quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O português em coordenadas de caracterologia étnica (i)

Escrito por Francisco da Cunha Leão




D. Pedro e D. Inez de Castro


(...) Povo mesclado, poliétnico, porventura dos contingentes francos e romanos lhe adveio a quota-parte sanguínea, dos nórdicos algo de fleuma, e dos mediterrâneos e arábicos a emotividade primária, movediça de muitos dos seus homens.

Alguns dos condutores da nossa história representam excepções temperamentais que denotam hibridismo, em numerosos casos conhecido.

Percorramos algumas figuras, tentando a sua classificação caracterológica:

Pedro o Cru, rei itinerante, caçador e monteiro sempre rodeado de muito cão, muita ave e muita gente, amando a boa mesa cujas iguarias a todos franqueava, dadivoso, rápido nas decisões, frenético para a burocracia, «amador de trigosa justiça» (Fernão Lopes), implacável em castigar os erros - o seu retrato é o de um colérico puro. Emotivo, activo, entregue ao momento, cordeal e bailador, o louco amante de Dona Inez que o povo tanto amou, surge no friso da primeira dinastia como força da natureza indómita que prestes criou a pátria.

Sob calma aparente, Nun'Álvares descobre rasgos de emotividade primária, frenesim de acção e luta, uma pujança expressa em destemor, não sofreados repentes e rapidez de estratégia, o que tudo leva a inseri-lo também no tipo caracterológico denominado colérico - grupo dos condutores («meneurs»), pelo poder da simpatia, feita de misticismo e desembaraço do que foi um verdadeiro condestável. A vivência religiosa de igual modo intensa e a bondade da sua índole, refrearam-lhe contudo, e com o tempo, os impulsos, acentuando aspectos secundários do seu carácter. O «colérico fiel», acabou por vencer o colérico lutador nesse extraordinário «guerreiro e monge».

Colérico também, ainda que de outro estofo, deveria ter sido o Marquês de Pombal. Activo e agindo frequentemente debaixo dos estados emocionais. Autoritário e renitente no ódio. Cioso de honrarias, cúpido, infatigável em ditar a lei indiscutida, arbitrária que ela fosse. «Tudo fazia por pedaços e a retalhos» segundo António Ribeiro dos Santos, o que revela a primaridade do seu temperamento. A frieza de que era capaz, denotando falha de afectividade atesta, bem como certa visão objectiva, um aspecto para-sanguíneo dentro do tipo definido. Uma compleição psicológica de assalto, servida por grande capacidade de trabalho, e movendo-se ao sabor de emergências e obstinações pessoais.

É notável a galeria dos apaixonados e importante a sua participação nos eventos primaciais da história portuguesa. Quer nas vastas concepções e porfiadas empresas, como até na correcção dos nossos defeitos, enquadrando nervosos e coléricos.

O Mestre de Aviz foi um deles. O filho de D. Pedro e Teresa Lourenço herdou a audácia dos afonsinos temperada com a prudência e a arte de saber viver da mãe galega. Caracterologicamente apresenta-se-nos um apaixonado equilibrado. Emotivo sem ardor, activo mas não febril, secundário e no entanto só inibido pelo senso das oportunidades. O conjunto de altas virtudes médias que reunia granjeou-lhe a devoção popular sem que alertasse a inveja dos grandes. Tornou-se o homem do grave momento histórico de que sagazmente soube aperceber-se, em que se operou a conjugação da vitalidade urbana e burguesa como novo arranque do patriotismo. Não devemos ter por mediocridade a ausência de excessos numa pessoa que assegurou ponderadamente a metamorfose do meio nacional sem ruptura entre oposições profundas, tais o romanismo de João das Regras e a ética medieval de Nun'Álvares, os interesses de uma nobreza embora renovada com os da ascensão da classe popular. Obra de serena paixão foi essa que o feliz casamento do rei favoreceu, ao longo de um reinado cuja duração roçou meio século.






O Infante de Sagres encarna um caso feliz e superior da mistura de sangues, como aliás a «ínclita geração» a que pertenceu. Entre latino e anglo-saxão, o seu génio, dos mais completos da História, é o de um «apaixonado metódico». Nele se confunde monoliticamente a sonhadora ebulição e o ardor da vontade dos meridionais, com a persistência e o espírito prático dos fleumáticos, capaz de subordinar a afectividade aos rumos intelectuais de acção e às exigências desta.

Místico e negociante, cruzado e sábio, motor imóvel de navegações, sonhador e calculista da Aventura, teve de fazer a ciência, os homens e o dinheiro que um sorvedouro implacável consumia. Até o monopólio da indústria dos sabões obteve, a braços com enormes despesas, num orçamento que as altas receitas jamais equilibrariam, tão ilimitada era a empresa.

Metido no seu promontório de onde custava arrancá-lo, torre de comando feita de rochas a pique avançando sobre o mar, aí lhe principiava o mundo só de oceanos e terras virgens. Espírito fervente e solitário, movia sistematicamente uma devassa geográfica sem par e a valorização das terras novas. Em tudo pensava numa entrega total.

Ocorre duvidar-se dos sentimentos desse homem, sacrificando um irmão cativo em Tânger, não diligenciando o bastante para evitar o desastre do outro em Alfarrobeira. A sua absorção na empresa marítima porém explica tudo, mesmo essas falhas de afecto. Deu-se com o Infante uma especialização da emotividade pelo estreitamento do campo da consciência que naturalmente o inibia para o que não estivesse no interesse fundamental.

(...) No rei D. João II observemos o apaixonado muito secundário (grupo dos «circunspectos», já para-sanguíneos) conseguindo a objectividade e o sentido prático dos extrovertidos, pelo domínio de si próprio e os dotes da inteligência. As suas intrépidas intervenções pessoais não destroem este juízo, pois foram rodeadas de todas as cautelas e maduramente premeditadas. O espírito de previsão e de planear à distância, a retenção do despacho (Garcia de Resende) confirmam a sua pronunciada secundaridade.

Não lhe quadra a frieza atribuída por Oliveira Martins. A força interior do Princípe Perfeito é a dum apaixonado, bem como a veemente prossecução dos fins; os pequenos episódios relatados pelos cronistas, a ternura filial, o fervor religioso traiem o emotivo; nas palavras, nas obras há o apego ardente aos desígnios da lei e da grei.

Afonso de Albuquerque, pela grandiosa concepção global e uma energia de acção que o levava a correr obstáculos só para os esmagar, ressalta das odisseias quinhentistas como o protótipo do herói consciente quando os heróis foram enxame. A sua decisão de ataque em sequência combativa que estafava os capitães, a propensão à discordância, poderiam levar-nos a enquadrá-lo nos coléricos, se tudo isso não obedecesse, não se dispusesse em geratrizes de uma construção ideada em grande. Terá justo lugar entre os «apaixonados» e, discriminadamente, nos «imperiosos» - família de Napoleão e Alexandre. Assim Fernão de Magalhães, no qual se verificou uma atitude a que tais apaixonados imperiosos e impetuosos são atreitos, sacrificando o interesse da própria pátria às exigências de uma realização que se lhe apodera do espírito («procedimento de Coroliano»).

Convento de Mafra















Desconcertante é a figura de D. João V. O gosto do fausto, a vaidade, a prodigalidade, o desregramento sexual intervalado com fervor religioso e culto das artes, parecem evidenciar uma psicologia presencista instável. Contudo, além de se lhe não poder negar laboriosidade (assídua presença e intervenção na gerência dos negócios do Reino), verifica-se que tudo se subordinou ao empenho dominante de efectivar uma concepção, por certos considerada megalómana, da primazia de Portugal entre as nações. O interesse pelas exterioridades não consegue ocultar radicações mais profundas, de ordem cultural, patriótica e teocrática, aliás bem patentes na sua obra. De onde resulta que ao Rei Magnânimo, a despeito de alguns traços de emotivo primário, melhor quadra o tipo caracterológico apaixonado, com aspectos não raramente imperiosos.

Apaixonado para-sentimental parece-nos ter sido D. Pedro V. Meditativo de propensão, mas exigindo de si próprio uma ordem de determinações que o impedia de abster-se, e da simples entrega à vida interior e ao estudo. Espírito profundamente sério, capaz de dedicação metódica de um fleumático, sensibilidade aguda e plena de sentido social. D. Pedro V exprimiu-se no entanto como activo secundário (nada assinava que não lesse e compreendesse primeiro). O apaixonado está patente nesses caracteres confluindo na tensão com que exerceu a sua missão de rei.

Mouzinho da Silveira, reformador do liberalismo exemplifica o apaixonado laborioso. Da sua grande capacidade de trabalho não se pode duvidar. Nem faltam episódios na sua vida a provar que, além de activo, era emotivo. A secundaridade desse legislador também nos parece manifesta, descontentando às vezes os revolucionários extremistas, com o seu espírito ponderado, resistente às imposições da política partidária.

Na psicografia dos «nervosos» é de situar o rei D. Fernando, versátil, dado aos prazeres («amador de mulheres e achegador a elas, «cavalgante e torneador»), brando, inconsequente nos propósitos. O seu reinado tornou-se perigoso para a independência do soberano, suprimindo-lhe em partes os defeitos, promoveu mais um passo, e decisivo, na estruturação da sociedade portuguesa.

As características do «sanguíneo» ajustam-se a João das Regras. Trabalhador, positivo e objectivo, oportuno, ágil em discernir, hábil no encontro das soluções adequadas. «Sotilidade e clareza de bem falar» conforme Fernão Lopes, tinha esse «grão-doutor» de rosto florentino que assimilava brilhantemente na Itália a nova ciência dos legistas. Possuía a visão clara e fria dos extravertidos, a primaridade das reacções imediatas. Não será arriscado classificá-lo entre os sanguíneos (e no sub-grupo dos vivos) que detêm os máximos valores nas respostas aos quesitos sobre «talento oratório» (9.39), «presença de espírito» (9.83) e «rapidez de concepção» (9.27) (1). Apresentam-se especialmente dotados de sentido prático pelo que se adaptam às novas situações. João das Regras soube encontrar e impor mediante argumentos jurídicos e morais pertinentes na época, a solução que convinha ao interesse do País na sucessão do trono, vago pela morte de D. Fernando. Lúcido se mostrou quer em política exterior, quer na organização jurídica interna, em defesa do poder real contra os privilégios.

O rei D. Duarte aparece-nos como sentimental. Emotivo muito secundário, hesitante e frouxo de vontade. A sua verdadeira vocação era o estudo, o espírito pendia-lhe à melancolia. O desastre de Tânger e especialmente o cativeiro de D. Fernando levantaram-lhe problemas morais que, incapaz de resolver, lhe amarguraram a vida que assim foi breve. Príncipe esclarecido e justo, deixou-nos a marca da sua sabedoria em livros e leis.

O Infante D. Fernando feito prisioneiro e arrastado pelo souk de Tânger e humilhado pela população nativa (pintura de Eugene Delacroix, designada "Os Fanáticos de Tânger").


Traços evidentes de fleumático apresenta o Infante D. Pedro. Activo, pouco emotivo, extremamente secundário. Avesso à demagogia, interessado mas isento, desprezando as honrarias, com a consciência perfeita, sempre igual, dos ditames do dever e das obrigações sociais dos dirigentes. Constante no trabalho e no temperamento, incorreu, ao menos uma vez, na desastrada explosividade dos frios, feita de ressentimentos dominados. O valor intelectual e moral fez dele uma das figuras mais nobres e clarividentes da época, vitimada contudo pelas ambições que não reconheceu e pelas intrigas de que se alheava. A mesma ordem de ideias exigiria o temperamento mais forte de seu sobrinho neto, D. João II, com actos de raposa e de tigre, a fim de ser imposta ao nosso meio.

Na rainha D. Maria I vemos uma sentimental, piedosa em extremo, para-apaixonada; no rei D. João VI um apático, pouco activo, pouco emotivo, mas extremamente secundário (in Ensaio de Psicologia Portuguesa, Guimarães Editores, 1971, pp. 192-200).


(1) Trata-se de quesitos do questionário de G. Heymans e E. Wiersma.

Continua


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