sábado, 19 de maio de 2018

Contestando a chamada «descolonização»

Duas entrevistas a Silvino Silvério Marques






«Dois dias depois, por ocasião das comemorações do 1 de Maio, organizaram-se várias manifestações dominadas pelos protestos contra o sistema colonial, tendo havido alguns presos que foram, porém, libertados por iniciativa do MFA local. E a 3 de Maio realizou-se outra demonstração popular, promovida pela chamada "Comissão Civil Democrática de Apoio à Junta de Salvação Nacional", que se apresentou como uma "aliança das várias esquerdas", mas que era na verdade afecta ao MPLA; de resto, durante o evento os participantes (quase todos brancos) fizeram discursos "anticapistalistas, contra a guerra e a favor da libertação dos presos políticos", reclamando ainda o "regresso de Agostinho Neto" a Angola, o início de "negociações com os movimentos armados" e o "corte de relações com a África do Sul e a Rodésia".

O aspecto mais interessante destas primeiras manifestações reside no facto de elas permitirem perceber que o MPLA assumiu a dianteira ao nível da mobilização popular. Aliás, segundo a análise do cônsul-geral norte-americano, o movimento de Neto tinha à partida vantagens relativamente a todos os outros, desde logo porque era "o único que poderia preencher o vazio entre a comunidade negra", também pelos "importantes laços com os mestiços" e ainda porque tinha algumas ligações com os brancos, como por exemplo com Manuel Vinhas.

A Organização do Movimento das Forças Armadas como estrutura paralela à hierarquia tradicional e a sua ascensão a principal centro do poder em Angola também foi acompanhada por Everett Ellis Briggs. O momento fundamental deste processo foi a visita de Costa Gomes a Luanda, entre 3 e 4 de Maio, ocasião aproveitada pelo general para forçar um conjunto de mudanças ao nível dos comandos militares locais que no seu conjunto foram favoráveis ao MFA, com quem, de resto, Costa Gomes se alinhou desde o início: foram então afastados o comandante-chefe, substituído por Franco Pinheiro, e vários altos responsáveis do exército, força aérea e marinha. Além disso, o Movimento das Forças Armadas não ficou subordinado ao governador, mas sim ao comandante-chefe, um seu aliado objectivo, tendo criado ainda um gabinete próprio (o Gabinete do MFA).

Para Briggs não havia dúvidas de que o MFA era "o verdadeiro poder por detrás da JSN", sendo que em Angola o seu controlo se fazia através de Franco Pinheiro, a quem seria "permitida rédea solta enquanto o movimento considerasse a sua actuação aceitável"; caso contrário, ele seria "removido". Para o cônsul norte-americano, estes desenvolvimentos "respondiam definitivamente à questão de quem mandava".

Referindo-se a estes acontecimentos, Pedro Pezarat Correia, um dos líderes do MFA em Angola, escreveu de forma esclarecedora: "A situação só começa a desbloquear-se com a chegada, nos primeiros dias de Maio, de uma delegação do MFA presidida pelo general Costa Gomes". E depois de descrever algumas das mudanças então verificadas, acrescentou: "(...) criou-se o Gabinete do MFA, que seria na realidade a Comissão Coordenadora do MFA em Angola, ainda que sem os poderes institucionais de que esta dispunha em Portugal, dado que aqui os seus membros tinham assento no Conselho de Estado".

Sobre a visita de Costa Gomes a Angola importa ainda acrescentar que o general afirmou durante uma conferência de imprensa que os movimentos armados locais "não eram representativos" e que o futuro do território ia "reflectir a vontade do povo, expressa de forma democrática".

Outro dos primeiros desenvolvimentos relevantes da descolonização de Angola foi a proliferação de partidos políticos, processo que se iniciou logo a 5 de Maio com a criação do Partido Cristão Democrata de Angola (PCDA) e que atingiu rapidamente números da ordem das várias dezenas.

Pezarat Correia apresentou uma interessante sistematização destes novos partidos, referindo que eles se agruparam no essencial em três grandes conjuntos. Um grupo era constituído por "partidos que vinham da oposição à ditadura colonial e se identificavam com o Movimento Democrático de Angola (MDA)", sendo que este "tinha relações com o MDP português e apoiava o MPLA"; neste integrava-se a Frente Unida de Angola (FUA), "que chegara a ter alguma expressão na área Benguela/Lobito". Outro conjunto era formado pelos "pequenos grupos tribalistas ou apoiados em personalidades", quase todos "absorvidos pelo Partido Cristão Democrata de Angola", e que privilegiavam o apoio à FNLA. O último agregado integrava todos os que "assumiram a fisionomia de organizações armadas, mais ou menos clandestinas, contra o MFA", com destaque para a Frente Revolucionária de Angola (FRA), "à qual aderiram elementos de partidos que inicialmente pretenderam formas federativas de ligação a Portugal", mas, uma vez inviabilizado esse projecto, acabaram por ver na FRA o instrumento para "uma independência liderada pela minoria branca"; neste grupo incluíram-se ainda os que em Cabinda lutavam por uma independência unilateral do enclave, com destaque para a FLEC.






António Champalimaud. Ver aqui e aqui


O consulado dos Estados Unidos em Luanda foi relatando o aparecimento dos vários partidos políticos, ainda que pouco adiantando para a compreensão da sua natureza, projecto e apoios. Contudo, num telegrama enviado a 21 de Maio e destinado a dar conta da criação de um novo partido de direita, Briggs acrescentou um comentário interessante: "[António] Champalimaud pode estar por detrás desta iniciativa". E qual era o programa deste grupo político? Segundo Briggs, ele ia muito mais longe do que os restantes na definição dos objectivos dos "elementos extremistas" entre os colonos brancos, contando-se entre as suas reivindicações "a transferência do governo para Nova Lisboa, a proibição das greves, a mudança do Banco de Angola da Metrópole para Nova Lisboa, a criação de uma indústria de extracção de diamantes e o fim da perseguição dos membros do antigo regime, caso eles aceitasssem aderir a este partido". Ainda segundo o cônsul-geral norte-americano, as actividades do industrial português não se limitavam ao campo político-partidário, estando também a apostar nos meios de comunicação social, tendo "ressuscitado o diário O Comércio de Luanda".

Em paralelo com a proliferação de partidos políticos, assistiu-se às primeiras tentativas de recrutar mercenários para operar em Angola. Pela mesma ocasião, Everett Briggs informou o seu governo que recebeu várias informações de que oficiais e sargentos do exército português estavam a "receber propostas para actuarem como mercenários" a troco "do dobro ou do triplo do seu ordenado". E uma vez mais Champalimaud estava por detrás da iniciativa, havendo indicações de que ele era "o principal apoiante deste futuro exército angolano de oficiais brancos" destinado a "proteger os seus interesses económicos quando o exército português deixasse o país».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«A nomeação do general Silvino Silvério Marques para o Governo-Geral surpreendeu-nos. Tanto ele, como o general Spínola nos tinham assegurado do que o governador seria outro. Silvério Marques estaria comprometido para a governação de Moçambique.

Entretanto, o dr. Almeida Santos viajou para Angola, pretendendo, com a "humildade" que o caracteriza, auscultar a população e o seu sentir, na procura de informações para a escolha de um governador unanimemente aceite. Melhor: um governador cujo nome seria indicado pelo povo. Em suma, a prática da democracia, no seu maior esplendor...

Almeida Santos, não obstante uma sensibilidade nunca desmentida, uma inteligência constantemente exibida, um espírito democrático evidenciado desde a sua permanência na Beira (invoco o testemunho insuspeito do eng. Jorge Jardim), apareceu à varanda do palácio, com o dr. Diógenes Boavida, amigo e condiscípulo, que lhe enalteceu as qualidades. Recebeu vaias e insultos. Os angolanos estavam cansados de farsas e desilusões. Não aceitavam o processo que se delineara nas suas costas e, friamente, fora posto em execução, contra os seus desejos e contra os seus legítimos direitos.

Silvino Silvério Marques, um militar honrado, oficial-general de capacidade confirmada em Angola, não chegou a completar o elenco governativo, pois ainda procurava homens aptos para os lugares (e não lugares para os homens), quando o chamaram para Lisboa. Sofreu ataques de hipócritas e aduladores, que o atraiçoaram, sem lhe afectar a estatura de português de lei.

Nesse período, ocorreram os trágicos incidentes dos muceques, provadamente da autoria de provocadores treinados no estrangeiro que se infiltraram em Angola e atearam uma fogueira sangrenta, com centenas de mortos e feridos, para lá de incalculáveis bens saqueados e destruídos. O conflito, que tomou a amplitude de uma batalha, teve origem no assassínio de um motorista de táxi. Mas, não fora a acção dos provocadores, a carnificina seria impossível.

Do mesmo modo, esses provocadores urdiram um trabalho de sapa, atirando as etnias umas contra as outras, usando dos mais variados expedientes para gerar a desconfiança, a violência, a incerteza do dia de amanhã.

Escuso-me a repetir as injúrias e as acusações aleivosas de que o general Silvino Silvério Marques foi alvo, num momento em que o próprio Governo de Lisboa o traía, ao retirar-lhe os meios de actuação contra a desordem reinante. Limito-me a realçar a sua serenidade, a ponderação, o estoicismo com que procurou sanar os constantes distúrbios, que, por tudo e por nada, estalavam um pouco por todo o território, com natural incidência nos centros urbanos.

Começara a grande luta dos partidos políticos. Só por si, as suas origens e a sua história preencheriam as páginas de um livro. De um pólo ao outro, as cores e os credos distribuíam-se e misturavam-se numa confusão indiscritível. Racistas, pacifistas, belicistas antagonizavam-se, desrespeitando os mais rudimentares preceitos éticos e humanos, numa selva de instintos alucinante. Angola ruía, paralisado o trabalho, desorganizada a economia, desvairadas as gentes, ante a ameaça de um porvir mais cruel do que o terrorismo.


Silvino Silvério Marques


Um dia, o governador-geral chamou-me ao palácio e convidou-me para um cargo que seria como que o equivalente a ministro itinerante, para contactar os líderes dos movimentos, quer em África, quer noutra parte do Mundo.

A missão agradava-me e confiava na minha experiência e nas minhas ligações para levá-la a bom termo. No entanto, chamei a atenção de Silvino Silvério Marques para o facto de estar iminente a realização de um congresso convocado pela Revolta Activa, com o objectivo de se estabelecer uma frente única do MPLA. Teríamos, portanto, de aguardar os resultados e agir em conformidade com eles. O general concordou e assim nos despedimos, com o convite em aberto.

Precedentemente fora procurado por Francisco Antas, do comité político do MPLA, para solicitar a minha interferência junto do governador-geral, a fim de que concedesse uma audiência a ele e aos seus colegas. Pretendiam autorização para o MPLA realizar uma campanha de propaganda política escrita e pela Rádio, além de comícios e sessões de esclarecimento, destinados à politização das massas populacionais de Luanda. Adverti Francisco Antas de que o general Silvério Marques certamente recusaria, atendendo a que ficara assente, pelo Governo de Lisboa, que o MPLA só poderia intervir publicamente, no campo político, quando depusesse as armas.

Antas retorquiu-me que o MPLA não depunha as armas, porque os seus membros não eram parvos. Se o governador-geral não acedesse ao pedido, desencadeariam a guerrilha urbana, o que, pessoalmente, lamentava, mas que não estava no âmbito das suas funções impedir, pois pertencia ao comité político e nada tinha a ver com a organização militar.

Apesar de tudo, fui ao palácio e transmiti o pedido a Nuno Cardoso da Silva, secretário do governador-geral. Soube que o general recebeu os elementos do comité político do MPLA e, como era de esperar, não autorizou a campanha. Creio, até, que foi bastante duro, expulsando-os do gabinete.

No dia seguinte ao convite que recebera, para "ministro" itinerante, Silvino Silvério Marques revelou-me que fora convocado, por telegrama, para se apresentar, urgentemente, em Lisboa.

O MPLA, ainda na clandestinidade, mas já com a arrogância dos maus vencedores; os movimentos democráticos e as associações económicas, liderados pelo engenheiro António Castilho, máscara de democrata e havido como opositor de Salazar, mas que singrou e prosperou à sombra dos favores do regime, persona grata do "almirante vermelho", que o levou a Alvor como conselheiro (?), conseguiram os seus intentos, afastando quem lhes amputava as desmesuradas ambições de Poder e lhes impedia as trapaças.

Pedimos ao general que desobedecesse às ordens de Lisboa e continuasse em Angola. A sua integridade de carácter, o seu brio de militar fê-lo pagar, no último quartel da vida, o tributo aos caluniadores, com os quais não pactuou.


SILVÉRIO MARQUES TRAÍDO


Silvino Silvério Marques bem merece que lhe dediquemos algumas linhas de homenagem.

O general, contrariando os detractores, cegos pelo sectarismo mais nojento, ao aceitar - por solicitação de, praticamente, a totalidade da população - o cargo de governador-geral de Angola, não albergava ideias pessoais de mando. Silvino Silvério Marques é um homem austero, militar nobilíssimo, com conhecimentos profundos sobre os povos e os problemas angolanos. Dentro de si não cabem ideologias fanatizadoras. Mas não lhe deram tempo para governar, embora no estrito cumprimento do famigerado Programa do MFA. A sua experiência governativa, a sua entrega à defesa das classes menos favorecidas, o seu amor a Angola, eram garantes dos frutuosos resultados da sua gestão. Inexplicavelmente, porém, a Junta de Salvação Nacional tirou-lhe poderes, levada por traição ao espírito desse Programa? Pela degradação dos valores morais do País? Por outra razão que me escapa?

Quando da sua chamada a Lisboa - uma ida sem regresso - o MPLA fez circular um panfleto, de que transcrevo as passagens que julgo essenciais:

"A cobardia, a mentira e o ódio são as armas dos colonialistas, fascistas e racistas. O repugnante governador-geral de Angola, ao embarcar para Portugal, onde irá prestar contas dos massacres que os seus capangas colonialistas têm feito aos angolanos, teve a ousadia de dizer a um jornalista de "A Província de Angola", que as declarações apresentadas ao senhor criminoso de guerra Spínola, respeitantes aos massacres da população dos nossos muceques, eram falsas, porquanto a situação em Luanda não é tão alarmante. Já o jornal de geração colonialista o "Diário de Luanda", publicou, na sua edição de 19 do corrente, o seguinte: 'Mentiras de Luanda, chegam a Lisboa. O assassino Silvino Silvério Marques veio governar Angola só com o objectivo de vingar a morte de seu filho, caído em combate, em Cabinda; dar mais força aos assassinos colonialistas; reorganizar a nojenta PIDE/DGS, que agora se encontra sob o comando do colonalista, racista e fascista general Franco Pinheiro'... "É necessária a transmissão de poderes entre o Governo português e o MPLA. Sem isso, o MPLA não deporá as armas!..."

Eis a linguagem da "verdade" do MPLA.

Li, algures, a opinião de uma alta personalidade estrangeira, que, após o 25 de Abril, visitou  Portugal, o país, que, como dizia Paiva Couceiro, era "Império esparso no Mundo". É o que nós somos e não apenas a estreita nesga, no extremo ocidental da Europa, que essa personalidade retratou aos orgãos de Informação: "Em Portugal só encontrei três caras - a Cara do ódio, a Cara do Medo e a Cara da Tristeza. Não vi mais ninguém..."

A Angola se podia aplicar esta definição lapidar. O ódio tudo subverteu, como se o vulcão da ignomímia tivesse explodido em lava que tudo queima e devasta. O medo vi-o reflectido nos rostos de homens, mulheres e crianças de todas as etnias. A tristeza descortinei-a, dia a dia, nas rugas que se cavavam nas trágicas máscaras de pessoas feridas na sua dignidade, humilhadas até à servidão, violadas e espoliadas, desprovidas de fé, rechaçadas, impiedosa e brutalmente, por um meio de súbito hostil.

Ver aqui


Quem, como eu, conhecia Silvino Silvério Marques, o seu fervor pela justiça, o seu destemor perante as ameaças, a sua humanidade, o seu desejo de bem-fazer, o seu orgulho de Português, o seu infinito querer ao Ultramar lusíada e a sua intenção de encaminhar Angola na senda da honra, do trabalho, e da paz, não pode, sem cólera e tristeza, deixar de repudiar os insultos ao General, mesmo vindos de quem, nas recuadas épocas de estudante, preferia bebedeiras, febras de porco e prostitutas (de que hoje tem saudades), aos sonhos de um povo, a cujos destinos viria a presidir.

Com a partida de Silvino Silvério Marques para Lisboa desapareceu a última esperança de Angola, a esperança de um futuro sem ruínas e caos, sem miséria, sem martírios, sem gentes que morriam na defesa inútil de vidas e haveres, sem ódios, sem medos, sem tristezas.

Desmenti firmemente as alegações do MPLA contra o general Silvino Silvério Marques e, neste livro, ratifico as minhas afirmações aos elementos do COL e da Segurança Nacional, como imperativo de consciência e repúdio da conspiração de que tão ilustre figura foi vítima. Como diria o dr. Marques Palmeirim, Silvino Silvério Marques tinha a África no sangue, que é bem mais importante do que a ter apenas na cor da pele.

O general acreditou no poder de um Homem-joguete de forças organizadas e, vítima da fatalidade, não errou. Enganou-se.

Primeiramente, por não ter exigido que, em si, fossem unificados os poderes. Sei que não o fez, por deontologia, por camaradagem para com outro general. Tal exigência "despromoveria" o general Franco Pinheiro, o que, aos olhos de Silvino Silvério Marques, seria aviltante.

Depois, conservou ao seu serviço, embora com carácter transitório, o dr. Franco, chefe de Gabinete que herdara do tenente-coronel Soares Carneiro, quando este oficial desempenhara as funções de encarregado do Governo. O dr. Franco atraiçoou o general Silvino Silvério Marques, guardando a sua canina fidelidade de "bufo" para Rosa Coutinho, e de há muito usava a coleira do MPLA. Foi o dr. Franco quem, deslealmente, com a perfídia dos animais venenosos, se aproveitou do seu cargo para fornecer fotocópias dos documentos trocados entre as autoridades portuguesas e o dr. Jonas Savimbi , que o MPLA utilizou como cartazes gritantes e demolidores do líder da UNITA, publicando-os nos areópagos internacionais. O dr. Franco participou no "Processo da Descolonização", virtuosa da dissimulação, sempre a cheirar o lado do vento. Jamais o esquecerei, a espiar os frequentadores do bar do hotel Trópico. Igual ao "almirante de pacotilha", um arremedo de homem, sem ideias, subserviente por índole, acomodatício por ambição, rastejante como o verme que era.

O general Silvino Silvério Marques acreditou no prestígio e na força do Spínola. Imprudentemente se deslocou a Lisboa, ao ser convocado pelo MFA. Nessa altura, apesar da evidência o contrariar, convencíamo-nos de que Spínola não era ainda marioneta de forças ocultas, manobradas por Costa Gomes e Varela Gomes, ambos hipotecados ao PCP.

Silvino Silvério Marques, militar leal de um Exército "que não desembainha a espada para oprimir, mas para reprimir. E que, uma vez desembainhada a espada, só a volta a embainhar com honra", no minuto da decisão respeitou a disciplina, quando, simbolizando o Ipiranga de Angola, teria salvo o território da opressão, do terror, da ruína, do pânico, da invasão. Açoitado pelos ventos da desfortuna, o general nunca teria sido afastado do seu posto, se não surgisse, na cena política nacional, a figura louca de Vasco Gonçalves.

Quando chegar a hora de prestar contas a Deus, dois pecados terei na consciência: o de ter impedido que "raptassem" Silvino Silvério Marques, quando, esgotados os nossos rogos para ficar, se dirigia ao aeroporto de Luanda, no início de uma viagem para o anonimato; e de não ter deixado que abatessem, como ser imundo, Rosa Coutinho (mas isso é outra história com a qual nada tem a ver Silvino Silvério Marques, um general ilustre, que o nosso pobre País atirou para o esquecimento. Naturalmente: não é de "aviário"...)».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Para além do episódio da escolha de Silvino Silvério Marques, a visita de Almeida Santos a Angola teve ainda outros dois momentos significativos. O primeiro foi uma manifestação organizada pelo MPLA, ou pelo menos apadrinhada por este movimento, que juntou cerca de cinco mil pessoas junto do palácio do governo para exigirem a independência imediata. O outro foi a contra-manifestação da população branca, tendo-se entoado slogans de apoio ao velho regime. No relatório dos acontecimentos, o cônsul norte-americano concluiu que era "fundamental Portugal iniciar as conversações com os movimentos rebeldes", pois a situação era "potencialmente explosiva"».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).




Angola antes do 25 de Abril de 1974. Ver aqui






Carmona











Luanda. Ver aqui


























Benguela (Palácio do Comércio).











«P. - Concretamente, senhor Governador, parece haver sintomas, não completamente provados, de que haveria conhecimento de elementos estranhos e estrangeiros a Angola que teriam estado na origem do desencadear de acções violentas.

R. - Não tenho conhecimento - e tenho a impressão de que o senhor Comandante-Chefe também não tem conhecimento disso.

Mas, efectivamente, foi-me relatado por alguns elementos, há dois ou três dias, que se admitiria que elementos extremistas - maoístas - teriam realmente chegado a Luanda, estariam infiltrados na Universidade, no Instituto Pio XII e nos muceques.

Isto chegou-me por mais de uma via, não tive possibilidade de o referir ao senhor Comandante-Chefe, mas também suponho que a ele terá chegado, mas não tenho possibilidade de saber se se trata de um facto ou de um boato.

De resto, compreenderão que, hoje, as possibilidades de informação concreta sobre aspectos desta natureza não são fáceis.

(...) P. - Senhor Governador: é verdade que depois dos acontecimentos da noite de 11, houve uma delegação da população africana que quis falar comigo, para explicar o que se passou, e que a não quis receber?

R. - É mentira. É uma mentira grosseiramente espalhada. Eu digo o que se passou:

Na noite de 11 para 12, estive reunido, em minha casa, com todos os Generais que estão na Província. Estivemos a acompanhar os acontecimentos e o senhor general Comandante-Chefe a accionar as medidas que, nessa tarde, tinham já sido preparadas em face da presunção de acontecimentos que não se sabia se se iriam passar ou não, nem onde. Nessa noite, resolvemos que no dia seguinte, nos reuniríamos aqui nesta mesa, os generais e mais alguns elementos, para estudarmos uma série de medidas a tomar, que depois foram tomadas.

Sexta-feira é também o dia do Conselho de Governo, que começa às 9 horas e por isso marquei o meio-dia para a outra reunião.

Quando vim para o Conselho de Governo, reparei que havia uma série de indivíduos africanos, muitos já, nas imediações do palácio. Disse ao meu secretário que, dos grupos de africanos que ali estivessem, mandasse subir, por cada grupo, uma delegação de 5 a 6 membros para eu falar com eles, porque para isso interromperia o Conselho de Governo. De resto, tencionava ir ao hospital, ver os feridos.

Interrompi o Conselho de Governo, talvez cerca das 10 horas, sendo entretanto alertado de que não deveria ir ao hospital. No corredor, alguém me veio dizer que elementos africanos queriam trazer os cadáveres, em desfile, para a frente do Governo-Geral. Já se tinha feito um desfile destes, um desfile macabro, de mau gosto e de grande falta de respeito por todos, em 1961 ou 62. Disse: desfiles desses por aqui não quero, pois considero-os falta de respeito para com os mortos. Só isto.

Fui para o meu gabinete e ouvi umas 4 ou 5 delegações de representantes de grupos africanos, com os quais troquei impressões, úteis para eles e certamente úteis para mim.

A certa altura, vieram-me dizer que a Polícia estava, por qualquer razão e por qualquer ordem que não sei quem deu, a dispersar a população que aqui estava em frente. Chamei o oficial que estava a comandar a Polícia e disse-lhe para deixar a população permanecer no local. Suponho que quando desceu, parte da população já lá não estava.

Estes são os factos. De resto, quem me conhece em Angola, não tem qualquer dúvida de que eu não procederia doutro modo. E quem me conhece em Angola, sabe que a população toda, africana ou europeia, tem chegado a mim sem qualquer dificuldade: ou pela porta principal da residência, que está sempre aberta, ou através da Secretaria do Governo.








Vala comum dos antigos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas assassinados às ordens de Luís Cabral (1980).





Luís Cabral



P. - No seu discurso, quando da posse dos governadores dos territórios africanos, o general Spínola afirmou que todos os movimentos políticos tinham liberdade de se preparar para as eleições ou para o referendo, e de fazer a sua campanha na Imprensa, a sua campanha eleitoral, de se manifestar abertamente. Vi que na Guiné-Bissau, a confraternização entre o Exército português e os homens do Paigc, entre os comandantes portugueses e os comissários políticos nacionalistas, é real, é efectiva, é maravilhosa. Isto não acontece em Angola, e tenho a impressão de que os activistas do Mpla estão impedidos de se manifestar e de falar livremente nas ruas com os jornalistas estrangeiros. Pode-me dizer porque essa abertura não está aplicada da mesma forma na Guiné-Bissau e em Angola?

R. - A razão é muito simples. Não sei o que se passa na Guiné portuguesa, mas suponho que, na Guiné, os homens que confraternizam em Bissau não matam soldados no mato. Achava o senhor que realmente se justificava que andássemos aqui aos abraços e que lá no mato os nossos soldados africanos e europeus andassem a ser mortos e a matar os elementos do Mpla?

Nós distinguimos os movimentos e as associações cívicas que estão aqui no interior e que não estão com armas na mão (e essas têm liberdade para escrever e para falar) dos movimentos que têm armas na mão. É esta a diferença.

É evidente que se esses movimentos deixarem de ter armas na mão e se vierem lutar com ideias, se desistirem de impor as ideias pelas armas, podem vir para aqui dialogar como os outros.

(...) P. - (Em resumo, perguntou-se porque é que não se pode fazer a propaganda dos movimentos emancipalistas, o que não acontece em Portugal europeu e - também - se verifica com os distintivos e bandeiras transportados em manifestações).

R. - Relativamente a esses "movimentos emancipalistas" - um eufemismo que designa os que estão em combate - o Comando-Chefe - que integra o Movimento das FA - toma algumas precauções. Não parece justo que os soldados combatam - e estão a combater, a morrer - contra determinados movimentos, que também estão a combater e a morrer - e que simultaneamente, se dê guarida à propaganda escrita ou falada, através da nossa informação. Não há país do mundo onde isso se tenha feito. Haver quem nos combata com armas e nós a oferecermos os jornais e a rádio para fazerem a sua propaganda, é impossível. Quanto a dísticos e bandeiras, é evidente que eles têm aparecido em circunstâncias especiais com certa tolerância. Mas eu não o aconselho a si, por exemplo, a andar por aí a passear com a bandeira do Mpla.

(...) P. - Diz-se que a PSP não tem actuado como deve ser, em relação à população. Notou-se que o Comando-Chefe retirou essa PSP do contacto directo com os muceques, ficando mais na disciplina do trânsito... Estará a PSP a trabalhar como deve ser ou haverá algum problema?

R. - É evidente que o contacto duma força com a população, sobretudo em momentos de crise, pode levar essa força a produzir uma má imagem. Infelizmente, a imagem da PSP perante a população, foi-se deteriorando. Umas vezes com justiça, outras sem ela. Permita-me que lhe diga que é função de todos fazer o possível para prestigiar a polícia, para educar a polícia, no sentido de que a polícia é bastante aquilo que a sociedade for...

Desmoralizar uma polícia é um crime. É necessário compreender as dificuldades com que ela se debate. Precisávamos duma polícia que fosse bem paga, de elementos de escol. Infelizmente isso não é possível, e a certa altura, a população sente que a Polícia não é aquilo que ela desejava que fosse. Pede ao Sr. Comandante-Chefe a substituição dela pela PM ou pela própria tropa. Também admito que a imagem que a população tem das FA à medida que os contactos se forem estreitando, se deteriore um pouco... É fruto da situação que vivemos.

P. - Gostaria de comentar... as cautelas a ter com o saneamento a nível de serviços e do Governo local...

R. - O saneamento dos Governos Ultramarinos consta do programa do Movimento. E abrange apenas os Governadores Gerais. Não inclui os governadores de Distrito, enquanto na Metrópole inclui os governadores civis.

O resto do saneamento, no Programa, é definido de forma geral. Tenho verificado que na Metrópole e dentro dos serviços públicos, tem procurado fazer-se de harmonia com legislação existente... e não de qualquer modo.






P. - A minha pergunta refere-se a medidas que estejam a ser tomadas  (sei agora que é proibida a circulação automóvel a partir das 20h30... não sei se há outras) para bem de toda a população. Toda a população espera que sejam tomadas medidas no sentido de impedir que corra mais sangue. Haverá outras importantes medidas a serem tomadas, está projectada alguma coisa de concreto?

R. - Está concretamente. Estão tomadas disposições militares. Estas podem, infelizmente, não ser suficientes para impedir que corra sangue. É muito difícil garantir isso, principalmente em determinadas zonas e a partir de determinadas horas.

P. - (Paris Match) - A diferença entre pessoas mais ricas e menos ricas, as diferenças entre possibilidades económicas das diferentes etnias, as diferenças e divisões entre os próprios elementos dos partidos emancipalistas, não poderão fazer correr o risco duma guerra civil, risco esse que poderia ser diminuído se antes de qualquer solução política se fizessem reformas fundamentais no sentido do social, de salários, por exemplo, que dessem um poder real ao povo angolano e não um poder económico às companhias estrangeiras?

R. - Se o senhor conhecer algum país que tenha feito essas reformas, de tal modo que resolva, relativamente aos seus habitantes de camadas sociais diferentes, que ainda existem em todos os países, esses mesmos problemas, diga-me qual a receita para a aplicarmos...

P. - Há rumores de um fechar de olhos ante a actividade de organizações de extremistas brancos. Gostaria que V. Ex.ª me dissesse se há realmente algum indício da existência dessas organizações e, em caso afirmativo, que se poderá ou que se estará a fazer para desmantelar imediatamente essas organizações?

R. - Não quero dizer que não me cheguem notícias de que realmente haverá organizações dessas... não quero dizer que não pense que não haverá... Mas efectivamente, concretamente, nada foi detectado. Porque se soubéssemos algo de concreto, não tenha dúvida de que seriam tratadas como devem ser. Não tenha dúvidas...

P. - Posso então concluir que este Governo-Geral não tem qualquer indício da existência real de organizações de extremistas brancos.

R. - Não.

P. - Em face da pouca audiência que os orgãos de comunicação social têm de chamar ao diálogo todas as pessoas, para se tentar resolver, pelo diálogo e pelo contacto, estes problemas graves que vivemos, não será possível planear e efectuar uma acção directa, de chamada da população total, por promoção de reuniões de esclarecimento, em que estivessem presentes elementos qualificados de todas as etnias e através das quais se procurasse realmente transformar a situação de hostilidade, numa situação de diálogo e de encontro dos caminhos que todos desejamos?


R. - É uma ideia interessante, que talvez possa ser trabalhada».

Conferência de imprensa dada em Luanda pelo General Silvino Silvério Marques, a 16 de Julho de 1974, segundo a reportagem de «a província de Angola» do dia seguinte.


«Pouco mais de oito meses haviam decorrido desde o golpe militar que abalara a Nação e uma forte convicção ganhara corpo no meu sentir e receios que se avolumavam, à medida que tomava consciência de que os objectivos, então apregoados por todo o lado, não passavam de simples quimeras que Portugal, mas principalmente Angola, iriam pagar com a maior das traições.

Desde o 25 de Abril, que com avanços e recuos, os efectivos detentores do Poder em Portugal tinham sido elementos de formação ou pendor marxista que conseguiram neutralizar os adversários. Em Angola esse poder exerceu-se fundamentalmente em dois sentidos:

- Desvinculação da Cláusula do Manifesto do MFA apresentado ao País pela Junta de Salvação Nacional, relativa à realização de eleições livres sob a responsabilidade de Portugal, abertas a todas as associações políticas angolanas existentes, sem excepção, e reconhecimento do MPLA, FNLA e UNITA como únicos representantes do povo angolano, a quem Portugal entregaria a soberania de Angola.

- Simultaneamente e através duma política paralela de factos consumados, ir contribuindo para o fortalecimento do MPLA, por forma a que este movimento tivesse supremacia militar sobre a FNLA e a UNITA, quando se verificasse a transição de soberania.






Agora, no Alvor, ia-se de forma solenemente hipócrita, tentar que o mundo acreditasse na "isenção" dos responsáveis portugueses quanto à transferência do poder em Angola. Ia-se assinar um papel de grandes princípios e compromissos, mas em Luanda os próceres portugueses continuariam a persistente política de consolidação de força do MPLA, que esteve na origem da guerra que dura há vinte e cinco anos.

Nessa noite, os dados estavam lançados e já ninguém conseguiria evitar que o grande equívoco se consumasse. Mesmo sem as prometidas eleições, o Alvor, se nele tivessem prevalecido as rectas intenções, poderia ter reconduzido Angola para o seu despertar; os dados viciados que foram usados transformaram-no no início dum penoso crepúsculo duma nação que não chegou a nascer».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Em boa verdade Costa Gomes, enganou, vigarizou e traíu o Povo!

Como político-militar, bem poderemos parafrasear Cavalcanti: "É indivíduo que pensa uma coisa, diz outra e faz o contrário". Foi assim, que levou os ingénuos moçambicanos e angolanos... nas suas andanças, prédicas e actos... Até este general - só não enganou Salazar - não resistiu ao apetite pantagruélico do comunismo internacional».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«(...) foi-me dito pelo gen. Costa Gomes que não era verdade que tivesse recebido o "crachat" de ouro da Dgs. Essa notícia teria sido uma invenção de jornalistas. Disse ao gen. Costa Gomes que, na primeira oportunidade, rectificaria a referência que fizera ao "crachat" de ouro. Aconteceu entretanto que de duas pessoas totalmente independentes, ambas visitas do general, vim a saber, casualmente, em presença de terceiras pessoas, que o "crachat" de ouro existia e se encontrava mesmo exposto numa "vitrine" de sua casa. Confirmei, de resto, por outra via, a entrega, feita em Luanda. Nestas circuntâncias não há lugar à rectificação prometida».

Silvino Silvério Marques («CORRIGINDO ERROS», artigo que o semanário «Tempo» intitulou «Documento Histórico sobre Descolonização», publicado em 15 de Abril de 1976).


«Subtraindo os episódios ocorridos aquando da chegada do general Costa Gomes a Angola, quando se extremaram as posições entre a PIDE/DGS e os militares, o general nunca teve dúvidas do real valor da PIDE/DGS e da sua contribuição para as operações militares em Angola. Na verdade, o seu apoio à polícia política valeu-lhe a oferta de um crachá de ouro da PIDE/DGS e de uma arma semiautomática AK-47 Kalashnikov que fora apreendida pelos Flechas. O general ficou radiante com as ofertas, conforme testemunhou Óscar Cardoso».

Fernando Cavaleiro Ângelo («Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola»).



«Cavalos de Tróia em Luanda


Assinados os acordos de cessar-fogo, os Movimentos armados tinham permissão para se fixar na capital. A delegação da FNLA, constituída por oito elementos e cerca de 80 convidados foi a primeira a aterrar em Luanda, em 30 de Outubro. Sem escolta policial, simpatizantes e filiados desfilaram do aeroporto até ao Hotel onde a comitiva ficou provisoriamente alojada. A instalação em qualquer parte do território era uma prerrogativa comum aos protocolos assinados com todos os Movimentos, mas uma outra autorização foi revelada pelo próprio almirante Rosa Coutinho. "E autorizei mais: cada um, para se sentir em segurança, se fizesse acompanhar por uma delegação, uma força militar que não poderia exceder 600 homens, que já era bastante". Cada Movimento poderia ter 600 militares armados em Luanda para não ficarem "indefesos perante a população" [ou não seria antes a população que ficaria, assim, inerme e indefesa?]. A ideia tinha sido sua "depois de os Movimentos considerarem que não podiam ter condições de segurança em Luanda". Tinha sido uma decisão "consensual" na Junta? A pergunta impunha-se por parecer difícil que os comandos de Luanda (que tinham de lidar diariamente com tiroteios nos subúrbios) concordassem com a entrada de mais 1.800 homens armados nesses bairros já tão problemáticos. "Da minha parte", foi, respondeu. Para Pezarat Correia, a decisão não pode ser contestada. Tinha sido "acordado que, para irem para Luanda, [deveriam] prover a sua própria segurança. [...] Eles eram Movimentos armados, não eram partidos políticos!"



(...) Purga em Luanda















Rosa Coutinho e Vasco Gonçalves



Depois de o ELNA ocupar uma casa no Morro da Luz (próxima do quartel do Estado-Maior das FAPLA) e de o Postoyna ter aportado, no dia 29 de Abril ocorreu mais "um intenso tiroteio na região suburbana" de Luanda, de que resultaram 24 mortos e 108 feridos, tanto civis como militares. Os bombardeamentos começaram nessa madrugada e foram-se agravando nos dias seguintes "com mortos, feridos e indisciplina das populações". No Conselho Coordenador, Silva Cardoso perguntou se a "quarta força" tinha estado envolvida. Na reunião com os Estados-Maiores angolanos apenas o MPLA falara nessa presença, informou o comodoro. A CCPA [Conselho Coordenador do Programa (do MFA) para Angola] não detectara a participação de tais indivíduos. Para Silva Barata, como em Março ocorrera militarmente "um equilíbrio entre o MPLA e a FNLA", era uma forma de "transferir a culpa" para outros e não entrarem "em confrontação armada directa". Seria muito difícil evitá-la: os soldados da FNLA estavam "obstinados contra o MPLA" que acusavam "de lhes ter destruído uma delegação": "Não lhes vão perdoar", disse Ferreira de Macedo. Os tiroteios e as desocupações forçadas de residências que estavam a ocorrer poderiam "arrastar" os brancos para o conflito, levando-os a reagir, alertou o primeiro-tenente Sabino Guerreiro. Para Simões, a FNLA estava a "recorrer ao argumento da cor" para arranjar problemas. Não tinha sido "a FNLA que tomou a iniciativa de falar em raças, mas sim o MPLA", contrapôs Valente. O ódio aos brancos estava há meses a ser instigado, referiu Silva Barata: ainda antes de Alvor fora o MPLA a apelar "ao racismo" para "ganhar a simpatia da população negra"; agora era a FNLA a ameaçar que "os brancos não escapariam". "O problema da cor" tinha sido mencionado pela primeira vez na CND [Comissão Nacional de Defesa] oito dias antes, precisou Leonel Cardoso. E o ministro da Agricultura da FNLA, Mateus Neto, "chamou a atenção várias vezes no Conselho de Ministros que na próxima onda de violência os brancos seriam atingidos no asfalto", completou o Alto-Comissário. Estavam "criadas as condições para o aparecimento 'às claras' da quarta força", insistiu Barata, e não seria constituída apenas por brancos, pois já existia "população negra a revoltar-se contra os actos cometidos pela FNLA e pelo MPLA". O primeiro-tenente Soares Rodrigues concordava: não se deveria identificar a quarta força apenas com a etnia branca, pois muitos africanos a integravam.

Os Movimentos queriam "a todo o custo denunciar a quarta força" para começarem a "prender indivíduos brancos", referiu Ferreira de Macedo. Alguns já tinham sido capturados. Segundo as FAP tinham sido efectuadas "prisões de europeus e africanos com aplicação de maus-tratos e roubos dos seus haveres por parte do MPLA aos prisioneiros conduzidos à Praça de Touros", que estavam a ser "sujeitos a péssimo tratamento e a torturas". O relatório da semana anterior pormenorizava as condições no cárcere: "Sequestro de brancos para a Praça de Touros em Luanda por parte do MPLA, onde são severamente espancados e submetidos aos maiores vexames durante horas seguidas. Nos interrogatórios, entre outros actos indignos, obrigam os presos a repetir durante horas: 'O povo é o MPLA e o MPLA é o povo'". E não se poderia contar com a tropa. A desmotivação das unidades era tal que em breve não se poderia contar com elas. Não se sentiam motivados a participar no apaziguamento dos conflitos, e por esse caminho chegar-se-ia a um ponto em que a chamada dessas forças já não valeria de nada, referiu Barata. Se não se pudesse contar com a tropa, "as consequências seriam funestas" e as FAP sairiam de Angola "com a cara suja", disse. O próprio Conselho da Revolução disse à CCPA (na reunião que tiveram) ser "preferível correrem-se riscos do que sairmos vexados". Macedo duvidava que o uso da força prestigiasse Portugal, até por o emprego da força em caso de incumprimentos pelos angolanos não estar previsto no Acordo de Alvor. Os Movimentos tinham começado "a apalpar terreno" desde a posse do governo, disse Rodrigues. Como perceberam que podiam agir à vontade sem sofrerem represálias, aumentaram a intensidade dos confrontos e já o faziam despudoradamente enquanto a parte portuguesa só estava "preocupada em chegar a 11 de Novembro sem dar tiros".

As unidades estavam cansadas de ser deslocadas "de um lado para o outro sem proveito nenhum", afirmou Vilalobos. Julgava, aliás, que a população branca ainda não tinha ido embora por "falta de meios", pois estava "igualmente farta de ver atitudes de fraqueza das Nossas Tropas em relação às atitudes inconvenientes dos Movimentos". A maioria estaria "apenas à espera do fim do ano lectivo para sair", mas depois do que acontecera deveria começar por partir de imediato. De qualquer modo, independentemente do que se fizesse, Portugal iria sempre julgar a tropa em Angola: "por fazer ou por não fazer". "Se ainda estivéssemos ao mesmo nível ou a um nível superior, estaríamos à vontade para aplicar a força, mas neste momento a nossa força está por baixo", disse Sabino Guerreiro. Só a parte portuguesa cumpria um acordo que não tinha "existência real no terreno", concluiu. Para Barata talvez fosse aconselhável pôr as tropas "a defender o alcatrão" (zona residencial da população branca). Porque se os brancos não fossem protegidos poderia "assistir-se à nossa corrida daqui por eles".

Os receios deste major não eram infundados. Depois dos seus domicílios serem invadidos por indivíduos armados à procura de armas,  de serem despejados à força das suas casas, de serem ameaçados, agredidos ou mortos, no dia seguinte (1 de Maio) centenas de brancos protestaram junto do Palácio, exigindo meios para deixar Angola. A multidão insultou a tropa por não os proteger: "Derrubaram o gradeamento e os portões mas foram travados na porta pela PM. [...] Queriam ir embora de Angola e gritavam: 'Estamos a ser mortos. Estão a violar as nossas mulheres'". Pela primeira vez desde a posse do governo a população colona mostrou a sua indignação. Os comandantes que surgiram à janela foram apedrejados (uma pedra rasou a cabeça de um deles) e alguns vidros da fachada partidos. Os brancos tinham percebido estar por sua conta e risco. A violência entrava-lhes em casa e não havia a quem recorrer. O protesto não era exagerado: nas noites anteriores o tiroteio impressionara quem tinha feito várias comissões de guerra, como o coronel Passos Ramos: "Balas tracejantes riscavam o céu. Uma coisa medonha. Estive na guerra muitas vezes debaixo de fogo e nunca vi tanto tiro na minha vida como naquela noite".

Entre 29 de Abril e 2 de Maio os luandenses viveram debaixo de fogo cerrado de "grande intensidade". Aos bombardeamentos contínuos "com emprego de armas ligeiras, metralhadoras pesadas, lança-granadas-foguete e morteiros" seguiram-se as acções de fogo posto e pilhagem. Apesar de proibidas as comemorações do Dia do Trabalhador, milhares de populares saíram à rua "enquadrados por civis armados e elementos dos Movimentos, com maior relevância por parte das FAPLA". Ocorreram assaltos e saques em "habitações dos bairros suburbanos"; coacções ao abandono de certas residências nesses bairros; "agressões, violações de mulheres e a prisão indiscriminada de cidadãos". No cimo dos edifícios e em viaturas junto às sedes partidárias avistavam-se atiradores furtivos, brancos e negros. Calculava-se que em menos de uma semana teriam sido mortas 300 pessoas e feridas 600: a quase totalidade, civis. Tinha sido "a mais violenta onda de distúrbios" em Luanda desde Julho de 1974: "Como sempre, a maior vítima dos recentes incidentes em Luanda foi a população africana dos muceques, embora seja também elevado o número de europeus desalojados e espoliados. Ondas de refugiados afluíram à cidade do asfalto as mais das vezes trazendo apenas a roupa que vestiam". Uma "enorme cadeia de solidariedade" canalizou para a capital "grandes quantidades de roupas e géneros alimentícios" para algumas escolas transformadas "em verdadeiros centros de refugiados"».

Alexandra Marques («Segredos da Descolonização de Angola»).









«A União Soviética (...) não esperou para ver no que ia dar o Acordo do Alvor. Alguns dias apenas após o encontro do Algarve, e na sequência da política iniciada três meses antes, Moscovo forneceu ao MPLA "armamento suficiente para equipar cinco a sete mil tropas", bem como "milhares de AK 47" destinadas a "armar os grupos de poder popular dos musseques de Luanda".

(...) No início de Maio de 1975, o consulado dos Estados Unidos em Angola enviou para Washington três telegramas confidenciais muito interessantes.

O primeiro dava conta das informações secretas recebidas pelo posto da CIA na África do Sul. Na noite de 30 de Abril, "um grupo de nove pessoas foi preso pela polícia no aeroporto de Luanda"; todos tinham "passaportes portugueses novos", mas só conseguiam "falar um pouco de português"; foram detidos por ordem do ministro do Interior, Ngola Kabangu, da FNLA, e "examinados por um antigo colaborador da DGS"; eram "dois russos, dois jugoslavos, dois búlgaros, um brasileiro e outros dois de nacionalidade não identificada"; tudo indicava que "tinham sido enviados pelo Partido Comunista Português para ajudar o MPLA".

O segundo, enviado no dia 6, anunciava a "expulsão de oito estrangeiros de Angola", descritos como "pretensos jornalistas e professores que entraram ilegalmente no território angolano usando nomes falsos e um salvo-conduto emitido pelo MPLA", tendo sido "enviados pelo PCP, com passaportes falsos, para ajudar a organizar e perpetrar um golpe do MPLA em Maio"; de resto, há meses que havia informações sobre a "introdução em Angola de agitadores profissionais com o propósito expresso de criar confusão urbana e caos"; os nomes dos indivíduos expulsos eram: "José Milton Temer, brasileiro; Leonid Repin, soviético; Jiri Janousek, checoslovaco; Aurel Zaintesou, romeno; Jean Nguie, congolês; Voight Werner, alemão".

Finalmente, o terceiro telegrama informava que uma fonte da facção Pinto de Andrade do MPLA forneceu ao consulado os nomes de um conjunto de indivíduos "portugueses, brancos, membros do PCP, enviados ao grupo de Neto", nomeadamente: "José Eduardo Barbosa; Mário Nelson; Pratts; Madaleno; Rudolfo Silas de Eça Queiroz"».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).


«(...) fui informado de que, na sequência da viagem do Iko Carreira a Moscovo, cargueiros soviéticos tinham chegado ao porto de Ponta Negra no Congo-Brazzaville onde descarregavam grandes quantidades de material de guerra destinado ao MPLA.

Este material tinha começado a entrar em Angola muito especialmente por via marítima e desembarcado nas praias desertas da imensa costa angolana, tanto a norte como a sul de Luanda. Impedir estes desembarques, de que os outros movimentos tinham conhecimento e conduziam a um clima de maior tensão, era uma missão praticamente impossível por exigir um esforço de patrulhamento com meios aéreos e navais que ultrapassavam em larga escala as nossas disponibilidades. Assim o material de guerra ia entrando, dotando os novos efectivos do MPLA com um potencial de combate que eles nunca tinham tido durante toda a guerra. Isto conduziu a uma superioridade em relação aos outros movimentos que provocaram reacções mais ou menos violentas, matando à nascença toda e qualquer tentativa de cooperação. Mas não é só o armamento que chega de Leste, pois segundo o Cônsul norte-americano, que me pedira o máximo de sigilo, também alguns conselheiros, especialmente da RDA (Alemanha do Leste) tinham entrado em Angola para fazer "turismo" e que, a curto/médio prazo, estariam previstas outras ajudas significativas quer em material quer em pessoal. Naturalmente procurei saber se eles próprios, norte-americanos, estavam a reagir a este assalto. É curioso e oportuno recordar que, uns anos mais tarde, nas funções de comandante-chefe nos Açores em 1983, me encontrei com um general norte-americano e ao falar-se de África e inevitavelmente de Angola, confidenciou-me que nos princípios de 1975 pilotara um C-130 várias vezes para Kinshasa integrado numa espécie de ponte aérea. Aterravam durante a noite e paravam ao fundo da pista, apagando as luzes. Entretando aproximavam-se viaturas pesadas de carga para as quais era transferido o material que transportavam enquanto um autotanque procedia ao reabastecimento do avião. Terminada a operação, voltavam a alinhar na pista e descolavam. Frisou que tinha sido uma autêntica ponte aérea para Kinshasa com muitas toneladas de armamento. Não revelou qual o ponto de partida, admitindo que tivesse sido na Libéria. Na sua opinião este material só poderia ter um destino: FNLA através de Mobutu.

Não havia dúvidas, as movimentações diplomáticas com a mudança de Cônsul em Luanda e de Embaixador em Lisboa e este apoio logístico só poderia ter um significado: tentar evitar que a URSS estendesse a sua influência a Angola. E os dois "jogadores", através dos seus tentáculos, estavam novamente em plena actividade para conseguirem o controlo daquela importantíssima parcela do território africano.

(...) No entanto e aproveitando a maré do 11 de Março na metrópole, reacende-se a guerra dos comunicados com acusações mútuas entre os movimentos, acompanhada por um outro fenómeno, até à altura bastante esporádico, que passou a ocorrer com maior frequência: os atiradores furtivos. Tiros disparados, não se sabia por quem, nem contra quem, que se faziam ouvir um pouco por toda a cidade alta mas, não por coincindência, com maior intensidade na Av. do Brasil onde a FNLA tinha a sua delegação. Por mais tentativas que se fizessem para localizar e capturar esses atiradores espontâneos, todas resultaram infrutíferas.


(...) Ao fim de muita conversa e insistência pessoais, tinha conseguido que os principais responsáveis dos movimentos de libertação em Luanda se reunissem e discutissem os problemas que estavam a afectar o processo de descolonização. Parecia-me importante que os três, sem a presença portuguesa, discutissem abertamente as questões que os dividiam e encontrassem os consensos possíveis para obviar às atitudes inconvenientes que todos os dias chegavam ao meu conhecimento e contra as quais eles não tomavam medidas. Nestas conversas tive sempre a preocupação de pôr o povo de Angola acima dos interesses pessoais ou partidários; se pretendiam defender os angolanos deviam unir-se e esquecer ou ultrapassar tudo o que pudesse contribuir para a anarquia e a desordem que reinava no território. Tinha conseguido Mombaça onde, infelizmente, nada ficou clarificado porque poucos estariam interessados nesse esclarecimento. Estas reuniões a sós, eram uma espécie de mini-mombaças que talvez dessem o seu fruto se houvesse um total cometimento sem qualquer espécie de subordinação a interesses estranhos ao povo de Angola. Uns dias antes tinha sido informado de "terem aparecido em Cabinda algumas carrinhas Volkswagen de matrícula alemã, transportando cidadãos alemães, os quais entraram pela fronteira de Miconje com guias passadas pelo MPLA sem que possuíssem qualquer visto válido para Angola".

Esta notícia recortava a que me tinha sido dada pelo Cônsul norte-americano de que conselheiros da RDA estariam a entrar em Luanda para apoiar o MPLA. Cada dia me convencia mais de que as boas intenções demonstradas pelos principais responsáveis dos ML, não passavam mesmo de intenções. Praticamente em todos os relatórios de informação que periodicamente me chegavam às mãos e de cuja imparcialidade não tinha quaisquer dúvidas, tudo apontava para que o problema da conquista do poder se resumia a uma questão de força das armas. Como seriam possíveis a paz e a concórdia entre todos se, em todos os relatórios de informação, o panorama traçado era altamente preocupante. Como por exemplo, no relatório de 05MAR75 a 12MAR75, podia ler-se:


e. - ATITUDES INCONVENIENTES COM REFLEXOS NAS POPULAÇÕES E NOSSAS TROPAS


- Continuou a registar-se a ocorrência de variadas atitudes inconvenientes com origem em elementos dos movimentos de libertação e da população em geral, os quais, apreciados globalmente, não se revestiram todavia de grande expressão.


-  No que concerne à prática de acções inconvenientes por parte de elementos afectos ao MPLA, FNLA e UNITA, verificou-se que os mesmos se distribuíram por tipos já do anterior referenciados, sendo de salientar:


- Roubo de 78 armas da OPVDCA [ Organização Provincial para a Defesa Civil de Angola] em Mazemba e ocupação do aeroporto de Cela à chegada de um membro do Governo da FNLA, por elementos do MPLA.


- Ocupação das instalações dos flechas no Luso, por elementos da UNITA e roubo de 249 GMO, 50 GMD, 30 GFumos, 78 dilagramas e 300 camuflados.


- Ocupação do campo de S. Nicolau por forças da FNLA que levou à intervenção das FAPLA tendo resultado um confronto armado e causado três vítimas.


- Hostilizações de natureza vária entre os movimentos, em especial entre o MPLA e a FNLA.


De assinalar o decréscimo, em número e gravidade, de acções inconvenientes por parte de elementos afectos ao MPLA.


- Relativamente a ocorrências da responsabilidade da população em geral, manteve-se o nível geral moderado indicado no período anterior, predominando as acções de assalto a instalações e roubos a civis. Desta actividade destaca-se:


- Assalto à Administração do Concelho de Ganda donde foram roubadas 29PMetr, 119 Esp e 6000 munições pertencentes à OPVDCA.

- Fuga de 100 reclusos da cadeia de Benguela, dos quais 30 se encontram ainda em liberdade.


- Assassínio de dois africanos (Cabinda e Henrique Carvalho).






Chegada a Angola do Alto-Comissário, Silva Cardoso.






Silva Cardoso, Alto-Comissário e Presidente do Governo de Transição de Angola, no discurso da tomada de posse, a 31 de Janeiro de 1975. Lopo do Nascimento (à sua direita, de roupa clara), Johnny Eduardo e José Ndele (à sua esquerda).






Ver aqui



(...) Na sequência dos atiradores furtivos e da guerra dos comunicados a FNLA tomou uma posição de força e, pelas armas, procurou controlar a situação dentro de Luanda. Verificaram-se muitas dezenas de vítimas com acusações de parte a parte. A UNITA desenvolve toda uma actividade pacificadora sem resultados, a Comissão Nacional de Defesa reúne e toma as medidas que considera necessárias para pôr fim ao conflito mas que nenhuma das partes cumpre. Cheguei a estar convencido que os próprios responsáveis principais dos movimentos em causa não tinham qualquer autoridade sobre as forças "militares" que supostamente comandavam. Entretanto o Governo, interrompendo a sua actividade principal e por indicação da Comissão Nacional de Defesa, debruçou-se sobre o problema e em 25 de Março tomou algumas medidas das quais se destacam:

- Execução de patrulhas mistas pela FAP/FALA durante o dia e à noite só pelas FAP.

- Regresso a quartéis das forças do ELNA e FAPLA.


- Recolher obrigatório das 2100 às 0600 que se iria manter nos dias 26, 27 e 28MAR75.


- Apelo à calma, fazendo ver que reaccionários e agitadores estavam empenhados na confrontação ELNA/FAPLA, tomando nela parte activa como provocadores.


- Pedidos de imediata entrega pelos civis de armas de guerra em sua posse.


Com estas medidas procurou evitar-se a culpabilização de um dos movimentos, remetendo-a para elementos marginais, de modo a não desencadear mais violência, assim como a entrega de armas se ficou pelos civis, não mencionando o poder popular como era pretendido pelos responsáveis da FNLA.

Acompanhava de perto a actividade do COPLAD [Comando Operacional de Luanda], agora substancialmente reforçado. O próprio Almendra que dispunha de um oficial de ligação de cada movimento, metia-se com eles no seu velho "carocha" e, pelo labirinto dos musseques, deslocava-se aos improvisados quartéis dispersos naquele enorme emaranhado de barracos, onde pensava que estavam a ser conduzidas as acções de combate. Curiosamente os delegados e responsáveis dos movimentos mostravam uma grande relutância, mesmo medo em segui-lo. Mas o Almendra nunca foi homem de meias-tintas e forçava-os a acompanhá-lo (algumas vezes teve que ir só, por o oficial de ligação do movimento em causa não ter aparecido no COPLAD). Punha aquela gente na ordem, não sentindo qualquer dificuldade em se impor. Mas o pior era que o Almendra não podia estar em todo o lado e mal ele voltava as costas tudo recomeçava de novo.

A 26 de Março o recolher obrigatório é respeitado. A população, de todas as etnias e cores, está positivamente em pânico porque nos confrontos não só é usada a arma individual, a pistola ou espingarda, mas também morteiros, bazucas e até canhões sem recuo. Durante o dia sucedem-se as manifestações em frente do palácio. As NT esqueceram o "momento revolucionário" que se vivia e empenharam-se briosamente na sua difícil missão de, com grandes riscos, tentarem controlar uma situação de guerrilha urbana, altamente complexa e, ainda por cima, sem inimigo directo».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«É igualmente um facto que nos meses de Maio e Junho de 1975 a guerra civil angolana não só se agudizou como se estendeu ao resto do território, sobretudo numa primeira fase ao Norte e Leste, tendo a iniciativa cabido ao MPLA que decidiu criar um "cordão sanitário" à volta da capital e derrotar a FNLA em todos os locais em que tinha uma superioridade militar, com especial ênfase no eixo Luanda/Henrique de Carvalho; o movimento de Holden Roberto respondeu no Norte, nos distritos do Zaire e do Uíge.

No início de Maio ocorreram combates fortes e ininterruptos em Luanda, havendo relatos sobre o uso de morteiros e bazucas e a existência de cerca de 500 mortos, na maioria civis. Pouco depois, os confrontos estenderam-se ao Caxito, Salazar, Teixeira de Souza, Luso e Nova Lisboa, ou seja, ao "cordão sanitário" da capital e ao longo da linha de caminho-de-ferro, e ainda a S. Salvador, Tomboco, Lufico e Ambrizete, isto é, ao Norte, entre Luanda e a fronteira com o Zaire. Nos finais de Maio, o conflito entre o MPLA e a FNLA atinge Carmona, Negage e intensifica-se em Cabinda. E no início de Junho, os choques militares entre os movimentos de Agostinho Neto e Holden Roberto chegam à área de Cacuaco-Quifandongo, numa tentativa do MPLA de evitar que a FNLA pudesse reforçar Luanda a partir da Barra do Dande, tendo o ELNA sido obrigado a retirar desta região e assim perdido o único acesso terrestre à capital.

Este período da guerra civil angolana, descrito por Silva Cardoso como "a primeira fase da estratégica para vencer a 'batalha de Luanda'", só terminou em meados de Junho, com a realização da Cimeira de Nakuru, ainda que os resultados desta tivessem vida curta. E durante todo este tempo os EUA limitaram-se a tomar medidas defensivas e a estudar a situação.

Depois da primeira ronda de combates, Killoran escreveu que o governo de transição não tinha capacidade para garantir um mínimo de segurança, tendo sugerido à administração Ford a saída dos norte-americanos residentes em Angola. O Departamento de Estado respondeu "ordenando a evacuação dos dependentes do governo dos Estados Unidos" e "recomendando" igual procedimento aos restantes cidadãos americanos.







(...) Tendo por base uma extensa investigação levada a cabo nos arquivos cubanos, Piero Gleijeses concluiu que Havana começou a intervir em Angola na segunda metade de Julho de 1975, correspondendo ao apelo feito por Agostinho Neto a Carlos Cadelo durante a cerimónia de independência de Moçambique no sentido de Cuba apoiar de forma significativa o MPLA. Fidel Castro decidiu então ajudar Neto, ainda que de forma inicialmente limitada, enviando-lhe dinheiro destinado às operações de transporte de armas para o território angolano. Assim, a 25 de Julho, Cadelo e Augustín Quintana deixaram Havana em direcção a Luanda com 100 mil dólares.

Importa referir a este respeito que a versão de Gleijeses sobre a data da entrada em Angola dos primeiros militares de Cuba não é consensual. Por exemplo, Gerald Bender sustenta que "ainda em Junho chegaram ao território angolano 250 conselheiros cubanos". Já Henry Kissinger defende que a intervenção cubana "começou em Maio" e "acelerou-se em Junho", frisando que tal aconteceu "antes do aparecimento dos sul-africanos".

(...) Em Setembro, Fidel Castro decidiu avançar, iniciando uma nova fase da Missão Militar Cubana em Angola através do envio de cerca de 500 conselheiros militares para o território. Entre os dias 16 e 20, os navios Vietnam Heróico, La Plata e Coral Island partiram de Havana em direcção a Luanda com os primeiros 300 elementos e com armamento. Simultaneamente, seguiram para Brazzaville dois aviões com o restante contingente.

De acordo com Piero Gleijeses, a única preocupação de Fidel Castro residia na "resposta dos portugueses à chegada dos navios cubanos", tendo deixado claro que era "preciso evitar a todo o custo um conflito armado com Portugal", pois qualquer que fosse o resultado, ia "dar a impressão de que estavam a invadir [Angola]". Contudo, Fidel tinha negociado ainda em Agosto com alguns destacados dirigentes político-militares de Lisboa e obtido a sua aquiesciência à entrada das tropas de Havana no território angolano.

A este respeito, importa destacar um facto muito interessante revelado por Piero Gleijeses. De acordo com o autor, dado que os estrangeiros precisavam de vistos concedidos por Portugal para entrar em Angola, o governo cubano solicitou a oficiais portugueses que garantissem que não ia haver obstáculos. O principal contacto para o efeito foi Rosa Coutinho, abordado de forma directa sobre o assunto durante a sua visita a Cuba em meados de Agosto. Ainda segundo Gleijeses, Coutinho e Fidel Castro "falaram demoradamente" e, depois disso, "os membros da MMCA não encontraram quaisquer dificuldades".

A conivência de alguns dirigentes de Lisboa no processo de entrada dos cubanos no território angolano foi confirmada por Vadim Zagladin, do Departamento Internacional do PCUS, que não teve dúvidas em afirmar que "as tropas cubanas seguiram com a anuência das autoridades portuguesas".

(...) Os primeiros relatórios dos serviços secretos norte-americanos com informações sobre a presença de cubanos em Angola datam de finais de Agosto de 1975. Num memorando elaborado no dia 20 desse mês, a CIA deu conta da existência de conselheiros militares de Cuba no território angolano e concluiu que era provável que tal estivesse a acontecer "a pedido dos soviéticos". Já o BIR escreveu dois dias depois num documento confidencial que "os soviéticos e outros países seus aliados, sobretudo Cuba, forneceram conselheiros [ao MPLA] para ajudarem no planeamento militar e na logística" e, embora a maioria destes elementos estivesse sedeada no Congo-Brazzaville, havia "crescentes evidências" de que alguns deles "estavam presentes nas unidades do MPLA no interior de Angola".

A 10 de Outubro foi a vez do consulado dos EUA em Luanda informar o Departamento de Estado da presença de militares cubanos no território através de um telegrama que foi imediatamente reenviado por Kissinger para as embaixadas em Kinshasa, Lusaka, Pretória e Lisboa. Nele, Killoran referiu que Silva Cardoso lhe tinha dito que no dia 8 tinham desembarcado em Porto Amboim tropas e armas provenientes de Havana. Ainda de acordo com o cônsul-geral, quando questionado sobre o número de militares de Cuba que estavam em Angola, o alto-comissário português disse que as suas informações apontavam para "sete mil", mas ele "duvidava que fossem tantos".

Fidel, Raul Castro e Otelo Saraiva de Carvalho em Cuba (Julho de 1975).







Um dia depois, no seu National Intelligence Daily, a CIA informou que "uma força considerável de 'voluntários' cubanos chegou recentemente a Angola a bordo de dois barcos", nomeadamente "um cargueiro presumivelmente usado para transportar armas e equipamento" e "um navio de transporte de passageiros com capacidade para 249 pessoas". O documento da agência acrescentou ainda que essa força era "composta por conselheiros militares", sendo que estes "estavam a operar conjuntamente com o MPLA no interior do território fazia já algum tempo".

Noutro documento, datado de 25 de Outubro, a CIA estimou que havia em Angola "poucas centenas de tropas cubanas". Porém, cerca de duas semanas depois, a agência relatou que a presença de Cuba no território "estava a crescer", estando os seus elementos a concentrar-se nas seguintes tarefas: "preparar as defesas antiaéreas de Luanda; gerir a antiga base militar portuguesa; aconselhar as unidades militares do MPLA; fornecer assistência médica às forças do Movimento Popular; operar uma rede radiofónica táctica".

A 20 de Novembro, o Departamento de Estado enviou para várias embaixadas norte-americanas um longo telegrama com o histórico da presença cubana em Angola, tendo destacado logo no início que a actividade de Havana no território angolano demonstrava "em grande escala a sua capacidade para exportar a revolução e a facilidade com que usam isso para cooperar com a URSS onde tal serve os interesses nacionais soviéticos.

Em seguida, o documento chamava a atenção para o facto de o envolvimento cubano na antiga colónia portuguesa ter começado há pelo menos dez anos atrás, nomeadamente através da concessão de "assistência moral e material ao Movimento Popular de Libertação de Angola". Segundo as informações do Departamento de Estado, durante a última década "várias centenas de quadros do MPLA receberam doutrinação e treino militar em Cuba e nas bases do Congo-Brazzaville"; mais recentemente, "várias dúzias de conselheiros cubanos" estiveram "nas bases de treino do MPLA em Massangano, em Angola, juntamente com conselheiros militares soviéticos".

O telegrama prosseguia alertando para o facto de o apoio de Havana ao movimento de Agostinho Neto ter aumentado significativamente desde Setembro de 1975, tanto em termos de homens como de material", ambos "transportados por ar e mar para o território angolano, quer directamente para Porto Amboim, no Sul de Luanda, quer indirectamente para Ponta Negra, no Congo".

Já no início de Outubro, "dois ou três barcos cubanos estavam em águas congolesas e angolanas", concretamente o Coral Island, que podia "transportar 500 soldados", o Vietnam Heróico, com "capacidade para 700 soldados", e o La Plata, que podia "transportar pequenos contingentes militares". Praticamente ao mesmo tempo, tropas e material de guerra provenientes de Havana estavam "a ser desembarcados por navios cubanos em Ponta Negra, no Congo", incluindo os últimos "tanques, veículos blindados, camiões e vários caixotes com armas e munições".

O documento terminava com uma lista exaustiva das actividades levadas a cabo por Cuba ao longo do resto do mês de Outubro: no dia 17, "dois aviões não identificados pousaram em Ponta Negra para transportar tropas cubanas para Angola; entre 17 e 18, "aviões soviéticos provenientes de Cuba aterraram em Brazzaville" transportando "entre 800 e 1000 soldados e dois médicos"; a 23, "300 pilotos cubanos e 60 angolanos que tinham sido treinados em Havana chegaram à base aérea de Maya Maya", no Congo; no final de Outubro, "um avião militar congolês com capacidade para 50 passageiros fez três voos para a Guiné-Bissau para ir buscar soldados cubanos e transportá-los para Ponta Negra, de onde foram levados, por barco, para Luanda"; pela mesma ocasião, "três aviões soviéticos carregados de armamento e mais tropas de Cuba aterraram na base aérea de Maya Maya"; durante a última semana de Outubro, chegaram ao porto de Ponta Negra "grandes quantidades de armamento", incluindo "tanques, carros blindados e metralhadoras", ao mesmo tempo que "estavam a ser montados em Maya Maya 12 Mig-21 soviéticos recém-chegados".

A "Operação Carlota" coincidiu no tempo com a "Operação Savannah", nome de código da intervenção militar da África do Sul em Angola.

Embora as primeiras tropas sul-africanas tenham entrado no território angolano em Agosto de 1975 e a invasão por tropas regulares só tenha acontecido em Outubro desse ano, a história do envolvimento de Pretória na antiga colónia portuguesa começou antes.

Desde praticamente o golpe de Estado militar de 25 de Abril de 1974 que a África do Sul acompanhou com preocupação o colapso [ou melhor, a entrega] do império colonial português. Primeiro em Moçambique, país com uma fronteira comum e com elevado grau de interdependência económica; depois em Angola, sobretudo pelos riscos de um desenvolvimento desfavorável no território ao nível da situação na Namíbia, temendo-se que esta pudesse transformar-se num bastião da SWAPO».

Tiago Moreira de Sá («Os Estados Unidos e a Descolonização de Angola»).







«Com a saída da FNLA e da UNITA de Luanda, Angola separava-se em três áreas claramente definidas: o primeiro daqueles movimentos ocupou o Norte; o segundo, Nova Lisboa, o Sul, excepto o Luso - onde o MPLA se conservou - e o Leste. O MPLA mal se atrevia a aventurar-se para longe dos limites da capital.

No Ambriz, Gilberto Santos e Castro dividia o comando das forças da FNLA com um general zairense. Com o coronel estavam o major Cardoso e outros camaradas de várias patentes.

Ainda sem a colaboração dos oficiais portugueses, a FNLA lançara, como disse anteriormente, a sua primeira grande ofensiva até ao Caxito, onde foi detida, porque o MPLA destruíra as pontes sobre o Dande e o material para as reconstruir vinha do longínquo Zaire. A FNLA cominava todo o Norte e as regiões que desciam até aos Dembos, embora sem ocupar o Piri e o Úcua.

O MPLA aproveitou a paragem da FNLA para um contra-ataque que obrigou o inimigo a refugiar-se no Ambriz, com pesadas baixas.

Já com Santos e Castro, a FNLA retomou a iniciativa, avançou até ao Morro da Cal, enquanto o MPLA se entrincheirava nas pedreiras do Cacuaco, e bombardeou Quifangongo, causando estragos na Estação de Tratamento de Água. Luanda ficou, por dias, sem luz e sem água.

Teria a FNLA chegado à capital angolana, não fora a aliança das Forças Armadas portuguesas com o MPLA. Chaimites e homens rechaçaram as tropas da FNLA, reconquistaram o Caxito e regressaram a Luanda, desfilando, triunfantes, pelas ruas da cidade.

Foi a vez dos cubanos fazerem a sua aparição pelo mar ou transportados em aviões russos. Sem grandes alardes. Não se viam na cidade, mas cerca de seiscentos soldados instalaram-se na Cerâmica Imperial, de Coelho da Silva. Outros dispersaram-se pela zona do Cacuaco. Outros, ainda, rondando os três mil, guarneceram Cabinda. Reputo em quatro mil, o total dos efectivos cubanos. Em 13 de Agosto, numa conferência de Imprensa, Lúcio Lara tinha anunciado o encerramento da luta armada em Luanda, revelando que "um país amigo" estaria ao lado do MPLA, a fim de contribuir para a sua total implantação e a sua hegemonia em Angola. Não indicou, porém, qual era o "país amigo". Só o soubemos em Outubro, quando os soldados de Fidel Castro enfileiraram com as FAPLA.

Garantia-se, à boca pequena, que Luanda constituía muralha impenetrável, pois as defesas tinham recebido o reforço de mísseis, descarregados de navios russos. Sem que as tais minas explodissem. Um episódio que ainda há-de ser contado...

O dia da independência aproximava-se. Restringiu-se o movimento no porto da capital. Os cubanos chamaram a si o policiamento.

Em 9 de Novembro, a FNLA desencadeou violentíssimo ataque. Travou-se um ciclópico duelo de artilharia. Os combates prolongaram-se desde a madrugada até às cinco da tarde. As granadas choveram em redor da fábrica de pólvora de Luanda, sem a atingir. Faltaram, pela segunda vez, a água e a luz. Os géneros alimentícios desapareceram das prateleiras das lojas. Não havia pão. Um quilo de batatas, das poucas que restavam, custava duzentos escudos. A fome e a anarquia empolgaram os habitantes.

Às cinco da tarde, fez-se silêncio. Um silêncio mais aterrador que o estrondear das granadas, do que a fuzilaria das armas ligeiras. O MPLA derrotara os atacantes, comandados pelo general zairense, porque Santos e Castro se afastara ou fora afastado. Nunca se soube qual das hipóteses é a verdadeira e os porquês das modificações operadas nos comandos da FNLA.

Os cubanos actuaram com crueldade, não poupando sequer, os soldados das FAPLA, seus companheiros de luta. Obrigavam-nos a ir para a frente, sem comer ou beber, alvejando-lhes as pernas a tiro.






Tropas da FNLA (1975).









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Noites antes, uma avioneta de Holden Roberto sobrevoara Luanda, disseminando manifestos dirigidos à população angolana e aos portugueses, em que afiançava que não destruiria a cidade, nem maltrataria os habitantes. Pedia que todos se mantivessem calmos durante o ataque; que ninguém se expusesse, que não servisse de anteparo ao MPLA. O seu objectivo - acrescentava - era exterminar o "poder popular", a OMA (Organização das Mulheres Angolanas), as FAPLA e os comunistas.

Perdeu a batalha e, com ela, a sua derradeira oportunidade.

No dia 11 de Novembro, Angola festejou a independência [salvo seja!]».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«Cabo Verde era um arquipélago deserto quando, há mais de meio milénio, foi achado. Assim S. Tomé. Assim Madeira e Açores. Com gente de África e da Europa foram sendo povoadas aquelas ilhas desertas. Como S. Tomé. Os povoadores da Madeira e dos Açores, longe de África, foram exclusivamente europeus; isto está explicando comportamentos incoerentes de responsáveis importantes, na realidade portugueses (?) racistas.

Ilhas áridas, embora de excelente clima, pobres, sujeitas, quanto a pluviosidade, a serem ou não atingidas pelas oscilações da frente intertropical, e, consequentemente, a secas, muitas vezes de consequências catastróficas, mesmo assim a sua população miscigenada, crioula, foi crescendo andando talvez hoje pelo meio milhão de habitantes, metade ou mais tendo necessidade de viver fora do Arquipélago. Que ilhas desertas e áridas pudessem ter dado origem a um grupo humano tão numeroso, tão característico, e, em geral, tão culto e apto, constitui verdadeiro milagre de acção portuguesa.

Com uma estrutura político-administrativa semelhante à do território europeu, Cabo Verde, antes do 25 de Abril de 74, detinha nas mãos de muitos filhos seus - cabos-chefes, regedores, administradores de concelho, presidentes de câmara - a Administração, os Tribunais, o próprio Governo, este através da Assembleia Legislativa, do Conselho de Governo, e, por vezes, até do Governador. Se alguma gente nova, politizada, em geral em Lisboa, ambicionava, ultimamente, lugares e responsabilidades em soluções políticas de maior autonomia ou mesmo de independência, gente qualificada mais madura, não deixava de almejar soluções do tipo adjacência, sobretudo desde que fosse possível conjugá-las com a manutenção das possibilidades oferecidas pelo quadro comum do funcionamento ultramarino. Na verdade, zona natural de emigração por carência de condições económicas para absorver toda a sua população, era na sua Grande Pátria Portuguesa que o cabo-verdiano se realizava, ascendendo, no sector público e no sector privado, aos mais altos postos, tanto no Ultramar como no rectângulo europeu. Sendo o grupo crioulo de Cabo Verde, em resultado da natureza difícil do seu meio original, constituído por gente frugal, habituada aos sacrifícios e a vencer as dificuldades, e geralmente bem preparada, tornara-se verdadeira ponta de lança na administração, na técnica e no simples povoamento da nossa Grande Pátria. A sua Pátria alargada, da qual eram cidadãos completos (sofrendo, embora, por vezes, os choques de um multirracialismo ainda não perfeitamente consolidado) oferecia, estruturava e materializava as mais promissoras possibilidades, a mais decidida segurança de vida. Mesmo quando, nas épocas dramáticas de crise, nem sempre o Estado os tinha podido ou sabido ajudar convenientemente era à sua gente, ao seu Governo, que os cabo-verdianos se podiam com legitimidade queixar.

As condições sócio-económicas intrínsecas do Arquipélago mantêm-se sem alteração. Só com ajuda externa Cabo Verde se poderá ir mantendo. Ajuda externa que inicialmente virá, certamente não desinteressada. Mas que, de qualquer maneira, não será dos seus, terá de ser solicitada a estranhos. Talvez mesmo apoios poderosos, que o seu Estado não estava em condições de lhe proporcionar, venham a ser obtidos e concretizem alguns projectos conhecidos e outros novos, capazes de algo modificarem a vida do Arquipélago. Mas essa ajuda terá preço. De qualquer maneira, os cabo-verdianos perderam, para já, e durante o tempo de uma reconversão sócio-económica talvez impossível, as possibilidades e a segurança que lhe proporcionava o conjunto geográfico e humano em que se integravam. E para sempre, naturalmente, a sua independência.

Portugal era, em qualquer circunstância, a Pátria apesar de tudo extremosa, útil, amada, a origem histórica, o umbigo da gente crioula do Arquipélago.

E que significa Cabo Verde para Portugal? Antes do mais, uma terra achada deserta pelos navegadores dos Descobrimentos, povoada e desenvolvida, durante mais de 500 anos, por acção portuguesa. Era terra e gente portuguesas, tanto como o Rectângulo, os Açores, a Madeira... e o resto de Portugal. Era, geográfica e historicamente, corpo do nosso corpo, sangue do nosso sangue, sangue que se derramou, generosa e galhardamente, em Angola e em Moçambique, de 1961 a 1974 [A primeira Cruz de Guerra merecida após a I Grande Guerra é ostentada por um oficial miliciano de Cabo Verde, Leonildo Monteiro, hoje engenheiro electrotécnico, que, por isso escolhi para meu ajudante no meu 1.º Governo Geral de Angola]. Corpo que constituía (e constitui) só pela sua situação na zona inter-tropical do Atlântico, uma posição de valor estratégico importante. Abandonado pelos "revolucionários" do 25 de Abril, por esse facto o que ficou empobreceu do ponto de vista geo-estratégico.




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Embora económica e financeiramente o Arquipélago constituísse um encargo para as parcelas mais ricas do país (como outras regiões da Europa ou do Ultramar) mormente em épocas de seca, a actividade e o valor real e potencial da gente crioula e da sua cultura, derramados praticamente por todas as parcelas do mundo português, compensava generosamente tal encargo. Quando, a respeito de Cabo Verde, se fala de colonialismo e se fabricam considerações sócio-económicas, com base na "luta de classes", na "exploração do homem pelo homem", nos "monopólios" e noutros "slogans" marxistas, como se fez poucos anos atrás, o mínimo que pessoas conhecedoras e verdadeiramente amantes do Arquipélago podem sentir é a náusea pela ignorância, pelo atrevimento... pela mesquinhez do ridículo.

Como foi possível o que ali aconteceu? Associando Cabo Verde à Guiné nas negociações com o Paigc e estabelecendo um clima de terror no Arquipélago, com grande orientação e apoio de grupos marxistas da Armada. Para a população do Arquipélago o sucedido é alcunhado de «o Terremoto". E dizem ali que Judas não só vendeu Cristo como também o Arquipélago...

Como se apresenta o futuro?

Dezenas de rapazes e raparigas cabo-verdianos estudam na Rússia. Armamento russo foi desembarcado em quantidade em S. Vicente. Técnicos (maus - diz-se) cubanos exercem funções no Arquipélago. Entendimentos sobre pesca com soviéticos parece estarem a revelar-se, tal como aconteceu na Guiné, essencialmente favoráveis aos soviéticos. E talvez, como na Guiné, Cabo Verde encontre nos seus irmãos portugueses os seus melhores amigos...

Assente, com o tempo, o muito pó da "revolução", desvanecida certa onda racista que a acompanhou (se a não originou), renovados tipos de associação cultural, económica e política no mundo que foi português, talvez venham a impor-se como necessárias ao bem-estar das populações. Se, em Cabo Verde, a influência soviética, ou outra que a acompanhe ou a substitua, puder ser ultrapassada, apesar de compromissos que procurem enredar o Arquipélago e da marxização que se há-de tentar, novas aproximações são de esperar entre Cabo Verde e o Rectângulo. São mais de 500 anos de convívio comum íntimo, o que é diferente de três ou quatro anos de revolução desintegradora e destruidora. Julgamos saber que uma cidadania comum bilateral chegou a estar na intenção de certos responsáveis do Arquipélago, em negociações que decorreram já depois do 25 de Abril [A cidadania comum teria sido repelida pelos responsáveis do Rectângulo... Racismo dos ditos "descolonizadores"?].

Portugal representava para Cabo Verde, antes do 25 de Abril, a possibilidade de realização pessoal dos seus filhos como cidadãos completos em todas as parcelas do seu país. Cabo Verde era para Portugal um marco concreto da sua História, uma obra física e cultural da sua gente, um valor geo-estratégico. Mais que os cabo-verdianos a desejar e a obter a "independência" foram os "revolucionários" marxistas do Rectângulo que, por ideologia e por racismo, entenderam ver-se livres do Arquipélago e do encargo que em termos materialistas representava, colocando simultaneamente o seu valor geo-estratégico na esfera de influência soviética [Alguns diários de Lisboa, em meados de Novembro de 1977, inseriram reportagens sobre Cabo Verde, feitas em prol de um "Programa de Emergência para 1977-78 a subsidiar pela solidariedade internacional". As meias verdades condicionadas, a manifesta ignorância e o ódio vesgo ao passado, revelados nessas reportagens, constituem um tristíssimo exemplo de certo jornalismo desinformador destes nossos tempos]».

Silvino Silvério Marques (Artigo publicado no semanário «A Rua», sob o título «O que Cabo Verde representava para Portugal», em 17 de Junho de 1977).


«Noite de "Facas longas"


O 23 de Março de 1978 é outra data inesquecível deste período negro. Foi o último dia em que arrastaram das celas presos destinados ao fuzilamento, o que sucedia desde o 27 de Maio do ano anterior. A maioria esmagadora era de presos políticos. O vizinho de cela de João Faria contou que, nesse dia, este sofreu um brutal interrogatório. "Eram 5 e 25 da madrugada. Faria regressa à sua cela. Transfigurado pela violência, o seu corpo curva-se sobre si próprio e os passos são curtos como quem reaprende a andar. A minha cela está aberta, mas eu não consigo convocar a coragem necessária para o visitar. Apenas o posso avistar, por entre o escuro da cela, imóvel e espojado no chão. Só de manhã consegui obter informações concretas, junto do Faria, acerca dos vandalismos nocturnos". Tinha acontecido um "teatro de terror" assistido pelo vice-ministro da Defesa, comandante João Luís Neto (Xietu), o director geral de Segurança, comandante Rodrigues João Lopes (Ludy) (ambos do CC do MPLA), e outros agentes e militares. Os presos eram 16, na sua maioria jovens universitários. Sofreram maus tratos e insultos com pistolas, matracas, correias de ventoinha, canos de plástico. "Todos chegaram ao fim completamente ensanguentados com traumatismos e escoriações, na cabeça, na cara, nos ouvidos, no tronco, nos membros. Um dos jovens já não conseguiu permanecer sequer cinco minutos de pé". Eram militantes da OCA [Organização Comunista de Angola] e do NJS [Núcleo José Stalin]: António Carlos Salvador Júnior, Fernando Paiva, João Faria, Dulce Fonseca, Manuel Ennes Ferreira, Armando Lima Teixeira, Domingos João Baptista Tchipongue, Rui Barros, Nelson Pestana, Eduardo Dudu, António Costa Silva, Simão Cacete, Manuel Campos Duarte e Luís Fernandes do Nascimento.






O penúltimo elemento do Comité Central da OCA em liberdade, Fernando Paiva (Sanga), foi descoberto neste 23 de Março de 1978, após muitos meses de clandestinidade e de ter saído incólume da caça ao homem no pós-27. Apesar do risco, preferiu ficar em Angola e rejeitou uma oportunidade de fugir do país. "Eu ia na rua, a meio de me transferir de uma casa para outra. Havia recolher obrigatório. Nós éramos muito ingénuos, não tínhamos experiência de clandestinidade [...], andávamos sem documentos para não sermos identificados [...] e fui preso por acaso. Na Casa da Reclusão, fiquei quieto na confusão. Eles não sabiam quem eu era. Mas tive o azar de um tipo me reconhecer e dizer em voz alta, 'olha o Sanga!' Fui preso 'na noite das facas longas' [Referência à noite de 30 de Junho de 1934, em que Adolf Hitler mandou executar dissidentes do seu partido]. É a última leva de presos, a última noite que os levaram para os matar. Nesse dia tenho um 'comité' de recepção: o Lúcio Lara, membro do BP do MPLA, o comandante Xietu, e o Ludy Kissassunda, director da DISA. O Xietu diz-me: 'Ó Sanga, tu envolveste-te nisso?' Eles tinham alguma esperança em mim, porque era militar. [...] Levaram-me logo para o isolamento".

Se Fernando Paiva fosse preso mais cedo, o seu destino teria sido fatal. Descreve: "Um dos meus carrascos, o José Vale, chegou a dizer-me: 'Tu tiveste sorte, se a gente te tivesse apanhado no 27 de Maio tinha-te limpo o sebo'. Mostrou-me a minha ficha que tinha um 'PM' em cima, que queria dizer Pena de Morte. Eu já estava condenado, ia ser fuzilado, também. A minha sorte é que eu só sou preso depois do 27. Se fosse antes, já cá não estava. [...] Fui torturado de todas as maneiras e feitios. As formas mais sofisticadas e mais brutais eram o 'n'guelelo', a 'xinqualha', e o 'faz falar' era um barrote de madeira com que eles davam nas articulações [...]. Apanhavam-nos distraídos, vinham com o barrote e zás!, uma marretada nos joelhos. Dá cabo das rótulas e por aí fora. Terrível. [...] Não fiquei com sequelas visíveis. Ser comando ajudou-me. Alguns ficaram malucos. [...] Apagaram cigarros na minha boca e nariz [...], não se faz ideia do que aquilo dói. A pior tortura foi a 'xinqualha'. O 'n'guelelo' também é terrível, porque às tantas pensamos que a cabeça está a estoirar. Na 'xinqualha', que os brasileiros chamam 'pau-de-arara', atam os pés e as pernas pelos dedos dos pés, com os braços para trás - ainda hoje tenho sinais de cordas no corpo. Puxam as cordas e ficamos a balançar. Eu perdi parte da sensibilidade nas mãos por causa disso".

Francisco Antas deu-nos um curto testemunho. "Não há nada que me constranja em falar da minha prisão, antes pelo contrário. Sou de opinião que nada deve ser ocultado, mas recordado no sentido de despertar uma visão realista e crítica dos processos repressivos no pós-independência. Fui preso quando tinha acabado de completar 19 anos, na última vaga de prisões dos supostos integrantes da OCA, na madrugada de 22 de Março de 1978, véspera da famigerada 'noite das facas longas'. Nessa noite, com os algozes da DISA, sob orientação sádica do Zé Vale, passei por uma prolongada sessão de tortura, psicológica e física, com agressões, imobilização com cordas de sisal que gretavam braços e pernas, e pelo famigerado 'n'guelelo'. Permaneci nos cárceres de São Paulo, na cela 7 da 'automotora' e nas celas colectivas E e F, as casernas, até 22 de Janeiro de 1979".

Luiz Araújo foi detido nesse Março de 1978. "Eram 23 ou 24 horas quando batem à porta da minha casa uns dez homens da DISA, armados. Era o José Vale, o António Carlos, o Miranda e outros militares. Apanharam-me papéis, dois ou três apontamentos recentes que ainda não tinham ido para lugar seguro. Não apanharam a maior parte dos documentos políticos. Não soube como chegaram a mim", recorda Luiz Araújo. Ele nunca foi membro da OCA, apenas "funcionava na mesma frequência [...], convivia com alguns". Na prisão de São Paulo, Luiz Araújo conheceu a tortura. "Fui espancado logo à chegada e nos primeiros meses, enquanto decorria o interrogatório para obterem declarações. Bateram-me muito com o 'faz falar' nas costas, pernas, sola dos pés, na cabeça. Batiam com os punhos. Também fiquei uns tempos isolado [...]. O Júlio Rasgado, ex-OCA, um dos presos que virou polícia, e o José Vale, interrogavam-me regularmente. [...] Tive muito medo. Como já não acreditava na luta política pacífica, estava a pensar em criar alguma resistência clandestina, de tipo militar, guerrilha urbana. Isso não tinha nada a ver com a OCA, estava em desenvolvimento paralelo na minha cabeça. Realizei actos preparatórios, tinha algum armamento escondido. Tive sempre medo, à espera que me interrogassem sobre isso, porque, se não passei para essa acção, observei-a a camaradas, a quem não falei de forma taxativa, mas o suficiente para uma eventual adesão. Inclusive, entreguei 'material' para guardar. Quem fosse ou tivesse sido militar, era normal ter armas. Eu tinha armas e munições. Vivi atormentado à espera que me chamassem para esse interrogatório, porque podiam ter apanhado uma pontinha da informação. Não apanharam, esse segredo ficou bem guardado. Se fosse descoberto pela DISA, seria acusado de alta traição por ter sido militar [...] Depois, desistiram da investigação, e não voltaram a interrogar-me, até ser solto". Acentua Luiz Araújo: "Não fui um herói, se comparado com outros".

Entre os episódios na reclusão, vários entrevistados mostraram-se impressionados com o do Sebas, Sebastião de Aragão Neto, pela sua resistência face à agressividade dos guardas prisionais. Domingos Lira, que esteve preso com ele, conta: "O Sebastião foi das pessoas que ficou durante mais tempo na cela do castigo máximo, pequenina, com uma única pessoa, exígua, estavam lá os que eram extremamente perigosos, indivíduos que resistiram a tudo e a todos, ou desafiaram a polícia na sala de tortura. Ele ficou quase todo o tempo, um ano, dois, no isolamento". Rui Ramos, quando se lembra dele, associa-o a um artigo que escreveu, cujo conteúdo criticava "os camaradas que vêm das matas e se aburguesam em Luanda". Foi única a brutalidade que Sebastião de Aragão conheceu. Num dos dias de "pancadaria", ele apareceu com "a boca num estado deplorável", "os dentes abanavam praticamente todos, uns estavam partidos, outros tortos e desalinhados". Meses depois, "continuava a não poder comer e passava as noites a falar". Alvo de torturas frequentes, Sebas ficou muito doente, com "distúrbios psíquicos cada vez mais evidentes". Chegou a deslocar-se "com as mãos e os pés no chão". Foi libertado a 5 de Junho de 1980, após cerca de 30 meses de cadeia».

Leonor Figueiredo («O Fim da Extrema-Esquerda em Angola. Como o MPLA Dizimou os Comités Amílcar Cabral e a OCA - 1974-1980»).







«Iko Carreira, afirma que o círculo dos amigos de Nito estava muito ligado ao Partido Comunista Português. E não acredita na inocência dos comunistas. Acho que o PCP esteve por detrás. Aliás, segundo ele, não seria só o PCP, pois, como vimos, também a União Soviética, através de dois secretários do adido militar, estava ligada ao golpe.

O Jornal de Angola acusa os frustrados de fracassadas revoluções a quem demos abrigo, proclamando-se partidários de partidos que os negam como militantes. Agora, os acusados passaram a ser, também, militares de Abril, exilados em Angola depois do 25 de Novembro.

No dia 1 de Junho de 1977, num discurso proferido na recepção a uma delegação moçambicana, Agostinho Neto declara que radicais angolanos e extremistas portugueses mantinham e mantêm ligações muito intensas.

A Informação do Bureau Político do MPLA afirma, por seu lado, que à semelhança de outros países africanos também Angola conheceu uma dolorosa experiência com as chamadas esquerdas do antigo país colonizador [...].

Os portugueses eram referidos a cada passo.

Num discurso proferido num comício no dia 12 de Junho de 1977, Agostinho Neto faz questão de declarar:

Anunciaremos os nomes dos portugueses que estão presos neste momento, porque também estavam a colaborar com o golpe de Estado [...] Pertenceram a partidos de esquerda em Portugal. Acusa também os militares de Abril: [...] Fugiram de Portugal e vieram pedir-nos asilo político, dizendo que eram progressistas. Nós concedemos o asilo político [...] A sua resposta foi entrar em conspirações contra o MPLA».

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus («Purga em Angola»).


«Segundo Timóteo Macedo, o seu camarada Sebastião ficou maluco com as torturas dos cubanos, "que não fazem lembrar os tempos da PIDE". Também Justino Pinto de Andrade confessou: "A violência a que eu assisti na cadeia pós-independência em nada se compara com aquilo a que assisti no período colonial. E isso para mim é muito chocante.

(...) O pai de Dulce Fonseca, desesperado, a 13 de Dezembro de 1978, implorava ao PR português, Ramalho Eanes, que intercedesse pela filha, então com 26 anos, presa "por ter pertencido à OCA", depois de ter sido dos quadros do MPLA e trabalhado na Organização da Mulher Angolana. Lembrou a saúde frágil, "tuberculose [...] em estado avançado de evolução". Ele pretendia que a filha fosse para Portugal "com a máxima urgência, de modo a poder tratar-se e salvar-se da morte que sobre ela impende na flor da idade. Este pai já chamara a atenção, quando a imprensa publicou a proposta que fez à Embaixada da República Popular de Angola, em Lisboa, oferecendo-se em troca da libertação de Dulce. Estava disposto a "seguir sob prisão para Angola, sob a tutela da mesma escolta que trouxesse a minha querida filha para Portugal".

(...) As cadeias angolanas abarrotavam, nesta altura, de jovens negros, mestiços e brancos, angolanos e portugueses, representantes de uma geração bem preparada, mas que, para o MPLA, não passava de "esquerdistas traidores"».

Leonor Figueiredo («O Fim da Extrema-Esquerda em Angola. Como o MPLA Dizimou os Comités Amílcar Cabral e a OCA - 1974-1980»).



CONTESTANDO A CHAMADA «DESCOLONIZAÇÃO»


Entrevista concedida a João Fernandes e publicada no semanário «O País» em 21 de Maio de 1976.


Durante os seis anos que governou Angola, Silvério Marques orientou (e não poucas vezes teve que impor) uma política de integração racial e de promoção social das populações. O entrevistado de hoje bem se lembra das reclamações de alguns que hoje se encontram ainda em Angola e de muitos que agitam o seu progressismo por Portugal contra a maneira como Silvério Marques «protegia escandalosamente os pretos». Os mais aguerridos espalharam até, quando terminou o seu mandato, que caíra em desgraça «porque apertara a mão a um branco»...

Tudo o indicava, portanto, como o homem certo para governar Angola depois do 25 de Abril. Isso mesmo teve que ouvir (embora algumas vezes tentasse tapar os ouvidos) Almeida Santos que foi a Angola fazer uma mini-consulta sobre o nome mais desejável para governador-geral. Sabe-se que não durou mais de 35 dias a sua estada em Angola. E sabe-se também a razão fundamental deste facto: Silvino Silvério Marques não permitiria nunca que sob o seu comando se descolonizasse da maneira «exemplar» que outros desejavam.

Por tudo isto e não só, justifica-se largamente a entrevista que publicamos hoje e que aqui e ali é, um dedo acusatório contra alguns seus antigos companheiros de armas. Mas que o não quiseram acompanhar em verticalidade e patriotismo.

P. - Logo após o 25 de Abril de 1974 o nome do general era indicado como o do futuro governador-geral de Moçambique. As semanas passaram-se e veio a nomeação num ambiente carregado de tensão. Angola vivera 50 dias sem Governador-Geral e a manipulação de tropas estranhas à colónia era evidente. Poucas semanas depois V. Ex.ª era chamado a Lisboa começando depois uma nova e muito acelerada fase da descolonização. Terá chegado a altura de relatar o que foi esse período?

R. - Dois ou três dias após o 25 de Abril eu, que nada tivera com o Movimento, e que tinha ideias a respeito do Ultramar não coincidentes com as do gen. Spínola, fui chamado à Cova da Moura. Na presença dos elementos da Junta de Salvação Nacional (ausentes os generais Jaime Silvério Marques e Diogo Neto), o gen. Spínola convidou-me para seguir para Moçambique, como Governador-Geral e Comandante-Chefe.

Era tempo de grandes e rápidas decisões. Aceitei e escolhi como colaboradores directos o gen. Franco Pinheiro e o cor. Silva Sebastião, este, então, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Não parti imediatamente como se previa por, conforme me foi dito pelo gen. Costa Gomes, se haver verificado que a nomeação dos Governadores do Ultramar era, segundo o Programa do Mfa, da atribuição do Governo. Teria portanto que aguardar a constituição deste. Tal prescrição do Programa e a demora que impôs na nomeação dos Governadores, foi responsável por perigosa degradação da situação do Ultramar, após o 25 de Abril.

Enquanto aguardei a nomeação, fui estudando os problemas mais instantes de Moçambique. Falei com o Governador-Geral cessante, eng.º Pimentel dos Santos, e tive um ou dois contactos com a o alm. Rosa Coutinho que era o elemento da Junta que superintendia nos assuntos do Ultramar. Recordo-me de me ter dito que embora a sua opinião não tivesse qualquer influência na decisão da Junta, já tomada, entendia que deveria ser assegurada a aceitação das populações aos Governadores indigitados... De facto, havendo entretanto o gen. Costa Gomes visitado Moçambique, trouxe a informação de que eu não era a pessoa desejada para governar aquela província. Quando mais tarde, o alm. Rosa Coutinho aceitou suceder-me em Angola, creio que já não pensava na necessidade do acordo prévio das populações...

Uma das pessoas que logo soube da minha aceitação para Governador-Geral de Moçambique foi o eng.º Jorge Jardim. Embora não tivéssemos grande intimidade, conhecíamo-nos de Lisboa, Angola e Moçambique e tínhamos alguns bons amigos comuns. Pediu-me um encontro que teve lugar, como refere no seu importante livro «Moçambique Terra Queimada», agora editado, em casa de pessoa amiga.












Tomei, então, com surpresa, conhecimento dos seus contactos com o Presidente Kaunda e, através deste, com a Frelimo, e foi-me traduzida a versão inglesa do «Programa de Lusaka». Considerei importantíssimas as conversações tidas pela eng.º Jorge Jardim as quais dando a conhecer o pensamento dos seus altos interlocutores e, até certo ponto, vinculando-os, não comprometiam os responsáveis portugueses que, após o 25 de Abril, até eram outros. Pensei que os pontos estabelecidos no «Programa» seriam um mínimo de que se poderia partir para formular um acordo.

Relatei ao gen. Spínola toda a conversa, entreguei-lhe um exemplar do «Programa de Lusaka» que entretanto me havia sido enviado e referi a importância de conhecer e estudar o documento, pois de outra forma futuros negociadores (e eu admitia-os isentos) partiriam do zero e correriam o risco de nem aqueles pontos obterem.

Mais tarde, conversámos ambos, o eng.º Jorge Jardim e eu, com o gen. Spínola acerca do «Programa de Lusaka» e do eventual papel a desempenhar pelo eng.º Jorge Jardim.

O regresso do gen. Costa Gomes de Moçambique e a convicção que trazia de não ser eu a pessoa indicada para governar a província, fez-me perder o contacto com o assunto que, infelizmente, foi conduzido por forma inábil e levou a resultados desastrosos.

Após a viagem, de certo modo agitada, do Ministro da Coordenação Interterritorial a Angola, fui por este convidado para Governador-Geral daquela Província. Estava muito ligado a Angola por razões afectivas. Julguei que lhe podia ser útil e ao País. O Programa do Movimento das Forças Armadas tinha sido muito esclarecido pelas declarações do gen. Spínola, do gen. Costa Gomes e do Dr. Almeida Santos quanto à política que se ia seguir no respeitante ao Ultramar. Era intenção referendar o destino de cada província, devendo entretanto obter-se Constituição que legalmente o permitisse. Após a demissão que a Revolução dos Capitães implicava, preparar o referendo afigurava-se-me missão patriótica que deveria ser aceite. Seria mesmo um último serviço a prestar à província que tanto amava e ao país. Aceitei.

E logo, pensei, e disse-o ao gen. Spínola, que convidaria os mais importantes responsáveis dos partidos socialista e comunista a percorrer Angola para que conhecessem no real aquela terra e a obra nela feita, e corrigissem, se fosse caso disso, ideias que somente a ignorância do concreto poderia justificar.

Escolhi os elementos do meu elenco governativo, sem dificuldade de maior, com o Ministro de Coordenação Interterritorial. Apenas relativamente a um dos Secretários Adjuntos tive certa oposição no nome que propus. Combinámos que em Angola eu sondaria o meio e, em conformidade manteria, ou não, o meu ponto de vista. Assim vim a fazer com prevalecimento da minha opinião. Propositadamente, dentro do espírito do Programa do Movimento que apontava para Governos de civis, que não de militares, só recorri a um militar, já introduzido nas lides do novo Governo em Lisboa. Perante certa manipulação do Movimento Democrático de Angola (guarda avançada do Mpla) que, com o Movimento Democrático de Moçambique, constituiu exemplo tristíssimo de acção anti-nacional naqueles tempos tão delicados, o Ministro da Coordenação Interterritorial sugeriu-me, a certa altura, que substituísse duas pessoas já convidadas. Tratava-se de elementos que conheciam bem Angola e os problemas do Ultramar, muito competentes e sérios, como reconhecera o ministro quando da sua escolha. Entendi não transigir. E as nomeações mantiveram-se.

Logo após a minha chegada a Luanda, reuni com todos os Governadores de Distrito. Nenhum, praticamente, me era estranho. Trocámos impressões sobre a situação e disse-lhes que, de harmonia com as conversas havidas com o Ministro da Coordenação Interterritorial, se realizariam, dentro de pouco tempo, eleições para as Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais. Até lá, só por razões que o justificassem caso por caso haveria mudanças nas autarquias. Os governadores dos Distritos manter-se-iam, em princípio, até que as novas Câmaras estivessem constituídas. Desejava evitar a todo o custo o desmantelamento da administração que, nessa altura, já estava em pleno no Portugal europeu.




Convoquei, também imediatamente, o Conselho de Defesa. Contra as minhas indicações, ali fui encontrar, além dos seus membros, uma dezena de rapazes do Mfa. Não os mandei retirar por considerar isso inamistoso para os generais que os haviam trazido. Mas durante a sessão tive ocasião de repelir algumas pretensões que formularam e constituíam inovações relativamente às estruturas governativas de Angola, não previstas no Programa do Movimento das Forças Armadas. Após essa primeira reunião do Conselho de Defesa, outra teve lugar, creio que duas semanas depois, e decorreu com normalidade. E, praticamente não tive outras relações com o Mfa, mas apenas com alguns oficiais das FA para tratar casos específicos da administração.

Passou cerca de um mês durante o qual se instalou o Governo e se começou a trabalhar com interesse, no meio de certa agitação laboral e estudantil, importada de Lisboa, a partir do 25 de Abril.

Surgiram então os incidentes do Cazenga: morte de um taxista e retaliação que as Forças Armadas (e o seu Movimento) alertadas, não conseguiram evitar, a qual vitimou 7 africanos e 1 europeu. Estes incidentes foram logo rotulados pela esquerda portuguesa de «massacre». Seguiu-se a instalação da guerrilha nos muceques entre os movimentos e contra os europeus. Foi nessa altura, e somente agora o soube, que o Mfa, responsável com as Forças Armadas pela ordem pública e pela acção militar, nos muceques, como no mato, apresentou exigências ao Comandante-Chefe que este enviou para Lisboa acompanhadas de carta sua. Entendeu-se de nada se me dar conhecimento. Falando-se na existência de tensão entre o Mfa e o Governador-Geral (tensão que eu de todo desconhecia) insinuava-se uma explicação para os graves incidentes dos muceques, facto novo e perturbador para o Mfa e para as Forças Armadas. E aproveitava-se para exigir a substituição do Governador-Geral, de todos os Governadores de Distrito, a prévia aprovação do Gabinete do Mfa de Angola para novo Governo, a preencher por elementos locais e, ou, militares e ainda, a instalação de um Conselho de Estado, composto, em maioria, por mfa's de Angola. Em Lisboa, o cor. Vasco Gonçalves ascendia a Primeiro Ministro. Os jovens militares sequiosos de poder civil, em oposição ao espírito do Programa, haviam-se instalado no Governo. Os rapazes de Angola, procuravam seguir aquelas pisadas e ao mesmo tempo justificar a instalação da guerrilha nos muceques (a qual porém só cresceria e não mais seria desalojada até à intervenção cubana), insucesso que surgia ao fim de 13 anos de guerra e apenas quatro meses depois da revolução da paz...

Havia ocorrido a primeira intentona de Angola. Sabia-se que comigo o desmantelamento e a comunização da província se não faria e a consulta à população seria um facto.

E veio a Junta Governativa com o almirante Rosa Coutinho. Com o recrudescimento da guerrilha nos muceques e já sem a justificação das tensões Mfa/Governador-Geral, o desmantelamento da administração e da economia processou-se a ritmo acelerado, conduzindo o «processo» à mais desastrosa e vergonhosa retirada de África do nosso tempo.

Não é preciso ser imaginativo, depois da tão tristíssima experiência de «golpadas» a que fomos sujeitos desde 25 de Abril, para entendermos que, em Angola, tal sistema estava progredindo e culminaria com a invasão da província por cubanos, acompanhados de técnicos soviéticos, com utilização de Santa Maria como aeroporto de escala. Já no tempo do almirante Rosa Coutinho outra «golpada» no género da que me envolveu teve lugar em Cabinda. Tropas portuguesas (?), comandadas por gente que anda por aí, bandeou-se com o Mpla, ainda inimigo, prendeu o Governador do Distrito, oficial general, e alguns dos militares seus colaboradores, e entregou Cabinda ao controlo do Mpla. O Governador saiu de Angola e tudo, e todos, ficaram impunes. Entretanto dizem-me que, em Cabinda, os cubanos que reforçaram ou substituíram os mpla's morrem diariamente a um ritmo assustador.

P. - Durante os anos em que foi Governador-Geral de Angola e no curto período em que ali esteve depois de 1974 conheceu certamente algumas figuras influentes na República Popular de Angola. Isso permitir-lhe-á fazer senão profecias pelo menos uma análise das actuais relações entre a RPA e Portugal...

R. - A menos que Portugal se comunize, hipótese que não pode ser posta de parte, face à infiltração pelo PC nos variados sectores das estruturas do país, à extrema militância dos seus membros (verdadeiros adeptos de nova religião), aos vultosos recursos materiais que evidencia dispor numa sociedade subornável como nunca, aos conselheiros experimentados que obviamente o apoiam, à importância de Portugal como testa de ponte para a comunização da Península, e através desta, para o controlo marítimo da Europa, e ao exemplo de todos os países de Leste, a menos que isso aconteça (e um dia poderemos acordar com um 25 de Abril em que a leitura do Programa vire definitivamente comunista), creio que as relações com o antigo Ultramar português se manterão, durante muito tempo, com altos e baixos, no nível actual. É que, quanto nos pode ser dado concluir pela meditação dos factos e pela leitura do que vai sendo publicado, tudo esteve preparado para a marxização de todo o antigo conjunto português. Com resultado diferente, o 25 de Novembro teria sido o remate final de uma acção global que se evidencia programada.






Embora conhecendo algumas importantes figuras da actual administração de Angola, isso pouco adianta na visão que tenho acerca das relações dos dois países. Duvido mesmo, seriamente, quanto à independência real que essas figuras hoje possuam para encaminhar as relações dos dois Estados de forma diferente da que se subordine à batuta do imperialismo soviético.

É claro, porém, que tal como a comunização do nosso país constitui uma ameaça com que temos que contar, também a evolução não comunista do antigo Ultramar é possível e até natural. Na verdade, Angola, Moçambique, Cabo Verde e a própria Guiné, sem falar de Timor, estão muito longe, segundo as informações que me chegam, de estabilização. As soluções que sofreram foram demasiado impostas, nalguns casos criminosamente impostas, para terem generalizada aceitação. A dissonância entre governados e governantes é grande e tem-se agravado. Angola é talvez o caso limite: as suas cidades estão ocupadas por forças estrangeiras, estranhas à região e ao povo. Se os angolanos, na sua quase unanimidade, até ao 24 de Abril, se sabiam, e orgulhosamente se sentiam, portugueses, nem um se sente cubano ou russo. Trata-se de ocupação. E isso não agrada ao povo nem à parte sã das suas elites. Em Moçambique a situação não se afigura mais estável. Cabo Verde, o caso mais notável da aproximação indirecta soviética (levada a efeito através dos cabo-verdianos da Guiné que ali eram malquistos) atravessará horas amargas se sobreviver uma seca, pois cada vez o mundo está menos receptivo à fome dos outros. A não ser que o imperialismo soviético que, por agora, se limita, discretamente, a receber, instruir e doutrinar jovens cabo-verdianos que hão-de, no futuro, ultimar, por dentro, a comunização do Arquipélago, entenda poder ostensivamente intervir e montar a mais importante base aero-naval em relação ao Atlântico Sul. Mas então, o Arquipélago continuará Arquipélago, mas deixará de ser Cabo Verde! Na Guiné, segundo me dizem, além das surtidas sofridas pelo Paigc, na terra dos Fulas, só mandam os fulas.

Estamos portanto longe de situações de paz. E independentemente da personalidade dos responsáveis, enquanto as divergências ideológicas dos Governos do antigo Ultramar português com o Governo de Portugal forem as que em Portugal se verificam entre os partidos ditos democráticos e os que por estes não são considerados como tal, creio que as relações se manterão no nível actual, com oscilações ocasionais para melhor e para pior. Quanto mais tempo decorrer nesta situação de impasse, menores serão as probabilidades de evitar que todo o vazio deixado pelo criminoso atirar ao mar dos portugueses (de todas as etnias) seja colmatado pelo mundo ávido de preencher os lugares que aqueles ocupavam. À medida que o tempo passa, mais o antigo Ultramar se vai ausentando de Portugal obtendo algures, em todo o mundo, o que cada vez Portugal mais dificuldade tem de lhes proporcionar: apoio material e de quadros. Que devaneio a ideia da «ponte» que o país seria, de que nos falavam, ao mesmo tempo que o país se arruinava, e que os melhores quadros eram estupidamente enxotados... Que ingenuidade louca supor um neocolonialismo ideológico reflectido de Lisboa por concessão do Leste!...

P. - O sr. general conseguiu sempre criar inimizades que poderia evitar. O seu livro propondo uma maior integração do país que então era Portugal desagradou fortemente a Marcello Caetano. As suas ideias sobre como descolonizar não jogaram também muito com as de quem tinha ideias «exemplares» a respeito. Quer comentar?

R. - Em conformidade com o que considero a mais pura, original e criativa (essa sim humanista, internacionalista se o quiserem) interpretação portuguesa, para mim, e para outros que foram grandes administradores do Ultramar (Norton de Matos, incluído) o outro nome de «descolonização» é integração, repito integração, igualdade completa de todas as etnias, em deveres e em direitos, acesso livre, política que, em 24 de Abril, decorria praticamente com espontaneidade, e cujo ritmo eu pensava que poderia ser acelerado por estruturas adequadas.

Nada tenho que alterar ao conceito que perfilhei (sobretudo em face do desastre resultante das soluções adoptadas) e que concretizei, com devoção e autenticidade, em todos os actos da minha vida militar e civil. Os que emergiram, após a revolução, feridos de objecções de consciência (que quase sempre eram um eufemismo de cobardia), escrevendo ou cantando negaram a Pátria, os seus Heróis, os seus Feitos, e que foram envergonhados pelo Presidente Senghor, quando em Lisboa (mais Português que eles), e até (quem diria!) pelo próprio dr. Agostinho Neto, no Alvor (1), não podem compreender esta concepção. Como a não compreenderão os sergianos, que, perdidos os contactos com o Ultramar, numa visão que se manteve eurocentrista e racista, não entenderam que Fixação envolvia já todo o espaço português, que Transporte era agora todo interior. Que Retorno seria Refúgio! Que Portugal ultrapassara Sérgio!

Embora a minha concepção fosse diferente da do gen. Spínola, as estruturas da sua federação eram muito semelhantes às da minha integração. A grande diferença estrutural consistia em que, para mim, os orgãos de soberania para todo o país seriam também orgãos de soberania para a parcela (ou parcelas) onde se localizassem. E não considerava obrigatória uma centralização no Portugal europeu. Para o gen. Spínola, no Portugal europeu os orgãos de soberania duplicavam-se: para todo o conjunto e para ele próprio (2). Do ponto de vista conceptual, à «Guiné para os guinéus» do gen. Spínola, correspondia a minha ideia de toda a parcela de Portugal para todos os portugueses, todos iguais em todo o espaço português.





Quantas vezes pensei que as ideias do gen. Spínola correspondiam a Portugal visto da Guiné. E que ele precisava de ter sentido todo o nosso país, com alma de governante, também de Angola, ou de Moçambique, ou de Cabo Verde, ou do Oriente. O livro que teria escrito, nessas circunstâncias, seria outro e, talvez também, outra a história contemporânea da nossa Pátria.

A página 243 do «Portugal e o Futuro», o gen. Spínola escreveu: «Ao terminar o nosso depoimento desejamos esclarecer que não nos julgamos detentores exclusivos da verdade. Outras soluções existirão, porventura mais válidas, e por isso entendemos que o problema em causa, pela sua transcendência e projecção nacional, deve ser amplamente debatido em ordem a esclarecer convenientemente a Nação sobre o esquema que deve presidir aos seus destinos». E estas palavras, segundo me disse ao oferecer-me o seu livro, só foram dirigidas à tese que eu perfilhava. Significa isto que não concitei só inimizades com a minha «Estratégia Estrutural Portuguesa».

Um dia o Dr. Marcello Caetano observou que eu com a minha concepção ultramarina não pretendia desservir a Nação, mas, como ele, servi-la. E, com humildade, interrogou: Qual de nós terá razão?

Isto não obstou a que tendo, no seu tempo, reunido em «Estratégia Estrutural Portuguesa» cerca de 340 páginas de texto já difundido durante o governo do Dr. Salazar e apenas umas 20 de texto original, entendesse mandar instaurar-me um inquérito militar. Não cheguei a ser ouvido. O inquiridor, creio, limitou-se a ler o livro. Nada resultou contra mim. De resto somente vim a saber do incidente, muitos meses depois, quando me encontrava em Moçambique. Disseram-me que o inquiridor, gen. Carrasco, na sua conclusão, lamentara não ter sido o autor do livro, pois nisso teria tido muito orgulho...

Se publicasse as manifestações de concordância com a minha tese, recebidas na altura em que publiquei «Estratégia Estrutural Portuguesa», deixaria embaraçadas algumas personalidades destes tempos confusos...

De qualquer forma, era evidente que na última passagem por Angola os meus conceitos estruturais estavam ultrapassados pelo desencadear da revolução. E assim o declarei em Luanda, embora sem abjurações, e salientando que o meu pensamento e a minha acção de anos atrás estavam implícitos no ideário do Movimento, o que segundo nessa altura era legítimo entender, lido o Programa e conhecidas as interpretações publicamente expressas, quanto ao Ultramar, pelos mais altos responsáveis.

Uma coisa estava então ao nosso alcance fazer: o referendo. Outros o fizeram em África. Para isso era necessário que os políticos efectivamente o quisessem fazer, isto é não estivessem comprometidos para o não fazer. E que os responsáveis militares e o Mfa, se opusessem a que as tropas se convertessem em bandos, como tão generalizadamente aconteceu. E os militares sabem como isso se faz: é a sua profissão.

Como, para muitos, «descolonização» era sinónimo de comunização, e revolução significava desmantelamento e destruição, o referendo não convinha: exigia que se evitasse o desmantelamento, a destruição, e não conduziria à comunização.

O resultado da «descolonização exemplar» está à vista. Que ninguém tenha a desfaçatez de perguntar só agora como se deveria ter feito. Se o não sabiam por que se meteram nisso? Por que o não perguntaram antes? Ninguém será julgado pelas intenções (que mesmo essas se não conhecem), mas pelos efeitos bem patentes e que esses sim dificilmente poderiam ser mais calamitosos!

P. - Estes últimos quinhentos anos deram a Portugal a ideia de ser um país diferente. Agora se regressámos ao espáço do século XV (talvez com a diferença de sermos agora 9 milhões e não o milhão de então) algumas coisas terão que ser revistas. Entre elas, certamente, as Forças Armadas. Para além da sua (esperemos) episódica importância na vida política, qual lhe parece que seja o papel reservado às Forças Armadas Portuguesas?

R. - Pessoa amiga dizia-me há pouco tempo que «hoje há portugueses, mas já não há Portugal...». Trata-se de um sentimento comum a muitos de nós.


O abandono do Ultramar que, por ironia, acompanhou as concepções de um marinheiro, António Sérgio, e foi materialmente concretizado em Angola, Moçambique e Cabo Verde (províncias que com as Ilhas eram os pilares de uma estratégia oceânica e grande justificação da importância da nossa Armada e da ternura que por ela tínhamos) também por marinheiros, corresponde à destruição do projecto de uma nação. Terão de passar gerações para que os homens nascidos no que foi Portugal se adaptem à nova configuração espiritual e física de uma sua nova Pátria. E terão de surgir pensadores e estadistas capazes de encontrar novo projecto que congregue o novo Povo no novo País, distinta das outras nações. Isso não acontecerá, se acontecer, sem graves crises que já se esboçam: as secessões latentes nas Ilhas, no próprio Continente e, claro, uma vez mais, o iberismo. Teriam os capitães do Movimento, os políticos que os instrumentalizaram e os generais que os acolheram previsto o desastre a que fomos conduzidos? Conseguem manter-se de consciência tranquila? Com tão grande infortúnio causado a todo um povo, de todas as etnias, responsáveis de contexto moral rígido certamente correriam o risco de ultrapassar o limite do desespero. Os responsáveis civis ainda se procurarão consolar com a falsa justificação que sem cessar proclamam em vários idiomas: «os militares tinham perdido a guerra». E podem mesmo tentar construir doutrinas sobre a derrota, que tocaria apenas os militares, que não sobre a traição que toca a muitos. Mas os militares, esses não têm a mesma possibilidade. Sabem que a derrota nasceu após o 25 de Abril.

Que caminhos se podem imaginar para a nova Nação a fazer?

Revificar a ideia da Comunidade da Nação Peregrina. É uma via possível, especialmente se no antigo Ultramar as influências marxistas não forem tão intensas e tão duradoiras que abafem a notável obra ali deixada em todos os domínios por Portugal. Obra material, de aculturação, de entrosamento humano. Tal caminho conta, evidentemente, com o Brasil, agora cada vez mais o varão forte de uma família que se dividiu e arruinou por muito tempo.

Regressarmos simplesmente à condição continental de europeus, as Ilhas compreendidas, e jogarmos francamente na unidade europeia (ainda tão mal definida), levando aos seus limites a ideia de Fixação «estrita», tão grata aos sergianos eurocentristas, é outra hipótese. A vizinhança de um só país, mais poderoso, numa unidade geo-estratégica definida, a Península, tornam esta alternativa bastante perigosa para a independência nacional. Sem objectivos políticos de certa importância fora da Europa, o centripetismo peninsular constitui uma ameaça permanente à independência de Portugal.

É evidente que as duas opções não são totalmente contraditórias e que uma harmonização entre ambas será a terceira via que, natural e espontaneamente, vai começar e ser explorada por governos fracos e complexados pelos desastres de que são responsáveis. Nesta terceira via se inserem as fantasias de recurso que já têm surgido com a revolução: a «Ponte», o Terceiro Mundo, o Mediterrâneo.

Do desastre nacional de que fomos vítimas saiu profundamente destruída a Instituição Militar, embora a euforia da importância revolucionária assumida por alguns modestos quadros somente nos mais puros vá consentindo a consciência disso.

Com chefes eleitos essencialmente segundo critérios políticos. Com unidades desfeitas pela indisciplina consentida que foi arvorada em nova disciplina revolucionária. Com as escolas militares mais representativas e de tradições mais dignas vexadas sem qualquer reacção sadia. Uma, a Academia Militar, por um seu aluno e professor de vários anos que apenas quando brandia o poder teve coragem para a denegrir. Outra, o Instituto de Altos Estudos Militares, há dias, pela Informação (sob a batuta de quem?) que estigmatizou a mais elevada e dignificada instituição de ensino das Forças Armadas com o cariz político que não teve. Como se os generais Spínola, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, Cunha, Bettencourt Rodrigues, para referir apenas alguns dos últimos comandantes-Chefes de África devessem a sua promoção ao jogo político e Vasco Gonçalves e os graduados Vasco Lourenço, Charais e Pezarat o devessem à preparação militar!...

Como sair da situação em que se caiu, interna e externamente, é evidente problema complexo.

Internamente há quem aposte na total liquidação das Forças Armadas e sua substituição por um vago poder popular Armado. Há militares, e oficiais, que entram no jogo, Há talvez quem, a distância, pense na neutralidade como remate do regresso à pequenez a que fomos reduzidos.






Externamente, começa-se por ter perfeita noção do valor que o Continente e as Ilhas representam para a segurança da Europa e do perigo mortal para o Ocidente do seu controlo pelo Leste. E sabe-se também do valor actual da nossa Instituição Militar.

É neste contexto global - país arruinado, povo empobrecido, Instituição Militar destruída, e grande importância estratégica das Ilhas e Continente - que teremos de repensar o problema das nossas Forças Armadas.

A adaptação à nova e reduzida dimensão do país e às suas actuais modestas possibilidades económicas, impõe o melhor rendimento e o mínimo custo. Forças Armadas voluntárias, de pequeno efectivo, profissionalizadas, coordenadas estreitamente, em comandos, serviços e equipamento, com Forças Militarizadas, parece constituir um modelo a estudar. Aproveitar o apoio possível da Aliança Atlântica e, ou, dos países amigos (incluindo o Brasil) para o estudo e execução da conversão necessária, torna-se indispensavel.

As escolas de formação de quadros intermédios e de oficiais ou começam a funcionar bem, ou são infiltradas e a comunização do país (ou a sua ocupação pelo Ocidente) não terá remédio.

Tudo teria sido diferente se o referendo se tivesse feito no Ultramar e se a Instituição Militar não tivesse sido destruída. Então, no apoio à formação de quadros ter-se-ia um suporte importante para as relações com os novos países (que seriam efectivamente de «expressão portuguesa» como o gen. Costa Gomes gosta de dizer) eventualmente nascidos do referendo. Como o teríamos na Universidade portuguesa se a revolução não tivesse arrasado o que dela restava. Como o teríamos ainda no apoio técnico, se a técnica do país não tivesse sido dispersa pelos cantos do mundo, e até na Diplomacia, se se pudesse manter de qualidade.

O papel das Forças Armadas? Tornarem-se profissionalmente capazes. Regressarem ao estudo e ao treino. Cuidarem profundamente da sua preparação moral que claudicou, meditando a História do nosso povo, passada e recente. Deixarem a política aos políticos, a administração aos administradores, a economia aos economistas e a soberania ao povo. Voltarem ao respeito pela verdadeira hierarquia da competência. E terminarem com rapaziadas que tanto mal nos causaram, incluindo o ódio que destruiu a coesão de uma Pátria unida.

P. - Talvez por antigos hábitos, os mares voltam a ser muito discutidos em Portugal. Há quem queira integrar Portugal no Mediterrâneo e há os que defendem que o Atlântico é que nos banha. Quer o sr. general «mergulhar» nesta polémica marítima?

R. - A rota oceânica que fomos capazes de abrir a golpes de génio, coragem e sofrimento, marcou uma viragem no desenvolvimento económico e social do mundo e no mútuo conhecimento da humanidade na incessante caminhada para o seu progresso. Ligámos o Atlântico Norte ao Atlântico Sul e este ao Índico e ao Pacífico. Desvalorizámos mesmo o Mediterrâneo e arruinámos cidades ribeirinhas, quando ele constituía um elo nas comunicações entre o Oriente e a Europa.

Historicamente somos um país atlântico. Essa é mesmo a nossa marca carismática. As Ilhas, agora reduzidas aos Arquipélagos do Norte, foram o nosso sinal de presença e também de soberania. Abandonar tudo isto por um mar que não nos banha, embora evidentemente nos influencie, é opção aventureirista.

Temos relações culturais e económicas com países tradicionalmente amigos, cujas línguas nos são familiares. Que alarguemos o círculo das amizades sinceras e politicamente desinteressadas, correcto. Mas trocar velhas ligações por outras novas, desconhecidas, sacrificando na teia ideológica de alguns a alma do próprio povo, talhada e consolidada em séculos de aventura, é puro disparate.

Tem-se abusado, até agora irresponsavelmente, dir-se-ia que por pura leviandade, desta nação antiga que era digna e respeitada, liquidando-a materialmente e transformando-a em pobre pedinte. Converteram-na em cobaia privada onde grupos diletantes, naturais e estrangeiros (que aqui encontraram a guarida que ninguém lhes dava) vieram fazer as suas absurdas e perigosas experiências à custa da paciência do povo.

É tempo de acabar. E de responsabilizar. Estamos fartos. E precisamos de reencontrar a alma perdida da nossa Pátria!

















CONTESTANDO DE NOVO A CHAMADA «DESCOLONIZAÇÃO»


Entrevista concedida a J. N. Pereira da Costa e publicada no semanário «O País», de 11 de Novembro de 1977.


P. - Os responsáveis pela descolonização, ou apontados como tal, sublinham que o processo descolonizador foi o melhor que poderia ser efectuado nas circunstâncias do momento. Não será essa a opinião do general, creio. Mas o tempo passa... Considera ser ainda oportuno assacar-lhes culpas, se é que porventura as têm. Ou impõe-se, pelo contrário, um silêncio apaziguador?

R. - Que hão-de sublinhar os principais responsáveis do processo designado por «descolonização», já depois de se terem considerado originais e exemplares, isto é, exímios, patente o desastre provocado, se não que fizeram o melhor que puderam nas circunstâncias existentes? Esperar-se-ia que passassem a confessar-se inábeis, incompetentes? Poderia confessar-se assim gente determinada, em muitos casos envolvida com o inimigo que enfrentámos, depois de provocar e tomar as mais importantes decisões da nossa História, ditatorialmente, sem a mais elementar consulta às populações interessadas, apesar de saber que iria comprometer de forma irremediável as gerações presentes e futuras? Ou, pelo contrário, as ideologias, os eventuais interesses e ajustes, as reputações, que impulsionaram tal gente, e as desgraças provocadas, continuam obrigando um colectivo de cúmplices à defesa impossível de uma realidade concreta que a tantos atinge, está sob os olhos de todos, e nenhuma artificiosa dialéctica é capaz de esconder? Que hão-de sublinhar os principais responsáveis? E que há-de, em contrapartida, pensar o povo que sofreu, e sofre, o processo? Como pode deixar de assacar as culpas que existem e em relação às quais se insinuam mesmo origens ignominiosas?

Por mim considero indispensável o julgamento dos responsáveis por acções concretas, que felizmente não são muitos. E penso que eles próprios, esses responsáveis, devem estar interessados em nos esclarecer de uma vez, demonstrando inocência perante o crime de que os acusam. O libelo e a via a seguir encontram-se exaustiva e primorosamente expostos por Luís Aguiar, no seu importantíssimo «Livro Negro da Descolonização». Tratar-se-á de crime público: entre milhões de queixosos, alguém certamente levará a Tribunal os principais responsáveis da chamada «descolonização»... Creio até que a grande clarificação da vida política portuguesa exige esse julgamento. Somente depois de separada a grande seara de trigo da pequena praga de joio (a existir) que a infestou, os portugueses regressarão à tranquilidade de alma, base da reconciliação, e linha de partida para as grandes definições e os intensos esforços na procura de novos, ou renovados, projectos nacionais...

P. - Afirmam que a guerra era insustentável e explicam o abandono das ex-Províncias ultramarinas pela imposição da conjuntura internacional (o regime criado em 25 de Abril de 1974 não seria de outra forma aceite pelas nações democráticas) e, por outro lado, pela circunstância de os soldados se negarem a combater após a Revolução. Quanto à última alegação, parece que assim aconteceu, pelo menos nalguns casos e tanto em Angola como em Moçambique, para não falar já da Guiné, onde a guerra já estaria «oficialmente» perdida. Acha curiais tais explicações?

R. - Somente indivíduos completamente fora dos problemas do Ultramar e da guerra e, ou, comprometidos com o inimigo que combatíamos, podem afirmar que a guerra era insustentável em 1974. Acreditar em tal, depois da documentação publicada sobre o assunto, sabendo-se que a vitória em Angola era um facto, é já prova de má-fé ou de ignorância. Falar em imposição da conjuntura internacional, após 50 anos de política, certamente com condicionamentos, mas relativamente independente e respeitada, como poucas vezes na nossa História, é errado. E sumamente ridículo, quando nunca tão demagogicamente se falou em independência, e nunca as «imposições da conjuntura internacional» foram maiores. Ridicularia de gente que, exaltando a liberdade e a independência, generalizou o uso dos guarda-costas e passou a governar de mão estendida... Poder-se-á invocar imposições da conjuntura internacional, reconhecendo-se que os abandonos e as entregas do Ultramar português alteraram posições estratégicas de dois mundos, debilitando, em desfavor do mundo a que pertencemos, o equilíbrio da paz? Soluções que não fossem do abandono e da entrega verificados não serviriam melhor (e não teriam por isso, outra aceitação) no mundo em que nos integramos? Vulneráveis a imposições passámos a ser hoje, uma vez reduzidos às dimensões actuais e conduzidos, por uma administração caótica, a situação de extrema penúria.

A recusa dos soldados em combater não foi uma atitude espontânea. Foi o resultado de circunstâncias provocadas e de técnicas utilizadas para o efeito. Soldados que até 25 de Abril cumpriam as suas missões com dignidade e, em muitos casos, com extrema devoção e bravura, não passavam depois a comportamento oposto, se para isso não tivesse sido montado e posto em funcionamento o necessário dispositivo. Dispositivo da responsabilidade, por acção ou inacção, dos mandatários de então do nosso país. Sabe-se que o colapso militar da Guiné foi totalmente conduzido pelos mais altos escalões do Governo da Província. Também em Angola partiu dos mais altos responsáveis o impulso para a desmobilização militar. As insubordinações de Moçambique e de Timor foram desencadeadas por grupos de indivíduos para ali, para esse efeito, destacados, indivíduos tornados, com a revolução, importantes e execrandos. Tudo foi programado e executado para conduzir, por um lado, ao colapso e, por outro, à estigmatização da Instituição Militar, que era necessário não só destruir, como deixar denegrida e... culpada. De resto, esta acção sobre a Instituição Militar foi um dos aspectos de uma manobra mais vasta que inclui a forma (em muitos casos indigna) como se desenvolveram as conversações com o inimigo... Tudo incluído no que o dr. Mário Soares referiu como «a dinâmica criada», que Luís Aguiar tão bem explica, como «A estratégia do dr. Mário Soares», a páginas 156 e 157 da sua notável obra já citada.























P. - Outro ponto da defesa, dos autores, digamos, da descolonização: Portugal praticava ultrapassado colonialismo em África, execrado por todas as potências democráticas...

R. - Considero errado falar-se de colonialismo português em 1974. A ordem jurídica em vigor não privilegiava qualquer camada da população portuguesa por parcela do território, por raça, ou por etnia. E na ordem económica quando se estabeleciam privilégios nas relações entre parcelas não o era num só sentido, como agora, errada e intencionalmente, se quer fazer crer. Tratava-se, cada vez mais, de um país único, com as relações entre parcelas que são comuns a várias regiões de diferentes países. As diferenças sociais existentes também eram as comuns às sociedades do nosso tempo. As relações raciais e sociais, que nalgumas parcelas eram mesmo exemplares, apuravam-se em todas as províncias, e sobretudo nada tinham a invejar ao que se passava no resto do mundo, e muito especialmente nas antigas Colónias de independência recente. Mas o que indigna é que, por revolucionários do 25 de Abril, seja levantado o problema do «colonialismo» nas nossas antigas províncias, agora que, por sua acção, praticamente todas elas foram mergulhadas em colonialismo feroz!...

P. - Segundo afirmações que vieram a público, os Governos provisórios de Angola e Moçambique - melhor: os chefiados por V. Ex.ª em Angola e pelo dr. Soares de Melo na costa do Índico - foram repudiados pelos brancos dos dois territórios, além de, evidentemente, pelos movimentos emancipalistas. Recordo-me, no entanto, que o general foi escolhido para Angola por proposta do dr. Almeida Santos, então ministro da Coordenação Interterritorial, depois de ele ter consultado as forças vivas de Angola. Houve um erro, então? E donde partiu? O general foi nomeado para o cargo - e a Imprensa da época testemunha o facto - com plenas honras, como «the right man in the right place»...

R. - Quando fui convidado para governar Angola foi-me referido pelo Ministro da Coordenação Interterritorial, dr. Almeida Santos que, em Luanda, havia interrogado muita gente sobre a pessoa que desejavam como Governador-Geral. O meu nome foi-lhe sendo sugerido, entre outros. Inicialmente, repudiou-o, pois só me conhecia como autor de «Estratégia Estrutural Portuguesa», cuja tese lhe não agradava. Mas o meu nome foi sendo insistido... E a certa altura deu-se conta que estava ali para ouvir sugestões e não para as repelir, por preconceito... E de lá o trouxe, entre outros. Quando, em Conselho de Ministros, me propôs para governar Angola, «alguém» lhe perguntou se «os movimentos» também me aceitavam. O ministro teria respondido a esse «alguém»: «O movimento em que está a pensar também o quer». E assim fui para Angola com a indicação do mesmo ministro de que me esperaria uma manifestação de protesto no aeroporto, de que se ia preparar legislação para rapidamente de fazerem eleições para as autarquias (primeira medida de grande alcance político), de que a minha missão consistia essencialmente em preparar o referendo, a fazer depois de aprovada a nova Constituição.

Em Angola, nos escassos 35 dias do meu Governo, senti-me sempre respeitado pela população por todos os locais onde andei. Nunca usei escolta, não tive guarda-costas. Em Luanda, andei por todo o lado: esplanadas, cinemas, igrejas e cemitérios. Quase no fim do mandato do general Costa Gomes foi-me com surpresa minha, revelado, em conversa para a qual me convocou, que o Mfa de Angola, através do Comandante-Chefe, havia feito diligências para a minha substituição. Eu tinha efectivamente recusado, logo poucos dias após a minha chegada, a proposta da constituição de uma espécie de Conselho de Estado constituído por mfa's. As diligências do Mfa, transmitidas por Lisboa, sem me ser dado conhecimento, pelo Comandante-Chefe, o incidente da morte do motorista (quem o teria provocado?), a retaliação que se lhe seguiu, que originou oito mortos, e que as forças militares e policiais, dependentes do Comandante-Chefe, prevenidas, não puderam evitar (porquê?), constituem a cadeia que provocou a minha chamada a Lisboa. Não dei por hostilidade especial de europeus ou africanos. A autoria da recepção hostil circunscrita a três ou quatro cartazes que me mandavam embora e a dois ou três dos meus colaboradores pertenceu ao «Movimento Democrático de Angola», ponta de lança do Mpla, tal como o de Moçambique o era da Frelimo. Não teve qualquer expressão esse ostentar de cartazes por uma dúzia de jovens africanos, pagos para o efeito. Recordo-me que na véspera do meu regresso, em conversa com o eng. Castilho, presidente da Associação Industrial, me foi dito que as Actividades Económicas me consideravam ultrapassado na política do referendo, pois sabiam que o Governo do País pensava em negociar com o Mpla. Liguei esta informação com uma outra conversa tida, pouco tempo depois de chegar, com o eng.º Falcão. Foi-me então dito por aquele engenheiro que um importante ministro de Lisboa tinha ligações com o dr. Agostinho Neto, através do dr. Teixeira da Silva (que não conheci) e que foi o presidente do Tribunal que condenou à morte alguns mercenários. Mostrou-me mesmo um telegrama confirmando aquela ligação. Depois de regressar e de quanto veio a acontecer, não pude deixar de pensar nisto tudo: no «alguém», e no «movimento» em que o «alguém» pensava, nos cartazes, nos mfa's e nas Actividades Económicas...

Em 35 dias não tive ocasião para provocar uma mudança de atitude da população. Se ela efectivamente me repudiou, é profundamente estranho que um ministro inteligente, ao consultá-la, não o tivesse pressentido. Foi inábil? Não posso admitir que me tenha convidado para me sujeitar ao repúdio...

Penso, e tenho outras razões para o supor, que a rapidez da minha passagem por Angola foi muito o resultado de uma manobra. De qualquer forma, não fui desrespeitado, desfeiteado... como aconteceu mais tarde, pelos vistos sem repúdio...



O neto e o avô




P. - Outra justificação auscultada nos círculos que defendem o processo de descolonização. Melhor, largamente difundida pelos interessados na tese: não havia outra solução para Portugal, se não o abandono. Os Movimentos emancipalistas foram os responsáveis em Angola, dizem, pela deterioração da situação e nos outros territórios tinham o apoio das respectivas populações. Considera a atitude então assumida pelo Governo de Lisboa - a modos que inspirada no conhecido gesto de Pôncio Pilatos... - sensata, a que mais ou unicamente se opunha ao momento? Ou está de acordo com a opinião, que é a de não poucos, que a classificam de errada, e mesmo vergonhosa, até pelo abandono de populações que confiavam em Portugal?

Por outro lado: neste momento será possível fazer, se não um balanço, pelo menos uma análise do processo de descolonização, para uns quantos exemplar e para outros lamentável, para utilizar um termo eufemístico? Os laços de Portugal com as ex-Colónias foram, com a descolonização que tivemos, mais preservados, ou atitude diferente - por exemplo: imposição da observância dos acordos de Alvor, no caso de Angola - teria conduzido a melhores resultados?

R. - Que os movimentos, em nenhuma das províncias tenham tido o apoio generalizado das respectivas populações parece evidente dever concluir-se da sua recusa ao referendo, e das dificuldades com que os mesmos continuam a debater-se, apesar de todas as colaborações recebidas, ajudas que, em Angola, se cifram, além de outras, por milhares de soldados cubanos. Deve mesmo ser tido como humor negro, em face da situação de Angola e de Timor, e também de Moçambique, falar ainda em apoio das populações aos movimentos...

Quanto à deterioração da situação em Angola, ela era previsível, dadas as rivalidades que se afrontavam há muito. Daí que o «lavar de mãos» dos responsáveis em Angola (como em Timor), com o seu cortejo de centenas de milhar de mortos, não somente tenha sido errado, como sobretudo indigno e criminoso: uma página negra da nossa História.

Com a saída das províncias dos chamados «retornados» e a entrega, ou abandono, do Ultramar aos movimentos da órbita soviética, ou, no caso de Timor, a país estrangeiro, os laços de Portugal com as suas antigas parcelas ultramarinas correm o risco de irremediável rotura. Será necessário muita prudência e sabedoria, e sobretudo muito patriotismo, para evitar o irremediável. Em particular, dada a instabilidade que se verifica principalmente em Angola, Moçambique e Timor, os compromissos com o poder legalizado não podem esquecer os outros poderes de facto que se estão exercendo, e nalguns casos desenvolvendo. A Flec, a Unita, e a Fnla, em Angola e os Resistentes de Moçambique e de Timor são realidades que não podem ser esquecidas e muito menos afrontadas... Ninguém pode prever o que serão as antigas províncias num futuro que pode não estar longe.

Os ultramarinos regressados das várias províncias com o êxito que certamente vai ter o seu labor em todos os sectores da vida do país, pelas suas qualidades de trabalho, pela sua experiência, pela grandeza das suas ideias e projectos (plasmados sempre em escala mais grandiosa), pelo fundo de paixão que, naturalmente, os enforma e motiva, pelo vácuo encontrado, resultado do exílio dos melhores e da perda generalizada das virtudes dos que ficaram, hão-de constituir o alicerce das futuras relações com o antigo Ultramar. Nem o Ultramar será por eles esquecido em várias gerações, nem eles será esquecidos pelo Ultramar. Serão talvez os ultramarinos, dentro de poucos anos, a base da vida económica, técnica, administrativa e política do nosso país: essa a compensação do atroz sofrimento que lhe foi imposto.

Quanto à chamada «descolonização» que se fez, deve-se dizer que nada revela ter-se importado, na execução, com a preservação dos laços de Portugal com o antigo Ultramar. Pelo contrário, assumiu-se verdadeiramente a atitude errada e estúpida, de derrotados sem condições... Só agora vão aparecendo, já sob a pressão dos rumores que se levantam, umas muito ténues, e por vezes desastradas, manifestações de certa e atrasada preocupação. Os acordos do Alvor, uma vez que feitos, deveriam ter sido cumpridos. Dos gravíssimos atropelos que sofreu não fomos capazes de ser árbitros. Imiscuímo-nos, mesmo neles, colaborámos até, por vezes, com grave parcialidade.

P. - Em «África. A Vitória Traída», obra de V. Ex.ª e de outros três generais, pretende-se provar que a guerra em África não estava perdida. O livro foi discutido e criticado mais emocionalmente do que factualmente, ao que parece. E continua a sublinhar-se o elevado custo da guerra, as perdas de vidas, as de portugueses e guerrilheiros. Por outro lado, parece que a descolonização exemplar ou não, provocou mais vítimas fora ainda, evidentemente, as suas consequências futuras com o prolongamento da guerrilha, em Angola, e dificuldades que, segundo alguns, se registam no caminho da normalização noutros territórios antes portugueses. A sua opinião sobre o problema? Ou será que, na realidade, é muito cedo para escrever a História?...




R. - Em «África. A Vitória Traída» repõe-se com números, que ninguém contestou, e factos relatados pelos chefes militares mais qualificados para o efeito, verdades que andavam monstruosamente deformadas. Não é mais possível empolar-se, sem demonstrar ignorância ou má-fé, os custos financeiros e humanos da guerra, ou a fuga dos mancebos pela impopularidade daquela. E se se comparar os custos financeiros e humanos da guerra com os mesmos custos da «paz» trazida pelo 25 de Abril, sem a restritiva óptica racista que explica muito do que se passou, e ficou consolidada na incrível lei da nacionalidade, fica-se horrorizado com o preço daquela «paz». Ouçam-se as vítimas que por aí andam, juntem-se as vítimas que deambulam por Angola, Timor, Moçambique, Guiné... Some-se a tudo o comportamento indecoroso para com os soldados e as populações vitimadas por sempre se terem considerado portugueses. E não haverá arte, subtileza, ou habilidade, capaz de camuflar o horror provocado. E a haver inteligência que tente justificação, a não a admitirmos conduzida por razões menos transparentes, temos de lhe atribuir insensibilidade e, ou, irresponsabilidade.

Que a guerra não estava perdida em 25 de Abril, já hoje ninguém, medianamente informado, duvida. Como praticamente todos sabem, em Angola, a vitória estava à vista. Quando ao resto, é como se prova em «África. A Vitória Traída». Os que andaram pelo Ultramar e os que por lá combateram sabem que eram assim... E daí o sentimento generalizado de vergonha, arrependimento e frustração de muita da gente boa que hoje sabe ter sido objecto de manipulação com o 25 de Abril...

P. - Um fenómeno curioso e sobre o qual gostaria de escutar a sua opinião. Depois da indisciplina reinante nas Forças Armadas Portuguesas, durante o período conturbado que terminou com o «25 de Novembro», o respeito pela hierarquia e pela disciplina regressaram progressivamente aos quartéis e creio que se reimplantaram entre a maior parte da oficialidade. Porque foi suspenso após o «25 de Abril»? Culpa dos soldados, até aí e hoje de novo obedientes, dos soldados que não quiseram combater, diz-se, assim que deflagrou a Revolução de Abril?

R. - A destruição da Instituição Militar fez parte da estratégia utilizada para, com o 25 de Abril, se perder o Ultramar, que acabou por cair na órbita soviética. Consumado o abandono de Angola e tentada, sem êxito, a conquista do poder pela força, a acção sobre a Instituição Militar deixou de se poder exercer com a mesma intensidade, e perdeu mesmo parte do seu interesse. As circunstâncias referidas, abandono de Angola e 25 de Novembro, com certa limpeza militar decorrente deste, levaram a uma melhoria indubitável da disciplina exterior das nossas Forças Armadas. Mas a destruição da estrutura da Instituição encontra-se, por muito tempo, consumada. Com raras excepções, o melhor dos excelentes quadros que possuíamos, nas hierarquias mais elevadas, foram objecto de uma odiosa purga, entre nós sem precedentes. Antes que novos quadros estejam preparados (o que não acontecerá com graduações e promoções por distinção... política de quadros jovens, que globalmente, e com poucas excepções, se revelaram maus), oxalá não seja necessário recorrer a novo Conde de Lippe para restaurar o que programadamente foi destruído...

P. - Um caso insuficientemente esclarecido. O general, foi, parece, um dos homens do «25 de Abril». Esteve desde logo indigitado para altas funções, cabendo-lhe, embora por curto período, as delicadas funções de governador de Angola. Hoje, porém, a maior parte dos que se arrogam do espírito do «25 de Abril» situam-no na extrema-Direita e apontam-no, mesmo, como reaccionário. Um mistério... Quer interpretá-lo?

R. - Não fui um homem do 25 de Abril. Nada, absolutamente nada, tive com o Movimento dos Capitães, o 25 de Abril, ou o Movimento das Forças Armadas. Nada tive com as conspirações de políticos civis e fardados que estão na base da manipulação sofrida por militares capazes e ingénuos. Não conhecia praticamente nenhum desses políticos militares e civis. Todas as minhas preocupações de então (e da grande parte dos meus camaradas) se centravam no Ultramar. Quando, na tentativa da intervenção do general Kaúlza de Arriaga no Movimento dos Capitães, fui por este consultado, toda a minha preocupação foi o Ultramar, e daí condicionar a adesão para uma tomada de uma atitude à unidade entre Spínola e Kaúlza, unidade não obtida, o que constituiu, em minha opinião, o grande erro, o grande desastre, da política militar dessa altura.

No dia 16 de Março, no Estado-Maior do Exército, fui, em dado momento, encarregado pelo Chefe de Estado-Maior do Exército de explicar e justificar aos oficiais mais graduados presentes nas Repartições o que se estava passando. Reuni-me com eles, que me ouviram em silêncio. Com espanto, vim a verificar, após o 25 de Abril, que quase todos eram mfa's, e alguns importantes...

Estava, no 25 de Abril, tão longe do Movimento que, na tarde desse dia, teve de ser cancelada uma pequena despedida que meu irmão tinha preparado em sua casa, pela minha nomeação iminente para um cargo militar em Moçambique (quando do regresso do general Costa Gomes de Moçambique, após os graves acontecimentos da Beira, fui chamado à Cova da Moura e convidado pelo dr. Silva Cunha para Comandante-Chefe daquela província; com a substituição de Costa Gomes por Luz Cunha a solução evoluíra). O cancelamento da pequena festa devia-se ao facto do anfitrião, meu irmão, haver sido preso nessa manhã, por revolucionários, quando se dirigia para o seu serviço (foram-no buscar à noite ao Batalhão de Caçadores 5, onde se encontrava com outros oficiais presos, para o convidarem, com total surpresa dele e da família, para membro da Junta), e por um dos convivas ser o proprio general Spínola... Por mim, quando, na manhã de 25 soube, por pessoa da família, o que estava acontecendo, telefonei para o general Paiva Brandão, chefe do Estado-Maior do Exército. Por cruzamento de linhas, apareceu-me do outro lado o general Luz Cunha, que me recomendou aguardasse ordens em casa. Insisti e consegui falar com o meu chefe hierárquico, o general Paiva Brandão. Disse-me que me mantivesse em casa pois seria preso se tentasse alcançar o Estado-Maior do Exército. Disse-lhe que tentaria. Mas tendo-me entretanto meu irmão telefonado, já preso em Caçadores 5, entendi manter-me em casa.






O convite para governar Angola surgiu, como já referi, depois da visita ali feita pelo dr. Almeida Santos, e como resultado dela. Antes, porém, dois ou três dias depois do 25 de Abril, havia sido chamado à Junta, na Cova da Moura. E na presença de Costa Gomes, de Galvão de Melo, de Pinheiro de Azevedo e de Rosa Coutinho fui convidado pelo general Spínola para Governador e Comandante-Chefe de Moçambique. Aceitei e foi-me pedido que sugerisse a organização do Comando e do Governo. Referi os nomes do general Franco Pinheiro como Vice-Comandante-Chefe e do coronel Silva Sebastião (então presidente da Câmara Municipal de Lisboa e distinto Governador ultramarino) como Vice-Governador-Geral. Eu pensava instalar-me inicialmente na Beira, deixar o coronel Silva Sebastião em Lourenço Marques e manter o general Franco Pinheiro em Nampula. As propostas foram aceites. E foi-me pedido, também, que sugerisse nomes para Governador e Comandante-Chefe de Angola. Referi ali, e ninguém levantou qualquer objecção, os nomes de Kaúlza de Arriaga e de Bettencourt Rodrigues. Mais tarde, já com estes dois generais «saneados», foi-me pedida uma lista de nomes para Governadores-Gerais de Angola, havendo então eu já cedido o general Franco Pinheiro como Comandante-Chefe daquela província. Estabeleci tal lista, encabeçando-a com os nomes de Deslandes e Adriano Moreira. Também me foram solicitados nomes para o ministro que veio a designar-se por da Coordenação Interterritorial. Sugeri empenhadamente, em lugar cimeiro, o nome de um africano que muito considero: o dr. Aguinaldo Veiga. Tudo, embora não concretizado, foi aceite com interesse. Se isto refiro, é para dar a ideia da disposição, naqueles primeiros dias, da Junta, ou melhor do seu presidente, o general Spínola.

O coronel Silva Sebastião foi deslocado para Moçambique em missão de reconhecimento e estabelecimento de contactos. Eu próprio estive para acompanhar o general Costa Gomes na sua visita a Angola e Moçambique, mas a indicação para o fazer foi cancelada, na própria noite em que a recebi, véspera da partida... Quando o general Costa Gomes regressou de Moçambique, trouxe a informação de que os moçambicanos me não aceitavam como Governador-Geral. Cabe referir que um ou dois dias depois de ser aceite o convite de ir para Moçambique, o que se deveria concretizar com brevidade, conversando com o general Costa Gomes, foi-me dito que afinal, lendo o Programa do Movimento, se havia chegado à conclusão que a nomeação dos Governadores competia ao novo Governo, ainda a constituir... Havia, pois, que aguardar... «O programa era a Bíblia». E o general Costa Gomes foi buscar a «Bíblia» a uma gaveta da secretária para que eu visse... o que, a esse respeito, rezava. Dias mais tarde, falando com Rosa Coutinho, o homem da Junta que tratava dos assuntos do Ultramar, sobre problemas da província (eu havia já trocado impressões de grande interesse com o eng.º Pimentel dos Santos, Governador-Geral cessante), disse-me, a despropósito, que, embora a Junta já o tivesse decidido, e a sua opinião já não tivesse interesse, entendia que os novos Governadores deviam ser sugeridos pelas populações do Ultramar... Não sei se o almirante Rosa Coutinho pensava da mesma maneira quando aceitou ir para Angola, mas não me consta que alguém tenha ido ali buscar o nome do meu substituto... De qualquer forma, com mais ou menos manipulação, e talvez com as primeiras deslealdades ao general Spínola, não fui para Moçambique e os Governos-Gerais de Moçambique e Angola acabaram por ser preenchidos cerca de um mês e meio depois do 25 de Abril... Foi uma delonga importante para que muitas naturais indefinições consentissem, apesar da boa vontade e competência dos Encarregados de Governo, o «necessário» degradar da situação naquelas províncias. Se o «Programa do Movimento» quisesse, com discrição, «programar» com tal objectivo, dificilmente o faria melhor.

Por que me chamou o general Spínola?

Suponho que por duas razões convergentes. Por um lado, pelo que então pensava acerca do Ultramar, pela sua fé (ingénua?) num Ultramar português, em paz, após um sério referendo. Por outro, por supor que eu, cujas opiniões (nem sempre coincidentes com as suas, mas igualmente patrióticas) conhecia perfeitamente, estava indicado para, consumado o 25 de Abril, procurar realizar o referendo e concretizar, com seriedade, a solução portuguesa. Estas duas razões explicam o convite que me fez, as sugestões que me pediu e a forma como as acolheu, e até a facilidade, de certo modo, para mim, surpreendente, como deixou que o Mfa me retirasse de Angola. É que, embora eu o não soubesse, vencido pela «dinâmica» do dr. Mário Soares, o general Spínola havia já então desistido do referendo para oferecer independências... Para tal operação não podia contar comigo. E também se não dispôs a contar comigo para a evitar, cumprindo o «Programa», que havia sido a «Bíblia» do general Costa Gomes... E em Angola, com os excelentes quadros que se possuía, bem o podia tentar. Por mim, consultado o dr. Redinha sobre implicações étnicas, tinha começado a pensar em transferir o Governo-Geral para Nova Lisboa...

E, afinal, eu, por que aceitei?

Simplesmente, por supor ser útil à Pátria que jurei servir e defender.



Notas:

(1) Como envergonhados foram, recentemente, muitos «portugueses» (?) no que disseram, escreveram e projectaram nos écrans da TV, com total falta de dignidade e de respeito pelos valores da sua (?) Pátria, em face de algumas das palavras do Presidente da Guiné, Luís Cabral.

(2) Em 2 de Maio de 1973, perante um esquema de reestruturação político-administrativa que me fora apresentado pelo gen. Spínola, escrevi-lhe uma carta do qual extraio os seguintes passos:

«[...] Creio que nos afastamos num conceito fundamental: para mim a era da África tribal, da África feudal, tem de ser ultrapassada. O feudalismo africano, que ainda se mantêm, é culpado de muitos aspectos negativos da cultura do Continente. A generalização da educação irá revelando elites que inicialmente se contentarão em se juntar ao lado dos tradicionais, mas que cada vez mais se irão impondo apenas pelo seu mérito.

[...] A grande diferença entre as estruturas que o meu general preconiza e aquelas que eu advogo consiste em o meu general duplicar orgãos de soberania para o conjunto federal e para a parcela onde as mesmas se instalem (a parcela europeia durante, pelo menos, muito tempo). Eu sobreponho, nessa parcela, os orgãos de soberania para o conjunto e para ela. Com esta modalidade, consigo uma simplificação muito grande na passagem do sistema actual ao que proponho. Fico com a possibilidade de evolução em qualquer sentido: mesmo o federal (em cuja estabilidade não acredito). Poupo elites. Evito perigosos atritos entre orgãos duplicados centrados na mesma parcela. E unifico as estruturas, sem afectar a descentralização, sem uniformizar, mas aculturando».




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