domingo, 19 de abril de 2015

Holocausto em Angola (i)

Escrito por Américo Cardoso Botelho








«A URSS, a Checoslováquia, a Jugoslávia e Cuba são os países do bloco leste que maior dinamismo irão mostrar em África durante os anos sessenta. Nestes estados comunistas, são montados serviços e organizações e formados especialistas para "trabalhar" os africanos. África é considerada zona "intermédia" ou "centro convulso". A URSS, Cuba e China desenrolarão em África esforços propagandísticos muito superiores aos dos países ocidentais, com o fim de neutralizar politicamente o continente, em relação ao diferendo Leste-Oeste, de conseguir adeptos nos governos constituídos ou colocar no poder grupos que lhes sejam ideologicamente favoráveis, ou que, no mínimo, sejam contrários aos Estados Unidos.

A estratégia externa cubana reside em exacerbar as contradições internas em países onde existam crises económicas, para assim provocar uma reacção repressiva, a fim de paralisar a sociedade e tornar viável a ascensão das vanguardas marxistas e pró-castristas, que depois aproximarão o país do bloco soviético.

Fidel Castro sobrestima as possibilidades internacionais para o desencadear de revoluções "à cubana". O fulcro da propaganda de Castro situa-se na exaltação do modelo cubano e na tomada do poder pela violência; além disso, procura convencer por todos os meios o Terceiro Mundo de que os EUA são a causa de todos os seus problemas. Este é o suporte teórico para a experiência do "foco" guerrilheiro e para a estratégia da subversão; o Congo, em África, o Vietname na Ásia, além, claro está, da própria Cuba, na América Latina, são os exemplos práticos em que assenta toda a retórica do sistema.





(...) Na sua propaganda, Cuba adopta as causas afro-asiáticas de maior aceitação: a descolonização, o anti-apartheid, a unidade africana, o anti-sionismo (primeiro velado, depois declarado), o direito da China a ser admitida na ONU, o apoio ao Vietcong, etc... No campo diplomático, cultivam-se as relações com uma quantidade de estados "moderados", além dos países "progressistas" afro-asiáticos: Ghana, Guiné, Mali, Egipto, Iraque, Síria, Tanzânia, Congo-Brazzaville, Daomé, Ceilão (Sri Lanka), Índia, Indonésia, Cambodja (Campucheia), Birmânia, Laos, Vietname do Norte.

(...) A inclinação e o interesse inicial dos soviéticos por Sékou Touré (mais do que por Nkrumah) deve-se à tendência teórica marxista evidenciada pelo líder guineense e à ausência de uma classe comercial profissional "pró-ocidental", contrariamente ao que acontece no Ghana. Também terá influído a desvinculação do exército da Guiné em relação à França, ao contrário do ganês, que mantinha estreitos laços com a Inglaterra. Por outro lado, durante a crise congolesa, Nkrumah desempenhara um papel nem sempre coincidente com as posições de Kruschev. No fim, Moscovo fracassaria, nas suas pressões para que Modibo Keïta, do Mali, e Kwame Nkrumah, do Ghana, institucionalizassem o "socialismo científico", através de um partido comunista.

(...) Kwame Nkrumah mantém centros de treino de guerrilheiros dos "movimentos de libertação" de toda a África Ocidental.

(...) A URSS, não obstante, encontrava-se muito mais activa que a China, dentro dos movimentos anti-portugueses, a partir de lugares como Ghana, Guiné, Congo Brazzaville, Tanganica e Uganda. A URSS mantinha os seus centros de instrução militar e apoiava politicamente tais movimentos.

O primeiro intento sério da URSS, respeitante às colónias portuguesas, seria a promoção da Frente Revolucionária para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas, criada na Guiné, em 1959, por intermédio do Embaixador soviético, Daniel Solod.














A URSS, no início dos anos sessenta, estimava que o ponto mais vulnerável da cadeia colonial de Lisboa era Angola, seguida pela Guiné Bissau. Depois dos soviéticos darem uma conferência em Moscovo, com o MPLA, em Dezembro de 1960, seria iniciada em Angola a violência dirigida pelo MPLA. A China, não obstante, não se decidia a entrar na questão com a UPA, de Holden Roberto, ou o MPLA de Mário Pinto de Andrade (velho militante do partido comunista português, com amplos vínculos dentro do partido comunista francês, tendo colaborado com o diário soviético PRAVDA). O MPLA, contava, na época, com vários militantes europeus e, sobre Agostinho Neto, um dos seus líderes, pesavam suspeitas de colaboração com os portugueses.

Decrescendo o poder militar do MPLA, em 1963, quando a OUA confirmou a UPA de Holden Roberto e Jonas Savimbi como representante da luta armada em Angola, a URSS perdeu a influência nos movimentos angolanos. O MPLA enfrentaria uma profunda divergência entre os grupos de Agostinho Neto e Lúcio Lara, apoiados na altura pelo Congo Brazzaville e o grupo de Viriato Cruz, o qual se uniria ao GRAE de Holden Roberto e receberia ajuda da China e da Argélia. Embora o MPLA continuasse a manter estreitos laços com Moscovo, ao mudar a sua sede de Brazzaville para a Zâmbia começou a ser cortejado pelo Embaixador chinês na Tanzânia, Ho Hing.

No GRAE, desenvolveu-se uma luta entre Holden Roberto e Jonas Savimbi, tendo culminado com a rotura do movimento. Em Dezembro de 1963, Holden Roberto entrevistava-se com o Marechal sino Chen Yi, em Nairobi, onde consegue a promessa chinesa de armamentos, enquanto Chou en Lai discutia com Ben Bella, nesse mesmo mês, a possibilidade de estabelecer bases de treinos na Argélia, para o MPLA, a UPA de Holden Roberto e o PAIGC de Amílcar Cabral.

O PAIGC recebeu da China a ajuda necessária para lançar as suas primeiras acções militares, nos princípios de 1963. Desde o início de 1960, membros do PAIGC eram enviados por Amílcar Cabral para receberem treino militar na China, Checoslováquia e Ghana.






Fidel Castro, Agostinho Neto e Sékou Touré.



O bureau político soviético, ficou inquieto, perante a campanha chinesa em África e Ásia. Mikail Suslov, alertou o resto dos dirigentes, numa notícia secreta, em 14 de Fevereiro de 1964, sobre as intenções sinas e a necessidade de se lhe prestar atenção. A partir desse momento, a URSS lançou-se numa ofensiva, com vista a ampliar as suas relações com os Estados africanos constituídos, como o Senegal, Quénia e Nigéria. Os soviéticos alargavam as pistas do aeroporto de Conakry, a fim de disporem de um ponto intermédio entre a URSS e Cuba. No final do ano (1964), a Guiné começou a reconsiderar a sua posição com respeito à URSS. Sékou Touré introduziria mudanças internas na organização do Partido Democrático da Guiné e corrigiu vários ministros demasiado "anti-soviéticos".

(...) A subversão na África, ao longo de sessenta, não pode ser considerada um elemento marginal, dentro da política externa de Havana. A pouca divulgação internacional da acção castrista em África leva a pensar (sobretudo após a sua invasão de Angola), que ao entrar nos anos sessenta Castro inaugura a sua política extra-americana independente. No continente americano, pensa-se erradamente que a exportação da revolução apenas tem como objectivo a América Latina.

Desde o seu início, a política africana é dirigida e supervisada por altas figuras da equipa castrista: "Che" Guevara, Osmany Cienfuegos, Manuel Piñeiro, Jorge (Papito) Sergera, Raul Castro e o próprio Fidel. Os meios, recursos, dinheiro, armas e homens, de forma aberta ou camuflada, canalizados para África, especialmente depois da crise dos mísseis, foram substanciais.

Che Guevara em Moscovo



Che Guevara, Agostinho Neto e membros do MPLA









A presença cubana em África, anterior à invasão de Angola, explica-se como conveniente para objectivos ideológicos e políticos, mas a presença de Cuba na década dos anos sessenta foi permanente em locais como a Guiné, Argélia e Congo Brazzaville. Sem ser tão institucionalizada como nos anos setenta, a década de sessenta não deixa de ter uma estratégia coerente, de onde os actos cubanos não são resultado de improvisações ou factos conjunturais. Castro está presente no conflito argelino-marroquino, na destruição do sultanato de Zanzíbar, ajuda as guerrilhas da UPC [União dos Povos dos Camarões], no Camarão e as PAI [Partido Africano da Independência], no Senegal; treina e apoia logisticamente o PAIGC da Guiné Portuguesa; oferece "guardas pretorianas" a presidentes africanos, como Sékou Touré e Massemba-Débat; apoia o modelo de "Che" Guevara no Congo Léopoldville e treina, financia e doutrina centenas de guerrilheiros africanos de várias origens, nas escolas de subversão.

Os últimos anos da década de sessenta são um período de reconsideração política, sobretudo na Guiné e na Argélia. Restabelecem-se os laços com a Argélia, mediante um acordo secreto que convém ao chefe da DGI [Direcção-Geral de Inteligência], Manuel Piñeiro e à chefia dos serviços secretos argelinos. No campo económico, fortalece-se os laços com Marrocos, o esforço canaliza-se até ao PAIGC, através de Amílcar Cabral, ao MPLA, à FRELIMO e à facção camaronesa de Woungly-Massaga. Realiza-se um esforço para explorar novamente o corno sul-africano, enquanto se incuba a sucessão na Eritreia e se colabora com a URSS (através da DGI), à volta dos acontecimentos do Biafra, na Nigéria.

O castrismo parece mais inclinado a considerar o apoio à guerrilha nas colónias britânicas (Rodésia, Nyasa), onde pode ser favorável a internacionalização do conflito, e forçar uma decisão favorável ao campo soviético. Os serviços secretos cubanos trabalham contra o Senegal, o Camarão, o Congo e as colónias portuguesas.

(...) A penetração e subversão castrista na África do Sul, aproximam-se de Nelson Mandela, líder do Congresso Nacional Africano (ANC) que em 1962, durante a sua estada no Ghana, pediu dinheiro, armamentos e facilidades para treino de militares. Esta petição foi recebida com agrado por Havana, mas o encarceramento de Mandela impossibilita pôr-se em prática um plano de violência armada na África do Sul, somado ao pouco respeito de Castro pelos líderes do ANC, como Albert Lutuli e Oliver Tambo.

O Partido Comunista sul-africano aproxima-se de Cuba e do bloco soviético, através do jornalista marxista inglês Idris Cox. Os meios africanistas cubanos, não obstante, mostram-se cautelosos.



Eduardo Mondlane e Che Guevara (14 de Fevereiro de 1965).



Em Moçambique, o bloco soviético faz eco dos comentários de Kwame Nkrumah, que acusam o presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, de estar ao serviço da CIA. Mesmo assim, o embaixador cubano na Tanzânia, Pablo Rivalta, apresenta a segunda figura da FRELIMO, Marcelino dos Santos, como um elemento de toda a confiança. Rivalta informa que os acampamentos de treinos guerrilheiros da FRELIMO, na Tanzânia, estão "contaminados" pela CIA através dos "corpos da paz". A mútua pendência entre Castro e a FRELIMO mantém-se até quase à independência moçambicana.

A FRELIMO, não obstante, continua a receber a ajuda da Tanzânia, Zâmbia e China, e de um outro "assessor" cubano. Nos seus campos de treino, A FRELIMO conta com a colaboração de militares chineses e tanzanianos. (Os castristas verificam como a FRELIMO, a mais poderosa organização nas terras ultramarinas portuguesas, se lhes escapa).

Castro joga a cartada do PAIGC, na Guiné-Bissau e Cabo Verde, contrabalançando com os chineses. No princípio da década de sessenta, verifica-se a presença de guerrilhas cubanas no PAIGC. Amílcar Cabral situa-se então no grupo moscovita e os serviços secretos cubanos começam a "trabalhá-lo". Centros de treino e vias de aprovisionamento são estabelecidos na Guiné. Para tal, Sékou Touré passa por cima das suas divergências com Castro, ao ponto da segurança cubana assegurar a sua guarda pessoal. Uma "ajuda técnica", na esfera agro-pecuária, é o pretexto escolhido para camuflar esta actividade.

(...) Durante todo o tempo da "desaparição" de Che Guevara, nos círculos relacionados com a problemática africana, soube-se que ele mesmo se estava a ocupar de todos os pormenores do esboço guerrilheiro do centro sul-africano: estudando materiais, estabelecendo contactos, supervisionando o treino dos guerrilheiros, organizando redes informativas, abastecimentos, incrementando a espionagem, etc.












A ideia é simples: Vietname na Ásia, o Che Guevara em África (apoiado pela Argélia, Ghana, Congo Brazzaville e Tanzânia, para derrubar os colonialismos inglês e português que ainda restavam, assim como os do regime rodesiano e sul-africano), enquanto Fidel Castro se ocupava da América Latina. Esperava-se assim, comprometer os Estados Unidos na zona sul-africana e na América Latina, além do Vietname, provocando uma grande confusão.

A ideia pretende desenvolver a primeira introdução real de guerrilha no Congo Léopoldville, com duas bases: o Congo Brazzaville e a região dos Lagos da Tanzânia. Depois de se instaurar em Léopoldville um governo do MNC [Movimento Nacional Congolês], com Gaston Sumialot e Christopher Gbenye à frente, tornar-se-ia fácil desferir golpes laterais, a partir de ambos os Congos, até Angola, e da Tanzânia sobre Moçambique. Esperava-se unir os dois Congos e constituir uma franja duma costa à outra (com ambos os Congos, Angola, Tanzânia e Moçambique), o que propiciaria o desmoronamento do sistema com um governo dos futuros guerrilheiros do Zimbabué. Depois disso, considerava-se que a África do Sul Ocidental (Namíbia) fosse uma conquista fácil.

A África do Sul e a Namíbia são os pontos chave de toda a estrutura. Especulava-se com duas alternativas: uma extensa luta guerrilheira na Namíbia e na África do Sul, ou a invasão da África do Sul com um exército africano, sob as ordens de Che Guevara, atacando a partir de diversos países fronteiriços. Desta maneira, por intermédio de Che, o castrismo esperava transformar África num elemento estável da sua política. Se, no decorrer da evolução do plano, verificasse a intervenção militar norte-americana, então implementar-se-ia a estratégia da confusão, com dois, três, vários Vietnames.

(...) O terrorismo sempre figurou na agenda de Castro, ainda que se tentem dificultar as evidências. Muitas das organizações que operaram nos anos sessenta obtiveram treino, bases e inclusive instrução cubana. O PLO, as Brigadas Vermelhas, os tupamaros, os montoneros, o comando Boudiaf e outras mais pequenas devem parte da sua existência à generosidade de Fidel Castro.





Amílcar Cabral (o 1.º à direita) e a delegação da Tricontinental, Havana, 1966.


A ligação de Havana com o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, chefe das Brigadas Vermelhas, tornou-se pública nos finais da década. Fidel Castro tinha contribuído com largas somas de dinheiro e tinha-o ajudado a construir uma rede de contactos na Europa. Feltrinelli travou relações pessoais com Che Guevara e com Fidel Castro e a sua editora publicaria a revista "Tricontinental", a voz internacional de Fidel Castro, financiada pelos seus serviços secretos. Com a autorização de Castro, Feltrinelli publicou em várias línguas os manuais: "Guerra de Guerrilha" de Che Guevara e "Guerrilha Urbana" de Carlos Marighella.

Castro ajudou a formar o comando terrorista do grupo palestino pró-soviético, Frente Popular para a Libertação da Palestina, de George Habash e cujo braço armado é conhecido como "Comando Boudiaf", que seria dirigido por Mohamed Boudiaf, argelino, ex-benbelista e amigo pessoal de Fidel Castro. Depois da misteriosa morte de Boudiaf, a embaixada de Cuba, em Paris, seria o eixo da posterior reorganização deste grupo, que viria a ter como chefe o lendário Ilich Ramírez Sánchez (Carlos, o Chacal).

Carlos tinha participado na conferência Tri-Continental de Havana, durante a qual recebeu um curso especial de comando na província de Matanzas e que compreendia: guerrilha urbana, armas automáticas, explosivos, sabotagem, cartografia, fotografia, falsificação, etc.

Dali, a DGI recomendou-o à KGB para efectuar este curso especial na URSS, Carlos recebeu em Cuba treino de contra-informação, após o que se incorporou no comando de Mohamed Boudiaf, na Europa.








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O governo inglês confirmaria a ligação da embaixada cubana em Londres com as actividades de Carlos, assunto que provocou a expulsão de um agente de serviços secretos cubanos que actuava sob cobertura diplomática. Por seu lado, André Mousset, Ministro do Interior de França, afirmara o envolvimento directo de Cuba nos planos terroristas de Carlos "o Chacal"; Mousset demonstraria as relações de pelo menos três diplomatas cubanos com Carlos em Paris.

"...após vários dias de investigação, o governo francês ordenou a expulsão de três diplomatas cubanos, sob acusação de que eram cúmplices de Carlos (o terrorista Ilich Ramírez Sánchez), e os serviços secretos cubanos não empreendem tais acções sem autorização da KGB..."

É a época em que Fidel Castro se entrega completamente à criação e fortalecimento de organizações terroristas, tais como as Brigadas Vermelhas, os tupamaros, os montoneros, o MIR chileno, os comandos palestinianos de George Habash, os grupos de comando no México, os mocheteros em Porto Rico, o movimento Weatherman, etc.

(...) A subida ao poder do coronel Khadafi, na Líbia, desperta a curiosidade e o interesse da URSS e de Cuba, que tentariam submetê-lo às suas posições. O líbio, ainda muçulmano fanático, de tendência indecifrável, concretiza o desafio petrolífero contra os países ocidentais que apoiam Israel e desencadeia uma vaga de subversão e terrorismo anti-sionista na área.

No ano de 1966, Raul Castro instalou-se em Hanói para discutir a concessão de ajuda militar. Cuba oferece treino à aviação e artilharia, assim como ajuda em trabalhos de contra-espionagem e interrogatórios. Cuba abre uma embaixada em território Vietcong, enquanto Raul Castro discute, com a Coreia do Norte, a possibilidade de oferta de treinos aos movimentos e guerrilhas de África e América Latina.










(...) Cuba não dispõe nos anos sessenta de uma política definida para o Médio Oriente, em parte pela frieza das suas relações com Nasser, e porque a URSS procedia com cautela antes da ligação de Yasser Arafat com a China. A partir do problema militar egípcio na "Guerra dos 6 dias" com Israel, em 1967, a influência, auxílio financeiro e material, treino militar e santuários de Nasser para os "movimentos de libertação" da África entram em declínio. Mesmo assim, a Liga Árabe, move-se para posições mais moderadas.

As pressões soviéticas para que Castro rompa com Israel materializam-se com a visita de Alexei Kosygin a Havana, em 1967, mas Cuba resiste a estas pressões, ainda que, por outro lado, Castro mantenha relações ocultas com a facção palestiniana pró-soviética e George Habash. Abu Iyad, o braço-direito mais próximo de Yasser Arafat, comentara que desde 1966, a OLP enviara militares para treinos em Cuba, e que os instrutores cubanos efectuaram treinos nos campos de manobra palestinianos. O diferendo Castro-Nasser tinha contribuído para que Havana mantivesse esta posição ambivalente com a OLP e Israel; enquanto a sua propaganda oficial apresentava Tel-Aviv como instrumento norte-americano, técnicos israelitas auxiliavam os planos citrícolas de Cuba. A velha guarda estalinista era evidentemente pró-nasserista e anti-Israel, enquanto os "neo-marxistas", as forças armadas, a juventude comunista e a população evidenciavam a sua preferência pelo "David" mesoriental.

Castro e Khadafi (além da URSS, Sudão e Egipto) fazem convergir desde o início a sua ajuda à Frente de Libertação Eritreia, promovendo a criação de um Estado independente da monarquia etíope. Castro, a URSS e o egípcio Nasser reconheciam o valor deste território, pelos seus portos (Assab e Massawa), que davam acesso ao Mar Vermelho. Esta posição inicial a favor da independência da Eritreia, causara transtornos políticos a Castro quando os seus exércitos entraram em acção, em 1978, a favor do etíope Mengistu Haile Mariam, decidido a acabar com as aspirações de independência da Eritreia.











A partir de 1969, o "akid" Khadafi lança uma severa campanha contra Fidel Castro, devido às suas relações com Israel e ao seu "falso não-alinhamento". Khadafi procura entre outras coisas afastar Fidel Castro como possível centro do não-alinhamento. Castro descobre então o reencontro cubano-argelino, que se vem concretizando desde a visita que o Chanceler e chefe dos serviços secretos de Boumédiène, Abdulaziz Bouteflika, efectuara em Havana em Novembro de 1968.

(...) O período que vai desde o descalabro guerrilheiro na Bolívia, em 1967, até à invasão de Angola, não é de inactividade ou pura reconstrução doméstica quanto a África. Além das missões militares na Serra Leoa, Guiné Equatorial, Somália, Argélia, Moçambique, assim como as do Yémen do Sul, Síria e Iraque, treinam-se, armam-se, financiam-se na Zâmbia, Benin, Congo Brazzaville, Guiné, Madagáscar, Mali, Líbia e Burundi. Reforçam-se as missões diplomáticas e serviços secretos em África e no Médio Oriente, estendendo-se ao Egipto, Tanzânia, Congo Brazzaville, Guiné, Argélia, Síria, Iraque, Yémen do Sul, etc. Castro mantém cursos de treinos subversivos e ajuda militar aos "movimentos de libertação" africanos.

(...) A invasão de Angola não significa um corte estratégico ou a introdução de um novo esquema, mas a culminação de um processo que se inicia simultaneamente em Cuba e na URSS, no final dos anos sessenta, com a consolidação de Brezhnev e a subida do grupo internacionalista e do complexo militar-industrial, o fortalecimento interno dos velhos marxistas em Cuba, assim como a introdução de esquemas sócio-económicos soviéticos. Angola encontra antecedentes na forma como a URSS e Cuba se movimentam no Yémen do Sul e na Somália, assim como na sua participação conjunta na Síria, em 1973.

A. Mikoyan, Fidel Castro, Nikita Khruschev e Leonid Brezhnev.




Na ordem ideológica, Castro criou as condições para que o seu próximo "internacionalismo" militar não provoque desavenças. Tomam-se medidas de controlo dos intelectuais e militantes do extinto movimento de 16 de Julho (inimigos da velha guarda estalinista cubana). Suprime-se a revista "Pensamento Crítico", de tendência anti-soviética, assim como a publicação das chamadas Obras Polémicas. Nas Universidades e escolas pré-Universitárias introduz-se o estudo do marxismo-leninismo e eliminam-se as disciplinas de filosofia e sociologia. No terreno laboral, dita-se a "isabelina" (Lei contra vagabundos) que permite encarcerar todo aquele que não se encontre a trabalhar. Legaliza-se a detenção "preventiva" dos indivíduos supostos opositores "potenciais" (a Lei do suspeito)».

Juan F. Benemelis («Castro, subversão e terrorismo em África»).


«As organizações comunistas de espionagem estão habitualmente envolvidas em duas espécies de actos terroristas. A primeira diz respeito a acções como raptos, assassínios e atentados bombistas contra destacados refugiados, exilados e fugitivos, e contra as suas organizações. Na enorme explosão que destruiu o edifício da Rádio Europa Livre em Munique, num Sábado, 21 de Fevereiro de 1981, ficaram feridos três empregados da secção checoslovaca, Marie Pudlová, Alan Antalic e Mr. Skutalek. Especulações sobre os motivos do atentado apontaram para os serviços de informações checoslovacos, mas os criminosos permaneceram ocultos e sem castigo.

A segunda categoria envolve o apoio directo ou indirecto a vários grupos terroristas, tal como Baader/Meinhof, na Alemanha Ocidental, as Brigadas Vermelhas italianas e o Exército Republicano Irlandês. Alguns desses grupos, como a Organização de Libertação da Palestina, são agora denominados "movimentos de libertação nacional" e recebem um apoio mais ou menos público por parte da Europa do Leste. Outros, como as Brigadas Vermelhas e o Exército Republicanos Irlandês, recebem ajudas sob a forma de armas, munições e treinos. Sem esta espécie de apoios, esses grupos seriam incapazes de funcionar.

(...) As mais eficientes medidas militares activas empreendidas pela espionagem soviética são provavelmente as actividades de apoio às "guerras nacionais de libertação" nos países em desenvolvimento. O colapso dos velhos sistemas coloniais depois da Segunda Guerra Mundial ofereceu aos soviéticos uma oportunidade única para preencherem o vazio deixado pela partida dos poderes coloniais. Algumas das antigas colónias britânicas, francesas e portuguesas, como o Vietname e Angola, ou juntaram-se directamente ao campo soviético como Estados marxistas-leninistas ou, como o Congo-Brazzaville, Guiné ou Egipto (este último durante quase quinze anos), tornaram-se seus íntimos associados. No hemisfério ocidental os soviéticos registaram grande êxito em Cuba, mas essa vitória foi seguida por mais de uma década de ausência de expansão soviética.






As revoltas em geral iniciam-se em climas de opressão política e injustiça económica. Os êxitos soviéticos na manipulação das guerras nacionais de libertação e na hábil exploração das aspirações de progresso económico, liberdade e justiça foram na maior parte dos casos resultado de erros de insensibilidades americanas. Quando os pobres e oprimidos ficam impregnados de ideais revolucionários e da determinação em derrotar as élites governantes, o diagnóstico oficial americano sugere mais munições e conselheiros americanos para lutar contra a rebelião. A ideia de que a esquerda radical pode ser facilmente derrotada por um apoio maciço à direita radical está fundamentalmente errada porque ofende maiorias de povos que pensam que são necessárias profundas modificações nos países em desenvolvimento, e porque empurra os desiludidos para os braços dos soviéticos.

O fornecimento de ajuda, pública ou clandestina, aos grupos de guerrilhas esquerdistas dá aos soviéticos uma chave mágica para a futura manipulação do país, quando terminar a guerra. O grato vencedor abre geralmente as portas à influência do multifacetado bloco soviético e acaba por se tornar tanto em alvo como em vítima do imperialismo soviético. Para fazer que essa influência seja politicamente mais aceitável e menos visível, Moscovo pode escolher um dos seus satélites - Cuba, a Alemanha do Leste ou a Checoslováquia - para enredar a vítima numa teia de intrigas políticas e de dependência militar da Europa do Leste, levando-a a gradualmente concordar com os desejos soviéticos.

O envolvimento do bloco soviético nas guerras de libertação nacional toma várias formas, a primeira das quais é o treino militar e a doutrina política de guerrilheiros, em particular dos indivíduos com potencial para virem a ser dirigentes ou comandantes. Para além do KGB, os serviços secretos cubanos, alemães do leste e checoslovacos desempenham papéis particularmente importantes na descoberta de indivíduos talentosos e com carisma, e com potencial de liderança. São abordados e eventualmente enviados para um dos países da Europa do Leste para posterior treino e educação política. Para evitar qualquer prejuízo para o futuro político desses indivíduos, a viagem pode ser organizada secretamente, com a ajuda de falsos documentos de viagem e por rotas clandestinas. Um guerrilheiro de El Salvador em viagem para a Checoslováquia pode por exemplo voar para a Áustria, onde se encontra com um funcionário dos serviços secretos checos que lhe troca o passaporte por um documento de viagem checoslovaco com os dados pessoais falsificados. Só então o indivíduo atravessa a fronteira do país comunista. Depois de várias semanas ou meses, abandona o país através das mesmas rotas secretas e o seu registo oficial permanece limpo. O treino de guerrilheiros não é um processo normalizado, um programa igual para todos, mas sim feito para reflectir as necessidades especiais de um grupo revolucionário. Os participantes familiarizam-se com armas e explosivos e aprendem medidas de segurança básicas contra a espionagem inimiga e a infiltração da polícia e técnicas de comunicações clandestinas. A doutrinação política é considerada como uma parte do treino, mas os soviéticos têm ultimamente mostrado uma considerável flexibilidade ao tolerarem várias doutrinas altamente nacionalistas e crenças religiosas.


Fornecer armas, meios de comunicação e outros materiais, bem como conselheiros para os grupos de guerrilhas é outra das formas de influência soviética. Os conselheiros da Alemanha do Leste ou de Cuba, teoricamente considerados especialistas "de fora", não envolvidos em infindáveis disputas entre as facções políticas locais, exercem um grande poder político. Os seus conselhos militares podem ter implicações de grande alcance, mesmo para as vidas de muitos guerrilheiros vulgares e seus comandantes, que podem ser manipulados para participarem em operações militares catastróficas quando demonstram "tendências políticas perigosas". Os conselheiros são em geral a fonte de valiosas informações. Os 5000 conselheiros militares soviéticos estacionados no Afeganistão antes da invasão de Dezembro de 1979 forneceram aos comandos da invasão russa muitas informações a respeito da moral das forças armadas afegãs, a sua localização, a lealdade para com os oficiais, etc.

De acordo com as estimativas do Governo dos Estados Unidos, em 1981 encontravam-se em Angola cerca de 1000 conselheiros soviéticos. Até aí, os soviéticos tinham sempre negado categoricamente qualquer presença militar em Angola, mesmo no papel de conselheiros. Porém, durante um ataque a Angola em 1981, o exército da África do Sul capturou o sargento Nikolai Fedorovich Petresov, um conselheiro soviético que participava na guerra de guerrilhas contra o regime da Namíbia, um antigo mandato administrado pela África do Sul. Durante semanas os soviéticos responderam apenas com o silêncio, mas em 1982 concordaram finalmente em trocar Petresov por vários agentes da Europa ocidental presos nos países do bloco soviético.

Se os resultados potenciais são prometedores e a aventura não parece ser demasiado arriscada do ponto de vista militar, os soviéticos podem até deslocar as suas tropas de combate. De acordo com dados reunidos pelo U. S. News and World Report em 1981, os países do bloco soviético mantinham forças militares (200 ou mais soldados ou conselheiros militares), nos seguintes países: Nicarágua (1000 cubanos); Afeganistão (85 000 russos); Cambodja (200 000  vietnamitas e 200 russos); Iraque (1065 russos); Laos (50 000 vietnamitas e 2000 russos); Iémen do Sul (1100 russos, 220 cubanos e 100 alemães orientais); Síria (2480 russos); Argélia (1015 russos e 250 alemães orientais); Angola (15 000 a 19 000 cubanos, 1000 russos e 1000 alemães orientais); Congo (400 a 800 cubanos e 20 alemães orientais); Etiópia (11 000 a 13 000 cubanos, 1000 russos e 300 alemães orientais); Líbia (1820 russos e 400 alemães orientais); Moçambique (600 alemães orientais e 525 russos).






Até meados da década de 70, os soviéticos apontaram os seus esforços para nações como Angola e a Etiópia, definidas pelos Estados Unidos como áreas fora da sua zona de interesses nacionais. Desde 1978, contudo, intensificaram os esforços clandestinos para estimular a violência armada e desestabilizar governos do hemisfério ocidental, em particular na Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Cuba jogou um papel importante não apenas na obtenção de fornecimentos de armas para os rebeldes da Nicarágua e El Salvador, mas também ajudando os rebeldes a lançarem uma campanha de relações públicas para ganharem simpatias tanto nos Estados Unidos como noutros países».

Ladislav Bittman («O KGB»).


«Américo Cardoso Botelho, vítima das atrocidades e arbitrariedades da máquina de guerra que sustentou o poder discricionário do MPLA, deixou-nos, sem dúvida, um testemunho imprescindível do genocídio e dos crimes de guerra e contra a humanidade perpetrados em Angola na sequência do que em Portugal estivera precisamente na sua origem: a revolução comunista de 1974. Porém, o autor, apesar da sua experiência dramática in loco, aparenta, no livro que nos deixou, não ter tido consciência da engenharia internacional que tornou, efectivamente, possível o descalabro e a desumanidade numa terra que era pertença incontornável de todos os que, pretos e brancos, constituíam, de permeio com suas faltas e imperfeições, um modelo de convivência plurirracial jamais visto em toda a África subsariana. Aliás, o sinal desse desconhecimento revela-se quando Américo Cardoso põe a esperança no facto de, alicerçado numa ampla relação de provas e testemunhos, almejar "adensar a urgência de perguntas por responsabilidades face ao direito internacional", ou ainda quando deposita a esperança de, perante a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade consignados na respectiva convenção da ONU, algo possa acontecer para, em matéria de investigação e acusação, ser finalmente feita justiça.

O autor mostra, assim, desconhecer até que ponto a própria ONU estivera igualmente por detrás dos acontecimentos que levaram ao ‘holocausto’ em Angola, de nada valendo, pois, a bandeira dos direitos humanos tão apregoada por essa mesma organização. De resto, e a título de exemplo alheio ao caso dos Portugueses, basta recordarmos o genocídio no Ruanda em 1994, saldado, entre 6 de Abril e 4 de Julho, em um milhão de seres humanos. Aliás, o universo ideológico de Américo Cardoso, não obstante os dados coligidos sobre algumas das forças estrangeiras que, de facto, invadiram, pilharam e destruíram Angola, é o que lhe permite recorrer, por vezes, a chavões consolidados pela revolução comunista internacional, tais como "os heróis da guerra contra o colonialismo português" e outras expressões não menos abonatórias no contexto afim.



Boutros-Ghali



[«According to investigative journalist Linda Melvern, Boutros-Ghali approved a secret $26 million arms sale to the government of Rwanda in 1990 when he was Egyptian Foreign Minister, the weapons stockpiled by the Hutu regime as part of the fairly public, long-term preparations for the subsequent genocide. He was serving as UN Secretary-General when the killings occurred 4 years later» (ver aqui)].





















Quanto ao historiador Carlos Pacheco, sobretudo propenso aos descaminhos conturbados e apocalípticos de Angola no seguimento da revolução comunista de 1974, convém dizer que muito do que alega a respeito dos Portugueses é pura loucura revolucionária. Em primeiro lugar, tal acontece porque Carlos Pacheco é, irrevogavelmente, um revolucionário, posto que, perante uma suposta e almejada "convergência do catolicismo com a revolução", traça-nos um cenário que se abaliza como justificador do uso da violência, da insurreição e do terror, tal como fora deveras levado a cabo, em 1961, a partir do Congo e no interior de Angola. Freire Antunes traça, bem a propósito, alguns dos incidentes característicos desse mesmo terror:

"Em 10 de Março, por exemplo, um jovem quadro da UPA, Manuel Bernardo Pedro, incitou uma multidão de 3000 negros, reunidos numa mata perto de Nova Caipemba. As suas instruções foram específicas: destruir plantações, casas, pontes, aeródromos, quebrar enfim o sistema vital dos brancos. Este apelo à razia pura e simples decorria da perspectiva tribalista dos seguidores de Holden Roberto.

(…) Na madrugada de 15 de Março, como se esperava em Washington, Bona, Lisboa e outras capitais, o Norte de Angola foi avassalado por uma onda de brutalidade. Grupos negros bakongos, empunhando catanas e canhangulos, armas rudimentares de fabrico nativo, lançaram um ataque generalizado às fazendas e povoações na zona de fronteira com o Congo, na Baixa do Cassange, até às cercanias de Carmona. A violência tribal disseminou-se indiscriminadamente, não poupando crianças e mulheres brancas, pelas plantações de café isoladas, as vias de transporte e os postos de abastecimento. Um escritor famoso calculou que 300 europeus foram assassinados na área de Nambuagongo, outros tantos na região de Dange-Quixete, e 200 mais a norte do distrito do Congo. Nos dias seguintes prolongaram-se os actos de fúria radical previstos pela UPA. Richard Beeston, do Daily Telegraph, o único repórter que viajou pelas áreas da violência depois de 15 de Março, contou a David Newsom, primeiro-secretário da embaixada americana em Londres: 'Durante uma acção aparentemente organizada, que começou em 15 de Março, 800 portugueses entre uma população total de 10 000 foram massacrados durante três dias'. Os ataques tinham um objectivo desertificador: a eliminação dos fundamentos materiais da comunidade branca.






Ver aqui


Muitos fazendeiros empreenderam a fuga do inferno, chegando a Luanda, e daí partindo alguns para Lisboa. Em 20 de Março, a Força Aérea tinha já evacuado do Norte mais de 3 500 pessoas, sobretudo mulheres e crianças. Um oficial do Exército testemunhou: 'A Luanda afluíam os refugiados do Norte, em estado físico e de espírito que favorecia o pânico e a ideia do êxodo para a metrópole… Nos muceques agitadíssimos, o clamar de ´'mata branco' enchia as noites de terror, escuras e chuvosas'. Mas outros colonos, como os habitantes de Carmona, dispuseram-se a ficar e a suster pela força das armas o que era seu pela força do trabalho. Richard Beeston: 'A seguir ao massacre, os brancos do Norte fizeram justiça pelas suas próprias mãos. A primeira reacção coube à PIDE (a polícia secreta portuguesa). O Governo organizou uma milícia armada de cidadãos. Só depois o Exército interveio'. (…) Por todo o Norte de Angola vulgarizaram-se as imagens apocalípticas do horror e da crueldade" (in Kennedy e Salazar. O leão e a raposa, Difusão Cultural, 1991, pp. 187-189).

Assim, pois, se vê como a investida terrorista no Norte de Angola não fora, evidentemente, fruto de uma rebelião das populações, mas, sim, o resultado de uma acção externa premeditada e calculada com vista à expulsão dos Portugueses de África com tudo o que isso implicava e, de facto, veio a implicar para as populações em termos de guerra, miséria, fome, genocídio, etc. Aliás, Carlos Pacheco também consigna a ideia do direito à insurreição tal como, no seu dizer, a encarava Robespierre, o "Ditador Sanguinário" que, como é sabido, mandara guilhotinar todos os seus opositores políticos, para, por fim, subir ele próprio ao patíbulo (in Angola, um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo, Nova Vega, 2014, p. 105). Depois, com este exemplo de 'humanismo revolucionário', Carlos Pacheco não se inibe de também inflacionar certas figuras do 'catolicismo progressista', nomeadamente o cónego Manuel Joaquim Mendes das Neves (1896-1966), "mestiço, natural da vila do Golungo-Alto e missionário secular da arquidiocese de Luanda, de quem os seus pares nativos da hierarquia da Igreja carinhosamente apelidavam de 'Lumumba'". Uma clara referência, portanto, a Patrice Lumumba, o fundador do Movimento Nacional Congolês (MNC), que, ao serviço da URSS, ensaiou no Congo a política de terra queimada que mais tarde seria igualmente consolidada em Angola. Enfim, tudo em nome dos "ventos de emancipação que varriam toda a África", e no alegado sentido de se salvaguardarem "os princípios do humanismo cristão e a perspectiva de que com Deus também é possível haver revolução para se repararem as injustiças do mundo".

De resto, não é por acaso que Carlos Pacheco tão zelosamente cita Slajov Zizek:

"A divina violência é justiça, o ponto de não-distinção entre justiça e vingança, no qual o 'povo' (a parte anónima da não-parte) impõe o seu terror e faz outras partes pagarem o preço - o Dia do Juízo Final pela longa história de opressão, exploração [e] sofrimento [...]" (idem, p. 112).









E daí que, perante tudo isto, não seja de estranhar que o já referido cónego Neves, na mobilização subversiva para o 4 de Fevereiro de 1961, providenciasse a um fazendeiro amigo que comprasse catanas para as distribuir pelos camponeses (idem, p. 124). Assim, uma vez mais, temos o tal 'humanismo cristão' que, por tal modo, quis pôr cobro às injustiças do mundo.

Por outro lado, também já não podiam faltar, da parte de Carlos Pacheco, as alusões vis e depreciativas do que designa pelas "virtudes pouco civilizatórias de Portugal em África". Desse modo, quer ele por força reduzir, sobretudo nesse capítulo, a História de Portugal ao "olhar dos historiadores africanos" por contraponto ao que alega ser o "ponto de vista de uma boa parte dos estudiosos portugueses" (idem, p. 254). Consequentemente, cozinha um prosaísmo erudito, panfletário e 'justicialista' com vista a dar dos colonizadores a pior imagem possível, a começar pelo estado calamitoso das possessões ultramarinas, os abusos e o vale-tudo, as ladroagens e os piores ultrajes contra os povos coloniais, as tropelias e as insolências de chefes ignóbeis e seus comparsas, a política nefasta de Lisboa controlada por grupos ineptos e corruptos, extorsões e humilhações, expoliação de propriedades, subornos e discriminação, para assim terminar na falsa quão descabelada "ideia de superioridade racial" dos Portugueses, que - imagine-se - teria justificado "a tragédia que desembocou no banho de sangue de 15 de Março de 1961", porquanto vinda na sequência de "processos históricos de opressão organizada" (idem, pp. 254-267).

Que ideia! O que realmente acontecera, como já vimos, foi o desenrolar de um processo revolucionário que já Oliveira Salazar previra e antecipara em 1949, a saber:

"O comunismo soviético, multiforme na sua identidade doutrinal, perfilha o nacionalismo na Ásia e o internacionalismo na Europa. Os vastos movimentos que no Extremo Oriente irrompem em altas labaredas podem atribuir-se a causas diversas, e certamente as têm na sua eclosão, mas encontram na Rússia, por sistema, simpatia, auxílio, protecção. Se ali triunfa, não tardará muito que deite o fogo à África" (in «O meu Depoimento», Discurso de S. Ex.ª o Presidente do Conselho, na Sessão Inaugural da II Conferência da União Nacional, no Porto, em 7 de Janeiro de 1949, Edição do Secretariado da Informação).





E, de resto, não fora apenas um processo revolucionário instigado pela União Soviética, mas também ironicamente jogado, tramado e comparticipado pelos Estados Unidos.

Seja como for, cai simplesmente por terra o que, Carlos Pacheco, designa por lusofobia, isto é, "o sentimento de rejeição do homem português enquanto tal, quer no último quartel do século XVIII, quer em épocas posteriores até ao aparecimento de movimentos genuinamente nacionalistas no século XX" (idem, p. 203). O fulcro da questão passa, portanto, por compreender o comunismo internacional e o respectivo foco de violência, destruição e genocídio levado aos quatro cantos do mundo, no âmbito do qual se inclui o Continente Africano em geral, e a África Portuguesa em particular. E quando falamos em violência, destruição e genocídio pensamos sobretudo - a par das razões que, em nome da verdade, levaram Carlos Pacheco a escrever uma carta aberta a Pepetela para averiguar do seu papel no 27 de Maio (idem, p. 78-95) - no apelo àquela 'divina violência' que Carlos Pacheco tanto procurou justificar e que, por ironia do destino, também dele fizera uma vítima entre as demais».

Miguel Bruno Duarte


«Caro Concidadão [Pepetela, antonomásia de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos],

A declaração que V. publicou em Novembro de 2005 a justificar o seu papel na tragédia de 27 de Maio de 1977 é um documento tão cheio de omissões e subterfúgios em relação aos factos que refere que eu não posso deixar de tomar uma posição crítica.

Ao protestar a sua inocência pelos horrores e extermínio generalizado de militantes do MPLA nesse período, V. afirma ter-se limitado a cumprir funções no seio de uma Comissão nomeada pelo Bureau Político, a qual tinha por tarefa [...] seleccionar entre os depoimentos dos detidos [...] os que seriam mais elucidativos para serem transmitidos pelos orgãos de informação. E, acto contínuo, deixa subentendido que qualquer outra responsabilidade que se lhe queira assacar, de participação na repressão, é uma acusação desprovida de verosimilhança, fruto unicamente de uma grande confusão com outras pessoas e entidades que funcionariam também no Ministério da Defesa em Luanda [onde se centralizaram as questões respeitantes ao 27 de Maio]. Ainda segundo a sua alegação, nunca tal trabalho se confundiu com o que ocorria e se decidia noutras esferas mais sensíveis, razão porque espera um dia que as instâncias superiores do MPLA venham em sua defesa e o ilibem de qualquer suspeita.



Pepetela









Repare, eu não estou aqui para o incriminar ou julgar por não ser esta a minha competência; somente me move o anseio de derramar luz sobre factos do passado de maneira a poder descrever e explicar a história com mais rigor. Ou seja, resgatar esse passado de forma apropriada. Se alguém tiver de julgar alguém, cabe às estruturas institucionais e aos orgãos de cidadania assumir semelhante responsabilidade. Se devo perdoá-lo pelo esquecimento - na esteira do que pregava o escritor argentino Jorge Luís Borges nos seus Fragmentos de um Evangelho Apócrifo -, sinceramente respondo que tal gesto me ultrapassa. Não por vingança ou por incapacidade de assumir o perdão numa dimensão pessoal, mas por deferência para com a sombra nua de milhares de desaparecidos ou por compromisso com os seus fragmentos de sangue que reclamam justiça.

(...) De todos os modos, sendo V. o símbolo de um «sistema que criou muitos homens culpados e impunes», como diria o escritor alemão Peter Weiss, só me resta confrontá-lo com algumas dúvidas suscitadas pela sua declaração na esperança de que V. venha um dia a esclarecer qual foi concretamente o seu desempenho institucional naqueles tempos negros de bárbarie, de terror.

Mas antes de prosseguir deixe-me fazer-lhe uma advertência. Não se iluda, ilustre concidadão, pensando que o MPLA por solidariedade ou por consideração à sua leal e desinteressada prestação de serviços à revolução o venha agora exonerar dos estigmas de que se queixa.

(...) Reconheço haver nos seus livros uma certa beleza estética, uma contemplação e uma construção aliciante de narrativas que tanto prazer e emoção despertam nos leitores. Apesar de tudo, um imenso abismo separa as suas acções políticas do discurso literário e da componente crítica plasmada nas suas obras e, precisamente, por mistérios que me escapam não consigo entender a sua rigidez e teimosia em se negar a reconhecer o que fez no 27 de Maio. Na verdade, é difícil acreditar que V. tenha agido involuntariamente, já que para isso seria necessário ter em conta duas situações, a saber: ou V. ignorou as circunstâncias concretas da acção - as quais desembocaram nas matanças -, ou foi coagido a tal. Se agiu por ignorância, então, como diria Aristóteles, tal "acção é dolorosa e provoca arrependimento". Mas se não foi este o caso, pode concluir-se que V. não ignora o que fez. Assim sendo, isto fará de si um homem injusto e, neste sentido, ainda de acordo com Aristóteles, V. "[...] não será apenas injusto mas será voluntariamente injusto"






Em todos estes anos teria preferido vê-lo doutra forma, não como um escriba sentado e submisso que sempre cortejou o príncipe e a sua corte; ou como alguém que sempre, e em todos os momentos, se acomodou aos servilismos culturais do MPLA e aos fetichismos do seu regime político; ou que sempre se calou diante das monstruosidades criminais e totalitárias de Agostinho Neto e do seu governo e sempre fingiu ignorar os abusos praticados contra a cidadania, o pensamento e a liberdade de expressão. Ao interpelá-lo agora, nutro a esperança de o ver um dia não conformado aos centros de Poder e às suas estratégias de domínio sobre toda a sociedade angolana, e sim um escriba de pé, liberto da passividade de outrora, liberto das grilhetas do Partido e pronto a colocar um ponto final no seu silêncio e a resgatar finalmente a "verticalidade do verbo" de que fala o poeta uruguaio Saúl Ibargoyen.

Não me interprete mal. Não estou a querer cingir o botão de dissidente na sua lapela nem a sugerir que o deva ser; o que proponho é que tenha o "hábito altamente incómodo" de falar a verdade [verdade sem jogos ou subterfúgios linguísticos] como declarava o novelista e intelectual russo Yevgeny Zamyatin, em vez de se contentar, pois, com gestos de autocontemplação e com os aplausos vindos da sua tribo política. Rompa as convenções, seja um intelectual livre, comprometa-se com a verdade [o amor da verdade naturalmente não o impede de tomar partido, como diria Camus], mas faça, em suma, o que tiver de fazer: deite por terra o discurso dominante que por desgraça amortalhou [e ainda amortalha] Angola com certezas e facciosismos. Afianço-lhe: muita gente, depois de ler o seu documento titubeante e tortuoso, ainda acredita na sua lucidez e espera da sua parte um gesto redentor...».

Carlos Pacheco («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).


«Quando saíram de Angola, os soldados portugueses deixaram as armas. Mas tiraram-lhes os percutores, de maneira que aquelas armas para nada serviam.

Carlos Pacheco, um antigo comando que, na altura, era professor, foi chamado à presença de Agostinho Neto. Ele e o português João de Almeida, membro do PCP, ficaram de ver das possibilidades de arranjar percutores para as armas. Pacheco foi mesmo requisitado ao Ministério da Educação, de maneira a que pudesse dedicar-se, a tempo inteiro, àquela importante tarefa.

Trabalhava em ligação com Eugénio Veríssimo da Costa (Nzaji), membro do Comité Central do MPLA e chefe da Segurança das FAPLA. Este recomendou-lhe insistentemente que nunca dissesse o que andava a fazer. O plano apenas era do conhecimento dele e do presidente. Mas mais ninguém, nem sequer os dirigentes da DISA, Ludi e Onambwé, deviam conhecer aquela tarefa.

Como não conseguiam dar andamento à tarefa, a dada altura, Carlos Pacheco deixou de ser chamado por Agostinho Neto. Apresentou-se, então, na sua escola, para retomar o trabalho docente. A Direcção da Escola disse-lhe:

- Não sabemos o que andou a fazer durante todo o tempo em que esteve ausente. De maneira que deixou de ser professor.

Bem insistiu no facto de não poder dizer o que andara a fazer e na circunstância de ter continuado a ser pago pelo Ministério da Educação, tendo sido requisitado pelo primeiro-ministro. Disseram-lhe que nada podiam fazer e que devia ir ter com as estruturas do MPLA.

Dirigiu-se ao primeiro-ministro Lopo do Nascimento, que tratara do problema com Neto. Mas este nada fez.

Apresentou-se, então, no DOM Regional, estrutura de direcção do MPLA na capital. Foi recebido pelo vice-director, Beto Van Dunem, que também queria saber o que andara a fazer. Explicou que não podia dizer e que, se queriam saber, deviam perguntar ao presidente da República.



Em Setembro de 1976, por se negar a dizer o que tinha andado a fazer, foi suspenso, por tempo indeterminado, pelo DOM Regional, tanto da militância do MPLA como da actividade profissional.

E três semanas depois, no dia 21 de Outubro de 1976, foi preso e levado para a DISA. Ali se encontrou com João de Almeida, que também fora detido e ia ser expulso de Angola. Só que Carlos Pacheco não podia ser expulso, por ser angolano, facto que os que o tinham prendido não sabiam.

Permaneceu durante toda a noite no refeitório. Pelas 6 da manhã, vê entrar pela porta Eugénio Veríssimo da Costa (Nzaji), o dirigente do MPLA que Neto destacara para acompanhar a sua tarefa. Perguntou-lhe o que fazia ali. Respondeu que estava preso.

- Preso? A mando de quem?

Respondeu que de Ludi Kissasunda, o director da DISA. O rosto de Nzaji alterou-se.

- Isto cheira-me mal. Vou tirar tudo a limpo com o Lundi.

Saiu, tendo voltado daí a um longo bocado.

- Pacheco, o teu problema está solucionado. Podes sair.

Pacheco perguntou-lhe o motivo que levara à sua detenção. Mas Nzaji limitou-se a responder:

- Por agora, não vou dizer mais nada.

Aparentemente, Agostinho Neto era manobrado e controlado em quase tudo. E este "quase" preocupava os manobradores. Não sabiam o que se fazia naquele caso e desconfiavam do significado daquela ligação. O presidente parecia estar a escapar-lhes. De modo que se terão inquietado.

Eugénio Veríssimo da Costa (Nzaji), um dos personagens desta história, aparecerá morto numa ambulância, no dia 27 de Maio de 1977. Teria sido liquidado pelos fraccionistas».

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus («Purga em Angola. O 27 de Maio de 1977»).





HOLOCAUSTO em ANGOLA


A grande "invasão"


Fala este livro de um drama. Do meu - talvez o mais pequeno de todos. Do de todos esses que conheceram o inferno prisional angolano nos anos que se seguiram à independência, no contexto de uma guerra que encarcerou o povo angolano em fronteiras de violência sem medida.  A máquina de guerra sustentou o poder do MPLA, perpetuou uma luta fratricida e enredou na repressão o quotidiano de muitos, angolanos e estrangeiros, fazendo da jovem nação campo de refugiados, deslocados e orfãos. Falo de holocausto, não por desconsiderar aquele que a história contemporânea da Europa viveu - o holocausto por antonomásia -, mas porque a desumanidade tamanha desse não pode ocultar outros holocaustos que o curso dos anos somou à história de muitos povos. Dessa nação angolana falo eu aqui, nação a fazer-se cujas dores não eram de parto mas de luto por tantos filhos supliciados e exterminados com a ajuda de exércitos estrangeiros.

Cubanos em Angola


Segundo muitos testemunhos, a "grande invasão" - aquela que vinha suportar a tirania do MPLA - tinha começado antes da independência, oficializada e celebrada no dia 11 de Novembro de 1975 (1). Assim, ainda antes da independência, estava em marcha a máquina que viria a sustentar a hegemonia repressiva do MPLA (2), mesmo se nos acordos mediados por Portugal se tinha reconhecido que FNLA, MPLA e UNITA se constituíam como os únicos e legítimos representantes do povo angolano.

Os portos de Novo Redondo e de Porto Amboim conheceram uma excepcional actividade aquando do desembarque de um enorme contingente de armamento vário e munições. Grande parte do material vinha em barcos soviéticos e jugoslavos, mas, em regra, não acostavam nos portos, o material era antes transferido para baleeiras que se dedicavam à actividade piscatória. "Mobilização" era a palavra de ordem, naquelas paragens. Trabalhadores dos mais diversos ramos, contratados nas fazendas, assalariados para a adubação e para as colheitas, funcionários de diversos serviços, todos foram mobilizados para apoiar esta importação de guerra. Os contingentes militares cubanos circulavam já, como donos da situação, nos veículos que os portugueses haviam deixado pelo caminho. As elites militares cubanas apareciam para orientar o destino de todo o armamento.

A obra de Juan F. Benemelis - Castro, subversão e terrorismo em África (Europress, 1986) - permanece como um dos testemunhos mais fortes dos bastidores da política cubana para a África. Juan Benemelis, ex-Director do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Havana para as relações com a África, esteve em Angola e na Tanzânia - desempenhou, mesmo, um papel de responsabilidade no golpe de Zanzibar. Nos anos setenta, iniciou um percurso de dissidência que o conduziu à busca de asilo político nos EUA (3). As informações que deixou registadas sobre a operação militar cubana são preciosas:

Na noite de Setembro o barco cubano Vietname Heróico chega a Pointe Noire, transportando 20 carros blindados, 30 camiões e 120 soldados cubanos, sendo aí tudo e todos transferidos para o navio angolano Lunda-Luanda, com destino a Caxito, onde se espera uma ofensiva. Em princípios de Outubro, chega outro contingente de Castro para as forças armadas do MPLA, em barcos cubanos [...]. Nas noites de 16, 17 e 18 de Outubro, dois transportes soviéticos AN-12 que, juntamente com três barcos cubanos, serão utilizados na ponte aero-naval entre Pointe Noire e Angola. Simultaneamente, pelo Lobito, chegam mais de 500 soldados cubanos com seis tanques. Uma semana depois desembarca outro contingente de 750 soldados de Fidel e grande quantidade de material de guerra, desta vez em plena luz do dia [...]. A 5 de Novembro, dia em que as tropas especiais de Castro são enviadas por via aérea para Luanda, o diário PRAVDA anunciava a decisão soviética por uma solução armada em Angola e, consequentemente, a ruptura com os acordos de Alvor que estipulavam a independência negociada [...]. Numa reunião entre Castro e Henrique dos Santos do MPLA, realizada em Havana, é decidido declarar a independência unilateral que conceda a cobertura jurídico-política à escalada militar soviético-cubana (4).







Segundo as informações apontadas por Benemelis, nos dia 11 de Novembro, dia da declaração da independência por parte do MPLA, estavam já em Angola mais de 7000 soldados cubanos, presença que, no âmbito da «Operação Carlota» atingiu, em finais de Dezembro, o número de 22000 e, depois, em Março, a soma de 37000 militares, com o arsenal militar correspondente - em Fevereiro de 1976, o apoio logístico soviético ultrapassa os 400 milhões de dólares, e o número de deslocados e refugiados, em consequência da guerra, ronda os 750000 (5). Eu próprio pude verificar, quando cheguei a Angola, no dia 9 de Novembro de 1975, ainda antes da cerimónia da independência, que tinha já desembarcado um enorme contingente de cubanos no porto de Luanda (6). Tropas e oficiais cubanos estavam agora instalados, com armas e bagagens, no Hotel Presidente. Tratava-se de um edifício magnífico, situado em lugar privilegiado, junto ao porto comercial de Luanda, o qual estava a ser preparado para uma inauguração com pompa e circunstância. Pertencia a alguém cuja terra natal se avizinhava da minha, José Cristovão, pessoa empreendedora que eu admirava já pelo que tinha realizado em Portugal (7).

Era uma unidade hoteleira de última geração e a sua ocupação pelos militares cubanos deitava por terra o futuro do empreendimento. Depois da ocupação permaneceram as paredes e pouco mais - instalações sanitárias, louças, mobiliário, aparelhos diversos, torneiras, tudo estava destruído ou desaparecido. Foi mais tarde reconstruído por uma empresa brasileira (SISAL) e explorado pela cadeia Meridien. Só nessa altura os angolanos puderam entrar naquele empreendimento hoteleiro. Após longas negociações, José Cristovão conseguiu reaver o hotel, mas à boleia teve de aceitar como sócio o Estado partidocrático angolano, com a cota de 20%, sem qualquer indemnização pelos prejuízos anteriores.

Na obra referida, Juan Benemelis sublinha que, desde o seu planeamento, toda a campanha angolana estará nas mãos de militares cubanos de carreira, sobretudo daqueles que estudaram na URSS:

Se a operação Carlota se torna um verdadeiro teatro de operações e da experiência dos comandos militares cubanos no que respeita à sua capacidade operacional, sob o ponto de vista interno serve de trampolim a Raul Castro [...]. Para o seu plano de maior envergadura em Angola, Castro conta com o seu ministro das Forças Armadas, Raul Castro, o major general Senen Casas Regueiro, chefe do EM, o general Julio Casas Regueiro, vice-primeiro-ministro das Forças Armadas e chefe da logística, os generais Raul Diaz Arguelles, Arnaldo Ochoa, Raul Menendez Tomassevich, Leopoldo Cintras Frias, Abelardo Ibarra (Furry), Jose Ramon Fernandez (el gallego), Armando Fleites Ramirez, Lopes Cuba, etc (8).









Benemelis, conhecedor da situação angolana, refere que a unidade 3051, do exército cubano, desembarcou em Luanda, a 19 de Setembro, transportada pelo navio almirante Sierra Maestra (9). Mesmo sem estarem ainda recompostos da viagem marítima, os militares foram colocados de imediato atrás dos tanques T-34 e T-35 que deviam reforçar as defesas da capital. A infantaria, com a  mesma urgência, começou a cavar trincheiras em redor da cidade. Tratava-se de preparar uma acção que visava a FNLA e os seus apoiantes. Foi assim que Quifandongo conheceu a morte de tantos angolanos sob o fogo de um exército estrangeiro. Aí, uma multidão de simpatizantes da FNLA pereceu sob a violência de projécteis incendiários. Os tanques disparavam projécteis de fragmentação despedaçando os corpos. Parte daquela multidão procurou a fuga, correndo no sentido inverso aos disparos. Mas os mísseis de 122 mm perseguiam as suas vítimas até uma distância de 20 quilómetros, com o auxílio de aviões de reconhecimento - não raro, os MiG 21 desciam em voo picado participando no morticínio.

Estava em curso uma perigosa concentração de homens e equipamento cubano-soviético tendo como alvo a Namíbia e Pretória. O exército de 50.000 homens de Fidel transformar-se-ia na maior força militar extra-continental. A tese de Benemelis é clara: a expansão militar de Cuba no continente africano era uma estratégia indispensável para a sua sobrevivência, uma vez que permitia contornar algumas dificuldades que decorriam da proximidade adversa dos EUA. Benemelis descreve este desígnio geopolítico da seguinte forma: Havana fornece os soldados; os soviéticos os meios logísticos; a República Democrática Alemã, o comando. O seu testemunho dá conta da presença de 40.000 soldados estacionados em Angola e refere, sem equívocos, o seu papel nos processos de limpeza política em favor do MPLA, com lugar cativo nas execuções sumárias. Como sublinha Benemelis, o fuzilamento foi, para muitos, uma morte «benigna», uma vez que a execução tomava formas de desumanidade difícil de conceber - como o caso dos que, segundo a sua narrativa, foram lançados para a morte de um helicóptero, em pleno voo.

É claro que Cuba levou, também, consigo as cicatrizes da guerra. Segundo dados que circularam nos media, estima-se que morreram cerca de 2.289 militares cubanos e que muitos milhares ficaram feridos durante essa intervenção que levou para Angola 377.033 soldados e 56.622 oficiais, para apoiar o poder de Luanda (cf. Público, 25-02.02).


A descida ao inferno angolano

Circunstâncias (...) conduziram-me às prisões angolanas, numa altura em que estava profissionalmente ligado aos destinos da Diamang. Aí conheci e recolhi as narrativas dos que experimentavam na carne e no espírito a violência de uma hegemonia partidocrática sustentada pela violação constante dos mais elementares direitos, num Estado sem direito. Aí me inteirei das dimensões tentaculares do poder do MPLA, poder que era uma ameaça até para os angolanos que viviam fora do território angolano (10).


Perpectivas sobre um dos bimotores da Diamang.


O período em que estive na prisão coincidiu com um dos mais violentos na história da independência da nação angolana. Recentemente, o historiador Carlos Pacheco referia-se com justeza a esse tempo de brutalidades:

Nenhum militante do MPLA, supostamente tido como opositor a Agostinho Neto, escapou a esta e a outras crueldades das forças militares e de segurança. Caso da DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola, cujo director era o comandante Ludy Kissassunda) que transformou as prisões e os campos de concentração em verdadeiros infernos e onde, não raro, se espancavam os reclusos nas celas e nos pátios à vista de toda a gente. Chegando mesmo a matar-se à queima-roupa. Havia agentes da segurança que, com o maior despudor, se vangloriavam perante os presos, no decorrer dos interrogatórios, feitos debaixo das maiores brutalidades, que se em Cuba se tinham fuzilado 15 000 vermes (sic), em Angola podiam-se fuzilar muitos mais (11).

As afirmações sublinhadas, ouviu-as o próprio historiador da boca dos gentes Getoeira e João Baião, durante um interrogatório de cerca de duas horas, no presídio de São Paulo, em Luanda, na tarde do dia 31 de Maio de 1977. Segundo o testemunho de Carlos Pacheco, os verdugos colocaram várias vezes um fuzil de fabrico russo em cima da mesa, alegando que estavam ali para fazer "justiça sumária", segundo a vontade expressa de Agostinho Neto. E o historiador continua:

Durante três anos mantiveram-se milhares de jovens nas piores condições possíveis, em estado de maus-tratos. A penitenciária de São Paulo (Em Luanda), por exemplo, abarrotava de presos políticos incursos em vários processos: 27 de Maio, Revolta Activa (à Revolta activa pertencia a fina-flor dissidente do MPLA), OCA (Organização Comunista de Angola), CAC'S (Comités Amílcar Cabral), e assim por diante (12).

Os odp's participavam nas barreiras de controlo e, como tinham um grande conhecimento do terreno, eram muito eficazes. Às vezes "demasiado" eficazes, como daquela vez em que o carro de um diplomata da Roménia, por não ter parado num desses controlos, numa rua de Luanda, foi atingido, de tal forma que não sobreviveu ao ataque. Eram também eles que se encarregavam de hastear, de manhã, e recolher, à noite, a bandeira do MPLA em todo o território controlado por esta força política. Este sistema de vigilância, implementado entre 1975 e 1991, tornou todos os angolanos reféns do MPLA, no território angolano. Esta limitação drástica da liberdade de circulação estava ao serviço do autoritarismo partidário e, não raro, serviu arbitrariedades de todo o tamanho. Enquanto estive no Dundo, ao serviço da Diamang, precisei de um salvo-conduto na área da companhia.




Durante os anos em que permaneci dentro dos muros das prisões angolanas, de 1977 a 1980, aproveitei toda a margem de manobra para fazer dessa estada um reservatório de memórias. Tirando alguns períodos de repressão mais musculada, consegui alguma liberdade de circulação dentro da prisão - eu era para grande parte dos presos e carcereiros um cota inofensivo de quem poderiam obter algum tipo de ajuda. Um problema inicial se colocava: como registar a informação. O leitor saberá que o universo prisional é um antro de tabaco. Os invólucros dos maços de tabaco que todos deitavam fora tornaram-se o pergaminho da minha memória, permitindo a anotação de tudo o que ouvia e conversava com os companheiros de destino, num código por mim forjado, a partir da minha já remota experiência militar (Departamento de Cifra do Quartel General do Comando Militar dos Açores). Apontava grande parte do que ouvia e via quando estava só - os períodos de recreio em que os presos viam televisão faziam parte do conjunto de situações privilegiadas.

O problema maior era a saída da prisão. Como sempre, estes regimes de violência arbitrária são também alfobres de corrupção. Assim, segundo expedientes que só conheci depois de sair de Angola, aqueles que me davam apoio faziam-me chegar à prisão malas da TAP com comida, roupa, sapatos e medicamentos - com as malas vinham muitos outros produtos pedidos, que eu nem chegava a ver, para satisfazer as autoridades que favoreciam a sua entrada. Como entravam, também saíam. Dentro desses sacos vinha ainda uma folha de cartão que lhes dava forma. Esse cartão foi o meu veículo de transporte e comunicação. Ele era constituído por inúmeras folhas prensadas que eu separava cuidadosamente. Depois voltava a juntá-las, mas agora com os meus manuscritos codificados, no interior delas. A operação seguinte consistia em voltar a dar à folha de cartão o seu aspecto original. Tudo era recomposto com o auxílio de um pouco de cola e do peso do meu próprio corpo (até as capas de uma Bíblia foram, a certa altura, um veículo insuspeito). Quanto aos sapatos, o procedimento era similar. Descoladas as forras, enchimentos e solas, aí eram escondidos muitos apontamentos cifrados. Seguiam um destino em tudo semelhante às malas. Os sapatos conheceram, no entanto, uma ajuda suplementar, a dos zairenses. Estes eram a mão-de-obra usada na prisão para a distribuição da comida e outros afazeres. Ofereci-lhes muitas vezes roupa e sapatos. Muitos deles levavam-nos calçados para o Zaire, com material escondido, na altura da sua libertação (quando fui posto em liberdade, viajei de Lisboa a Kinshasa para recuperar toda essa informação). Assim, durante cerca de três anos e meio, emigraram da prisão uns quatro mil apontamentos, narrativas do quotidiano, desabafos, pequenas histórias de vidas, denúncias, um mar de observações e conversas que preencheu os dias do meu degredo.

Quando conheci de novo a liberdade, a minha primeira missão foi descodificar todos aqueles apontamentos, pois havia o risco de eu perder a memória de muitos dos pormenores que eram essenciais para a interpretação daqueles fragmentos. Foram oito meses de trabalho diário, realizado em Lisboa e Paris. O resultado foi uma vasta documentação de recolha oral que fechei no cofre de um banco. Demorei vários anos para ganhar a coragem e a disponibilidade necessárias para transformar em livro a memória dessa experiência. O trabalho era gigantesco. Acabei por escolher dentro dessas notas um determinado percurso. O que aqui se apresenta corresponde, assim, a menos de metade dessas anotações.

Super Hércules C130 da Pacific Western Airlines (Canadá). O autor, com um dos comandantes dos Hércules canadianos, no aeródromo da Diamang, no Dundo. 


São, portanto, páginas de memórias. As minhas, feitas dos rostos e das palavras dos que me confiaram os seus medos e a sua coragem, as suas histórias vividas e contadas. Por isso, também as deles, que aqui são honradas como se de mim fizessem parte, contando o que de mais sagrado estimo.

A memória dessas noites em que a violência abria as portas de ferro das celas sobrelotadas de gente e daquele cheiro dos dejectos humanos acumulados. O chamamento dos nomes, os berros e pontapés, os passos de todos esses a caminho da pior tortura - com vista à extorsão de informações ou à assinatura de autos forjados - ou votados ao suplício mortal. As vozes de todos esses - uns mais contidos, outros mais impertinentes -, de vinte e sente nacionalidades, de tez e línguas diversas, alguns deles empurrados para a loucura. O choro dos que iam para a morte e o alívio dos que descobriam que o nome chamado não era o seu.

Entre essas vozes, jovens estudantes na militante procura da pátria almejada, militância não alinhada, carregando o pecado da discordância e, por isso, enclausurada entre os muros do inferno prisional angolano. Outros, presos por tão pouco: a cobiça de uma casa, um carro, um frigorífico. Os portugueses, porque alguém se queria apropriar dos seus bens (alguns trouxeram, em troca, balas no corpo), sem um mínimo de respeito pelos procedimentos diplomáticos (o mesmo desrespeito pela comunidade internacional se descobriu em alguns fóruns internacionais como a OUA e a ONU, onde foram algumas vezes solicitadas explicações aos poderes do MPLA.

A memória dos Comissários Provinciais de Malange e Benguela, que carregaram para a ambulância, que os levou para o destino do fuzilamento, a pá e a picareta com que haviam de cavar a sepultura. Dos 150.000 quiocos que ficaram sem médico durante mais de um ano depois de as forças do MPLA terem encarcerado arbitrariamente um dos médicos da Diamang. Dos presos seleccionados para o julgamento popular de Luanda, em 1975, condenados antecipadamente ao fuzilamento, mortos aos bocados perante uma multidão de dez mil pessoas transportadas para um estádio de futebol.

A memória de narrativas inimagináveis, como a de um rapto realizado em Kinshasa, patrocinado pelas forças do MPLA, aproveitando uma viagem oficial do Presidente Agostinho Neto; como a dos militares presos que foram transportados nos Boeing 737 da TAAG, amarrados ao chão do avião, cujos bancos tinham sido retirados; como a daquele musseque de Luanda, Sambizamba, que conheceu depois do 27 de Maio (...) acções bárbaras de demolição - visando particularmente os tidos por participar no golpe -, onde ficaram soterradas mulheres e crianças; ou ainda como aquelas narrativas que se referiam à deslocação de tantos adolescentes para Cuba para instituições de educação que tinham a missão de os tornar pontas-de-lança dos planos de sovietização à escala internacional. Tenha-se em conta que o imperialismo soviético se baseava no credo leninista-trotskista da «revolução permanente». Nesse quadro ideológico, o caminho para a vitória sobre o capitalismo, desbravado por revoluções internas abertas, necessitava de agentes especializados (13).

Um Hércules canadiano numa deslocação aos Camarões (o autor com a tripulação).



Fenda da Tundavala






A memória dos que habitaram os gulags angolanos, a concentração da vergonha, a terra que engoliu tanto sangue que não pôde ainda ser reclamado. Entre eles, esses campos de morte: Moxico, São Nicolau (Bentiaba), Dundo (Canda, Lunda Norte), SAPU (Luanda), Kibala (Cuanza Sul), Huambo, Damba (Malange), Liangongo, Capolo (Bié), Cavaco, Peu-peu. Muitas das vítimas desta engrenagem de destruição são angolanos cujo paradeiro continua desconhecido - alguns despejados no famoso precipício de Tundavala. Com o desenrolar da guerra as estruturas de registo da população herdadas do tempo colonial foram sendo destruídas, e os novos dispositivos eram muito frágeis e sujeitos à corrupção fácil. Assim se tornou impossível ter dados fidedignos sobre a população angolana, dificuldade acrescida pelas deslocações populacionais constantes, desestruturadoras das famílias, forçadas pela violência da guerra. A situação facilitava a perpetuação das arbitrariedades e o extermínio fácil. Ainda hoje é difícil apurar com segurança todos os números do holocausto angolano. Com o desenrolar da guerra fratricida, várias zonas do país ficaram sem controlo administrativo do Estado. Por isso, muitos têm agora dificuldade em provar que são cidadãos angolanos.

A memória de todos aqueles sobre os quais se abateram os desígnios de limpeza política do MPLA depois da falhada intentona de 27 de Maio de 1977. Os torturados do Ministério da Defesa que alimentaram as filas de condenados e as valas de corpos fuzilados, tráfego protegido pelo recolher nocturno e pelas ameaças dirigidas aos coveiros e a todos os que eram fretados para esse exercício de limpeza rápida. O cemitério de Mulemba e a barra do Cuanza, entre outros lugares de morte, clamam pela reposição da justiça violada sistematicamente nessas noites que se seguiram ao 27 de Maio.


Crimes de guerra, crimes contra a humanidade

Quando iniciei a redacção deste livro tinha bem presente a convicção de que esta ampla relação de factos e testemunhos pudesse adensar a urgência de perguntar por responsabilidades face ao direito internacional. A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, de acordo com a respectiva convenção da ONU, estava no meu horizonte, como estava a jurisprudência de Nuremberga (14). Não é minha missão, nem competência, traçar os quadros de classificação dos inúmeros crimes de que este livro dá testemunho. A outros deverá competir responder à premência dessa obrigação. Mas não tenho dúvidas de que um tribunal internacional encontrará, entre estes factos, matéria de investigação e acusação: execuções sumárias, torturas, prisões prolongadas sem acusação formal, campos de concentração, condições prisionais inumanas, abusos sexuais, o desaparecimento sem rasto de opositores ao regime de Luanda, negação dos devidos direitos aos cidadãos estrangeiros, uso abusivo de barreiras de controlo policial, destruição e pilhagem, bombardeamentos indiscriminados, entre outras matérias. É hoje insuportável pensar que muitos dos responsáveis por crimes tão graves possam viver descansados, uns protegidos pela imunidade, outros ainda com as rédeas do poder nas mãos. É tempo de a justiça responder a tanta impunidade.

À entrada (fachada) das Nações Unidas (Nova Iorque).


O historiador Carlos Pacheco conta-se entre os poucos que persistem em não deixar morrer a memória desse genocídio:

Este combate em defesa da memória do 27 de Maio, decerto partilhado por milhares de vozes silenciosas, não é senão um combate pela verdade e defesa dos direitos humanos contra as manifestações do regime de Luanda que se obstina em fazer crer a todo o mundo ter como estratégia e determinação o aprofundamento da paz e reconciliação nacional. Afinal, que paz e reconciliação contra o seu povo? Quando milhares de angolanos trucidados pela máquina de terror do Estado no consulado de Agostinho Neto, e até hoje desaparecidos, continuam ignominiosamente sepultados no pó do esquecimento e votados à indiferença dos poderes públicos [...] O facto de os antigos assassinos da DISA (polícia política), responsáveis por torturas e matanças no processo de 27 de Maio, se passearem pelas ruas de Luanda e outras cidades cruzando-se com as suas vítimas, e até cumprimentando-as (alguns estão em postos de direcção da administração do Estado ou no Parlamento), não significa que a sociedade se tenha apaziguado consigo mesma e aceite este estado de coisas. A impunidade destes indivíduos, que o poder político defendeu ou ainda defende, não é tanto o que ofende os cidadãos, mas o não se dar aos desaparecidos uma sepultura real ou simbólica, fazendo-lhes justiça [...] Então que fazer? Para já, encorajar a constituição de uma Comissão de Investigação das Ossadas [...]. A ninguém oferece dúvidas que este trabalho de busca e identificação das caveiras e outros ossos vai demorar largos anos e será fatalmente atravessado por inúmeros acidentes de ordem técnica. Senão mesmo de ordem política. Ainda assim, vale a pena o esforço grandioso por meio do qual a incipiente República angolana se poderá ressarcir das objecções e nódoas que a cobrem. A coroar esta política contra o esquecimento, proponho que se crie o Campo dos Mártires do 27 de Maio, no qual se deverá erguer um mausoléu com os ossos da vítimas (15).

Os acontecimentos relacionados com a revolta do 27 de Maio constituem, em particular, uma zona crítica na memória dos angolanos. Só a justiça poderá exorcizar esses fantasmas. "O problema é devolver a memória aos desaparecidos", diz Carlos Pacheco, "muitos salvaram-se, mas a maioria desapareceu, não se sabe onde estão essas pessoas, onde estão os seus restos mortais" (16). A situação é ainda mais delicada pelo facto de esses acontecimentos envolverem, de um modo diversificado, figuras que hoje são consideradas emblemáticas na cultura angolana. O nome de Pepetela tem sido, com alguma frequência, envolvido nesse esforço de reabilitação da memória. Apesar de, publicamente, ter sublinhado que o seu papel no pós 27 de Maio se ter circunscrito à gestão da informação, alguns, como Carlos Pacheco, perguntam-lhe o que fazia ele nos interrogatórios, realizados sem qualquer conformidade judicial:

Ele participou nos interrogatórios. Ele esteve diante de mim, esteve totalmente envolvido com aquele interrogatório que foi um verdadeiro processo de achincalha. Eles tentaram achincalhar-me moralmente, ameaçaram-me. Eu não ouvi da parte de Pepetela uma ameaça. Ele nunca proferiu uma ameaça, ou não ouvi. Outras pessoas, como Ndunduma, o proferiram. O Ndunduma, já contei isto num artigo há uns anos, num dado momento, levantou-se abruptamente, foi ao exterior da sala, e quando regressou fazia-se acompanhar do comandante Rui Matos e de outros militares. E antes do comandante Rui Matos ter falado, o Ndunduma disse que se eu não prestasse as declarações que aquelas pessoas pretendiam, os militares tratariam de mim. Aquilo foi uma sessão de humilhação, acusaram-me de muitas coisas, de ser da CIA, do KGB... Foi uma sessão que o próprio Pepetela terá que esclarecer, uma vez que estava presente. A postura moral dele perante os acontecimentos do 27 de Maio tem que ser muito bem explicada por ele. Eu faço a seguinte pergunta: o Pepetela não sabia que a maioria das pessoas, senão a totalidade, estavam naquela situação de presos ilegais, porque tinham sido sequestrados, privados ilegalmente da sua liberdade? Tenho dúvidas que uma só pessoa que fosse, tivesse sido presa por mandato judicial (17).


Parece claro que, para além das dimensões da violência que deu corpo à reacção ao golpe nitista de 27 de Maio de 1977, o peso da névoa fere profundamente a memória de muitos angolanos. Mesmo se predispostos para o perdão, não são menos exigentes quanto à justiça. Veja-se este depoimento de Luís dos Passos, líder do Partido Renovador Democrático:

Como um dos sobreviventes do 27 de Maio, tenho dito que podemos perdoar, mas nunca nos esqueceremos deste acontecimento. Se assim fosse, estaríamos a esquecer a nossa própria história e a darmos um apagão no nosso passado [...]. O que tem estado a acontecer é que algumas reivindicações feitas por nós, através de contactos que temos encetado com o MPLA [resultaram num] comunicado em que a Direcção do maioritário refere a tomada de algumas medidas jurídico-legais de salvaguarda dos orfãos e viúvas. Há pessoas que perderam os seus entes queridos e juridicamente a situação não está resolvida, porque não têm certidões de óbito e outros deixaram bens sem estarem declarados. Enfim, deve apurar-se quem são os orfãos e as viúvas (18).

Não quero repetir o inferno cujas portas este livro abre. Quero apenas deixar patentes as razões da sua escrita, que poderia maldosamente ser lida como um acerto de contas. Contas terão de prestar os actores que perpetuaram e porventura ainda hoje prolongam um regime de violação permanente dos direitos mais elementares. A mim cabe-me dar cumprimento ao dever de ser fiel à minha memória e à memória dos que confiaram em mim durante a minha passagem pelas prisões angolanas. A desumanidade desses tempos do meu cativeiro, de facto, prolongou-se, infelizmente, para muitos angolanos, no tempo. Os ecos na Imprensa, aquém da dimensão dos problemas, continuaram a fazer-se ouvir:

A Ordem dos Advogados portuguesa vai intensificar a pressão sobre o Governo de Angola, devido aos casos de violação dos direitos humanos naquele país. A comissão dos Direitos Humanos da Ordem elaborou um relatório preliminar com base nos elementos testemunhais e documentais recolhidos nas últimas semanas de acordo com o qual existem indícios sérios e legítimos que apontam para a total ausência de Estado de Direito na República Popular de Angola [...] Outra situação referenciada no dossier é o recrutamento forçado de homens e crianças levado a cabo por militares e polícias. Contactada pelo Expresso, uma testemunha desses recrutamentos, citada no relatório da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, declarou: [...] - No ano passado vi cerca de 20 adolescentes a serem capturados, amarrados e guardados em currais perto do Huambo. Os "caçadores" eram forças governamentais, com o objectivo de os recrutarem coercivamente para a guerra (19).

A 15 de Janeiro de 1992, o Expresso dava a conhecer que, em Angola, foram constituídas comissões de inquérito para averiguar o sucedido no pós-27 de Maio. Um dos que tem voz na notícia, José Nunes, responsável pela investigação no Leste de Angola, conta como centenas de homens pereceram sob a mira das armas comandadas por um tal Maninga, chefe do "centro de recuperação" de Luena na Província do Moxico. Segundo testemunhos recolhidos, os que escapavam não tinham condições de sobrevivência alimentar, procurando muitas vezes, à noite, nos campos de abate, os corpos dos executados para matar a fome (in «HOLOCAUSTO em ANGOLA, Nova Vega, 2007, pp. 20-32).




Notas:

(1) Alguns testemunhos falam de Setembro, outros de Outubro, identificando a chegada dos cubanos a Angola. Mas Pezarat observa: "Foi só em 5 de Novembro de 1975 que, em reunião do comité central, Cuba decidiu responder afirmativamente ao pedido do MPLA e colocar em Angola, por via aérea, aviões fornecidos pela União Soviética, posicionando em Angola milhares de militares cubanos de unidades organizadas, armadas e equipadas". Descolonização de Angola: a jóia da coroa do império português, Lisboa: Editorial Inquérito, 1991, 161. Como anotou Juan Benemelis: "Em 1975, entra em funções o governo de transição angolano nascido dos acordos de Alvor, Portugal, 5 de Janeiro, conseguidos no final do ano anterior, com a participação equilibrada de Lisboa, da UNITA, da FNLA e do MPLA, com o compromisso da realização de eleições em Novembro de 1975. Segundo os termos deste Acordo, visa-se o desarmamento das tropas especiais formadas por catangueses e zambianos, ao serviço do exército colonial português. No entanto, grande parte desses dois exércitos, assim como unidades auxiliares de angolanos, seriam "trespassadas" ao MPLA, em Janeiro de 1975, por ordem do Alto Comissário Rosa Coutinho, que autoriza o MPLA, para além do mais, a proceder a recrutamentos na zona de Luanda. A introdução do armamento soviético a instrutores cubanos a favor do MPLA continua, uma vez que se inicia a assistência prestada pelo Zaire e Estados Unidos ao FNLA, desencadeando-se a guerra civil. Com as tropas cedidas ao MPLA, por Coutinho, e com o armamento proveniente da URSS, além de certos arsenais portugueses generosamente postos à disposição, Neto disporá dos recursos necessários para bloquear o governo provisório, evitar as eleições e levar a disputa ao plano militar". Castro, subversão e terrorismo em África, Europress, 1986, 224.

(2) O programa de hegemonia do MPLA permanecerá inseparável desse apoio militar cubano. Os inimigos do MPLA tornaram-se inimigos dos Cubanos: "A morte do líder da UNITA, Jonas Savimbi, inimigo das tropas cubanas entre 1975 a 1991 que apoiaram o então regime marxista do MPLA em Angola, foi anunciada em Havana sem qualquer reacção oficial. O Granma, jornal do Partido Comunista cubano, dedicou-lhe apenas uma notícia breve em páginas interiores. A Juventud Rebelde, orgão dos jovens comunistas, limitou-se a reproduzir um telex da agência a confirmar que o chefe do Galo Negro tinha sido abatido em combate. O Governo de Fidel Castro não fez comentários" (Público, 25.02.02; ver também Expresso, 22.05.99).

(3) Segundo Benemelis "o terrorismo sempre figurou na agenda de Castro, ainda que se tentem dificultar as evidências. Muitas das organizações que operavam nos anos sessenta obtiveram treino, bases e inclusive instrução cubana. O PLO, as Brigadas Vermelhas, os Tupamaros, os Montoneros, o comando Boudiaf e outras mais pequenas devem parte da sua existência à generosidade de Fidel Castro", Juan Benemelis, Castro, subversão e terrorismo em África, Europress, 1986, 191; cf. 262s.






(4) Ibid., 234-236.

(5) Cf. ibid., 248, 251.

(6) Estava já amplamente ultrapassado o acordo conseguido entre o MPLA e a FNLA em Março de 1974.

(7) Actualmente Meridien.

(8) Ibid., 259.

(9) Cf. ibid., 241.

(10) "O medo e a revolta são sentimentos dominantes entre os jornalistas angolanos que trabalham em Portugal, depois de o semanário O Independente ter noticiado a presença em Lisboa de um «matador» - supostamente a soldo das autoridades de Luanda -, que terá como alvos profissionais da comunicação social de Angola a residir em solo português". Tal e Qual, 26.11.04.

(11) Carlos Pacheco, Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 114.

(12) Ibid, 115.

(13) Sublinha Benemelis: «Nos anos sessenta e setenta, os interesses burocráticos soviéticos chocam-se à volta do grave problema de como usar a força, especialmente nas guerras locais como as de África. Uma doutrina e estratégia para os conflitos locais já existia, de tal forma que puderam aplicá-la em 1975, no Cambodja, Angola e em maior escala na Etiópia e no Afeganistão [...]». Juan Benemelis, Castro, subversão e terrorismo em África, Europress, 1986, 195. Neste quadro, a campanha militar em Angola estava ao serviço de um objectivo: «conseguir o domínio das principais fontes de matérias-primas do Terceiro Mundo para influir no destino do Ocidente capitalista». Ibid., 197.

(14) Cf. Jean-Marc Varaut, Le procès de Nuremberg, Ferrin, 1992. Sob a protecção do anonimato que a Internet facilita, aumenta o coro dos que exigem, em relação a Angola, justiça internacional: "À boa maneira do MPLA só falta culparem o colono por este genocídio. Faço uma pergunta: porque é que um grupo de cidadãos angolanos não leva os responsáveis por este genocídio ao Tribunal Internacional de Haia? Alguns dos responsáveis ainda estão vivos, só que agora nenhum assume a culpa". "Como jovem angolano, gostava que, de uma vez por todas, se acabasse com o nevoeiro do que foi o 27 de Maio. Não esquecendo-o, mas através do esclarecimento dos envolvidos, porque só assim a História de Angola terá a página voltada".

AngoNotícias,www.angonoticias.com/full_headlines,php?id=10099 [on-line, 29.05.06]. "Não serve de nada ficarem calados. Muitas pessoas desapareceram, morreram sem justificação, sem julgamento. O genocídio dos angolanos merece um esclarecimento. As pessoas, os familiares querem saber, o que se passou - os corpos, valas comuns - para fazerem certidões, etc.". "Pessoas foram mortas nuas e obrigadas a sentarem-se em troncos afilados, puxaram-se unhas com alicates, estoiraram-se testículos, obrigaram a comer o próprio cabelo e a beber urina. Muitos actos horríveis foram praticados por estes nossos camaradas e irmãos que hoje querem passar por bonzinhos [...] Debaixo daqueles fatos de deputados, de escritores e de pessoas que requerem sempre respeito, houve sempre uma espada para picar e decepar um colega que não casasse com a sua ideia, até mesmo para lhe retirar a casa ou a namorada, bastava ser tratado como fraccionista para não voltar mais ao convívio familiar". "O 27 de Maio fechou casas inteiras em Angola, particularmente em Luanda, Lubango, Malange, Uíge e outras. O meu tio, por exemplo, foi atirado do helicóptero abaixo, no Uíge, pela DISA, do MPLA". AngoNotícias, www.angonoticias.com/full_headlines,php?id=10099 [on-line, 29.05.06].












Estátua de Agostinho Neto no Huambo


(15) público, 29.05.04. Aproximadamente um ano depois, Carlos Pacheco sublinhava: «Não é enterrando fundo, o 27 de Maio - como, por vezes, empoladamente se ouve preconizar - que Angola ultrapassa as suas dissensões e ressentimentos [...] Já escrevi uma vez e repito que a barbaridade desses crimes, cometidos pelo Estado entre 1977-79, jamais poderá prescrever enquanto os factos não forem integralmente esclarecidos. São delitos de efeito permanente que as resoluções da Nações Unidas sobre os direitos humanos consagram. As vítimas são sobreviventes que carregam na memória o espectro do terror que inflamou as prisões e os campos de concentração e onde foram submetidos a todo o tipo de violações degradantes, incluindo a simulação de fuzilamentos. Quem passou por esta última humilhação, ainda hoje relembra o pavor desse suplício com uma leve tremura no corpo e na voz. Outros recordam os espancamentos medonhos nos pátios das cadeias, infligidos pela soldadesca da DISA, que não se coibia de extravasar os seus instintos mais cruéis na presença de todos os presos. A bestialidade e sadismo desses assassinos não tinha limites [...]. Vítimas são também famílias inteiras. Em número indeterminado, talvez milhares, espalhadas por todo o território. Vencido o medo que as inibia em todos estes anos, eis que finalmente começam a manifestar-se. Clamam por justiça pela perda de pais, tios e irmãos que desde então, permanecem esquecidos da sociedade, sem rosto e sem nome» (Público, 27.05.05).

(16) AngoNotícias, www.angonoticias.com/full_headlines,php?id=10099 [on-line, 29.05.06]. No sítio electrónico podem ser encontradas reacções muito diversificadas à entrevista que o Carlos Pacheco dá à AngoNotícias, muitas delas sublinham a necessidade de levar as questões relativas aos massacres autorizados em Angola às instâncias judiciais internacionais para que Angola deixe de ser um projecto adiado: "devolvam os ossos dos 85.000 desaparecidos".

(17) AngoNotícias, www.angonoticias.com/full_headlines,php?id=10099 [on-line, 29.05.06].

(18) www.angonoticias.com/full_headlines,php?id=10099 [on-line, 29.05.06].

(19) Expresso, 24.06.00.

Continua

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