sábado, 26 de janeiro de 2013

Leonardo e a política (i)

Escrito por Orlando Vitorino







«Com um cartão de cumprimentos, o Director Geral da Comunicação Social, envia-me um livro que, na colecção "Terra Livre", o actual Governo socialista, ou social-democrata, acaba de publicar. Intitula-se o livro "A Ideia da Liberdade no Pensamento Português". Trata-se de uma antologia de textos que se destina a instruir os Portugueses sobre o pensamento e a prática da liberdade.

Com certa surpresa, observo que a antologia abre com um texto meu, extraído de um "escrito de juventude". Com maior surpresa, verifico que, dos 19 autores seleccionados, oito estão integrados no chamado "movimento da filosofia portuguesa" que a cultura oficial socialista não se tem cansado, há longos anos, de hostilizar. Há longos anos e, grande parte deles, em conluio com a cultura oficial salazarista. Que pode isto significar?

Significa, sem margem para dúvidas, que a ideia e a prática da liberdade (de que os socialistas se dão por campeões) só são de facto cultivadas e doutrinadas pelos pensadores que os socialistas dão por abomináveis, cultivo e doutrinação que vão a par de uma contínua refutação do socialismo, desde Sampaio Bruno a Leonardo Coimbra, desde Álvaro Ribeiro a António Quadros, desde José Marinho até eu próprio, hoje candidato da República.

Significa também que os socialistas estão vazios de ideias. Significa, por fim, que a campanha movida contra a filosofia portuguesa é, reconhecidamente, uma campanha contra a liberdade, contra a cultura e contra Portugal.

(...) Mal refeito da surpresa intelectual de ontem, e já hoje me era reservada outra. Recebo do Instituto Amaro da Costa, orgão cultural do CDS, uma colectânea de textos sobre Leonardo Coimbra, encomendada a Pinharanda Gomes. Ontem o PS e o PSD, Partidos do Governo, hoje o CDS, rojam-se aos pés da "filosofia portuguesa", de que Leonardo Coimbra é o mestre de génio. (Receberei amanhã algum volume equivalente do Partido moscovita?). E nesta colectânea lá encontro os mesmos pensadores que ontem encontrei na antologia sobre a liberdade. Entre eles, naturalmente, um texto meu, de figura modesta ao lado dos de Pinharanda Gomes, António Telmo e António Quadros.

Aqui há uns três anos, um estrangeiro que escreve em muitos jornais (entre nós, há sempre um estrangeiro a escrever em muitos jornais) e é hoje um dos directores espirituais do Teatro D. Maria (há também sempre um estrangeiro nessas funções: ele foi o Emílio Dux, ele foi o Meyenburg, ele foi o Savioti, ele é agora o Listopad), esse estrangeiro, dizia eu, querendo lisonjear o "nosso" Braz Teixeira (então Ministro da Cultura que foi quem o trouxe agora para aquele Teatro), dava por título a um artigo: "A Filosofia Portuguesa ao Poder". A coisa era só lisonja, mas a lisonja fez-se verdade. A filosofia portuguesa está, efectivamente, no poder, a dar fé à antologia publicada pelo Governo PS-PSD e à colectânea editada pelo CDS. O que há, em tudo isto, de paradoxal é que os políticos não fazem a mínima ideia do que seja a "filosofia portuguesa"».

Orlando Vitorino  («O processo das Presidenciais 86»).


«Calcorreando, pois, a história portuguesa, não há dúvidas de que o dominante da filosofia até Pombal é o sistema escolástico. Mas isto não quer dizer que o sistema escolástico tenha deixado de fazer o seu contributo a partir de Pombal: ele simplesmente cedeu e perdeu terreno diante de novos sistemas que também se impunham. Sintomática, aliás, é a "quase" natural atitude positivista de Teófilo Braga diante do "reduto da escolástica"; ou será a de Leonardo Coimbra (que formou os seus hábitos na filosofia do positivismo), que não deixará de ironizar o que ele chama "escolástica dos costumes", ironizando também com a tradição aristotélica portuguesa, ou referindo-se à acção pombalina que, ao reformar o ensino, "atira os mais formidáveis golpes".



No entanto, para além da escolástica, Teófilo Braga preocupa-se, e Leonardo Coimbra ir-se-á referir, à vasta problemática do ensino, ocorrida, em Portugal, essencialmente a partir do século XVI, período em que os Jesuítas assumiram o ensino público. Teófilo Braga, ao analisar acontecimentos do século XVIII em Portugal, ressalta: "... apenas Verney, continuando em Portugal o criticismo iniciado em Espanha por Benito Feijó, fez no Verdadeiro Método de Estudar uma análise do ensino jesuítico (...), análise que produziu uma vigorosa réplica da parte dos jesuítas (...); mas o trabalho negativo de Verney teve a extraordinária importância de levantar a questão do ensino público e de servir de base ao pensamento das reformas pedagógicas do Marquez de Pombal". Reformas, que, Leonardo Coimbra, verá com júbilo: o acordo da liberdade. Pois, pela sua óptica, esta reforma dos estudos "introduz de novo na atmosfera estagnada do país uma forte rajada de realidade e vida". Realidade e Vida serão os dois termos que marcarão bem o desenvolvimento da sua actividade intelectual, na perspectiva de continuar também uma hegemonia reformista, tanto no que se refere ao ensino em geral e ao ensino da filosofia em particular, bem como à superação daqueles movimentos ecléctico, condillaquiano, sensualista e empirista, que marcavam passo na cultura portuguesa. Mais do que qualquer outro, Cunha Seixas, Sampaio Bruno e Antero Quental, o seu inicial espiritualismo cósmico, e imediato espiritualismo vitalista e cristão, apresentar-se-ão, em termos de Idealismo, como a mais concreta e evidente libertação do sensualismo. Quanto ao ecletismo, sem desprezar o que resulta do conhecimento onde a dialéctica se desenvolve, verá, nele, "um saco aberto para tudo...".

Álvaro Ribeiro teve consciência deste facto, ao afirmar que "o génio deste filósofo (refere-se a Leonardo Coimbra) superior, visionando a harmoniosa conciliação do realismo com o criacionismo, permitiu dar uma solução portuguesa ao problema escolástico, ante o qual se inclinam respeitosos os admiradores e discípulos"».

Miguel Spinelli («A Filosofia de Leonardo Coimbra»).


«A glória da reforma da instrução que a energia fera do Marquês tornou possível, não se deve atribuir ao pensamento, no fundo negativo, desse déspota monstruoso: honremos sim a memória dos Vernei, Ribeiro Sanches, Azeredo Coutinho, D. Francisco Lemos, Monteiro da Rocha, Frei Manuel do Cenáculo, Padre  Figueiredo, Jacob de Castro e semelhantes».

António Sérgio («O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares»).





Leonardo e a política


1. Enquanto se não reunirem e re-editarem os «dispersos» de Leonardo Coimbra, apenas dispomos de três textos em que ele se ocupa directamente da política. São eles: a Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, O Problema da Educação Nacional e A Questão Universitária. O primeiro é o desenvolvimento de uma conferência que, em 1934, dois anos antes da sua morte, veio fazer a Lisboa, no Teatro de São Carlos, por convite de um organismo cultural salazarista. O segundo é a «comunicação» apresentada no congresso de um Partido Político a que pertencia. O terceiro é um discurso parlamentar em defesa das suas realizações como Ministro da Instrução Pública: transferência, de Coimbra para o Porto, da Faculdade de Letras e criação das escolas primárias superiores. É difícil dizer qual dos textos seja o mais significativo, mas é fácil entender que todos eles se completam num sistema que Leonardo não chegou ou não se interessou em expor articuladamente, talvez por entender que a «política não é mais do que uma técnica das relações sociais».

2. Além dos textos, há as posições políticas assumidas por Leonardo. Começou por ser, na juventude, anarquista e acabou por ser visto, nas vésperas de morrer, a aproximar-se do salazarismo. Entre os dois extremos, foi filiado de um Partido Político, foi Ministro da Instrução Pública, pertenceu, com o «nome» de «Kant», a uma loja maçónica e converteu-se ao catolicismo no fim de uma vida em que, continuamente, se afirmou como o mais profundo e original pensador cristão da nossa história da filosofia. Com estes dados, muitos concluíram e o acusaram de ter feito uma acidentada carreira através de variadas posições políticas. Certo é, porém, que sempre manteve, inabalável e inalterável, aquela «nobre virtude que ilumina a fisionomia espiritual do povo português», a lealdade a um pensamento no qual a liberdade constitui o valor supremo e até o princípio de toda a política. Com efeito: o anarquismo foi, durante um século e ainda hoje é para alguns, a expressão das imaturas exigências de liberdade características da juventude; a passagem de Leonardo pelo Governo assinalou-se por uma actividade destinada a extinguir a universidade pombalina e a institucionalizar o ensino da filosofia como «orgão da liberdade»; a aceitação do convite salazarista, donde resultou A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, correspondeu à imperiosa necessidade, naquele livro documentada, de defender a liberdade da ameaça mais temerosa que ela hoje defronta, o comunismo.

3. Uma constante do pensamento e das posições políticas de Leonardo foi o republicanismo. Leonardo identificava o republicanismo com o regime da liberdade política e foi neste sentido que sempre falou da República. Por ele se solidarizou com a vida política da época em que viveu: o período da sua actividade literária quase coincide com o período da 1.ª República, publicando o primeiro livro em 1912 e o último em 1935.

O republicanismo teve, nesse período, três faces: a dos Partidos Políticos que dominavam o Estado e tinham o monopólio do exercício do poder; a dos pensadores como o próprio Leonardo, Pascoaes e Jaime Cortesão, a que se devem juntar Sampaio Bruno, Junqueiro e Basílio Teles, que formaram, no Porto, a «Renascença Portuguesa», instituição puramente cultural que exerceu vasta actividade editorial e didáctica, publicou duas revistas - Águia e Vida Nova - e criou uma «universidade livre»; os doutrinadores, como Raul Proença, Ezequiel de Campos e Sérgio, dissidentes da «Renascença Portuguesa», que se reuniram em Lisboa na «Seara Nova». Os primeiros, propriamente «os políticos», foram os que fizeram do regime aquilo que o povo exprimiu no desabafo melancólico de que «esta não é a República que nós sonhámos»; os últimos, gastaram-se na teimosa ilusão de poderem influenciar e doutrinar «os políticos»; os pensadores da «Renascença» mantiveram-se, com excepção de Leonardo, alheados e desdenhosos do «poder republicano», formando da República uma imagem e uma teoria que pouco ou nada tinha a ver com a imagem que dela ofereciam os Partidos e entregando-se a uma mitogenia para que eram superiormente dotados e que exprimiam em termos susceptíveis de se traduzirem numa acção mais ou menos imediata.

Do que terão sido as relações entre estes grupos, deixou-nos Raul Proença, nos três volumes das suas Memórias, uma sugestiva e verídica, embora desarticulada e incompleta, descrição. Aí se poderá observar como a pusilanimidade, o oportunismo e até a ignomínia eram preponderantes entre os homens dos Partidos Políticos, o que explicará, não só o divórcio entre eles e os outros dois grupos, como também o triste destino que teve o regime republicano.




4. Participando no exercício do poder político, filiando-se num Partido e inscrevendo-se na maçonaria (que era outro Partido), Leonardo foi, como dissemos, excepção entre os pensadores da «Renascença Portuguesa». Não deixou de justificar esta atitude. Em A Questão Universitária diz-nos que uma distância separa sempre, inevitavelmente, o real e o ideal; que ao afirmar-se «esta não é a República que nós sonhámos» se ignora essa inevitável distância; que só levando a generosidade do ideal até à mesquinhez do real, essa distância se pode diminuir. Depois acrescenta que, ao aceitar o cargo de Ministro da Instrução, sabia bem «da minha instabilidade ministerial e que muito depressa deveria fazer o pouco de criador e afirmativo das minhas possibilidades». Mais do isso, Leonardo calava o que tinha em vista: a extinção da universidade pombalina, essa que ainda hoje perdura e tranquilamente veio transitando, durante o Séc. XIX, das doutrinações iluministas que Pombal lhe inculcara para as doutrinações positivistas a que Teófilo Braga a sujeitou e destas, durante as duas primeiras Repúblicas, para as doutrinações marxistas que hoje fazem dela seu instrumento. Leonardo não lhe chamava «universidade pombalina» mas sim «universidade jesuítica» para conceder à mesquinha realidade ou ao poder dominante mas com a reserva mental de que «há sempre uma invencível distância entre a obra e o pensamento da obra», de que «até do pensamento à palavra, que é já um desenho mais próximo da acção, vai uma distância sem fim».

Ao fazer o que fez - transferência para o Porto da Faculdade de Letras, de Coimbra - Leonardo não iludiu contudo a astúcia dos universitários que contra ele lançaram a mais insidiosa campanha política de que há memória mas não história, desde manifestações em aldeias perdidas onde nem sequer havia escola primária até às manipulações do aparelho político dos Partidos, da imprensa e do Parlamento. As dimensões desta campanha - em que participou, seu primeiro acto público, Oliveira Salazar - só de explicam pelo facto de os universitários não se terem iludido. O que estava em jogo não era a simples transferência de uma escola. Era a existência e o modelo da universidade pombalina. E estava em causa na Faculdade que, então como hoje, é aquele de que mais depende todo o ensino e a formação mental das gerações: a Faculdade de Letras. Os universitários sabiam que era assim, Leonardo também o sabia e não deixou de o dizer: «No ensino universitário, fui ao de maior influência no carácter, de maior irradiação e fecundidade» e «concebi uma escola de Filosofia para onde a atracção da Beleza chamasse as almas incertas da gente moça do meu país». Insiste, depois, na importância da Beleza para o ensino.

5. No Problema da Educação Nacional, Leonardo expõe as razões que o dispensam de formar uma teoria do Estado: assim como «a política é uma técnica das realizações sociais», assim o Estado não é mais do que um instrumento da acção. Ao que a política deve dar prioridade é ao ensino. Projectada no plano em que os politicos são sensíveis, esta prioridade do ensino significa prioridade do saber sobre a técnica e do pensamento sobre os sentimentos. É com os sentimentos que se fazem os movimentos de «massas», mas é o pensamento que comanda os sentimentos. «O dinamismo dos fenómenos sociais - escreve Leonardo - está no sentimento mas, sendo os sentimentos a tonalidade afectiva dos pensamentos, é pelo pensamento que se dinamizam os sentimentos».

6. Leonardo é um republicano e exalta com frequência o republicanismo, regime da liberdade. Pouco fala da democracia. Na verdade, está longe de ser um democrata. É um aristocrata, com o eram, na sua época, os pensadores da «Renascença», os doutrinadores da «Seara» e até esse retornado, Fernando Pessoa, que, ao chegar a Lisboa, ficou deslumbrado, expressamente, com a poesia de Pascoaes e , tacitamente, com a filosofia de Leonardo que não conseguiu compreender. Pessoa não hesitou em exprimir bem alto o desdém pelos políticos dos Partidos que os aristocratas da «Renascença», sempre, e os da «Seara Nova», muitas vezes, aristocraticamente calavam. Também não hesitou, em consequência, em saudar com uma ode «O Presidente-Rei Sidónio Pais» quase ao mesmo tempo que Leonardo, desafiando o Parlamento ainda quente do ódio ao assassinato, tranquilamente afirmava: «Aqui quero ter a coragem de dar à memória desse homem, à sombra de quem tanta infâmia se praticou, uma simples palavra de piedade porque na vida e na morte ele foi em parte vítima...».






De que Pessoa foi um aristocrata, há farta abundância de textos. De que os homens da «Seara» - António Sérgio, por exemplo - também o foram, não faltam seus apelos às «élites» que conhecem o que os políticos dos Partidos quase por definição ignoram. A aristocracia de Leonardo vai mais fundo. Começa na abominação da vulgaridade e vai até à diferenciação das almas. Diz, por exemplo, que não é a cultura que tem de descer às massas mas sim as massas que têm de ascender à cultura. E A Alegria, a Dor e a Graça começa por estas palavras: «há homens que são apenas esboços de almas...», palavras que José Marinho dizia fazerem-no tremer pois têm um significado efectivamente tremendo ditas por quem é, na origem e no fim, o grande pensador português do cristianismo.

Aos políticos pouco importam, porém, as almas. O que lhes importa são as «massas», o seu voto passivo, o seu braço obediente. E Leonardo falava-lhes das «massas». Mas como um aristocrata. Dizia-lhes: «A força da inércia é a grande força conservantista das sociedades, é como uma memória social implícita, hipnótica, parente dos instintos animais. Pertence à massa ignara» (in «Leonardo Coimbra: Filósofo do Real e do Ideal», Colectânea de Estudos, IAC, 1985, pp. 233-238).

Continua 


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