domingo, 14 de fevereiro de 2016

O Império do Espírito Santo e os Descobrimentos (i)

Escrito por António Quadros









«Neste nosso livro, procurámos determinar os ciclos da história de Portugal, como se a imagem perseguida pelo tempo fosse a do Quinto Império. Dividimo-la no ciclo heróico ou dos reis, no ciclo do clero e no ciclo do povo, de acordo com o esquema dos estados sociais do mundo medievo. O ciclo do povo coincide, no seu termo, com a implantação da República e principia com o Marquês de Pombal, quando a Igreja Católica perde o poder político a favor da Maçonaria. O ciclo do clero começa em D. Manuel e define-se como tal com D. João III e o estabelecimento da Inquisição. Depois de 1910, não se nos representa novo ciclo, mas surge um período de indeterminação, dominado pela ideia de plebe. Entendemos por plebe as formas degenerescentes que assumem os três estados sociais - nobreza, clero e povo. Neste período, o princípio monárquico da história de Portugal está apenas confiado aos poetas e filósofos da profecia.

A unidade, que comanda de início ao termo todo o processo é, como dissemos, a ideia de Quinto Império, mas se, no ciclo dos reis, é a ideia pura que se representa exemplarmente no portal, voltado ao sul, da Igreja de Santa Maria de Belém, aparece no segundo ciclo, já pela voz de Camões e, sobretudo, em D. João de Castro e António Vieira, como o domínio da Cristandade sobre todo o universo, no terceiro ciclo essa ideia entra em progressiva degenerescência até configurar-se no socialismo.

Enquanto ideia pura, o Quinto Império só poderia realizar-se por um real contacto com o centro invisível do mundo. É o que está significado no referido portal, como o leitor terá ocasião de ver logo nas primeiras páginas deste livro. Na forma de Cristandade, que assume no segundo ciclo, tudo está referido a um centro, que pode ser um país, Portugal ou Roma, mas já não é atendida aquela unidade essencial. No conceito de socialismo, permanece a ideia de unidade, mas construída sobre a imagem de um círculo envolvente sem centro, que, por isso mesmo, se indetermina e perde em manifestações vazias de sentido, pura miragem do que foi a ideia de Monarquia Universal ou a ideia de Cristandade».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).


«(...) difícil é determinar a que símbolo referia Sampaio Bruno a sua fé, se não for lícito citar os Evangelhos. O autor de Análise da Crença Cristã reconheceu, porém, que este seu primeiro livro fora uma "vilta de ímpias audácias" e compreendeu que para interpretar as Sagradas Escrituras estão apenas os pensadores que receberam ordens sacerdotais. O paracletismo de Sampaio Bruno, nitidamente expresso em A Ideia de Deus, mostra contudo que ao filósofo portuense não eram estranhas as meditações sobre o Mistério da Santíssima Trindade.











Verificar que as virtudes teologais inspiram a ética deste filósofo português interessa muito mais do que determinar, pela análise literal dos textos, qual o grau de heterodoxia que o impediu de prestar culto a Deus segundo os mandamentos religiosos que eram tradicionais no País. Para saber se a filosofia portuguesa tem sido constantemente filosofia cristã temos de estabelecer a problemática no domínio da ética; qualquer outro tipo de investigação tende a confundir a filosofia com formas de conhecimento ou de obediência que lhe são superiores ou inferiores. Procuraremos mostrar (...) que a caridade, a esperança e a fé conspiram na reacção de Sampaio Bruno ao socialismo, ao positivismo e ao iluminismo.

Situamos o socialismo em primeiro lugar porque foi efectivamente contra as doutrinas professadas por Antero de Quental e Oliveira Martins que o filósofo portuense mais tenazmente pugnou. O positivismo aparecia aos olhos de Sampaio Bruno como uma degenerescência do socialismo, que de Saint-Simon para Comte e de Comte para Littré, perdera em ambição o que ganhara em método. Contra o iluminismo, Sampaio Bruno escreveu apenas a aguda, penetrante e letal crítica ao célebre livro de Amorim Viana [Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé (1866)].

(...) Representante de uma geração que discordava da atitude dos Conferencistas do Casino, o ardente patriota que foi Sampaio Bruno jamais perdoaria as frases escritas por Antero de Quental e Oliveira Martins sobre a nacionalidade portuguesa. Antero de Quental, como é sabido, escrevera no folheto sobre a Revolução em Espanha que "o acto mais patriótico é renegar a nacionalidade". Oliveira Martins, numa crítica ao livro do patriota Horácio Ferrari, publicado em 1877 "na Renascença, revista que saía no Porto", escreveu: "A meu ver, Portugal não é propriamente uma nação (achando-se em analogia de condição com a Bélgica) por isso mesmo que não tem programa, nem pensamento, nem ambição colectivos e definidos".

Sampaio Bruno não se engana, porém, com as intenções educativas do historiador positivista e comenta: "Assim, naquela sua reprimenda ao seu País, Oliveira Martins fornecia-nos, no tema, uma lição perfeita do erro sociológico derivado do erro pessoal, mercê do conceito irredutível do anti-patriotismo basilar. Amando o seu País, ele amava-o à pombalina; cria incutir-lhe sentimentos e cobiças que o imaginava assaz bronco para não adquirir de per si. Enganava-se, de todo em todo".

Geração de 70 (da esq. para dir.: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro).




Os "Vencidos da Vida"


As frases dos "Vencidos da Vida", frases estilisticamente primorosas e tristemente célebres, podem hoje com boa vontade ser interpretadas como justificados desabafos ou como expressões tendentes a estimular o patriotismo. Delas se fez eco Eça de Queirós, cujos romances, lidos em crítica responsável, vão transmitindo o derrotismo aos ouvidos de várias gerações. A verdade, porém, é que foram depois utilizadas por escritores que, citando-as a sério, apoiavam em nomes prestigiados um pensamento de derrotismo nacional.

A infeliz frase anteriana de que "a nossa fatalidade é a nossa história" tende a desvalorizar as figuras que constituem a galeria de heróis portugueses dos ciclos dos descobrimentos e das conquistas, desde o Infante de Sagres até D. Sebastião. O heroísmo cujas origens e cujos fins se envolvem em brumas genesíacas ou caóticas, não pode ser entendido por aqueles que habituam os seus olhos às palavras claras, às frases nítidas e aos juízos evidentes. Mostrar que a nossa história é uma fatalidade, ou reduzi-la a um necessitarismo de categorias sociais em conflito com o homem livre que terá de se lhe adaptar pela reforma da mentalidade, será, por muitos anos, o propósito dos admiradores das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.

(...) Sampaio Bruno, adversário compreensivo e transigente de algumas escolas socialistas, censura mais do que tudo no positivismo o dogma do primado da sociologia. Critica a lei dos três estados por ser esta uma lei de sociologia cultural que não condiz com a classificação das ciências. A unificação dos conhecimentos humanos, que Sampaio Bruno respeita, tem o mérito de explicar e justificar a exclusão da metafísica moderna.

(...) Augusto Comte foi discípulo e colaborador de Saint-Simon. Este facto suscita logo o problema de saber em que medida as teses fundamentais do positivismo pertencem ao filósofo francês. Mas ainda que a erudição encontre, nas obras do doutrinador socialista, os germes do positivismo, cabe a Augusto Comte o mérito de as ter desenvolvido, apresentado e imposto à cultura da Europa Central.

(...) Não recusa Bruno a Comte o mérito de criticar o socialismo utópico e de pretender fundar o socialismo científico a que deu o nome de sociologia. À política negativa do anarquismo e do liberalismo que influíram na Revolução Francesa opõe Augusto Comte uma política positiva. Vejamos como Sampaio Bruno aprecia o que estava sendo admirado por muitos dos seus contemporâneos, portugueses e brasileiros:

"Como em todos os seus coevos congéneres, Augusto Comte (que, no aspecto negativista do seu debate, nenhuma original divergência peculiar oferece) viu o que o socialismo viu e criticou até onde ele criticou. Conforme o relembra no seu subtil opúsculo Frederico Engels, o socialismo criticava, é certo, a produção capitalista e os seus corolários; mas não a explicava e não podia, por consequência, destruí-la teoricamente; não lhe era lícito mais do que rejeitá-la como má.















"Augusto Comte ainda, porém, foi mais conservantistamente retrógrado. Manteve, apropriando-se dele para seu programa reconstituinte, o tipo capitalista que encontrou feito. Os seus discípulos ortodoxos exageraram até o seu burguesismo".

Tal era o receio de Sampaio Bruno de que a política oficial dos republicanos portugueses viesse a adoptar as soluções positivas. Mas se lhe desagradava a invasão do positivismo no capitalismo, como a preconizara Oliveira Martins, também o atemorizava as puras soluções socialistas. Bruno bem sabia que a teoria socialista do conhecimento projecta na ordem religiosa o fantasma da Quantidade e promove a idolatria do Contador.

Embora pareça afastar-nos do tema, não deixaremos de apontar, pelo que revela de genial em Sampaio Bruno, quão singular e curiosa é a sua atitude perante a questão social. Adversário do socialismo, que combate ao longo das suas obras, Sampaio Bruno nos adverte da debilidade das refutações limitadas. "Destruir uma teoria socialista - afirma o autor de A Ideia de Deus - não é destruir o socialismo. Para destruir o socialismo, seria preciso esta singular coisa: eliminar, da sociedade actual, o operariado".

Esta frase, nitidamente contrária à fórmula de Augusto Comte, "incorporar o proletariado na sociedade contemporânea", só pode ser perfeitamente entendida por quem conhecer o pensamento do filósofo acerca dos conceitos de movimento e de tempo. O operariado forma-se em resultado da aplicação da máquina a vapor ao processo industrial, e generaliza-se pela gradual extensão da nova noção de trabalho contínuo a todas as ordens de profissões. O trabalho, considerado como movimento manual e braçal, pode ser dividido em períodos iguais e remunerado segundo um critério de tempo.

O trabalho do operário passa a dar o tipo do trabalho humano, e a ser apreciado pelo tempo de presença na oficina, no escritório e até na escola. A tendência social será, pois, para o nivelamento e para a uniformização de todas as profissões, o que significa a generalização do proletariado. Tal é o socialismo, que aparece, aos olhos observantes de Sampaio Bruno, como inevitável contradição da sociedade moderna.

O nivelamento dos três tipos de trabalho parece injustiça aos olhos dos críticos liberais. Exigir ao professor a presença na escola em número de horas exactamente igual àquele em que o operário permanece na fábrica, resulta uma injustiça, por esquecimento de que cada hora de aula supõe, em regra, duas horas de trabalho extradidáctico, na preparação das lições e na correcção dos exercícios dos alunos. Acresce a este esquecimento o de que a fadiga de ordem psicológica é mais dificilmente reparável do que a fadiga fisiológica, como bem sabe, quem não confunde o aborrecimento com o cansaço.



Sampaio Bruno




Se o tempo, como genialmente viu Sampaio Bruno, é de ordem espiritual, não deve ele ser confundido com a sua manifestação material, o movimento. O socialismo está, porém, ligado ao materialismo. Ascender da noção de movimento para a noção de tempo, conforme o exigia a filosofia típica do romantismo, era difícil, acto especulativo, incompatível com a disciplina positivista.

A reivindicação moral - de que todo o homem civilizado, porque beneficia dos resultados do trabalho dos contemporâneos, tem de recompensar, retribuir ou pagar a dívida que dia a dia vai contraindo - está numa linha independente de qualquer doutrina socialista. O socialismo aparece, porém, com a suspicácia contra as formas de trabalho que nem sempre são exteriorizáveis em visíveis operações de movimento sobre a matéria durante períodos regularmente cronometrados. Todos os homens que professam uma vida espiritual, o religioso que se mantém numa atitude contemplativa, o pensador numa atitude meditativa e até o orador de acção sugestiva, são tidos como ociosos numa sociedade em que todo o labor é comparado com o trabalho operário.

Temos, pois, que uma das razões da divulgação do positivismo foi a de ser um socialismo mitigado, próprio para uma doutrina de transição que não abalasse o princípio da propriedade, indispensável garantia da liberdade de iniciativa económica e da existência autêntica da família. É interessante notar que nas páginas de A Questão Religiosa, Sampaio Bruno expõe a origem socialista da reivindicação do divórcio como processo indirecto para promover o movimento socialista, menos alarmante, para a consciência social, do que a revolucionária abolição da propriedade individual. Não cabe porém, neste ensaio, mostrar as razões e a teoria de Sampaio Bruno sobre a defesa da família».

Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).


«Ter António Telmo chamado a atenção, na sua História Secreta de Portugal, para o silêncio de René Guénon e de Julius Evola sobre o que se passou em Portugal após a destruição dos Templários na Europa, em inícios do século XIV, não constitui para nós nenhum motivo de surpresa e muito menos de perturbação, como parece ter acontecido com certos investigadores, entre os quais José Luís Conceição Silva. E assim é porque, por mais vasta e profundamente informados que estivessem Evola e Guénon sobre os Templários na Europa, não estavam, de facto, a par de qual fosse, em Portugal,  o profundo e altíssimo significado da transferência dos segredos e dos bens da Ordem do Templo para a Ordem de Cristo. De resto, o projecto português que se desenvolve nos descobrimentos henriquinos com vista à mediação entre Ocidente e Oriente, não se nos revela mediante os últimos prolongamentos de uma organização supostamente depositária da tradição primordial, conforme, aliás, na esteira daqueles autores, sugere António Telmo no livro supracitado.

Castelo de Tomar








Por um Reino Cristão Universal prosseguiram antes os Portugueses uma actividade de conquista, reconhecimento e descoberta impulsionada por Henrique o Navegador, e, assim, particularmente confrontada com o poder e o desenvolvimento do Islão que se estendia do Norte de África ao Golfo Pérsico e ao Mar da China. Deste modo, o desígnio messiânico dos Portugueses passava sobretudo por uma empresa que, na sequência do espírito da reconquista cristã, visava surpreender as forças árabes pela retaguarda e assim resgatar Jerusalém com vista ao advento do Quinto Império. Nisto, alguns certamente verão um sectarismo de ordem religiosa, outros ainda puro fanatismo e intolerância no plano espiritual. Porém, os Portugueses saberão, eventualmente, encontrar à luz da Ordem de Cristo o segredo da sua existência milenar».

Miguel Bruno Duarte


«O silêncio de René Guénon sobre tudo quanto se passou em Portugal, depois da destruição na Europa da Ordem da Milícia do Templo, tem surpreendido e perturbado os raros investigadores que verificaram a relação directa existente entre o que ele escreveu no Rei do Mundo e os descobrimentos marítimos dos portugueses.

É inverosímil interpretar esse silêncio como desconhecimento da nossa história num homem tão vasta e profundamente informado.

"Fala-se muito do Preste João na época de São Luís, a propósito das viagens de Carpin e de Rubruquis. O que complica as coisas é que, segundo alguns, teria havido quatro personagens com este título: no Tibete (ou sobre o Pamir), na Mongólia, na Índia e na Etiópia (esta última palavra tem um sentido muito vago); é provável que se trate de diferentes representantes do mesmo poder [in René Guénon, Le Roi du Monde, 4.ª edição, Paris, 1958, p. 16]. Eis um exemplo do que escreve René Guénon. Será possível que o autor destas linhas ignorasse que a viagem de Vasco da Gama tenha tido precisamente por fim o contacto com o Reino do Preste João?

Também Julius Evola, outra grande autoridade no assunto, cala tudo sobre Portugal, embora saiba muito bem que "uma nau com cruz vermelha sobre vela branca é que recebeu Parsifal e o conduziu para um lugar desconhecido, onde estava o Graal e donde Parsifal não voltou mais" [in Julius Evola, Il Mistero del Graal e la Tradizione Ghibellina dell'Impero, Gius, Laterza & Figli, 1937].

Parece que, com a destruição dos Templários nos começos do século XIV, a cobertura que lhes deu D. Dinis através da Ordem da Milícia de Cristo levasse a concentrarem-se na terra do extremo ocidente europeu os últimos prolongamentos de uma organização que tanto Guénon como Evola consideram depositária da tradição primordial e que tinha "por missão principal assegurar a comunicação entre o Oriente e o Ocidente, comunicação cujo verdadeiro alcance se avalia quando se verifica que o centro do mundo sempre foi descrito, pelo menos no que diz respeito aos tempos 'históricos', como situado no Oriente" [René Guénon, ob. cit., p. 70]. Quando seria de esperar uma alusão à Ordem da Milícia de Cristo, René Guénon escreve: "Todavia, depois da destruição da Ordem do Templo, o Rosacrucianismo, ou aquilo que recebeu este nome a seguir, continuou a assegurar a mesma ligação, embora mais dissimuladamente" [Idem, p. 70].






D. Dinis, O Lavrador ou Rei-Trovador (1261-1325).




D. Dinis, como se sabe, fingiu concordar com o extermínio dos Templários, mas conseguiu autorização do Papa para fundar com o tesouro da Ordem extinta uma nova Ordem. Os Templários portugueses foram reintegrados. A Ordem da Milícia do Templo ficou encoberta na Ordem da Milícia de Cristo. Manteve-se a esfera; a cruz sofreu leves alterações na cor e na forma. As nervuras irradiantes das abóbadas manuelinas continuaram, alguns anos mais tarde, a ostentar o número oito.

Não tem sido suficientemente notado o facto de ter sido por volta de 1230 que o movimento trovadoresco galaico-português se começa a impor, precisamente quando a poesia de amor do Sul de França entra em rápido declínio, em consequência da cruzada contra os albigenses. Duraria cem anos até à queda dos Templários. D. Dinis era trovador e, enquanto foi possível, protegeu abertamente o movimento.

A dinastia de Avis, no início da qual se dá um ressurgimento da literatura sobre a Demanda do Graal, do Graal símbolo do centro iniciático supremo, segundo Guénon e Evola, parece ter encontrado, pelo estabelecimento de relações com a Inglaterra, uma orientação superior, que já se ia perdendo nos reis da primeira dinastia e que talvez explique o que realmente estava por detrás das razões económicas e sociais que levaram à revolução de 1383-85. D. João é comparado por Fernão Lopes ao primeiro Rei Artur.

Tudo indica que a comunicação entre o Oriente e o Ocidente vai agora ser assegurada através dos descobrimentos marítimos, nascido do "Talent de bien faire" do Infante D. Henrique, governador e administrador da Ordem de Cristo. Um acontecimento importantíssimo, embora semelhante a tantos outros, foi a construção da ermida de Santa Maria de Belém, que o Infante escrevia hebraicamente Beith-Lehem. O Mosteiro dos Jerónimos, consagrados a Santa Maria de Belém é edificado sobre essa ermida. Ali estavam ainda dois cavaleiros da nova Ordem Templária, a quem o Infante conferira a posse do lugar...».

António Telmo («História Secreta de Portugal»).





O IMPÉRIO DO ESPÍRITO SANTO E OS DESCOBRIMENTOS


1 – Os Franciscanos e a Ordem de Cristo no «espiritual» da expansão portuguesa 

É nossa firme convicção que verdadeiramente não há ruptura entre a païdeia dionisíaca e a païdeia dominante em Portugal nos séculos imediatamente posteriores, em especial no período criativo ou genesíaco da dinastia de Avis, até ao reinado culminante do hoje incompreendido D. Manuel I.



D. Manuel I, O Venturoso (1469-1521).







Assinatura de D. Manuel I




Que houve alterações de rumo, quebras ou enxertos no projecto áureo de um Império do Espírito Santo, não duvidamos. Mas que ele esteve sempre presente, como horizonte ideal, no espírito dos príncipes de Avis e das elites que os rodearam, parece-nos igualmente incontroverso.

Senão vejamos.

Diz Jaime Cortesão que a empresa dos descobrimentos, considerada em geral como a obra qualificativa da dinastia de Avis e do pensamento (expansionista) dos seus Príncipes, dá os seus primeiros passos (1) no próprio reinado de D. Dinis e por sua iniciativa. Ele não foi decerto um rei descobridor, mas não terá sido por acaso que a empresa se iniciou sob a sua égide.

Aponta Jaime Cortesão dois eventos fundamentais: a reorganização da armada real pelos genoveses, em 1317 (2), lembrando que no contrato de Manuel Pessanha, o seu Almirante, se obrigava declaradamente a defender o Reino contra os mouros, «inimigos da nossa fé»; e a criação, dois anos depois, da Ordem de Cristo, com sede e castelo em Castro Marim, obedecendo ao mesmo objectivo. E sublinha: a centralização da Ordem em Castro Marim não podia deixar de obedecer a objectivos geopolíticos, pois, situada no estuário do Guadiana, era o lugar fortificado que ficava mais vizinho dos portos granadinos e marroquinos, donde partiam as investidas dos piratas mouriscos contra as costas portuguesas (3). 

Mais adiante, refere o historiador as diversas invasões que D. Dinis mandou fazer nas costas da Berberia, através de operações navais comandadas por Pessanha, sublinhando que, por Bula de 7 de Maio de 1320, o Papa João XXII concedeu a D. Dinis a dízima das rendas eclesiásticas do reino, pelo tempo de três anos, para fazer a guerra aos mouros, em África, com uma armada de galés (4).

Esboçar-se-ia contudo, já nesta altura, a ideia da expansão marítima? Tão cedo? E teria ela alguma relação com a ideia de um Império do Espírito Santo?

Tudo indica que assim foi, muito embora não haja documentos escritos a atestá-lo. É que, ainda, segundo Jaime Cortesão, os próprios conceitos de expansão ecuménica da cristandade e de um proselitismo religioso viandante, terão nascido (ou renascido, depois da obra de S. Paulo e seus continuadores), com a Ordem Franciscana, cujos frades mendicantes, ao invés de permanecerem nos Conventos, em vida contemplativa e ascética, como faziam as outras Ordens, ou adstritos pelos Bispos e circunscritas regiões ou paróquias, saíam para os caminhos do mundo, levando aos povos a palavra de Cristo e o seu exemplo de despojamento, humildade e fraternidade para com os humildes e mesmo para com os gentios.



Joaquim de Flora (1132-1202).




Este carácter andarilheiro e viageiro foi acentuado pelos Franciscanos «espirituais», isto é, por aqueles que adoptaram (e de certo modo adaptaram) a teoria joaquimita dos três Reinos, integrando-se ardentemente, como seus agentes, numa dinâmica de preparação para o Reino ou Império do Espírito Santo.

Foi em Portugal que esta dinâmica atingiu (...) o ponto mais avançado, com a Festa da Coroação do Imperador do Espírito Santo, concebida e iniciada por Dinis e Isabel, e pelos Franciscanos de Alenquer, e mais tarde assumida e vivida por todo o Reino.

A conotação com a ideia da expansão impõe-se-nos se observarmos, como fez Jaime Cortesão (cuja historiografia nos é mestra, neste aspecto) que foi precisamente um franciscano «espiritual», contemporâneo de D. Dinis, um maiorquino da roda cultural dos soberanos de Aragão, o Doutor Iluminado, Raimundo Lúlio, o primeiro a sugerir o plano de circum-navegar a África para alcançar a Índia (5).

Efectivamente, tal era o desiderato do seu Liber de acquisitione Terrae Santae, de 1288, em que preconizava como primeiro passo o ataque e a conquista do Norte de África muçulmano (6), após o que se deveria então fazer a circum-navegação do continente africano.

Pela mesma altura outro franciscano, Frei Jordano de Severo, completava este plano, afirmando na sua obra que uma pequena frota de cristãos, que pudesse entrar no Índico, facilmente dominaria aquele Oceano (7). E poucos anos depois um veneziano, Mariano Sanato, expôs no texto Secreta Fidelium Gracis, escrito entre 1307 e 1321, as suas ideias, muito semelhantes, sobre a destruição do poder muçulmano e o estabelecimento de uma frota cristã no Oceano Índico, que dominasse o mar e subjugasse as ilhas e as costas (8).

Raimundo Lúlio era autor muito ouvido e lido, quer na corte de Aragão, quer na corte portuguesa, onde os franciscanos «espirituais» exerciam notória influência. O seu plano dir-se-ia coincidir exactamente com o que mais tarde seria realizado pelo Infante D. Henrique, pela Ordem de Cristo e pelos soberanos portugueses, de D. João I a D. Manuel I: ataque ao Islão, o grande rival da Cristandade, combate às frotas muçulmanas e aos seus portos, volta à África para atingir a Índia, disputa da primazia islâmica nas terras africanas e indianas.

Mas não apenas, e este o factor inteiramente novo, não apenas por contestação política, por rivalidade económica ou por desafio da ortodoxia católica e da centralização eclesiástica de Roma à «infidelidade» do monoteísmo muçulmano e do expansionismo islâmico em crescendo, também porque havia, por parte dos portugueses, um projecto ordenado a um futuro ecumenizante e fraternizante. Não o esqueçamos nesta altura do nosso livro: era o projecto político da sinarquia templária, herdada pela Ordem de Cristo, o Império (do Espírito Santo) acima dos Reinos e dos vários Cultos de origem bíblica monoteísta e até dos pagãos. Mas tal projecto só seria verdadeiramente viável através de uma teoria laicista, qual a preconizada por um Dante, que, sob o domínio carismático de um Imperador directamente ungido e coroado por Deus-Espírito, pudesse esbater o poder radicalista das ortodoxias religiosas. Se todo o domínio espiritual fosse destas, o diálogo tornar-se-ia impossível devido ao rigorismo teológico dos eclesiásticos. Mas se, mesmo com o predomínio religioso do Cristianismo, o acento recaísse sobre o Espírito Santo, sobre a Terceira Pessoa, sobre o Quinto Evangelho ou sobre o Evangelho Eterno, quiçá fosse possível aceder à concepção de um Deus / Homem de outro Deus maior, no verso de Pessoa, de um Deus-Espírito no qual coubessem o Deus trinitário do Cristianismo e ainda Jeová e Alah, e mesmo o Deus Desconhecido ou aqueles Deuses únicos e recônditos cujo Mistério subjaz a todos os Politeísmos (9).








Como aboná-lo?

Talvez começando por recordar a tolerância religiosa vigente em terra portuguesa até que a Contra-Reforma entre nós penetrasse pelos casamentos castelhanos de D. Manuel, por D. João III e pela Rainha Catarina de Áustria; a liberdade de que gozaram islamitas e judeus, colaboradores directos do Infante D. Henrique, de D. Duarte, de D. Afonso V, de D. João II, do primeiro D. Manuel na preparação e na prossecução da empresa dos descobrimentos; a existência florescente, por exemplo, da Sinagoga de Tomar, a dois passos do Convento da Ordem de Cristo, só extinta quando a própria Ordem de Cristo como Ordem militante foi destruída pelo Piedoso; ou as excelentes relações que por toda a parte (fenómeno em geral esquecido) os navegadores, comerciantes, colonos, soldados, capitães, nobres e Vice-Reis lusitanos sempre estabeleceram com os vários credos com que entraram em contacto, animistas, hinduístas ou budistas que fossem...

...E enfim, last but not the least, a forma como o espiritual de todas as terras descobertas, povoadas ou dominadas pelos portugueses, foi concedida à Ordem de Cristo, verdadeiramente a autora da expansão, quer pela direcção que lhe imprimiu o seu Governador, o Infante D. Henrique, quer pela capitania mareante das expedições e depois pela capitania donatária das terras insulares ou continentais ocupadas, sempre atribuída a Cavaleiros ou Comendadores da Ordem.

Com eles iam os Franciscanos (até D. Manuel), Franciscanos nunca esquecidos da sua filosofia espiritual do homem, da civilização e da expansão; e o que eles, Cavaleiros e Comendadores de Cristo, fizeram antes de mais nada, foi precisamente, e com a colaboração dos frades menores, instaurar o Culto, o Mistério e as Festas do Espírito Santo, o que sucedeu desde logo na Madeira (onde contudo foi extinto no século XVI), nos Açores, em terras de África, na Índia, no Brasil.

Os que defendem a primazia total do factor comercial, mercantilista nos descobrimentos e de um modo geral do factor económico no movimento civilizacional e humano, outra coisa não fazem do que projectar na leitura dos eventos, a sua própria formação intelectual e mental; ou então a alienação ideológico-política a que foram sujeitos em sua opção sectária. De um factor relativo e concorrente, fazem o factor absoluto, esquecendo que cada um de nós, e eles próprios, na nossa vida individual, muitas vezes e nalguns casos predominantemente, nos orientamos antes por princípios, valores e fins, ora morais ou éticos, ora políticos, religiosos, espirituais ou filosóficos. Nem sempre somos coerentes, nem sempre estabelecemos a sua justa hierarquia, nem sempre somos fiéis; e é certo que damos em nossas existências uma parte substancial aos interesses próprios. Mas o certo é que os melhores de entre nós (e é a esperança da humanidade), somo-lo precisamente quando e como levantamos em nossa existência os altos valores sobre os mais baixos, qualquer que seja o conteúdo que lhes dermos.

O mesmo se passa ao nível das nações e das civilizações. As motivações (a causa eficiente, a causa formal e a causa final, segundo o Filósofo) são complexas, o tempo vai desgastando as melhores intenções e não temos memória fiel do realmente sucedido no passado: a arqueologia é uma precária reconstituição, mas tanto menos o é, quanto mais soubermos ir directamente aos princípios, valores e fins, para lá da contingência e do aleatório da ganga historicista e ideológica que os cobre e oculta.






Decerto algo houve, de subordinação aos interesses económicos e com o tempo cada vez mais, à medida que foi empalidecendo a lembrança ou a força energética do projecto áureo português, tal como o tentámos esboçar. Mas o mundo, e no caso que nos interessa, o mundo cristão, o mundo português, tiveram ciclos em que predominou uma païdeia espiritual eminentemente axiológica, ética e escatológica. Com fugas e desvios? Por certo. Com uma continuidade mal mantida, pela introdução de factores de corrupção e degenerescência? Sem dúvida. No entanto, assim como não é possível absolutizar o lado heróico, cavaleiresco e religioso do passado que ora nos ocupa, muito menos o é absolutizar o lado interesseiro, ambicioso ou cruel que, feitas todas as contas, não é o que define a super-estrutura ideal de uma nação ou civilização, mas antes a sua ganga ou os seus subprodutos inferiores e inevitáveis. O que é fermento porém de vida, por exemplo nos Gregos, não é a escravatura, a mesquinha rivalidade entre as cidades ou a sordidez política que tanto os afectou sobretudo depois do século IV – é a filosofia, a arte e o ecumenismo helenista que nos legaram e que frutificam ainda em nós. O nosso futuro, futuro europeu e humano, releva ainda da païdeia grega, como o nosso futuro, futuro português, releva certamente ainda da païdeia dionisíaca e de Avis, se dela conseguirmos extrair o trigo, a pepita, o voo para as alturas, que o foi, e muito mais amplo e arrojado do que pode julgar a pequena história a que estamos hoje sujeitos depois do positivismo e do materialismo, doutrinas redutoras da complexidade e da grandeza humanas.

Aponta Jaime Cortesão, ao atribuir ao franciscanismo a inspiração da mística dos Descobrimentos, que dois franciscanos, logo em 1291, acompanham os genoveses Tedísio Doria e Ugulino Vivaldi na primeira e malograda tentativa de circum-navegação de África (10); que franciscanos penetram e irradiam no século XIII por todos os principados muçulmanos do Norte de África e fundam e mantêm a Sé de Fez (11), enquanto, em 1413, um franciscano inglês residente em Portugal, Frei Aimaro, é nomeado Bispo de Marrocos.

Na segunda metade do século XIV, surgiu uma obra singular, uma novela geográfica, em que se dão como realizados certos planos de exploração do mundo incógnito, mas tecidos sobre um largo fundo de realidade, intitulada Livro del Conocimiento de todos los reygnos y terras y señorios que son por el mundo, da autoria de um franciscano espanhol anónimo, que, levando mais longe as fecundas sugestões de Raimundo Lúlio e de Jordano para o plano da expansão, Jaime Cortesão considera-o, em pensamento, o mais directo e próximo precursor do Infante D. Henrique (12).

E, obviamente, acentua ainda Cortesão que os Franciscanos acompanharam os primeiros colonizadores dos arquipélagos da Madeira, Açores e Cabo Verde, foram os primeiros na Índia e no Brasil (onde o franciscano Frei Henrique de Coimbra rezou em 1500 a primeira Missa), sendo franciscano o primeiro Vigário apostólico das Índias; e foram ainda os franciscanos que, no Convento de la Rabida, protegeram e estimularam o projecto de Cristovão Colombo, acompanhando-o na segunda expedição às Antilhas (13).

O quadro ficaria porém incompleto se não déssemos idêntico relevo a dois factores complementares, aliás já atrás esboçados.

Em primeiro lugar, se os Franciscanos acompanharam desde o início a expansão, ela foi essencialmente obra de uma Ordem de Cavalaria, a Ordem de Cristo, que não só forneceu os rendimentos necessários para a magnitude da empresa, como também os seus elementos de base. Foi com os cavaleiros e comendadores de Cristo, ao seu tempo não excedendo uma centena, que o Infante pôde abalançar-se a uma iniciativa de tal vulto.




Efectivamente, a expansão realizou-se não tanto em espírito de cruzada (que caracterizou o desígnio da conquista da Terra Santa e que implicou guerra e intolerância), como em espírito de cavalaria. Tal como os cavaleiros usavam as cruzes de Cristo vermelhas e fendidas a branco nos seus mantos, também as caravelas as ostentavam na sua vela principal. Os cavaleiros tornaram-se em dito popular à época, os caraveleiros de Cristo, sem nada perderem das suas características e da sua regra. Formando uma pequena comunidade iniciática, com votos rigorosos como os templários, seus antecessores, constituíam uma elite idealista, pronta a todos os sacrifícios, obediente, corajosa, com um sentido ético da honra e do dever extraordinariamente elevado, votado à empresa teleológica de construírem neste mundo a Cidade de Deus ou o Império do Espírito Santo.

António Telmo, para quem, levando as coisas até ao limite, Portugal é a Ordem do Templo (coberta da Milícia de Cristo) até D. Manuel I e desde a sua origem, só assim se explicando que a cruz da Ordem, simbolizasse a Pátria nos templos e nas caravelas (14), mostrou em três capítulos do seu notável livro História Secreta de Portugal, depois de analisar (o que ninguém tinha feito), uma série de medalhões simbólicos do Claustro dos Jerónimos, onde leu o ritual da iniciação, como cavaleiro de Cristo, de Nicolau Coelho, capitão da nau Bérrio, também chamada Arcanjo de S. Miguel, que acompanhou as de Vasco e Paulo da Gama na primeira viagem à Índia, António Telmo, dizíamos, assevera ser a descoberta deste caminho marítimo (...) a mesma descoberta do caminho no sentido universal. Havia uma acção, escreveu, de que tudo dependia: o êxito do descobrimento seria o sinal da assistência do Arcanjo à edificação do Templo; seria para além disso, a prova de um contacto efectivo com o Preste João e o Centro do Mundo (15).

Quer isto dizer que a empresa não foi unicamente geográfica, de expansão lusíada ou mesmo de propagação da fé, embora também o fosse, foi ainda de edificação do Templo, Cidade de Deus e Templo Universal, para o que era ou parecia essencial o estabelecimento de uma cadeia ou corda ecuménica de solidariedade mundial (daí as cordas omnipresentes na arquitectura manuelina), com seu ponto crucial no contacto com o Preste João, sobre que nos deteremos um pouco mais adiante, cuja lenda fazia dele o Rei-Sacerdote cristão, representante de uma antiquíssima tradição universal.

Sem a dedicação iniciática da Ordem de Cristo nunca teria sido possível uma empresa que, caso singular em Portugal, se desenvolveu em continuidade amplificante durante dois séculos, recebendo os Reis, os Cavaleiros de Cristo, as elites o testemunho dos seus antecessores e levando-o sem quebra ou desfalecimento sempre mais para diante, contra todas as vicissitudes, resistências e desafios. Em verdade dois séculos exactos: de 1321 (data do primeiro Capítulo da Ordem de Cristo) até 1521 (data da morte de D. Manuel I).

Não a destruíram (até que chegassem D. João III e os Filipes de Espanha) a intriga, a corrupção, a cobardia, a indigência moral e mental dos homens, porque esse núcleo de militantes totalmente dedicados jamais voltaram a cara aos perigos e enigmas do mar tenebroso e, pior do que isso, aos riscos de epidemias, de fome, de escorbuto, de ciladas e de naufrágios, isolados durante meses nas suas fragilíssimas embarcações, jamais se deixaram dominar pelo espírito da divisão e pelas infiltrações do século, jamais desistiram, abrandaram ou recuaram. Era preciso ir até ao fim e, sucedesse o que sucedesse, eles o fizeram.




Foi o Infante um homem excepcional, um homem de vontade férrea, um homem que soube rodear-se dos que ao tempo mais sabiam de astronomia, de geografia, de cartografia, do regime das correntes, ventos e marés, de construção naval, etc., isto é, de alguns judeus, de alguns árabes e de alguns portugueses, mas nada poderia ter realizado, se não tivesse em sua volta, inquebrantável, a Milícia de Cristo, com seu saber, sua força de carácter, sua unidade interna, seu juramento de obediência e de sacrifício sem limites.

Eis porque os capitães foram cavaleiros de Cristo, condição indispensável, que não era a de possuir um diploma de marinheiro, mas infinitamente mais exigente, a de ter recebido uma iniciação capaz de os transformar em instrumentos do destino, em agentes (como se julgavam) da Providência ou de um desígnio sobrenatural, qual o que na lenda, foi revelado por Jesus Cristo a D. Afonso Henriques em Ourique. Não trabalhavam sob contrato laboral, não eram mercenários, não procuravam pessoalmente o lucro ou sequer as honras, mas exerciam uma missão ao serviço de um plano humano-divino.

A designação Cavaleiros de Cristo adquire verdadeiramente o significado que lhe deu Dante: o de Perfecti da Acção, obreiros da Monarquia Universal, tendo apenas acima deles, nos dois últimos círculos dos Céus superiores, (...) os Perfecti da Vontade e os Perfecti da Inteligência, isto é, os Príncipes Justos e Sábios e os Espíritos Contemplativos, como o próprio Infante, o Mestre, ou S. Bernardo ou ele próprio, Dante.

Pela Bula In apostolicae specula, de 20 de Maio de 1420, que outorgava ao Infante D. Henrique a administração da Ordem de Cristo, dizia o Papa (e sabe-se como os termos destas Bulas correspondiam às propostas apresentadas previamente pelos monarcas) que ela, a Ordem, não tinha como finalidade apenas a luta contra os Sarracenos, mas também contra os outros infiéis e inimigos da cruz, como sublinhou Jaime Cortesão, entendendo que a sua acção se alargaria, pois desde logo, não só à África, mas a outras partes convizinhas (16), isto é, às ilhas atlânticas e à África negra. E, com a Bula de Eugénio IV, de 9 de Janeiro de 1442, recebia a Ordem de Cristo a jurisdição espiritual sobre as conquistas africanas e mais tarde «o espiritual das terras conquistadas e por conquista como se de Thomar fossem» (17), o que foi confirmado pelos Papas Nicolau V e Calixto III.

Eis o que, sem margem para dúvidas, dá à acção da Ordem de Cristo (o que tem sido pouco lembrado) um carácter não unicamente estrutural em relação à empresa, não unicamente navegador e combativo (quando e onde fosse preciso), mas também espiritual. Vieira Guimarães refere alguns dos principais cavaleiros e comendadores da Ordem de Cristo que, empenhados a fundo, como já atrás apontámos, na expansão e no seu projecto, foram capitães das caravelas e das naus: Gonçalo Velho, o capitão donatário e povoador das ilhas de Santa Maria e de São Miguel; João Gonçalves Zarco, natural de Tomar, o descobridor da Madeira e de Porto Santo, assim como Tristão Vaz; Gil Eanes, o que passou além do Bojador; Afonso Gonçalves Baldaya, que foi ainda mais longe, até Angra dos ruivos; Nuno Tristão, Lançarote, Antão Gonçalves, todos cavaleiros de Cristo, assim como Fernão Lopes de Azevedo, embaixador da Ordem e do Infante junto do Papa Martinho V, entre muitos outros.

Ponta de São Lourenço no extremo oriental da Ilha da Madeira.




Monumento e Estátua de João Gonçalves Zarco no centro do Funchal (Capital da Região Autónoma da Madeira).




Vista parcial do Funchal





O «espiritual» das terras conquistadas...

Efectivamente, estes capitães-cavaleiros de Cristo o primeiro que fizeram, ou o que primeiro os preocupou logo que executaram as mais urgentes tarefas de governo, povoamento, cultivo das terras, organização, foi não só edificar igrejas ou capelas, mas também instaurar as Festas do Espírito Santo, o que liga indissoluvelmente a acção no mundo da Ordem de Cristo, aos Franciscanos «espirituais» que com ela fraternalmente cooperaram e ao projecto grandioso e áureo do Império, Império que foram chamados para edificar nas novas terras de Além-Mar.

Escreve José de Almeida Pavão Jr. que a tradição destas cerimónias data do tempo dos primeiros povoadores, como Pedro Soares de Sousa e dos primeiros capitães donatários da Santa Maria (18). Não são muitos os documentos sobre as Festas no século XV, mas sabe-se por exemplo que foi o capitão donatário e navegador João Vaz Corte Real, quem criou em Angra o Hospital do Santo Espírito e respectivos bodos e festas, por Alvará de 15 de Maio de 1492, enquanto a Irmandade do Espírito Santo da Praia é já do tempo de D. Manuel I. Diz também Teófilo Braga que não só João Vaz Corte Real como João Soares d’Albergaria, em Santa Maria, foram grandes devotos de uma devoção e festividade toda aristocrática (19), melhor seria dizer de iniciativa aristocrática (a Ordem de Cristo era uma genuína elite, e daí como já vimos a expressão antiga por que era conhecida a Festa, o Império dos Nobres), mas de enorme popularidade em todos os meios e grupos sociais.

Já referimos atrás que a Festa foi organizada pela Ordem de Cristo e pelos Franciscanos, não só nos Açores e na Madeira (onde contudo se extinguiu dois séculos depois, não resistindo à ofensiva contra-reformista), mas também no Congo, na Índia e no Brasil, realizando-se ainda nas naus, quando estas passavam no mar o período pentecostal. Ao lado do apostolado propriamente cristão, como propagação da Fé e fundação da Igreja além-mar, o que era missão dos bispos e da Hierarquia portuguesa, as Festas do Espírito Santo representaram a instauração complementar do Império segundo Avis, e daí o terem sido da iniciativa da Ordem de Cristo, cujos Mestres ou Governadores, a partir do Infante D. Henrique, foram sempre príncipes de Avis.

Alguns pensadores e comentadores fizeram uma leitura inteiramente esotérica, tanto das Festas, como da intencionalidade templária, continuada na Ordem de Cristo, uma anti-catolicidade e um anti-romanismo, que seriam a sua doutrina secreta, como que maçónica. Pessoalmente, cremos que não foi assim. Decerto, da perspectiva dos severos princípios e das rigorosas prescrições contra-reformistas do século XVI, difundidas e impostas pela Companhia de Jesus, tais manifestações adquiriram um certo sabor de heterodoxia, tendo-se julgado que punham em risco o absolutismo religioso e a autoridade eclesiástica do Papa e da Igreja centrada em Roma, e daí terem sido combatidas, até à sua total desvitalização ou extinção. Observe-se no entanto que, se um Carlos V e um Filipe II, monarcas europeus, com soberania em territórios além-Pirenéus, tiveram de defrontar directamente Lutero e a sua Reforma, o mesmo não sucedeu entre nós, pois, a Reforma pouca influência teve em Portugal. Carlos V, ostentando já a Coroa do Império Hispano-Germânico, que pretendia sucessor do Império Romano, esteve na Dieta de Worms em 1521, tendo ouvido pessoalmente os discursos de Lutero e propondo-se reagir pela implementação da catolicidade romano-cêntrica (20). Daí que melhor se entenda a adesão radical da Espanha ao ideal da Contra-Reforma.

Entre nós, pelo contrário, julgamos que chegou a ser viável um tipo original de criacionismo teleológico e escatológico, conciliatório das «duas Igrejas», a de Pedro e a de João, e adunável das «duas beatitudes» de Dante.







Era de facto sui generis a ideia portuguesa do Império. Império incompreensível à luz do espírito moderno, em nosso racionalismo ou positivismo, mas que representou um grande ideal, um grande sonho e uma grande esperança, marginais à dialéctica Reforma/Contra-Reforma e dela superativos. Império em que acreditaram alguns notáveis Portugueses do passado, para quem o misticismo católico e ardente de Cister, o pensamento joanino dos Templários, a profecia de uma pátria portuguesa messiânica, o desiderato cavalheiresco e purificatório da Questa do Santo Graal, a teologia escatológica da história de Joaquim de Flora, a fraternidade activa e despojada dos Franciscanos ou a tradição do Preste João das Índias, não foram quimeras, desejos vagos, ilusões, fogo fátuo da imaginação, mas verdadeiramente o necessário, o imperioso, o que sentiam como o predestinado da sua alma.

Não queremos deixar de acrescentar algumas palavras sobre a Demanda do Preste João que foi também, sabe-se, um dos móbeis da expansão portuguesa (in Portugal, Razão e Mistério, Guimarães Editores, 1987, Livro II, pp. 151-163).


Notas:

(1) Jaime Cortesão, Os Descobrimentos Portugueses, obr. cit., p. 179.

(2) Ibid., pp. 179 e 180.

(3) Ibid., p. 180.

(4) Ibid., p. 181.

(5) Ibid., p. 77.

(6) Ibid., pp. 87 e 88.

(7) Ibid., p. 77.

(8) Ibid., p. 88.

(9) É o segredo dos Mistérios iniciáticos gregos como por exemplo os de Elêusis e de Orfeu.

(10) Ibid., p. 77.

(11) Ibid., p. 78.

(12) Ibid., p. 77.

(13) Ibid., p. 78.

(14) António Telmo, História Secreta de Portugal, Ed. Vega, Lisboa, 1977, p. 59.

(15) Ibid., pp. 54 e 55.

(16) Os Descobrimentos Portugueses, obr. cit., p. 232.

(17) Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, obr. cit., p. 84.

(18) José de Almeida Pavão Jr., Aspectos do Cancioneiro Popular Açoriano, obr. cit., p. 115.

(19) Teófilo Braga, Cantos Populares do Arquipélago Açoriano, obr., cit., p. 393.

(20) Ramon Menendez Pidal, Idea Imperial de Carlos V, obr. cit., pp. 16 e 21.





Continua


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