terça-feira, 27 de novembro de 2012

Duas conferências de fundo (ii)

Escrito por Franco Nogueira 








«(...) seria na encíclica Rerum Novarum, de Maio de 1891, que Leão XIII trataria um dos temas mais agudos: a questão operária. Repudiando a solução socialista, o Papa considera como de direito natural o direito ao salário, e às economias que esse salário permita, e ao livre uso dessas economias, e à propriedade privada portanto. Decerto Deus outorgou toda a terra a todo o género humano; mas não assinou nenhuma parte a nenhum homem particular; e deixou a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, a terra ainda que parcelada, não deixa de ser de utilidade comum: ninguém há que se não alimente dos produtos dos campos. E mais: é de direito natural a constituição da família, a existência de filhos: e para sustentação destes é imperativa a existência de um património que lhes assegure o futuro. Por tudo isto, os socialistas, destruindo a propriedade privada e invadindo o "santuário da família", quebram os laços desta e vão contra a justiça natural. E o comunismo, rompendo a inviolabilidade da propriedade particular, é em si um princípio de empobrecimento, e estabelece a igualdade "na nudez, na indigência e na miséria".

(...) Mas a doutrinação política e social de Leão XIII não cessou com a Rerum Novarum. Em 1892, publicava a Inimica Vis: numa tradição que já vinha de Clemente XII e Bento XIV, e que foi rearfimada por Papas subsequentes, como Leão XII, Pio VIII, Gregório XVI e Pio IX, também Leão XIII julgou indispensável uma condenação solene da maçonaria, em particular na Itália, e denunciou os seus métodos de penetração e as ruínas sociais a que conduzia o liberalismo maçónico. Entre este e o catolicismo era portanto absoluta a incompatibilidade. Depois, já no século XX, em 1901, completa Leão XIII a sua construção doutrinal. É a encíclica Graves de Communi. Constituía a reiteração dos textos anteriores, o esclarecimento de alguns conceitos, a resposta a críticas. Pondo de parte expressões em voga - o socialismo cristão, o cristianismo social, a acção popular cristã - o Papa opõe a democracia cristã: manuntenção integral do direito de propriedade, distinção das classes que sem conflito são próprias de um Estado bem constituído, independência perante as formas de governo, alheamento das paixões dos partidos, promoção da conciliação entre as classes sociais como uma só família, obediência às ordens justas das autoridades desde que estas se conformem à lei de Deus. Para a democracia cristã, a questão social não deveria ser apenas a questão económica: era também, e principalmente, a questão moral e religiosa: e haveria de ser resolvida em conformidade com as leis da moral e da religião. E para completar o seu quadro, a democracia teria e deveria socorrer-se da beneficência, da previdência, e de uma acção social que, traduzida em congressos e comissões, levasse a democracia cristã até ao povo.

Ao amoralismo na filosofia, ao império exclusivista do progresso material, aos vícios da industrialização maciça, às paixões populares exacerbadas, aos mitos dos demagogos, às escolas do socialismo libertário, ao manifesto dos comunistas - Leão XIII opunha um esquema moderno que abrangia a estrutura do Estado, a organização da sociedade e das relações de trabalho, a economia, a família, a educação, o comportamento dos cidadãos, a própria vida das nações. E tratava-se agora de saber, para os que reflectiam sobre os textos, como traduzir em acção prática, ao nível dos Estados, dos governos e das sociedades, os princípios doutrinários lançados pelo Pontífice Romano. Era um problema que se punha aos meios conservadores por toda a Europa».

Franco Nogueira («Salazar», I).




Oliveira Salazar




«Doutrina essencialmente económica - aliás experimentada e de impossível adaptação à economia complexa dos povos civilizados - o comunismo converteu-se, por necessidade de combate, de defesa ou de infiltração nas massas, numa doutrina totalitária, como hoje se diz, em sistema completo de vida e organização social. Agregou a si todas as aberrações da inteligência e é, como sistema independentemente de algumas realizações materiais, a síntese de todas as revoltas tradicionais da matéria contra o espírito e da barbaria contra a civilização. Ele é a «grande heresia» da nossa idade.

Nós sabemos que há erros graves na nossa organização económica e social, desigualdades injustas, deficiências, misérias, mentiras, contradições, e é preciso que as remediemos ou as façamos desaparecer. É para isso que prosseguimos a nossa revolução, mas esta, para ser profunda, não pode destruir o que a tornará eficaz: os princípios fundamentais, encontrados pelo trabalho e o sofrimento das gerações passadas, digamos, as grandes realidades da vida social. O comunismo, não: ele tende à subversão de tudo e na sua fúria destruidora não distingue o erro e a verdade, o bem e o mal, a justiça e a injustiça. Pouco se lhe dá da história e das experiências seculares da humanidade, da vida e da dignidade da inteligência, dos puríssimos afectos da família, da honra e pudor da mulher, da existência e grandeza das nações, contanto que da sua falsa concepção de humanidade tenha podido arrancar a escravidão do homem e a sua máxima abjecção.

O comunismo constitui, a meu ver, o maior problema humano de todos os tempos, quero significar, um problema de conceitos básicos de humanidade e de vida individual e social, e por consequência grave risco para a civilização ocidental ou cristã. Parece não se ter nunca esgotado tão completamente numa experiência social determinado princípio de vida, nem tão completamente confiado à ciência, à técnica, à organização aquela parte de iniciativa e de espontânea humanidade que faz a doçura, a riqueza, a atracção de outras formas de compreender a vida e o homem. Verifica-se que pode haver todas as marcas do chamado progresso material - potencial militar, máquinas e indústrias de maravilha - conjuntamente com a diminuição, o afundamento de consciências livres. Onde o Estado e a máquina absorvem o homem não há lugar para a liberdade humana.

O comunismo podia ser apenas, como o liberalismo ou o socialismo, um fenómeno político e social com maior generalização em certas regiões do mundo e maior ou menor influência na vida dos povos. Um dos grandes acontecimentos dos nossos dias é, porém, que se tornou elemento dominante da política externa.























Depois de muitas tergiversações e tenteios, as maiores potências do Ocidente chegaram finalmente a esta dupla conclusão, aliás há muito evidente: a Rússia prossegue uma política de hegemonia mundial e faz do comunismo ao mesmo tempo veículo, fim e apoio externo dessa política; o comunismo é essencialmente inconciliável com os princípios da chamada civilização ocidental e nenhuma fórmula de entendimento ou compromisso sério se pode conseguir com ele. Esta verificação não aumentou por si própria os perigos; pelo contrário, simplifica de certo modo as soluções; mas a gravidade da situação existente não pode escapar a ninguém.

O comunismo é cultivado e propaga-se como um fenómeno de características religiosas, ainda que puramente materialista e confessadamente ateu. Se o não fora, desenvolver-se-ia ou pereceria, consoante as circunstâncias. Porque o é, trouxe para o campo do combate a virulência das guerras de religião, com a agravante de que, sendo por essência doutrina totalitária de vida e de Estado, tem de ser intolerante quanto aos princípios e senhor tirânico quanto a todo o poder.

Quebrar a resistência moral das nações, desorganizar a sua economia, exercer sobre a máquina do Estado acção paralisante é função atribuída ao comunismo em toda a parte onde o governo lhe está vedado. A diminuição até à impotência da força das nações que se lhe entregam é o maior serviço reclamado pelo país estrangeiro que o inspira, o apoia, o subsidia. De modo que sofrer um país a acção do comunismo quando no seu seio irrompeu, devido a causas que não puderam ser dominadas, é uma fatalidade contra que tem de lutar-se, fazendo apelo a todas as forças de ordem, para neutralizar-se os efeitos, à espera de melhores dias. Que se dêem possibilidades de desenvolver e organizar forças tão virulentas e corrosivas do organismo social, tão contrárias ao espírito da civilização de que somos filhos, onde com atenta vigilância podem ser mantidas em respeito, senão inteiramente neutralizadas, parece-nos cegueira que a paixão política pode explicar, mas os interesses da Nação claramente condenam.

Não pode duvidar-se de que o seu poder (da Rússia) é forte, dotado de uma capacidade de deliberação e de execução com que outros não podem competir e liberto do peso de uma opinião pública, inexistente ou adrede preparada para apoio da política a seguir. A Rússia é, além disso, a fonte viva duma ideologia ou mística que se pretende universal, portadora de uma mensagem de libertação de todos os povos e, sobretudo, das massas supostamente escravizadas e contra a qual o liberalismo não tem podido lutar com êxito, obrigado como está a reconhecer ao comunismo direitos de cidade, em igualdade de condições com outros programas de reforma política ou social. Por  virtude da expansão da sua ideologia, a Rússia não tem só adeptos por toda a parte; ela encontra-se indirectamente na raiz da inspiração e da actividade governativa em muitos países».

Oliveira Salazar









O Bolchevismo e a Congregação


Subordinava-se a segunda conferência de Salazar no Funchal ao título «O Bolchevismo e a Congregação». Logo de início situa as coordenadas do tema: «Eu só desejava surpreender no bolchevismo os seus princípios fundamentais, o seu programa de reforma, os seus processos de realização, e deduzir deles as secretas razões por que o bolchevismo não resolve o seu problema de reforma social. Visto que incorrigíveis ideólogos vêem nele a realização generalizada dos conselhos evangélicos ou lhe encontram uma flagrante parecença, desejava também mostrar-vos os princípios em que se baseia a Congregação e as condições em que se torna possível a sua organização comunista».

Abalado o fundamento da ordem e quebrado o «encanto da autoridade», é apocalíptico o quadro em que se processou a revolução russa: «as mãos tintas de sangue dos ferozes executores não traçam decerto com firmeza e serenidade os novos rumos por onde intentam levar  a vida dum grande povo». E «perante o mundo, sobre aquela vasta terra parece que caíu a maldição de Deus». «É isto o bolchevismo? Não é - isto é a revolução de hoje, a de ontem, a de sempre. Maldita seja ela!». Desmoronados os constrangimentos sociais e legais, o homem transforma-se naquela «fera que dorme no fundo de cada um de nós». Acumulam-se ruínas e destruições; e o programa negativo da revolução é sempre mais completo e preciso do que o programa positivo. «E sobre as ruínas acumuladas pela fúria da destruição, caem sempre as mesmas lágrimas, os mesmos arrependimentos, as mesmas maldições, até que o homem, cansado de tanto destruir, se desgosta na anárquica licença, e recomeça a obedecer».

Aparece o bolchevismo «como participando de três sistemas fundamentais: a sua filosofia social é inspirada pelos princípios anarquistas; a sua organização económica baseia-se no socialismo marxista; a sua parte política, que traduz apenas o método de consolidar e efectivar a revolução, participa da doutrina da violência e é próxima parente do sindicalismo revolucionário». Do anarquismo decorre a ideia da bondade intrínseca do homem, e também a noção de que este contém em si mesmo o seu fim e a sua razão de ser, pelo que estamos perante a mais alta expressão do individualismo e do liberalismo, de harmonia com a «sinceridade e desinteresse dos patriarcas russos do anarquismo», como Bakounine e Kropotkine; da proximidade da Alemanha e da penetração desta resultou a disseminação do marxismo; e o recurso à violência, que entronca no terror francês e conduziu à ditadura do proletariado, constitui a base da durabilidade do sistema. «Como regime de violência, o bolchevismo perdura; como movimento reformador estava de início condenado a uma falência certa, sendo provável que venha a verificar-se em pequeno número de anos estarmos diante de uma revolução, que substituiu a um regime político outro regime político, sendo apenas diferentes os beneficiários, e duma violenta mudança, não de instituições, mas de titulares de direitos que continuam fundamentalmente os mesmos do antigo regime» (2).









Todavia, acontece que os ensinamentos da história nos dizem que o homem se guia pela lei do menor esforço, e esta conduz ao mal e não ao bem; e este resulta, ao longo dos séculos, duma multiplicidade de constrangimentos e instituições através das quais o homem tem feito a sua aprendizagem do bem e percorrido o seu caminho para a perfeição. Mas falar de constrangimentos sociais é lembrar o problema da ordem. «Nós devemos pensar que nunca a paz e a ordem podem resultar do exercício da liberdade sem autoridade; mas sempre hão-se procurar-se pela colaboração da autoridade com a liberdade; quando se não procuram - ironia suprema dos acontecimentos! - como fazem actualmente os bolchevistas, cai-se no estrangulamento da liberdade pela opressão». Mas este problema da ordem, em ligação como o indivíduo, leva-nos a «outra ilusão da doutrina bolchevista - a que prende a reforma da sociedade não à reforma do indivíduo mas à simples mudança das instituições sociais». Ora «nós reconhecemos que há instituições boas e há instituições más, mas só o afirmamos neste sentido de que algumas dificultam e outras facilitam ao homem a prática do mal e a prática do bem; mas, obediência ou desrespeito a normas de alcance individual ou de alcance social, os actos são sempre do indivíduo, e o bem ou mal praticados a ele se devem e por eles responde». A verdade é que «não há reforma verdadeira que não nasça da alma, que não seja a própria alma regenerada».

Depois, no plano económico, há que salientar que o bolchevismo, levando à anarquia do consumo, ameaça anarquizar a produção, e a classe operária, ao pretender aumentar indefinidamente os seus consumos, reforçará a organização capitalista - privada ou de Estado - por ser a que precisamente garante uma produtividade maior. «O comunismo, como forma colectiva de produção e repartição dos produtos conforme às necessidades de cada, não repugna de per si à natureza humana. Encontramo-lo em sociedades primitivas, encontramo-lo ainda hoje na família, encontramo-lo na congregação religiosa; e é necessário estudar os resultados obtidos, e sobretudo as condições especiais da sua aplicação, para se compreender como pode manter-se e prosperar». Mas uma coisa é a riqueza do indivíduo e outra a da congregação: esta pode chegar à opulência: e isso significa que por este facto os consumos destinados à satisfação das necessidades pessoais não se elevam além do que exigem a pobreza individual e a modéstia cristã. E esta «separação, este abismo não pode ser transposto sem que a congregação se avilte». E assim, «quando a sua actividade especial ou a regra fundamental o permite, a Ordem enriquece e vai aumentando a sua riqueza pela economia que uma vida em comum e ainda por cima pobre permite fazer». E «essa riqueza não é estéril: desembaraçada da satisfação de necessidades materiais, vai expandir-se e frutificar em obras de utilidade geral, na cultura do espírito, no alargamento e intensificação da caridade, nessa opulência assombrosa da arte - da arquitectura, da pintura, da escultura, da joalharia, com que as ordens religiosas encheram séculos de vida cristã e para sempre maravilharam a alma das gerações de beleza e de emoção».

E Salazar conclui: «Ensinai aos vossos filhos o trabalho, ensinai às vossas filhas a modéstia, ensinai a todos a virtude da economia. E se não puderdes fazer deles santos, fazei ao menos deles cristãos. Com a sua fé, a sua virtude, a sua inteligência e o seu braço, eles arrostarão todas as dificuldades da vida e, se Deus o quer, um grande movimento da história» (3).







Notas: 

(2) Sobre as realizações soviéticas até ao momento em que escrevia, Salazar traça o quadro seguinte: «Eu disse realização mas não disse bem; queria verdadeiramente dizer o que tem sido legislado na Rússia bolchevista, mas que necessidades de ordem superior à lei e à própria força revolucionária têm deixado sem efectivação ou de que provieram resultados contrários ao que a revolução se propunha. Assim, decretou-se a nacionalização da propriedade, mas nesta atribuição ao Estado dos grandes domínios particulares o aldeão russo só viu que a propriedade foi tirada a quem a tinha, e depois de dividida passou a considerá-la propriedade sua, tão longe estava o Estado e tão abstracto se lhe afigurava o direito que se reservava na Constituição. E o sovietismo que pretendia socializar a propriedade, acabou por dar uma enorme extensão ao direito de propriedade privada da terra. A nacionalização das empresas industriais, dos caminhos de ferro, das minas, das grandes explorações fez-se, mas fez-se com o sacrifício da sua direcção técnica; fez-se com a desorganização do trabalho na oficina e na fábrica, e uma consequente diminuição da produtividade; fez-se com a deficiência das matérias-primas; fez-se com um desgaste de maquinismos não reparados e nunca substituídos e portanto inutilizados; fez-se com uma baixa enorme na produção. E se a desorganização e a ruína da produção industrial, sendo enorme, não chegou a ser completa, é que a certa altura, continuando aliás a afirmar os memos princípios, o sovietismo começou a aplicar no regime de trabalho princípios de coacção abertamente contrários aos seus. Socializou-se o grande comércio e socializaram-se os bancos, mas à margem da lei, e ao lado dos armazéns do Estado, começou pululando um variado comércio clandestino com a ganância, os abusos, a inferioridade económica dum comércio nessas condições». E mais adiante Salazar acrescenta: «Mas, se depois me perguntarem se o operário bolchevista  melhorou a sua condição, respondo-vos sem hesitar que melhorou e muito; não, entendamos, como operário, mas como político bolchevista participante do poder que converteu o Estado em instrumento de satisfacção dos seus interesses de classe». E conclui a sua visão do quadro: «uma nova casta política explora a grande empresa da revolução».

(3) Aplica-se a este texto o que ficou dito na nota de fim de página quanto à conferência «Laicismo e Liberdade».


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