terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Etnografia e Nacionalidade

Escrito por Orlando Vitorino




1940: Comemoração do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). Ver aqui



«Em 1940 estava por quase toda a gente verificado que a sociologia idealista, positivista ou materialista não poderia servir de doutrina explicativa da História de Portugal. Haveria, porém, que descobrir o motivo complexo (quer dizer, oculto), que inibia naquela data a opinião pública de comparar a nacionalidade com a sua filosofia, e a essa investigação se dedicaram os estudiosos que haviam ficado descontentes com os resultados do Congresso do Mundo Português. Datam, pois, de 1940 o desenvolvimento da filosofia portuguesa e a consciência de que existe um modo português de filosofar.

Quem souber ler a nossa História da Literatura, e também a nossa História do Direito, não terá dificuldade em reconhecer que um espírito superior conferiu autonomia ao pensamento português. Os estudos positivos de Teófilo Braga, Fidelino de Figueiredo e Hernâni Cidade, no domínio da História da Literatura, como os de Paulo Merêa, Cabral Moncada e Marcelo Caetano, no domínio da História do Direito, comprovam que o modo português de filosofar não recebeu adequada expressão didáctica nas escolas instituídas por imitação da cultura europeia. Quem pensar no silogismo da árvore, constituída por um tronco mediador de raiz com a copa, quem souber ler o simbolismo do barco, do vaso e da nave nas obras das nossas artes plásticas, quem tiver leitura do que não está na escritura, facilmente entenderá que é destino do espírito português flutuar sobre as águas.

A Casa de Portugal, no extremo da Europa, talvez a muitos pareça ser a Pequena Casa Lusitana, de que falou Camões. Esta expressão significa, porém, que Portugal é a metrópole de um país ultramarino, que o pensamento português é um pensamento atlântico. Estando acima do elemento líquido, que a tinta representa na arte de escrever, o pensamento inefável torna-se incomensurável com as vulgares expressões de cultura.

Portugal não é uma província, uma terra vencida, e portanto servil, da mentalidade dominante na Europa Central. Portugal é uma nação tão culta, e criadora de cultura, como aquelas que lutam pela supremacia na política internacional. Esta verdade tem de ser afirmada sem receio de que os comparativistas a contradigam pelos sinais que denunciam um complexo de inferioridade.


Promontório de Sagres (Algarve).



Razão há, pois, de acusar de provincianismo todos quantos, entre 1870 e 1940, defenderam o estulto programa de europeizar Portugal pela adopção de uma cultura estrangeira, talvez já ultrapassada. Quem for ler as obras de Cunha Seixas, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra facilmente descobrirá e descreverá o modo português de filosofar. Depois, pelo estudo comparativo da filosofia portuguesa com as filosofias estrangeiras, verificará que teria sido um erro provinciano aceitar sem crítica a tese dos que nos recusam autonomia cultural.

Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins procuraram obter fama pelo fácil processo de denegrir tudo quanto é português, e, consequentemente, o que constitui a razão de ser da nossa nacionalidade. Discernindo muito bem que a cultura é o elemento mediador entre o culto e a civilização, os doutrinadores das Conferências do Casino adoptaram habilidosamente a dialéctica da contradição dos extremos, sem preverem que a necessária consequência tinha de ser a negação da Pátria. Administradas em livros que gozam de prestígio literário, as opiniões daqueles escritores ainda não foram completamente submetidas à metodologia da prova, e continuam a ser divulgadas até nas escolas de ensino público.

(...) Entre a frase de espontaneidade popular, com a sua musicalidade específica, e a respectiva representação gráfica, com a forçada divisão em palavras e em sílabas, interpõe-se um certo número de sábias convenções internacionais que positivamente obscurecem o problema filológico. O analfabeto diz as frases naturais do seu falar, a povoação amolda o idioma e dá-lhe uma perfeição fonética e poética que se regista no folclore, o povo organiza assim valores expressivos numa sua forma de cultura; mas este processo, que o etnógrafo observa e que o etnólogo explica, conclui-se muitas vezes por tradições que podem não estar legalizadas pelos gramáticos latinistas ou pelos literatos germanistas. Estudar a alma, e até o espírito, de um povo pelo folclore, tem de ser, pois, o primeiro programa de um curso de filologia».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).







«Ensina-se nas escolas que a ciência é uma só e a ciência clássica não foi mais do que precursora da moderna. Ao ensinar-se esta maneira de ver - à qual têm sido dedicados laboriosos e notáveis estudos, como La Science dans l'Antiquité, de Abel Rey - confundem-se as concepções da ciência clássica com as utilizações que delas faz a ciência moderna, sem atender à adulteração que no caminho se interpõe. A adulteração consiste, de um modo geral e constante, em trocar a biologia, em que se espelha a ciência clássica, pela mecânica, em que se estrutura a ciência moderna, em trocar o animal vivo, que é o mundo dos clássicos, pela natureza morta, que é o mundo dos modernos.

(...) A "filosofia portuguesa" ultrapassa as limitações da ciência, que são as do tempo e do espaço, desde logo porque é a filosofia de um povo que descobriu e reconheceu sensivelmente como a forma do mundo dos homens é a forma global, representação do "infinito que se encontra percorrendo todos os caminhos do finito". Assim a descreve aristotelicamente Camões no Canto X de Os Lusíadas e com ela pôde este povo pôr em acto a catolicidade, ou "universalidade concreta", que o cristianismo até então possuía em potência. "Com o globo mundo em sua mão", pode a filosofia portuguesa pensar o mundo sensível "maravilha da criação", imagem sempre latente no pensador da alegria que é Leonardo e insistentemente repetida por Álvaro Ribeiro.

Se a tal imagem a acompanha a contrapontística exclamação de José Marinho sobre o "mundo imundo", há aqui uma dramática sensibilidade para com a existência e a persistência do mal, que "é imoral negar", bem contrastante com a fria, obsessiva e trágica sanha do espiritualismo nórdico contra a natureza indomável. Desta sanha se originaram belas e elucidativas narrativas mitogénicas, como a da novela Moby Dick, que incitam ao império mecânico do homem sobre a natureza, império já hoje amplamente exercido para, ao fim, ambos, homem e natureza, às mãos um do outro soçobrarem».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).




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Etnografia e Nacionalidade

Com escândalo, se não com ridículo, foi recebida a afirmação de Nietzsche de que a Europa precisava de passar por um século de analfabetismo.

Meio século depois, o etnólogo português Adolfo Coelho, publicava um livro intitulado «Cultura e Analfabetismo», no qual defendia a tese de que o conhecimento da escrita e da leitura em nada contribuía para o progresso de um povo. E aproveitando a onda de horror contra a barbárie germânica, promovida, então como hoje, pela guerra mundial decorrente, Adolfo Coelho mostrava que, sendo a Alemanha um dos povos com menos analfabetos, era também o mais horrífico dos povos aos olhos moralistas dos países ofendidos. Aliás, de evidente significação era já o título do breve estudo, «Cultura e Analfabetismo», termos conjuntados pois conciliáveis.

Da cultura possuía Adolfo Coelho uma noção germânica, já então patentemente oposta à «ilustração» alfabética que o iluminismo exigia da varinha de condão da política que lhe corresponderia e que de facto lhe correspondeu, durante o século XIX. A cultura não era o alfa e o beta das primeiras letras, mas o alfa e o ómega da realidade nacional.

Etnólogo, Adolfo Coelho definia a etnografia como sendo o estudo da formação das tradições de um povo; isto é: a etnografia é o estudo da cultura popular. Logo, muito distante do significado ainda hoje predominante da cultura como divulgação, estava o etnólogo português.

A cultura popular não seria, como não é, o corpo dos conhecimentos humanos postos ao alcance de todos, por virtude de um rebaixamento desses conhecimentos a fórmulas vulgares por vulgarizadas, fáceis por facilitadas e falsas por falsificadoras. A cultura popular seria, como é, uma sabedoria própria do povo, por ele criada e por ele guardada, original e profunda.

Definida deste modo a cultura, importava sobremaneira conhecê-la, tomar consciência dela, e desenvolvê-la nas diversas formas de actividade que, nela se inspirando, por ela adquiririam originalidade e verdade.

Assim, o etnógrafo seria o estudioso da origem cultural ou popular. Um grau acima, o etnólogo interpretaria os elementos da etnografia, possibilitando a sua utilização pela arte, pela filosofia e pela religião, e, mais do que possibilitando, nelas os integrando. Só existia uma arte autêntica – e uma filosofia e uma religião – quando radicadas no povo.






Estátua de Viriato (Viseu).






Falcata



Mais laborioso etnógrafo e menos inteligente etnólogo, Leite de Vasconcelos tornou esquecido o nome do seu par e seu contemporâneo Adolfo Coelho. E ao evocar os nomes de Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, logo nos ocorrem os de Teófilo Braga e de Vasconcelos Abreu. Esta équipe do Curso Superior de Letras tem hoje seus continuadores na Faculdade de Letras que lhe continua as tradições, sendo justo destacar os Professores Manuel Heleno e Mário de Albuquerque, assim como podemos referir, da Faculdade de Letras de Coimbra, os nomes dos Professores Virgílio Correia e Aarão de Lacerda.

De fonte germânica são os estudos que, por levarem tão longe o domínio da etnografia, abrangem nele o estudo das religiões. À etnografia pertencem as investigações sobre os mais antigos e enigmáticos documentos religiosos, como o Zhoar, a Bíblia, a Tábua de Esmeralda ou os Vedas. Assim, a etnografia toca fronteiras com a religião, servindo-a.

Os primeiros estudos etnográficos provêm do período romântico. Seu iniciador foi Herder, e esse início participa do movimento continuador da civilização europeia, interrompida, nas suas linhas gerais, desde a Renascença ao iluminismo. Os fundamentos deste, começaram então a ser aniquilados, embora o iluminismo ainda hoje subsista numa forma de aberração política a que pertencem todos os internacionalismos. Na política define-se pois a etnografia como defensora das autonomias nacionais. E é na etnografia que as nacionalidades encontram a sua justificação, jamais determinável mediante abstractas noções jurídicas. À nacionalidade definida como uma realidade jurídica, opõem-se com vantagem os argumentos económicos ou de ordem chamada sociológica do internacionalismo.

Esta verdade tem sido reconhecida por todos os países. Qualquer português medianamente viajado, como Ramalho Ortigão, conhece o Museu do Trocadero em Paris. A França, embora não arranque a máscara de um desinteressado nacionalismo, sabe quais os meios de defesa e propagação da nacionalidade a empregar para o domínio dos demais povos. Assim, embora oponha à noção etnográfica de cultura a sua noção de «civilisation» universal, a França cuida do que culturalmente muito lhe importa, e apresenta ao olhar do viajante «civilizado» esse grandioso monumento de etnografia que é o Museu do Trocadero.

Musée d'Ethnographie du Trocadéro (finais do séc. XIX).








Aos estudos etnográficos alemães nos referimos já. E contudo a Alemanha é um país circunscrito a um território continental.

Dos demais países de forte afirmação nacional, como a Inglaterra e até os Estados Unidos, chegam-nos sinais do desenvolvimento da etnografia.

Deste modo, e em toda a parte, embora a política por aberração ou cálculo, continue a exigir a unidade internacional, essa exigência ou é retrógrada ou visa apenas uma unidade que, feita pela cultura, imponha uma cultura. Monstruosa pretensão esta que, no entanto, se encontra hoje, não só possível como facilitada, pelos meios técnicos de expansão, sejam eles o cinema, a rádio e a imprensa.

Nesta hora, mais do que nunca, compete aos povos defenderem-se contra as ameaças que os rodeiam. E compete às entidades responsáveis recorrer às culturas populares e desenvolvê-las. Nelas reside a primacial defesa das nacionalidades, uma vez por terra, em plena evidência, a inutilidade das abstracções jurídicas e sociológicas dos bacharéis enfatuados e alfabéticos.

Portugal tem responsabilidades próprias e comuns. Nas próprias importa assinalar que Portugal possui vastas Colónias e que a reunião destas em Império supõe o conhecimento e fortalecimento etnográfico delas, como única base de toda a possível acção unitiva. Às comuns pertence a nossa cooperação na etnografia brasileira.

No Brasil, a mesma raça implica a mesma tradição, e a mesma língua implica o mesmo desenvolvimento dos rudimentos da cultura. Afins, portanto, são os interesses por brasileiros e portugueses tidos na etnografia e na etnologia.

Estuda-se e prepara-se, neste momento, a futura realização em Lisboa de um Congresso Luso-Brasileiro de Etnografia.

Existem em Portugal, como no Brasil, etnógrafos de valioso mérito. Faltam em Portugal, como no Brasil, os elementos de sistematização necessários para que os estudos etnográficos ascendam a estudos etnológicos.


Lisboa (2015)



Falta-nos uma Grande Enciclopédia Portuguesa de Etnografia. Não se julgue, porém, que ela deva ser ordenada por ordem alfabética como o é, por exemplo, a Grande Enciclopédia Luso-Brasileira. Estaria antes dividida por assuntos, e de cada qual seriam indicados todos os elementos sobre ele conhecidos.

Falta-nos um Museu Etnográfico. Não um museu género turístico ou de colecção, mas um museu onde se encontre reunido e utilizável todo o material imprescindível ao estudo, e instalado num palácio de arquitectura monumental que, por razões óbvias, melhor seria edificado longe da capital cosmopolita.

Falta-nos um Instituto de Etnografia. Não um instituto inútil, constituído por reformados profissionais de diversas profissões, mas um instituto que provasse a sua meritória utilidade, e cuja primeira missão poderia ser elaborar a Grande Enciclopédia Portuguesa de Etnografia.

Está, pois, em estudo a realização de um Congresso Luso-Brasileiro de Etnografia. Receia-se que este congresso não possa vir a ser uma reunião de trabalhos concludentes. E este receio já previne os congressistas de tudo que falta aos estudos etnográficos luso-brasileiros. Importa, pois, que desse congresso – o que aliás é a sua única justificação – saiam os primeiros fundamentos para uma etnografia sistematizada. Os etnógrafos compreendem já que a etnografia se não limita a mera curiosidade folclórica. E se a realização deste congresso oferecer as garantias de eficientes resultados, as entidades competentes e responsáveis não podem deixar de o promover sob pena de contribuírem para que a expansão internacionalista – cujas diversas formas astuciosas os políticos a todo o momento denunciam – invada e obrigue a desaparecer, dentro de cinquenta anos, o nosso vasto mas informe Império Colonial. E para que evidente apareça esta temível realidade, lembremos que a acção política, violenta ou não, é o fruto amadurecido de uma subversiva expansão de cultura, nesta hora internacional e internacionalista multiplicadamente facilitada. 

(in Atlântico, Revista Luso-Brasileira, Edição do Secretariado Nacional de Informação e da AN, dirigida por António Ferro e António Vieira de Melo, Lisboa/Rio de Janeiro, Nova Série, n.º 4, 1947, pp. 78-80).


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