto. Pouco há a dizer. Os portugueses poderiam ter feito muito neste campo. Poderiam ter acordado as latentes energias na alma dos nipónicos, e dos chineses também, antecipar os factos, aliar-se aos asiáticos e revolucionar o mundo. Não o fizeram, nem admira que assim fosse. O espírito de há três séculos era outro. Reservaram os destinos à Inglaterra o lugar de primeiro aliado ocidental de um império do Oriente. É facto que os navios dos nossos mercadores serviram de modelo aos barcos japoneses, começando a construir-se alguns de maior tonelagem e próprios à navegação de longo curso. Desenvolvemos neste povo o espírito aventureiro, o amor das grandes viagens, das conquistas. Em 1594, Hideyoshi distribuía licenças a oito barcos japoneses para negociarem com Luzon, Amoy, Macau, Annam, Tonkin, Cambodja, Siam, Malaca e outros portos. Seis anos depois, tais licenças eram elevadas por Iyeyasu a sessenta e duas; em 1620 montavam a cento e setenta nove. Foi por aqueles tempos que, partindo um barco japonês para a Índia, com escala por Macau, ali os portugueses, não conseguindo que o capitão vendesse a carga e desistisse de ir além, confiscaram-lha sem outra forma de processo. Mas a expulsão dos estrangeiros de solo japonês vinha pôr termos aos arrojos deste povo em matéria de expansão, seguindo-se naturalmente uma política cautelosa, repressiva; a emigração dos nacionais foi proibida, proibido o regresso dos ausentes, a tonelagem dos barcos reduzida a cifras ínfimas, de modo a só permanecer a navegação de cabotagem. O isolamento era a lei única.

Vou agora referir-me a outros vestígios de mínima importância mas ainda de interessantíssima menção, que ficaram da nossa passagem no Nippon. Estes vestígios encontram-se na linguagem japonesa. Começo por dizer que, na sua escrita ideográfica, os japoneses escrevem com três figuras a palavra «Portugal». As duas figuras superiores querem dizer budô (uvas, vinha); de sorte que a rigorosa denominação da nossa terra seria para eles - o País das Uvas - ou, por extensão - o País do Vinho... Irónica divisa, quando se tenha em conta a raridade de vinho português em terras do Japão; e em todo o caso, comprovativa da remota fama vinhateira da pátria de Mendes Pinto e dos que lhe sucederam.

Os portugueses trouxeram ao Japão ideias novas, objectos novos. Disto resultou naturalmente a adopção, na linguagem do país, de muitos termos nossos; dando-se ainda a circunstância favorável de uma notável semelhança de pronúncia nas línguas faladas dos dois povos. Avultam, como facilmente se imagina, os termos religiosos; muitos deles ainda em uso, posto que os padres franceses, pastores actuais do minguado rebanho dos católicos nipónicos, cuidem de substituir estas palavras por outras, etimologicamente nacionais. Cito alguns exemplos: Kirisuto (Cristo), Yaso (Jesus), Kirisutan (cristão) Bataren (padre), Kontasu (contas, rosário), Anima (anima, alma), etc.




Depois, vêm os nomes das coisas: botan (botão), birôdo (veludo), bôto (bote), bidôro (vidro), koppu (copo), mantéru (mantel), kappa (capa), mantô (manto), pan (pão), shabon (sabão), kompeitô (confeito), saberu (sabre), etc.

Os japoneses dizem: tempura (de «tempero», ou de outro termo parecido). Tempura é qualquer artigo de cozinha, frito em azeite; correspondente ao nosso actual vocábulo «fritura». A palavra é também conhecida em África, de importação portuguesa, claramente; eu conheci, em Moçambique, uma negra que se chamava Tempura.

Os nipónicos dizem: tabako (tabaco). Parece não restar dúvida de que fomos nós que introduzimos a palavra no Japão, e também a droga e o uso de fumá-la; isto por 1600. A princípio, decretaram-se rigorosas leis proibitivas contra o uso do tabaco; mas depois estabeleceu-se a tolerância, passando todos a fumá-lo, sem distinção de sexos. Observa um autor japonês, contemporâneo: «Mulher que não fume e bonzo que persevere nos seus direitos de abstinência, eis duas coisas igualmente raras». Deixando sem comento o cigarro, que os costumes modernos vão profusamente divulgando, convém saber que o tabaco japonês, de delicioso aroma, é fumado em cachimbinhos, alguns dos quais são verdadeiros mimos de arte, comprados por alto preço. O kiseru, o cachimbinho, consta de um forno e de uma boquilha de metal (cobre, prata ou ouro), e de um fino tubo de bambu. Vários outros delicados utensílios (como a bolsa de seda, o braseiro, etc.) fazem parte do arsenal do fumador. Os homens do povo, labutando pelas ruas, trazem sempre o cachimbo à cinta, envolvido numa bainha de couro envernizado; os touristes, estranhos aos costumes, julgarão que vão armados de punhal. No lar, a mímica da musumé, tomando nos dedos uma pitada de tabaco, enchendo o forno, acendendo-o sobre brasas, saboreando uma única fumaça, sacudindo o resíduo, enchendo de novo o forno e oferecendo o cachimbinho à companheira - é graciosíssima.






Os nipónicos dizem: karuta (cartas, cartas de jogar). Sem dúvida, iam-se eles dando a vários jogos desde remotas eras, como bons asiáticos que são; mas, se não erram cálculos, fomos nós que lhes trouxemos cartas de jogar. O que sucede é que as cartas japonesas são mais bonitas do que as nossas. Estamos adivinhando que, enquanto os bons padres jesuítas iam ensinando a doutrina a estes pagãos e cuidando de guiar-lhes a alma a bom caminho, Mendes Pinto e os seus dignos sucessores - amáveis filhos do País do Vinho - empregavam horas vagas em incutir-lhes o viciozinho do tabaco, jogando ao mesmo tempo biscas lambidas em aprazível sociedade. Caiu por terra a doutrina dos padres; mas o tabaco e as cartas de jogar - oh, pestezinha da alma humana! - persistiram.

Ficaram mencionados, muito por alto, como convinha, os vestígios que a nossa rápida passagem deixou no solo japonês. Duas palavras agora, para atentar na corrente inversa, que sempre se manifesta, como nos rios, em fenómenos sociais da ordem que apontei.

Alguns vocábulos japoneses encontraram adopção na nossa língua, sobretudo em Macau, vizinho e em íntimas relações com o império durante um certo período. Em Macau, chama-se «biva» à nêspera, à qual os japoneses chamam biwa. Os japoneses chamam kaya (de ka, mosquito, ya, casa) ao mosquiteiro; o termo é igualmente empregado na linguagem de Macau. O vocábulo «biombo» e o objecto que ele exprime são evidentemente de origem japonesa; os japoneses dizem biôbu. O mesmo acontece com «catana», português, e katana, japonês. «Bonzo» é palavra japonesa; os japoneses dizem chá; nós dizemos também chá, como eles; o nosso termo vem de importação nipónica, de cháwan, designando o mesmo objecto.




Os nossos padres e os nossos mercadores, animados de intenções que nada tinham que ver com a deliciosa arte nipónica, não se importaram com ela, passaram desdenhosos. Haverá em Portugal um vaso de porcelana, uma boceta de charão, uma folha de desenho, trazidos do Japão, do tempo em que nós tão assiduamente o frequentávamos? Suponho que não há. Todavia, é bem possível que certas formas de objectos (no bule, na chávena, na bandeja, etc.) tenham sido inspiradas em modelos japoneses.

Os loiros da Holanda, permanecendo no Japão, excederam-nos imensamente como permutadores de ideias e coisas, entre o Japão e o Ocidente. Mas os verdadeiros descobridores do Japão artístico e pitoresco, os autênticos Mendes Pinto do Nippon encantador e feiticeiro, só apareceram há alguns anos, e foram os Goncourt, Revon, Lafcadio Hearn e poucos mais. A eles se deve o nosso reconhecimento aprofundado das delicadezas desta terra e desta gente, e a influência resultante da arte japonesa na arte do Ocidente. Em troca, o Japão vem adoptando o nosso chapéu alto, a nossa lúgubre casaca de cerimónia, os nossos canhões de tiro rápido e o bife com batatas, à inglesa...

Reservando para o fim um derradeiro comentário à influência portuguesa no Japão, comentário que vem em tempo próprio, justamente quando acabamos de inventariar os quase quiméricos vestidos que restam da nossa passagem pelo império, ocorre-me dizer que convém ter bem em vista que semelhante influência foi principalmente de ordem moral, não deixando, consequentemente, vestígios palpáveis, visíveis, em abundância. O nosso convívio com os nipónicos não cessa por este facto de ser, para eles, uma revelação de alcance formidável. Acostumados, durante séculos sem conto, a encararem a Ásia como o mundo e a velha civilização chinesa como a única manifestação do pensamento, as suas relações connosco e a ida da embaixada à Europa, passando por Lisboa, então um dos grandes centros de actividade mundiais, abriram sem dúvida muito os olhos aos nipónicos, ávidos por índole de novidades e instrução. Foram os portugueses que ensinaram a esta gente que lá muito ao longe, nas terras dos homens brancos, florescia também uma avançada civilização, e que vastíssimos impulsos, de progresso e de cobiça, dirigiram ali a marcha das nações. De tais conhecimentos, nasceu por certo um primeiro sobressalto na alma japonesa, o qual foi o gérmen da sua subsequente evolução, preparando-se pouco a pouco o império para a estupendíssima metamorfose que se operou nos nossos dias, na constituição íntima do Estado, nas forças do país e nas aspirações do povo inteiro (ob. cit., pp. 70-77).





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