sábado, 21 de agosto de 2010

O cristianismo russo

Escrito por Leonardo Coimbra








A Rússia foi (...) um aluno, desenvolvido em estufa, da Igreja de Bizâncio e duma Bizâncio inteiramente perturbada de desunião, nas vésperas até do cisma até hoje conservado.

A inserção temporal do espírito, a assimilação do tempo pelo eterno, a presença do infinito modelando o finito e a projecção das linhas de força do transcendente magnetismo da caridade iam-se perdendo, numa cidade, centro do império, ciosa duma longínqua Roma, diminuída e decadente.

Aquela expectativa religiosa, que fez o mundo clássico, a boca aberta duma fome de Cristo, tinha criado um esquema súplice para a inserção da verdade do cristianismo.

O Oriente ficava ainda em sobressaltos de sensibilidade e de caridade espiritual intermitente, quando o mundo ocidental atingira Deus pela inteligência e vontade, para além dos desejos, pela disciplina duma razão reflectindo o Logos normativo.

Sobre os próprios gregos do oriente passara o o delírio de Alexandre e a fadiga de uma cultura, que, sem saída fora do cristianismo, tombara na erudição pomposa, na bibliotecomania.

A orgânica social não atingira sequer a unidade de pax romana, mais propícia à oferta dos quadros jurídicos do seu pensamento e dos quadros filosóficos do grego clássico à ordenação humana do divino que chega.

As seduções duma dialéctica retórica, que perdeu o contacto da vida dialéctica clássica, a inveja e o orgulho da cidade dos césares, erigida por Constantino, a caótica etnologia das multidões, tudo isto se afirma na inconsistência doutrinária da Igreja oriental.

Foco de todas as heresias, ela as vai aceitando ou repudiando, conforme a resistência dos bons cristãos e até inversamente ao grau de esplendor ou abatimento da Igreja de Roma.

Os imperadores são muitas vezes os directos ou indirectos fautores da heresia, e quando entram no respeito à sede romana, é mais por interesses da sua política do que pelo respeito da verdadeira ortodoxia.

Vladimir Soloviev - o mais lúcido pensador da Rússia, sem deixar de ser uma estranha natureza profética - mostra claramente o caminho de Bizâncio para um sentido religioso islamita, de modo que a conquista de Constantinopla estava feita em espírito antes da vitória dos Turcos conquistadores.

Concílio de Niceia


O arianismo é bem tratado pelos imperadores Constâncio e Valente. O arianismo era um cristianismo incompleto, dando-nos um Cristo sem divindade autêntica: deixando, pois, a natureza humana à mesma infinita distância, numa impossível deificação do homem.

Assim o humano se desprendia do divino e a autoridade sem fundamentos de serviço divino, podia ser um capricho absoluto pesando sobre possíveis escravos.

O nestorianismo é protegido por Teodósio II.

O nestorianismo faz, do Cristo homem, uma pessoa completa, deixando assim a natureza humana, sem contacto possível com Deus, oferecida ao absolutismo da autoridade, que a governe.

O nestorianismo é vencido, e Teodósio II acompanha da sua simpatia a nova heresia do monofisicismo.

Com esta heresia a humanidade de Cristo é dissolvida na divindade. A redenção não pode assimilar a humanidade, e esta fica, outra vez, sem o valor infinito da sua possível deificação. De novo a autoridade poderá levantar-se, absoluta, diante de um homem irremediavelmente contingente e desamparado.

Os imperadores tentam ainda compromissos depois de vencida esta heresia.

Uma nova heresia, protegida pelo poder durante mais de cinquenta anos, é o monotelismo.

Não há vontade humana em Cristo: a vontade do homem fica, pois, absorvida na invencível propulsão do querer divino - e aqui começa claramente o parentesco com o Islão.

Mal é vencida esta heresia, surge a heresia dos iconoclastas.

O corpo do homem e o mundo físico, que este pode dirigir, são incapazes de inserção espiritual, que os faça expressões do espírito, valores também de vida viva, de vida de eternidade.



Iconoclastas no Império Bizantino



A fúria iconoclasta significa o corte radical do espírito e da matéria. É o islamismo triunfante. Neste particular o protestantismo ocidental, filho dum pensamento que separou a alma do corpo, revelou também lógicas tendências iconoclastas.

O próprio jansenismo não se furtou às tendências antiescolásticas e às suas longínquas solicitações maniqueístas.

Todas estas heresias, sempre mais ou menos apoiadas pelos imperadores, revelavam um sentido incompleto da verdade cristã, e tinham uma lisonjeira aceitação pelas razões justificativas que traziam aos teimosos desejos do absolutismo autoritário.

(...) Ora os Russos tinham sido levados para o cristianismo pela mão de Bizâncio: é natural, pois, que fiquem sempre desconfiando da autoridade do cristianismo ocidental.

As relações da Rússia com o Ocidente continuam, porém, durante algum tempo, e só a queda de Bizâncio e a ideia da «Terceira Roma» marcam à Rússia o papel e o dever de porta-estandarte da verdade ortodoxa.

Relações comerciais, políticas e diplomáticas continuam a manter-se, especialmente com a Polónia, a Hungria e a Alemanha, bem como relações da família reinante com a França. O proselitismo religioso no Ocidente é consentido, em sobressaltos de aceitação e repulsa, devidos estes, por vezes, a intrigas políticas, em que nem sempre a imprudência estava da parte dos Russos.

Há mesmo um recurso ao papa em certas questões de herança dos príncipes de Kiev e tentativas vindas do Ocidente para uma união das igrejas. Em 1233 existe mesmo em Kiev uma igreja servida por dominicanos.

Também Novgorod recorreu ao Papa para garantia do pacto feito com os cavaleiros teutónicos.

(...) Entretanto a invasão mongólica vinha endurecer o muro de separação dos Russos e do Ocidente europeu.

Esta longa dominação deu origem a uma aristocracia híbrida, com predomínio do orientalismo.


Igreja de Santa Maria Madalena no Monte das Oliveiras (Jerusalém), pertencente à Igreja Ortodoxa Russa.







(...) É com os czares de Moscovo que a Rússia proclama a autocefalia da sua Igreja e refaz, como «Terceira Roma» o centro da verdadeira fé ortodoxa.

Roma traiu; Bizâncio, segundo Roma, tombou por castigo de Deus; fica de pé a «Terceira Roma», cidadela guerreira e mística da pureza da fé.

(...) Esta mística intensifica-se na acção, quando os Russos entram em conflito com a Turquia.

Mas, mais que a defesa de fé, era o autocratismo czarista, que gerava a grande mística da Rússia moscovita.

Sendo assim, é o autocratismo czarista, que dispõe inteiramente da ortodoxia, fazendo dos patriarcas, servos obedientes; acabando até, como já vimos, pela supressão do patriarcado.

(...) Os monges russos têm a sua história, que não pode comparar-se com a das ordens da igreja ocidental. Com personagens notáveis, nunca a sua obra social atingiu nada que se pareça com a eficiência das ordens ocidentais. Faltos de disciplina regulamentar, incapazes no geral de voluntária disciplina individual, sem conhecimento duma língua universal que os ligue aos estudos humanistas e às especulações ocidentais - o latim - eles terão um notável papel na colonização e civilização do país, sem atingirem uma seguida e boa doutrinação dos povos.

(...) Os eremitas iam em ascese até mortificações inverosímeis; mas, em regra, esta ascese era simples mortificação sem o destino de procurar a verdadeira mística.

A ascética por si, a penitência por si, podem ser até formas sádicas da sensibilidade - só terão um sentido superior, quando são meios, por vezes até necessários, para a mística.

A ascética russa é essencialmente mortificação, remorso penitente, remédio de desespero até; raras vezes poderá ser catarse, via purgativa, caminho de via unitiva, porque esta, sem graça especial, exige uma doutrina, uma exploração das riquezas dogmáticas, que faltou quase sempre no cristianismo russo.

As comunidades russas eram duma orgânica (1) bizarra: conventos mistos, de homens e mulheres; conventos de religiosas chefiados por homens; conventos, propriedades de fidalgos ricos que tinham nos monges uma espécie de servos...

(...) À cobiça dos czares, às suas necessidades económicas e guerreiras, bem como ao seu autocratismo absorvente, não podiam os conventos deixar de oferecer-se em insofrido apetite.

(...) Pedro Grande chama, aos monges, parasitas do trabalho alheio, propagandistas de heresias e superstições. Proibiu a formação de novos conventos e deu as vagas aos inválidos de guerra, aos enfermos e pobres. Os bancos dos mosteiros e dos bispos passaram para a gerência do Estado.

Estas ordens foram mais tarde mitigadas um pouco, ficando, no entanto, os mosteiros dirigidos por pessoas de confiança do governo e não podendo os monges escrever sem prévia licença, etc.

Catarina reduziu ainda mais o número dos conventos, transformando alguns em quartéis, hospitais e escolas.

Por fim os conventos russos possuíram uma regra de vida comum e foram governados por um igumeni ou archimandrity, em regra, eleito.

(...) A igreja não teve, pois, na Rússia, uma situação feliz, e nada admira que um cristianismo incompleto, encerrado no conservadorismo da herança bizantina, maltratado pelo imperialismo dos czares, não tivesse exercido uma doutrinação e um apostolado comparáveis, ainda que de longe, à acção do catolicismo.



Santa Face de Cristo


(...) Catarina desejaria fazer entrar o catolicismo para o serviço de Estado, como todas as outras formas do cristianismo; mas, não o conseguindo, morre quando tentava uma concordata com a Cúria romana.

(...) O próprio ensino eclesiástico, que, para o clero branco, era um curso vulgar completado por dois anos de teologia, não obedece muitas vezes na Rússia à concepção da Igreja como organismo vivo, em que a vida sobrenatural se insere para sobrenaturalizar a vida dos seus membros.

O conceito geral é o da igreja como um serviço do Estado - o que quer dizer que em regra se aceita o que é de facto: o facto fazendo-se o direito.

(...) Oficialmente, no próprio ensino, vencem sempre as correntes do religioso como serviço de Estado.

(...) É, em regra, fora do ensino oficial e até fora do clero, que aparecem, nos períodos de especulação religiosa, os grandes teóricos da ortodoxia.

Esta é a igreja russa, na vida exterior e no corpo da sua história.

E a sua alma?

Veremos que a sua alma essencial é a do cristianismo verdadeiro, separada, apenas por equívocos históricos, do cristianismo integral da catolicidade ocidental.

Equívocos, que afastam as bocas sequiosas, da grande corrente da doutrina e da vida, deixando sedes mal satisfeitas procurando estancar-se em correntes derivadas, onde aquele caudal envia, no entanto, a água da vida substancial, da vida original e autêntica; da vida viva, em suma.

Mas alma interiorizada numa contemplação quase imaterial, deixa o mundo da história correr ao lado, indiferente e desamparado.

(...) A igreja russa teve sempre um culto polémico - em oposição a uma Roma ignorada e incompreendida - culto da pureza intemporal, da brancura ideal, longe das possíveis nódoas dos contactos materiais.

O próprio Dostoiewski, na Lenda do Grande Inquisidor, (...) levanta de novo diante dos cristãos as tentações do Deserto, que Cristo venceu.

E é na derrota do cristianismo ocidental perante essas tentações que ele quer fazer ver a vitória da ortodoxia do povo russo e a queda da igreja católica romana.

Aqui é a tentação dos reinos da Terra oferecidos a Cristo por Satã e por Cristo recusados. Mas recusados porquê?

Se Cristo disse que todo o poder lhe tinha sido dado nos Céus e sobre a Terra, porque recusa ele os mundos oferecidos?

Claramente, porque não reconhece a Satã poder sobre eles, porque sabe que eles são de Deus, e que ele, o homem Jesus, os poderá receber, como, para Deus, Ele, o Homem-Deus, os irá reconquistar.

Catedral de Cristo Salvador (Moscovo).


Sim, o mundo geme na esperança da salvação; e o homem pela história - que é cultura e civilização, seja unidade dos homens no amor e espiritualização da matéria em instrumento, reflexo e translúcido símbolo desse amor - e na história, reconstruíndo esse mundo transfigurado, totalizado e unido, é que terá de o resgatar.

A alma da ortodoxia escolheu uma contemplação, que nem sequer podia ser a de Maria, pois esta contemplava a própria Origem e Fonte e, contemplando, respirava o Ser, olhava e vivia a Vida.

Mas olhar a alma da Igreja não é ver Cristo, pois na Igreja ele é presente de presença invisível, de mística presença, que só se pode realizar nas marés dum amor diligente e operoso, que soerga e transmute toda a realidade.

A Igreja é a presença do invisível no visível, é como uma ideia platónica, que fosse Vida e Pessoa, alimentando uma matéria ou história em permanente crescimento, transfigurante.

(...) As grandes actividades religiosas na Rússia, foram os movimentos de protesto das várias seitas. Dizia Rosanow que a ortodoxia falava baixo, como que num murmúrio, enquanto que as seitas gritavam em grande clamor.

Clamores tamanhos que já encontramos verdadeiras revoluções precursoras do bolchevismo - os Rasine, os Pugatchev, etc. - chefiadas por dissidentes cristãos, erguendo-se, por vezes até, como Cristos julgadores na hora definitiva da Parusia.

O papel desempenhado por essas seitas não pode desprezar-se no estudo do que foi o corpo histórico e a eficiência social duma religião, jugulada (2) pelos czares e dirigida no sentido dum burocratismo de conservação e defesa da autocracia czarista (in A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Livraria Tavares Martins, 1962, pp. 237-258).


Notas:

(1) Igreja russa, Brian-Chaninov.

(2) Em 1885 um documento oficial do governo russo declara que a igreja renunciou e entregou todos os poderes nas mãos do czar. Soloviev: La Russie et L'Église Universelle.


Kremlin


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