sábado, 27 de fevereiro de 2010

O socialismo não é o único caminho (i)

Entrevista a Orlando Vitorino





No Diário do Minho (1 Jun. 1985), Orlando Vitorino, já decidido a candidatar-se à Presidência da República, expusera mais uma vez os princípios filosóficos do liberalismo. Entre esses princípios ressalta o respeitante à organização do ensino assaz dependente do Ensino Superior por razões que nem sempre são as melhores. Quer dizer: se toda a organização do ensino depende da organização da Universidade, e esta continua, apesar de sucessivas e inúteis reformas, a minorar os potenciais valores da cultura nacional, então a única solução, na esteira de Orlando Vitorino, «é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova».

Ora, sem essa extinção não há Ensino Superior que permaneça ao nível da superna
universalidade, mesmo quando se cinja à gloríola dos contactos internacionais. Dir-se-ia, pois, que a universalidade – ou melhor, o universal – só veramente será quando, radicado na funda significação etnológica da palavra povo, melhor transpareça no aldeão e no «vilão» do que no cidadão. Que o diga, à laia de confirmação, Leonardo Coimbra, para quem a liberdade, no sentido do universal concreto, não se define pela sua extensão à totalidade: «Quanta mulherzinha do povo eu tenho visto pôr o universal nas suas acções, enquanto os grandes magistrados da minha República nelas colocam os seus retóricos interesses de vaidade!».

Miguel Bruno Duarte





O socialismo não é o único caminho


D.M. - O sr. dr. está realmente decidido a candidatar-se à Presidência da República?

O.V. – Com certeza. Foi anunciado e hoje todos os trabalhos para isso e toda a organização de uma campanha eleitoral estão, praticamente, completos.

D.M.– Que motivo o levou a tomar a decisão de se candidatar?

O.V. – Sou uma pessoa que está fora da actividade política mas tenho tido sempre toda a minha vida uma grande responsabilidade intelectual, mais sobrecarregada nos últimos tempos com o facto de a linha de grandes escritores e grandes pensadores portugueses, anterior à minha geração, ter perdido a maior parte dos seus principais representantes; homens como José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos.




Hoje, essa geração está reduzida a duas grandes personalidades, mas já idosas, o Dr. Santana Dionísio e o Dr. Agostinho da Silva.

Ambos ainda exercem uma grande actividade intelectual. O dr. Santana Dionísio acaba de escrever um livro de mais de 900 páginas sobre o pensamento de Leonardo Coimbra. O Prof. Agostinho da Silva está permanentemente a colaborar nos jornais e a escrever, e, sobretudo, a pensar.

A geração que se seguiu, que é a minha, assumiu, por assim dizer, a responsabilidade da principal corrente de pensamento e até de literatura portuguesas deste século, visto que se trata de uma linha não só de pensamento mas também de grandes artistas, como é o caso do Pascoaes, do José Régio e, até certo ponto, de Fernando Pessoa, que foi um homem, por assim dizer, redescoberto por uma tertúlia filosófica e não pelos escritores, do domínio da literatura.

D.M.– Dá-me a impressão de que não estamos habituados a ver intelectuais a entrarem na luta política a este nível...

O.V. – Talvez estejamos com uma perspectiva muito curta para concluirmos isso que é, efectivamente, a imagem que aparece.

Se tomarmos uma perspectiva a maior distância verificaremos que o primeiro Chefe político da I República era um intelectual, era Teófilo Braga.

D.M– Mas não era, também, um idealista?

O.V. – Talvez precisamente por isso todos os republicanos disseram, durante a I República, que o único governo verdadeiramente republicano que tinham tido tinha sido o de Teófilo Braga.

E se formos ainda mais longe verificaremos que o primeiro grande rei português que criou aquela classe de pessoas bem adaptadas à epopeia das descobertas foi também um intelectual, D. Duarte. Aliás, o primeiro filósofo da Europa que escreveu em vernáculo.



Socialismo não é o único caminho





D.M.– Senhor dr., vamos a questões mais práticas, digamos assim. Candidata-se, certamente, com o objectivo de mudar o curso à orientação que o País leva. Ou não será?

O.V. – Num plano rigorosamente de doutrinação política, a minha candidatura destina-se a mostrar aos portugueses que o socialismo não é a única hipótese e o único caminho que um povo pode seguir.

Pelo contrário, existe um outro caminho, mais conhecido por liberalismo ou neoliberalismo.

Ainda dentro do liberalismo e do neoliberalismo é mais conhecido como um sistema económico. Simplesmente, não se trata apenas de um sistema económico.

O sistema económico tem muita importância no liberalismo porque é através da economia que doutrinas e regimes como os socialistas colocam os indivíduos e o povo em estado de servidão.

Por outro lado, o liberalismo está completamente aberto a todas as formas de reconhecimento de existir uma origem e uma fonte espiritual para o governo dos povos, enquanto o socialismo reduz ao materialismo a fonte de governo dos povos.

D.M– Parece-lhe que, como Presidente da República, pode mudar o rumo das coisas?

O.V. – Acho que se pode mudar visto que o Presidente da República é o orgão de soberania primacial.

D.M– Mas ele pode muito pouco...

O.V. – Não pode tão pouco como geralmente se diz. Sobretudo o actual Presidente da República, depois da revisão constitucional, tem-se empenhado em fazer ver que o Chefe de Estado pode muito pouco.

O que é certo é que, com esses limitados poderes e funções que se lhe atribuem, o Presidente da República pode obrigar, ou persuadir, ou levar outros orgãos de soberania, que são o Governo e a Assembleia da República, a um acordo quanto a direcções políticas do País.

E tem meios para isso.

O primeiro está em que as leis da Assembleia da República têm de ser homologadas pelo Presidente da República. Essa homologação pode ser sempre um motivo para esclarecimentos, para discussões, e para esses acordos a que me referi.

Isto, sem falar nas iniciativas próprias que o Presidente da República pode tomar, tanto em relação ao Governo como em relação à Assembleia.




Organização do ensino em estado catastrófico


D.M.– Quais são, na opinião do sr. dr., os principais problemas que hoje se põem ao País?

O.V. – O maior de todos os problemas é um problema ético.

Este longo predomínio de concepções materialistas, dessacralizadas e ateístas de tudo quanto é a existência social, levou a uma situação ética na generalidade da população que está degradada.

Por outro lado, essa situação ética está imediatamente ligada com a situação do ensino. É do conhecimento geral que a organização do ensino se encontra em estado perfeitamente catastrófico.

Essa organização do ensino é o primeiro problema a dever ser considerado pela política.

D.M.– O sr. dr. falou na degradação ética e na situação do ensino. Em que é que se concretiza a degradação ética?

O.V. – Por exemplo: a situação da juventude, o predomínio de modos de viver ou a utilização de drogas, o aumento da prostituição, etc., para não falar numa questão mais quente. Tudo isso se manifestou na discussão sobre a lei do aborto.

A lei do aborto foi aprovada e parece corresponder inteiramente ao espírito ou à doutrina da política dominante, em qualquer dos seus sectores. Apenas vi uma posição contrária: a manifestada por parte da Igreja.

Entendo que, até dentro do domínio completamente laico e completamente independente da Igreja, nós poderemos recorrer a um grande argumento a que poderia chamar o instinto de fecundação biológica.

Esse instinto torna perfeitamente inviável e mostra o carácter degradante que tem a despenalização do aborto ou a persuasão a que ele leva a juventude de que as relações amorosas são susceptíveis de não ter projecção e consequências na vida moral, na constituição da família, etc.

D.M.– O sr. dr. não aceita o aborto por uma razão religiosa ou por outros motivos?




O.V. – Não aceito o aborto por várias razões.

Uma delas é a razão religiosa, ou o carácter sagrado das relações humanas.

A outra, como lhe disse, é esta razão biológica, que esvazia todas as relações entre homens e mulheres de uma medida sentimental, para não chamarmos espiritual, e conduz a um desaparecimento e a uma evanescência do próprio erotismo.

D.M.– O sr. dr. falou, depois, no problema do ensino. A que níveis haverá que fazer mudanças?

O.V. – Toda a organização do ensino depende da organização do Ensino Superior, ou do estado do Ensino Superior.

Toda a organização do ensino é determinada e condicionada pela organização do Ensino Superior. Isto, desde os planos mais gerais do ensino até à sua própria execução.

Na execução isto é imediatamente visível, visto que são os alunos formados pela Universidade de que vão ser professores no Ensino Secundário

A Universidade, sobretudo a Universidade Pombalina, aquela que é a Universidade estatizada há dois séculos, sempre tem exercido um poder quase absoluto, digamos, sobre sucessivos governos políticos em relação ao ensino. Basta dizer que há muitas dezenas de anos só houve um caso de um ministro da Educação que não era professor universitário.

A primeira alteração a fazer é a alteração de todo o Ensino Superior. Para isso é preciso extinguir, como recomendou Delfim Santos e como começou a pôr em prática Leonardo Coimbra, a actual Universidade.

Delfim Santos dizia mesmo que uma reforma na Universidade é mais do que insuficiente. O que é preciso é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova.

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes



D.M.– Em que linhas assentaria a Universidade nova?

O.V. – No aspecto programático, substancial, da sabedoria que se deve transmitir, as linhas dessa Universidade nova estão todas elaboradas pelos homens que já citei: Leonardo Coimbra e Delfim Santos.

Minuciosamente programadas, estão assentes numa teoria da educação que, a meu ver, é a mais notável teoria da educação que, na modernidade, foi elaborada e escrita: a que está exposta nos livros de Álvaro Ribeiro. Um livro sobre o Ensino Primário, outro sobre o Ensino Secundário e um outro sobre o Ensino Superior.

Continua


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