quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Infante D. Henrique

Escrito por Fernando Pessoa






A CABEÇA DO GRIFO


Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras -
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.

Mensagem



Cabo de São Vicente, na freguesia de Sagres e a 4 km a norte da Ponta de Sagres.



Rosa-dos-Ventos da Fortaleza de Sagres



Rosa-dos-Ventos da carta náutica de Jorge de Aguiar (1492), com abreviaturas dos ventos nos principais rumos, à excepção do Norte e Leste.


Rosa-dos-Ventos a indicar o norte com a flor-de-lis e a direcção da Terra Santa Cristã (O Leste) com uma cruz. Esta Rosa-dos-Ventos encontra-se no Planisfério de Cantino (1502), um dos mais antigos mapas que retratam as costas brasileiras recém-descobertas.




domingo, 24 de janeiro de 2016

Centro de Estudos Europeus. Retrocesso ou progresso?

Escrito por Álvaro Ribeiro




Mosteiro dos Jerónimos




Infante D. Henrique (Portal Sul).




Portal Poente



Igreja de Santa Maria de Belém










Medalhão com Heráldica (Claustro do Mosteiro dos Jerónimos).




«(...) Contra a verdade de que existem filosofias nacionais, que são filosofias tradicionais, estabeleceu-se a ficção de que existe uma só filosofia abstracta, cuja história pode ser ensinada com perfeita ignorância dos principais idiomas europeus e asiáticos. A razão, que opera entre o particular e o universal, é assim omitida pelos universalistas das universidades.

A tradição portuguesa não pode ser descoberta pelos historiadores da filosofia que se cinjam aos textos impressos ou manuscritos, porque entre a letra e o espírito existiu uma voz que já silenciou. Ignorando a alma portuguesa, ignorando a palavra da alma ou psicologia, ninguém poderá facilmente inferir da paleografia, ou escritos velhos, para a ciência dos princípios, ou arqueologia. Devemos estudar a alma portuguesa que se exprimiu em palavras, actos e obras, aceitando confiadamente tudo quanto é de tradição, antes de procedermos à leitura dos escritos de filosofia que entre nós foram redigidos segundo preceitos internacionais de escolas estrangeiras.

Foi inegavelmente Sampaio Bruno o pensador que mais inteligentemente nos revelou a tradição portuguesa. Filólogo e filósofo, decifrou documentos e interpretou argumentos, com inspiração verdadeiramente genial. Se a filosofia é essencialmente o estudo do invisível, do insensível, do sobrenatural, os resultados desse estudo não se exprimem directamente, mas indirectamente, nas obras de arte, política e religião.

Três tradições concorrem na formação do pensamento português: a judaica, a cristã e a islâmica. Difícil será determinar, na história da Península Ibérica, quais os filósofos mais estudados antes da Reconquista Cristã. No século XII já a filosofia de Aristóteles adquire primado nas sistematizações escolásticas, para avultar nos comentários ortodoxos de Santo Tomás de Aquino.

A Igreja de Cristo era pela maioria dos Portugueses concebida como intermediária entre a Humanidade e a Divindade. Tão alto significado da mediação cristã, próprio da fé medieval, era perfeitamente compatível com uma Humanidade dividida no tempo e no espaço, em povos, nações e culturas. A falácia do ideal uniformizador, ou de uma uniformidade a realizar num futuro instante do tempo ou num ponto central do espaço, não havia perturbado a razão dos homens, - ideal absurdo, porque o espaço e o tempo, factores diferenciantes, não cessam de contrariar as humanas veleidades de uniformização.

Castelo de Tomar




"Morreu Frei Gualdim, Mestre dos Cavaleiros do Templo em Portugal, em 1195, nos idos [13] de Outubro. Este Castelo de Tomar, como muitos outros, povoou. Descanse em paz".




Convento de Cristo em Tomar


Da fundação da Nacionalidade à fundação da Universidade por D. Dinis, decorre um período de filosofia mediterrânea em que consideramos as vicissitudes da Europa na mediação entre Ocidente e Oriente. Com a transferência dos segredos e dos bens da Ordem dos Templários para a Ordem de Cristo cessa a vigência do simbolismo do túmulo e da pedra para assumir regência o simbolismo da água, do peixe e da nave. A dúvida quanto à significação da pedra sobre a qual haveria Cristo de edificar a sua Igreja, pedra de ara ou pedra filosofal, suscitando livre discussão dentro da ortodoxia, excitava a razão a aperfeiçoar-se em inteligência.

Sem o estudo da obra de Dante, de toda a obra e não só da Divina Comédia, dificilmente compreenderemos as tradições que no fim da Idade Média preparam o Renascimento. O século XIII marcava o apogeu da filosofia eclesiástica, apresentando ao mundo cristão as obras de S. Boaventura e de Santo Tomás de Aquino. A obra de Dante dera-nos, porém, uma nova tradição interpretativa de Aristóteles que muito influiria na cultura portuguesa.

Convém aproximar a doutrina dos três planos teológicos - Inferno, Purgatório, Paraíso - com a doutrina dos quatro elementos incluída na cosmologia de Aristóteles. Se o simbolismo da terra é inferior ao simbolismo da água, se o simbolismo pagão da agricultura é inferior ao simbolismo cristão da pescaria, se o simbolismo do túmulo é inferior ao simbolismo da nave, a navegação portuguesa, utilizando os elementos superiores da física, correspondia à tradição de mais fluido e subtil simbolismo. A Terra é uma nave, e as viagens em demanda do Oriente pelo Ocidente visaram a promessa cristã de reintegração do Homem e da Natureza no plano primitivo ou original.

Convém lembrar que o Infante D. Henrique foi protector dos estudos teológicos que, no seu tempo, já eram professados na Universidade Portuguesa. A preocupação do Aquém e Além-Mar, de desvendar os mais terríveis segredos da Natureza, torna-se ocupação dominante da razão que pretende resolver os problemas humanos. A descoberta do caminho marítimo para a Índia, de nova relação do Ocidente com o Oriente, tem um significado mais alto do que aquele que pode ser registado na unificação moderna da geografia com a astronomia.






As três tradições portuguesas decorrem à margem da disciplina clássica e impregnam muito mais a alma popular (como se verifica pela análise linguística, estilística e literária) do que o humanismo espanhol, francês ou italiano, de falsa imitação dos autores gregos e latinos. A distinção entre a filosofia mediterrânea e a filosofia atlântica ainda caracteriza o reinado de D. Manuel I. Depois a mitologia humanista vai a pouco e pouco tomando nas artes a preponderância que antes pertencera às três tradições portuguesas.

Na medida em que decai o angelismo medieval vai-se formando o humanismo moderno. A Escolástica, na interpretação que lhe fora dada por Santo Anselmo - cruzamento de uma razão infinita com uma fé infinita -, sofre a decadência resultante da radical separação entre teologia e filosofia. Deixando a crítica das obras teológicas entregue aos partidários do livre-exame, e deixando que os discípulos de Lutero anulem a distinção entre interpretações ortodoxas e interpretações heterodoxas da Bíblia, os filósofos modernos utilizam os métodos e os descobrimentos das ciências para refutar a lógica e a física de Aristóteles.

Fiéis ao aristotelismo nos mantivemos durante a Idade Moderna, por motivos que os historiadores ainda não conseguiram pôr a claro. A obra de Aristóteles, interpretada por vários comentadores, imprimiu na nossa cultura um racionalismo antitradicionalista cujas consequências foram lamentadas e lamentáveis. Assim se confundiu, na mente de pessoas mal instruídas, a filosofia eclesiástica com a filosofia escolástica, e a filosofia escolástica com a filosofia aristotélico-tomista».

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«... De Álvaro Ribeiro dizia José Marinho que “pensava como o coração pulsa: sem cessar”. Almada Negreiros chamou-lhe “santo científico”. Pinharanda Gomes mantém-se firme em dizê-lo “um santo”, com todo o significado e todas as virtudes que a Igreja dá à palavra. Nenhum dos que com ele conviveram ou sabem ler com proveito seus livros, receia reconhecer que de homem algum ou pensador mais do que dele se pode dizer “um sábio”. E seus discípulos, desde António Telmo e António Quadros, desde Afonso Botelho e Braz Teixeira ao autor destas linhas, têm-no como “o mestre por excelência”.

Socialmente, quer dizer, nas consequências sociais da opinião que a ignorância contente de si formou dele, Álvaro Ribeiro foi, ainda é, um homem antipático e um filósofo odiado, daqueles que são para serem assassinados. Quem o quiser comprovar documentalmente, pode ler o que sobre ele infantilmente escreveram e publicaram um crítico versejador como Casais Monteiro e um crítico que não verseja como Eduardo Lourenço.



Saragago e Eduardo Lourenço


À medida que o homem vivo vai esquecendo, a antipatia e o ódio vão sendo substituídos por um cerrado silêncio hostil que faz o regozijo da estupidez universitária posta perante os livros admiráveis e únicos que ele nos deixou.

São esses livros escritos com estilo, palavra que, na acepção dada pelo próprio Álvaro Ribeiro, significa a singularidade inimitável do escritor. Seu estilo desenvolve-se numa sucessão de afirmações, isto é, de teses, ideias, conceitos, logismos, rigorosamente firmes, ou firmados, ou com firmamento, palavra que o filósofo contrapunha à de fundamento, corrente na linguagem filosófica germânica, como o céu estrelado e luminoso se contrapõe às funduras tenebrosas. As afirmações sucedem-se, não por extrínsecas justaposições, mas por deduções, silogismos e inferências que o escritor não perde tempo a descrever, antes entregando ao leitor a tarefa de a si mesmo provar capacidade de inteligência e entendimento filosóficos. Assim nos dão os livros de Álvaro Ribeiro o exemplo de como a filosofia se deve defender, nenhuma facilidade concedendo à mediocridade e à incultura. Não há filosofia de leitura fácil porque leitura fácil é a de imediato entendimento e o entendimento filosófico conduz-se por demoradas meditações. Álvaro Ribeiro gostava de lembrar o que Dante disse do filósofo: “mestre dos que sabem”. A sabedoria é mediadora».

Orlando Vitorino («A filosofia de Álvaro Ribeiro como Doutrina do Espírito»).


«(...) Ser português não é coisa que nasça espontânea da terra. Que não há gerações espontâneas será desnecessário dizê-lo. Tudo pertence a uma única harmonia muito mais geral e generosa do que o mais veemente dos indigenismos. E tanto assim é que o verdadeiro indígena quando sabe ser prudentemente egoísta faz por não cair no isolamento.

Estas palavras estão evidentíssimas na História de Portugal. A primeira dinastia conquista e fixa o nosso território. E uma vez conquistado e firme o nosso território, os portugueses não só não dão por finda a sua missão como, pelo contrário, iniciam a sua acção de não-isolamento e lançam-se à conquista do que já está além da sua própria terra firme, a conquista da universalidade, palavra portuguesíssima mais do que nenhuma outra.

E eis que surge então com a segunda dinastia a figura mais alta da história portuguesa: o infante D. Henrique.







Se perguntarmos a qualquer português, incluindo os mais cultos, qual é a figura mais alta da História portuguesa, não o sabe. E se por acaso acerta com o infante D. Henrique já não atina com o porquê. Eu-próprio fiz a experiência e vós também a podeis fazer neste momento através do Diário de Lisboa onde diariamente as grandes firmas literárias cantam mais entusiasmos do que ensinam conhecimentos históricos e exactos sobre a figura do infante D. Henrique. E é assim mesmo: o português começa por ignorar o que quer dizer português. E então porque é que são portugueses? Porque nasceram em Portugal?! Isso não é razão! Em Portugal nasce muito animal sem ser português: cães, gatos, burros, cobras e lagartos, minhocas e mexilhões.

Desde Afonso Henriques até ao infante D. Henrique era apenas terra, a casa de determinada gente. O infante D. Henrique é quem descobre o sentido para a gente desta terra, e transforma os seus indígenas em portugueses. E de que maneira? De duas maneiras: uma explorando o mar e a outra explorando a terra. Toda a gente que trata da figura do infante D. Henrique ocupa-se exclusivamente da parte que diz respeito ao mar. Porquê? Porque não ocupar-se também da outra parte que não tem nada de menor do que a do mar, precisamente a da terra?

Ao fundar a Escola de Sagres o infante fez-se rodear de quantos necessitava para levar a cabo os nossos feitos de navegação. Mas a sua ideia não estava limitada ao mar. Pelo contrário, o mar era apenas um episódio da sua ideia. E tanto assim é que manda às suas ordens seu irmão o infante D. Pedro, o das sete partidas, para informá-lo pessoalmente do que se passava em terra.

Se nós hoje damos importância apenas às Descobertas marítimas reduzimos a História apenas a feitos e não me parece em nada menos importante a causa e preparação desses mesmos feitos, e sobretudo o significado justo da causa, preparação e feitos. E a verdade é que o infante D. Henrique ao rodear-se em Sagres dos técnicos do mar não podia apenas com estes dados ter encontrado um sentido tão perfeitamente imaginado se isto não fosse já uma dedução das informações que das sete partidas lhe trazia seu irmão o infante D. Pedro.

Numa palavra: a grande clareza de espírito do infante D. Henrique era o resultado dele estar melhor informado do que ninguém no seu tempo do que se passava no mundo conhecido. E por isto, e só por isto, lhe coube a ele avançar pelo desconhecido.

Promontório sagrado da Ponta de Sagres (Algarve).










(...) Recordo aqui um artista português que conheci durante cinco anos em Madrid e de quem o Embaixador e o Cônsul de Portugal me disseram que "nunca nenhum português em missão oficial representara melhor o nome de Portugal do que aquele artista apenas com os seus recursos individuais". Numa palavra: o autêntico embaixador desconhecido.

Em compensação na última exposição das Belas-Artes e a qual passou em público por modernista, apenas havia dois trabalhos de pintura à altura dos dias da Europa de hoje. O seu autor é português, Mário Eloy, e vive em Berlim. O público não viu sequer as suas pinturas. Houve alguém que me apontou estes trabalhos como puramente germânicos. Insurgi-me violentissimamente contra a injustiça dizendo ao injusto: Pois eu não caibo em mim de alegria por ver nestes dois quadros o genuinamente português dentro do moderno, do actual, do europeu!


Lisboa! Querida Lisboa! Capital da nossa terra! Cabeça de Portugal! Que fazes que não fazes nada por seres Europeia? O que vês tu se não vês nada do que hoje se vê?


O mais espantoso é o caso duma revista literária portuguesa e na qual o seu director respondendo ao conde de Keiserling acaba exactamente com estas palavras: "Basta-me que deste comentário ressalte o erro do ponto de vista europeu para observar e compreender Portugal".


Então, perguntamos em que parte do mundo estamos colocados? Não é por acaso na Europa? Não é exactamente na Europa? Façam favor de lá ir ver no mapa. Não é por acaso que Portugal fica na Europa.


É esta certeza que nos traz aqui hoje para acompanhar a um artista português, o qual, lá na mui europeia Alemanha, participa dos trabalhos do écran europeu que defende heroicamente a universalidade europeia da concorrência milionária da U.S.A.


Acabaram-se os dez minutos.


Adeus».


José de Almada Negreiros («Embaixadores Desconhecidos», in Manifestos e Conferências).





Mestre Almada Negreiros




Centro de Estudos Europeus. Retrocesso ou progresso?


No momento em que o Dr. Pedro de Moura e Sá propõe a criação de um «Centro de Estudos Europeus», e dado que tal alvitre não pode deixar de corresponder a motivos muito sérios, talvez seja lícito pensar as conveniências e as desvantagens que a realização do projecto necessariamente tornará claras e patentes. Não significa contrariar o propósito digno de tolerância, de respeito e de estima, apresentar alguns reparos, enquanto o alvitre se encontra na fase prévia de aberta discussão.

Custa-nos imaginar um «Centro de Estudos Europeus» fora da Europa Central. Instituí-lo em Lisboa será uma distracção tão lícita como lúdica, idêntica a muitas outras que feliz ou infelizmente têm surgido na sociedade portuguesa. Atrair a Lisboa os «intelectuais» europeus, recebê-los com expressões de afecto, diverti-los com cerimónias e festas, são actos que pertencem à tradição da boa hospitalidade portuguesa, que constituem um excelente programa de turismo, que realizam um convívio agradável e interessante. Se nos é útil, e até lisonjeiro, que o escritor europeu, depois da sua viagem, afirma ter visto em Portugal um país encantador, dotado de óptimo clima e de governo modelar, - o que não contesto, - não podemos, contudo, confundir toda essa actividade com o verdadeiro intercâmbio cultural.

Neste ponto se revela a seriedade da questão. Devemos, portanto, ser agora um pouco mais exigentes, e perguntarmo-nos, se além da «boa impressão turística», poderemos dar ao viajante interessado os meios que o habilitem a bem conhecer a arte, a ciência e a técnica que estamos desenvolvendo, e que, por dever de lealdade, o obriguem a declarar também que os portugueses se encontram num invejável movimento de progresso artístico, científico ou técnico.

Tem-se verificado que, na maior parte dos casos, os intelectuais europeus, apressados em colocar no nosso ambiente os produtos das suas culturas, não se demoram o tempo suficiente para o estudo da lusa nacionalidade, e regressam às origens, convencidos de que nos deram, magnanimamente, uma grande lição. Ora a verdade é que, quanto ao essencial, o português culto se encontra já em nível igual, senão superior, ao de qualquer europeu dos nossos dias. E não é possível um intercâmbio com verdadeira reciprocidade, porque a Europa, indefinida geograficamente, não possui unidade religiosa, civilizacional ou cultural.



A pretensão de reconstituir essa unidade pode levar qualquer escritor europeu a elaborar um ensaio mais ou menos literário, porque é sempre possível escolher arbitrariamente, no passado histórico, estes ou aqueles ingredientes que mais convém ao escopo da dissertação. No entanto, um homem que sabe ver, o pintor José de Almada Negreiros, ainda há poucos meses perguntava num dos seus livros mais significativos: «A cultura universal europeia esquecida pela Europa?».

Eis porque parece marcado de falsidade o desenvolvimento de certa argumentação pela qual se pretende religar o destino épico de Portugal ao destino trágico da Europa, em contradição com os ensinamentos da filosofia da história.

A Europa é caminho do passado. Não nos cumpre retroceder. Teófilo Braga, apesar de positivista, bem nos advertiu nestas palavras dignas de meditação:

«O génio e missão histórica do povo português revelam-se na deslocação das civilizações do Mediterrâneo para o Atlântico, e pela audaciosa actividade marítima, com que iniciaram a era nova de civilização pacífica e industrial. Todas as investigações do nosso passado histórico devem dirigir-se a este fito: mostrar como logicamente cumprimos esse destino, encetando as grandes navegações, e como se deve perpetuar na marcha da humanidade o lugar de honra que nos compete».

Durante os séculos XVI, XVII e XVIII permanecemos pouco interessados no pensamento de Além-Pirenéus e, inegável vantagem, não sofremos as consequências dos erros da filosofia «moderna».

Porque teria escolhido Pascal os Pirenéus - e não o Reno, ou qualquer outra fronteira geográfica, - quando escreveu: «Verité au deçà des Pyrénées, erreur au-delà»?...






Na primeira metade do século XIX procuraram os escritores românticos inspirar-se na tradição medieval, para robustecerem o nosso nacionalismo; na segunda metade, porém, pretendemos obter da Europa, não o pensamento criacionista que ia caracterizando o século, mas a retardatária lição dos iluministas pretéritos. O engano permanece na mente daqueles que ainda desejam «europeizar Portugal» pela aplicação das receitas de Comte, Maurras e Marx; não podemos, porém, considerar de bom augúrio a intenção de escolher na Europa quaisquer novos mentores.

Todas as tentativas para congregar esforços numa obra de cultura são dignas de incitamento. Mas não deixa de ser lícito perguntar se, ao interessarmo-nos assim pelo passado da Europa, não comprometemos o futuro de Portugal.

No plano que ultrapassa as nações, não avultam já os continentes mas tão-só a humanidade. Necessária, de possível demonstração, é a tese de que a humanidade cumprirá o seu destino sobrenatural; contingente é a contribuição de Portugal para esse êxito. Nos tempos de outrora, cremos e quisemos ultrapassar a civilização europeia; nos tempos de agora, tanto podemos voltar a crer e a querer, como podemos deixar a outrem a execução dos desígnios divinos.

No domínio da crença faremos, pois, as últimas afirmações: só o povo português tem possibilidades de dar início a uma cultura superior que fundamente uma civilização original.

Não está, porém, Portugal habilitado a desenvolver essa possibilidade, - porque não crê, e porque não quer. Mas, a querer, a transformação da potência em acto realizar-se-ia num ciclo de sete anos, com o escol existente, mediante condições financeiras que não exigiriam sacrifício público.

Eis porque julgamos dever dar preferência aos estudos portugueses sobre os estudos europeus (in Diário Popular, ano VI, n.º 2088, Lisboa, 22 de Julho de 1948, pp. 1 e 3).







terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Etnografia e Nacionalidade

Escrito por Orlando Vitorino




1940: Comemoração do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). Ver aqui



«Em 1940 estava por quase toda a gente verificado que a sociologia idealista, positivista ou materialista não poderia servir de doutrina explicativa da História de Portugal. Haveria, porém, que descobrir o motivo complexo (quer dizer, oculto), que inibia naquela data a opinião pública de comparar a nacionalidade com a sua filosofia, e a essa investigação se dedicaram os estudiosos que haviam ficado descontentes com os resultados do Congresso do Mundo Português. Datam, pois, de 1940 o desenvolvimento da filosofia portuguesa e a consciência de que existe um modo português de filosofar.

Quem souber ler a nossa História da Literatura, e também a nossa História do Direito, não terá dificuldade em reconhecer que um espírito superior conferiu autonomia ao pensamento português. Os estudos positivos de Teófilo Braga, Fidelino de Figueiredo e Hernâni Cidade, no domínio da História da Literatura, como os de Paulo Merêa, Cabral Moncada e Marcelo Caetano, no domínio da História do Direito, comprovam que o modo português de filosofar não recebeu adequada expressão didáctica nas escolas instituídas por imitação da cultura europeia. Quem pensar no silogismo da árvore, constituída por um tronco mediador de raiz com a copa, quem souber ler o simbolismo do barco, do vaso e da nave nas obras das nossas artes plásticas, quem tiver leitura do que não está na escritura, facilmente entenderá que é destino do espírito português flutuar sobre as águas.

A Casa de Portugal, no extremo da Europa, talvez a muitos pareça ser a Pequena Casa Lusitana, de que falou Camões. Esta expressão significa, porém, que Portugal é a metrópole de um país ultramarino, que o pensamento português é um pensamento atlântico. Estando acima do elemento líquido, que a tinta representa na arte de escrever, o pensamento inefável torna-se incomensurável com as vulgares expressões de cultura.

Portugal não é uma província, uma terra vencida, e portanto servil, da mentalidade dominante na Europa Central. Portugal é uma nação tão culta, e criadora de cultura, como aquelas que lutam pela supremacia na política internacional. Esta verdade tem de ser afirmada sem receio de que os comparativistas a contradigam pelos sinais que denunciam um complexo de inferioridade.


Promontório de Sagres (Algarve).



Razão há, pois, de acusar de provincianismo todos quantos, entre 1870 e 1940, defenderam o estulto programa de europeizar Portugal pela adopção de uma cultura estrangeira, talvez já ultrapassada. Quem for ler as obras de Cunha Seixas, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra facilmente descobrirá e descreverá o modo português de filosofar. Depois, pelo estudo comparativo da filosofia portuguesa com as filosofias estrangeiras, verificará que teria sido um erro provinciano aceitar sem crítica a tese dos que nos recusam autonomia cultural.

Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins procuraram obter fama pelo fácil processo de denegrir tudo quanto é português, e, consequentemente, o que constitui a razão de ser da nossa nacionalidade. Discernindo muito bem que a cultura é o elemento mediador entre o culto e a civilização, os doutrinadores das Conferências do Casino adoptaram habilidosamente a dialéctica da contradição dos extremos, sem preverem que a necessária consequência tinha de ser a negação da Pátria. Administradas em livros que gozam de prestígio literário, as opiniões daqueles escritores ainda não foram completamente submetidas à metodologia da prova, e continuam a ser divulgadas até nas escolas de ensino público.

(...) Entre a frase de espontaneidade popular, com a sua musicalidade específica, e a respectiva representação gráfica, com a forçada divisão em palavras e em sílabas, interpõe-se um certo número de sábias convenções internacionais que positivamente obscurecem o problema filológico. O analfabeto diz as frases naturais do seu falar, a povoação amolda o idioma e dá-lhe uma perfeição fonética e poética que se regista no folclore, o povo organiza assim valores expressivos numa sua forma de cultura; mas este processo, que o etnógrafo observa e que o etnólogo explica, conclui-se muitas vezes por tradições que podem não estar legalizadas pelos gramáticos latinistas ou pelos literatos germanistas. Estudar a alma, e até o espírito, de um povo pelo folclore, tem de ser, pois, o primeiro programa de um curso de filologia».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).







«Ensina-se nas escolas que a ciência é uma só e a ciência clássica não foi mais do que precursora da moderna. Ao ensinar-se esta maneira de ver - à qual têm sido dedicados laboriosos e notáveis estudos, como La Science dans l'Antiquité, de Abel Rey - confundem-se as concepções da ciência clássica com as utilizações que delas faz a ciência moderna, sem atender à adulteração que no caminho se interpõe. A adulteração consiste, de um modo geral e constante, em trocar a biologia, em que se espelha a ciência clássica, pela mecânica, em que se estrutura a ciência moderna, em trocar o animal vivo, que é o mundo dos clássicos, pela natureza morta, que é o mundo dos modernos.

(...) A "filosofia portuguesa" ultrapassa as limitações da ciência, que são as do tempo e do espaço, desde logo porque é a filosofia de um povo que descobriu e reconheceu sensivelmente como a forma do mundo dos homens é a forma global, representação do "infinito que se encontra percorrendo todos os caminhos do finito". Assim a descreve aristotelicamente Camões no Canto X de Os Lusíadas e com ela pôde este povo pôr em acto a catolicidade, ou "universalidade concreta", que o cristianismo até então possuía em potência. "Com o globo mundo em sua mão", pode a filosofia portuguesa pensar o mundo sensível "maravilha da criação", imagem sempre latente no pensador da alegria que é Leonardo e insistentemente repetida por Álvaro Ribeiro.

Se a tal imagem a acompanha a contrapontística exclamação de José Marinho sobre o "mundo imundo", há aqui uma dramática sensibilidade para com a existência e a persistência do mal, que "é imoral negar", bem contrastante com a fria, obsessiva e trágica sanha do espiritualismo nórdico contra a natureza indomável. Desta sanha se originaram belas e elucidativas narrativas mitogénicas, como a da novela Moby Dick, que incitam ao império mecânico do homem sobre a natureza, império já hoje amplamente exercido para, ao fim, ambos, homem e natureza, às mãos um do outro soçobrarem».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).




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Etnografia e Nacionalidade

Com escândalo, se não com ridículo, foi recebida a afirmação de Nietzsche de que a Europa precisava de passar por um século de analfabetismo.

Meio século depois, o etnólogo português Adolfo Coelho, publicava um livro intitulado «Cultura e Analfabetismo», no qual defendia a tese de que o conhecimento da escrita e da leitura em nada contribuía para o progresso de um povo. E aproveitando a onda de horror contra a barbárie germânica, promovida, então como hoje, pela guerra mundial decorrente, Adolfo Coelho mostrava que, sendo a Alemanha um dos povos com menos analfabetos, era também o mais horrífico dos povos aos olhos moralistas dos países ofendidos. Aliás, de evidente significação era já o título do breve estudo, «Cultura e Analfabetismo», termos conjuntados pois conciliáveis.

Da cultura possuía Adolfo Coelho uma noção germânica, já então patentemente oposta à «ilustração» alfabética que o iluminismo exigia da varinha de condão da política que lhe corresponderia e que de facto lhe correspondeu, durante o século XIX. A cultura não era o alfa e o beta das primeiras letras, mas o alfa e o ómega da realidade nacional.

Etnólogo, Adolfo Coelho definia a etnografia como sendo o estudo da formação das tradições de um povo; isto é: a etnografia é o estudo da cultura popular. Logo, muito distante do significado ainda hoje predominante da cultura como divulgação, estava o etnólogo português.

A cultura popular não seria, como não é, o corpo dos conhecimentos humanos postos ao alcance de todos, por virtude de um rebaixamento desses conhecimentos a fórmulas vulgares por vulgarizadas, fáceis por facilitadas e falsas por falsificadoras. A cultura popular seria, como é, uma sabedoria própria do povo, por ele criada e por ele guardada, original e profunda.

Definida deste modo a cultura, importava sobremaneira conhecê-la, tomar consciência dela, e desenvolvê-la nas diversas formas de actividade que, nela se inspirando, por ela adquiririam originalidade e verdade.

Assim, o etnógrafo seria o estudioso da origem cultural ou popular. Um grau acima, o etnólogo interpretaria os elementos da etnografia, possibilitando a sua utilização pela arte, pela filosofia e pela religião, e, mais do que possibilitando, nelas os integrando. Só existia uma arte autêntica – e uma filosofia e uma religião – quando radicadas no povo.






Estátua de Viriato (Viseu).






Falcata



Mais laborioso etnógrafo e menos inteligente etnólogo, Leite de Vasconcelos tornou esquecido o nome do seu par e seu contemporâneo Adolfo Coelho. E ao evocar os nomes de Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, logo nos ocorrem os de Teófilo Braga e de Vasconcelos Abreu. Esta équipe do Curso Superior de Letras tem hoje seus continuadores na Faculdade de Letras que lhe continua as tradições, sendo justo destacar os Professores Manuel Heleno e Mário de Albuquerque, assim como podemos referir, da Faculdade de Letras de Coimbra, os nomes dos Professores Virgílio Correia e Aarão de Lacerda.

De fonte germânica são os estudos que, por levarem tão longe o domínio da etnografia, abrangem nele o estudo das religiões. À etnografia pertencem as investigações sobre os mais antigos e enigmáticos documentos religiosos, como o Zhoar, a Bíblia, a Tábua de Esmeralda ou os Vedas. Assim, a etnografia toca fronteiras com a religião, servindo-a.

Os primeiros estudos etnográficos provêm do período romântico. Seu iniciador foi Herder, e esse início participa do movimento continuador da civilização europeia, interrompida, nas suas linhas gerais, desde a Renascença ao iluminismo. Os fundamentos deste, começaram então a ser aniquilados, embora o iluminismo ainda hoje subsista numa forma de aberração política a que pertencem todos os internacionalismos. Na política define-se pois a etnografia como defensora das autonomias nacionais. E é na etnografia que as nacionalidades encontram a sua justificação, jamais determinável mediante abstractas noções jurídicas. À nacionalidade definida como uma realidade jurídica, opõem-se com vantagem os argumentos económicos ou de ordem chamada sociológica do internacionalismo.

Esta verdade tem sido reconhecida por todos os países. Qualquer português medianamente viajado, como Ramalho Ortigão, conhece o Museu do Trocadero em Paris. A França, embora não arranque a máscara de um desinteressado nacionalismo, sabe quais os meios de defesa e propagação da nacionalidade a empregar para o domínio dos demais povos. Assim, embora oponha à noção etnográfica de cultura a sua noção de «civilisation» universal, a França cuida do que culturalmente muito lhe importa, e apresenta ao olhar do viajante «civilizado» esse grandioso monumento de etnografia que é o Museu do Trocadero.

Musée d'Ethnographie du Trocadéro (finais do séc. XIX).








Aos estudos etnográficos alemães nos referimos já. E contudo a Alemanha é um país circunscrito a um território continental.

Dos demais países de forte afirmação nacional, como a Inglaterra e até os Estados Unidos, chegam-nos sinais do desenvolvimento da etnografia.

Deste modo, e em toda a parte, embora a política por aberração ou cálculo, continue a exigir a unidade internacional, essa exigência ou é retrógrada ou visa apenas uma unidade que, feita pela cultura, imponha uma cultura. Monstruosa pretensão esta que, no entanto, se encontra hoje, não só possível como facilitada, pelos meios técnicos de expansão, sejam eles o cinema, a rádio e a imprensa.

Nesta hora, mais do que nunca, compete aos povos defenderem-se contra as ameaças que os rodeiam. E compete às entidades responsáveis recorrer às culturas populares e desenvolvê-las. Nelas reside a primacial defesa das nacionalidades, uma vez por terra, em plena evidência, a inutilidade das abstracções jurídicas e sociológicas dos bacharéis enfatuados e alfabéticos.

Portugal tem responsabilidades próprias e comuns. Nas próprias importa assinalar que Portugal possui vastas Colónias e que a reunião destas em Império supõe o conhecimento e fortalecimento etnográfico delas, como única base de toda a possível acção unitiva. Às comuns pertence a nossa cooperação na etnografia brasileira.

No Brasil, a mesma raça implica a mesma tradição, e a mesma língua implica o mesmo desenvolvimento dos rudimentos da cultura. Afins, portanto, são os interesses por brasileiros e portugueses tidos na etnografia e na etnologia.

Estuda-se e prepara-se, neste momento, a futura realização em Lisboa de um Congresso Luso-Brasileiro de Etnografia.

Existem em Portugal, como no Brasil, etnógrafos de valioso mérito. Faltam em Portugal, como no Brasil, os elementos de sistematização necessários para que os estudos etnográficos ascendam a estudos etnológicos.


Lisboa (2015)



Falta-nos uma Grande Enciclopédia Portuguesa de Etnografia. Não se julgue, porém, que ela deva ser ordenada por ordem alfabética como o é, por exemplo, a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira. Estaria antes dividida por assuntos, e de cada qual seriam indicados todos os elementos sobre ele conhecidos.

Falta-nos um Museu Etnográfico. Não um museu género turístico ou de colecção, mas um museu onde se encontre reunido e utilizável todo o material imprescindível ao estudo, e instalado num palácio de arquitectura monumental que, por razões óbvias, melhor seria edificado longe da capital cosmopolita.

Falta-nos um Instituto de Etnografia. Não um instituto inútil, constituído por reformados profissionais de diversas profissões, mas um instituto que provasse a sua meritória utilidade, e cuja primeira missão poderia ser elaborar a Grande Enciclopédia Portuguesa de Etnografia.

Está, pois, em estudo a realização de um Congresso Luso-Brasileiro de Etnografia. Receia-se que este congresso não possa vir a ser uma reunião de trabalhos concludentes. E este receio já previne os congressistas de tudo que falta aos estudos etnográficos luso-brasileiros. Importa, pois, que desse congresso – o que aliás é a sua única justificação – saiam os primeiros fundamentos para uma etnografia sistematizada. Os etnógrafos compreendem já que a etnografia se não limita a mera curiosidade folclórica. E se a realização deste congresso oferecer as garantias de eficientes resultados, as entidades competentes e responsáveis não podem deixar de o promover sob pena de contribuírem para que a expansão internacionalista – cujas diversas formas astuciosas os políticos a todo o momento denunciam – invada e obrigue a desaparecer, dentro de cinquenta anos, o nosso vasto mas informe Império Colonial. E para que evidente apareça esta temível realidade, lembremos que a acção política, violenta ou não, é o fruto amadurecido de uma subversiva expansão de cultura, nesta hora internacional e internacionalista multiplicadamente facilitada. 

(in Atlântico, Revista Luso-Brasileira, Edição do Secretariado Nacional de Informação e da AN, dirigida por António Ferro e António Vieira de Melo, Lisboa/Rio de Janeiro, Nova Série, n.º 4, 1947, pp. 78-80).


quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Lógica do abortismo

Escrito por Olavo de Carvalho







Diário do Comércio, 14 de outubro de 2010

O aborto só é uma questão moral porque ninguém conseguiu jamais provar, com certeza absoluta, que um feto é mera extensão do corpo da mãe ou um ser humano de pleno direito. A existência mesma da discussão interminável mostra que os argumentos de parte a parte soam inconvincentes a quem os ouve, se não também a quem os emite. Existe aí portanto uma dúvida legítima, que nenhuma resposta tem podido aplacar. Transposta ao plano das decisões práticas, essa dúvida transforma-se na escolha entre proibir ou autorizar um ato que tem cinqüenta por cento de chances de ser uma inocente operação cirúrgica como qualquer outra, ou de ser, em vez disso, um homicídio premeditado. Nessas condições, a única opção moralmente justificada é, com toda a evidência, abster-se de praticá-lo. À luz da razão, nenhum ser humano pode arrogar-se o direito de cometer livremente um ato que ele próprio não sabe dizer, com segurança, se é ou não um homicídio. Mais ainda: entre a prudência que evita correr o risco desse homicídio e a afoiteza que se apressa em cometê-lo em nome de tais ou quais benefícios sociais hipotéticos, o ônus da prova cabe, decerto, aos defensores da segunda alternativa. Jamais tendo havido um abortista capaz de provar com razões cabais a inumanidade dos fetos, seus adversários têm todo o direito, e até o dever indeclinável, de exigir que ele se abstenha de praticar uma ação cuja inocência é matéria de incerteza até para ele próprio.

Se esse argumento é evidente por si mesmo, é também manifesto que a quase totalidade dos abortistas opinantes hoje em dia não logra perceber o seu alcance, pela simples razão de que a opção pelo aborto supõe a incapacidade – ou, em certos casos, a má vontade criminosa – de apreender a noção de "espécie". Espécie é um conjunto de traços comuns, inatos e inseparáveis, cuja presença enquadra um indivíduo, de uma vez para sempre, numa natureza que ele compartilha com outros tantos indivíduos. Pertencem à mesma espécie, eternamente, até mesmo os seus membros ainda não nascidos, inclusive os não gerados, que quando gerados e nascidos vierem a portar os mesmos traços comuns. Não é difícil compreender que os gatos do século XXIII, quando nascerem, serão gatos e não tomates.

A opção pelo abortismo exige, como condição prévia, a incapacidade ou recusa de apreender essa noção. Para o abortista, a condição de "ser humano" não é uma qualidade inata definidora dos membros da espécie, mas uma convenção que os já nascidos podem, a seu talante, aplicar ou deixar de aplicar aos que ainda não nasceram. Quem decide se o feto em gestação pertence ou não à humanidade é um consenso social, não a natureza das coisas.







O grau de confusão mental necessário para acreditar nessa idéia não é pequeno. Tanto que raramente os abortistas alegam de maneira clara e explícita essa premissa fundante dos seus argumentos. Em geral mantêm-na oculta, entre névoas (até para si próprios), porque pressentem que enunciá-la em voz alta seria desmascará-la, no ato, como presunção antropológica sem qualquer fundamento possível e, aliás, de aplicação catastrófica: se a condição de ser humano é uma convenção social, nada impede que uma convenção posterior a revogue, negando a humanidade de retardados mentais, de aleijados, de homossexuais, de negros, de judeus, de ciganos ou de quem quer que, segundo os caprichos do momento, pareça inconveniente.

Com toda a clareza que se poderia exigir, a opção pelo abortismo repousa no apelo irracional à inexistente autoridade de conferir ou negar, a quem bem se entenda, o estatuto de ser humano, de bicho, de coisa ou de pedaço de coisa.

Não espanta que pessoas capazes de tamanho barbarismo mental sejam também imunes a outras imposições da consciência moral comum, como por exemplo o dever que um político tem de prestar contas dos compromissos assumidos por ele ou por seu partido. É com insensibilidade moral verdadeiramente sociopática que o sr. Lula da Silva e sua querida Dona Dilma, após terem subscrito o programa de um partido que ama e venera o aborto ao ponto de expulsar quem se oponha a essa idéia, saem ostentando inocência de qualquer cumplicidade com a proposta abortista.

Seria tolice esperar coerência moral de indivíduos que não respeitam nem mesmo o compromisso de reconhecer que as demais pessoas humanas pertencem à mesma espécie deles por natureza e não por uma generosa – e altamente revogável – concessão da sua parte.

Também não é de espantar que, na ânsia de impor sua vontade de poder, mintam como demônios. Vejam os números de mulheres supostamente vítimas anuais do aborto ilegal, que eles alegam para enaltecer as virtudes sociais imaginárias do aborto legalizado. Eram milhões, baixaram para milhares, depois viraram algumas centenas. Agora parece que fecharam negócio em 180, quando o próprio SUS já admitiu que não passam de oito ou nove. É claro: se você não apreende ou não respeita nem mesmo a distinção entre espécies, como não seria também indiferente à exatidão das quantidades? Uma deformidade mental traz a outra embutida.

Aristóteles aconselhava evitar o debate com adversários incapazes de reconhecer ou de obedecer as regras elementares da busca da verdade. Se algum abortista desejasse a verdade, teria de reconhecer que é incapaz de provar a inumanidade dos fetos e admitir que, no fundo, eles serem humanos ou não é coisa que não interfere, no mais mínimo que seja, na sua decisão de matá-los. Mas confessar isso seria exibir um crachá de sociopata. E sociopatas, por definição e fatalidade intrínseca, vivem de parecer que não o são.































Ban Ki-moon (Secretário-Geral das Nações Unidas).




Papa Francisco e Ban Ki-moon







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