sábado, 12 de maio de 2018

Moçambique

Escrito por Kaúlza de Arriaga




Monumento a Mouzinho de Albuquerque, na praça com o mesmo nome, em Lourenço Marques (anos 1940).





«Se Nuno Álvares foi o herói da independência de Portugal metropolitano, não será exagero considerar Mouzinho de Albuquerque o maior obreiro da independência de Portugal Ultramarino».

Coronel de Cavalaria Alberto Faria de Morais


«Portugal e a corrida africana


Os portugueses (...) mantinham as suas aspirações sobre as costas da Guiné, Angola e Moçambique, ao mesmo tempo que a opinião pública de Lisboa e do Porto começou a tomar conhecimento das viagens dos exploradores Livingstone, Stanley e Cameron que se acercaram das zonas de influência de Angola e Moçambique. Como resposta imediata a esta potencial ameaça, no início de 1876 surgiu oficialmente a Sociedade de Geografia de Lisboa com o objectivo de, entre outros propósitos, promover a exploração científica e geográfica das províncias ultramarinas. Portugal tentava acertar o passo com os maiores protagonistas internacionais em termos de interesse pelos territórios africanos.

Logo em 1877, seria organizada uma primeira expedição de Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, com a finalidade de chegar à contracosta do oceano Índico, em Moçambique, partindo do litoral de Angola. Saíram de Benguela e foram até ao Bié, onde se separaram. Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens apenas entre 1884-1885 iriam cometer a façanha de completar o percurso.

Outras campanhas foram a partir de então patrocinadas. Entre 1884 e 1887, Henrique Dias de Carvalho bateu boa parte do sertão angolano, também muito cobiçado, sobretudo pelos exploradores alemães. Tal como acontecia com as congéneres estrangeiras, as missões dos portugueses dividiam-se entre os interesses meramente económicos e a curiosidade científica. Para além de se estudar as condições climatéricas das regiões que se atravessavam, a zoologia e a botânica, o curso e a navegabilidade dos rios, dever-se-ia ter em conta a possibilidade de estabelecer rotas comerciais e firmar acordos com os nativos. Tratava-se, pois, de missões políticas, comerciais, religiosas, diplomáticas e científicas.

Também em 1884, Serpa Pinto e o guarda-marinha Augusto Cardoso deixaram Mossuril em direcção ao Norte de Moçambique. Esta era uma expedição composta por 710 pessoas, entre landins, carregadores e exploradores. Pelo litoral chegaram ao Ibo, onde realizaram um importante levantamento topográfico. Inflectindo para oeste, os expedicionários atingiram as margens do lago Niassa, alcançando Quelimane, de novo na costa, depois de percorridos cerca de 2000 quilómetros.

As margens do lago Niassa seriam bastante disputadas por vários países. Os avanços britânicos na zona ocorreram na sequência das incursões de David Livingstone, patrocinadas pela Companhia Presbiteriana Escocesa dos Grandes Lagos, mais preocupada com o tráfico de escravos efectuado na região por árabes que operavam a partir de Zanzibar, vindo a dar origem ao protectorado da Niassalândia (futuro Malawi).

À expedição de 1884 seguiu-se outra, em 1888, comandada por António Maria Cardoso (conhecido como o "Cardoso das pilhérias"), acompanhado do já famoso Paiva de Andrade, o mesmo Augusto Cardoso e Vítor Cordon. Esta expedição seguiu de Marral até ao lago Niassa, que atingiu a 12 de Novembro de 1888. Pelo caminho conseguiram a proeza de avassalar 14 régulos ao rei de Portugal num território que interessava aos britânicos.

Tratava-se de um acto político meramente alegórico, mas de importância simbólica acrescida. Todas as potências europeias enviavam regularmente emissários aos chefes nativos, carregados de presentes, normalmente tecidos, fardas militares e a inevitável bandeira nacional. Os líderes africanos liquidavam os emissários ou aceitavam os presentes. Neste último caso, ficava depreendido, à luz do direito internacional da época, que os europeus reservavam para si o poder de ocupar os territórios dos régulos por esta forma submetidos. Quando as expedições ou as colunas da tropa partiam não deixavam qualquer representante da sua autoridade junto dos "avassalados". Como se percebe, os brancos não tinham maneira de confirmar a afirmação da sua soberania em tais paragens e os negros não se consideravam minimamente subordinados aos seus "conquistadores". Em muitos casos nem percebiam o conceito, mas em Angola e Moçambique a prática era corrente, embora com resultados duvidosos.

Seja como for, os portugueses foram os últimos a atingir a região dos Grandes Lagos da África Austral. Por lá já se encontravam missionários protestantes e expedicionários britânicos. Em 1868, Silva Porto, outro dos exploradores dos sertões africanos, já reconhecia que Portugal levava cerca de 20 anos de atraso em relação às potências europeias na corrida africana.

Moçambique, "a colónia de maior futuro"


Serpa Pinto



Mouzinho de Albuquerque




David Livingstone





Por esta altura todas as atenções se voltavam para Moçambique, o palco onde Mouzinho de Albuquerque irá afirmar os seus pergaminhos. Província longínqua e sem atractivos económicos suplementares para além do tráfico de escravos, o território passou a despertar o interesse das potências coloniais nos finais da década de 1860. Em 1867 foram descobertos importantes campos de diamantes na vizinha África do Sul, atraindo investimentos e emigrantes. Ainda em 1869 seria inaugurado o canal do Suez, aproximando a região da Europa, e em 1886 seria descoberto ouro do Rand. Poucos anos depois, esta região da África do Sul era já responsável por cerca de um quarto da produção mundial de ouro. Por este conjunto de razões, Moçambique tornou-se na "colónia de maior futuro" para os portugueses. Esta também seria a opinião de Mouzinho de Albuquerque.

Vozes autorizadas consideravam que a potencialidade de tais paragens seria "muito superior" à de Angola, "por ser compreendida em latitudes mais meridionais, chegando Lourenço Marques até fora dos trópicos, porque a vegetação em vez de parar (como é regra quase geral em Angola, a 100 ou 150 quilómetros da costa) vem até ser banhada pelo mar, e porque a costa daquela província, em portos óptimos e só um mais inferior, desembocam quatro caminhos para o interior de África". A geografia era apontada, neste caso, como um factor de promoção do desenvolvimento colonial. As condições naturais seriam ali superiores às verificadas em outras zonas. A baía de Pemba e o rio Rovuma, no Norte, funcionavam como autênticas portas de acesso à região de Niassa e dos Grandes Lagos, onde existiam importantes jazidas de carvão de pedra; o porto de Quelimane, localizado na foz do Zambeze, ficava, igualmente, próximo da desembocadura do rio Chire, duas das principais vias de acesso ao interior do continente; o porto da Beira também servia de entrada às regiões de Manica, Machona e dos Matabeles, de grande interesse para os britânicos e para Cecil Rhodes em particular; por fim, destacava-se a importância estratégica da baía de Lourenço Marques, onde se localizava a principal cidade da província, que funcionava como ponto terminal da rede ferroviária que assegurava a ligação ao Transval. De notar que a cidade de Lourenço Marques herdou o nome de um dos primeiros pilotos portugueses a fazer o reconhecimento da zona, em 1544, ao serviço do rei D. João III. A região passou a ser conhecida, entre outras designações, por Baía dos Chefes e mais tarde por Baía da Lagoa (Delagoa Bay para os britânicos). Em Novembro de 1887 passou à categoria de cidade.

A margem direita da baía de Lourenço Marques foi particularmente cobiçada pelos britânicos, que na década de 1860 chegaram a ocupar alguns lugares da região. O diferendo foi submetido à arbitragem internacional do presidente da República francesa, o marechal MacMahon, que em Julho de 1875 reconheceu os direitos portugueses sobre a zona em disputa, mas a região continuou a despertar apetites vários.

Enquanto os portos de Angola só serviam o sertão da província, os do Índico cortavam o hinterland sob a administração portuguesa e prolongavam-se por terras supostamente férteis e ricas. Vaticinava-se que "se fôssemos nação com algum espírito administrativo, a província de Moçambique poderia ser hoje para nós mais do que Java para os holandeses".


(...) A comoção do "Ultimato"


Ao aproximar-se o final de 1889, a imprensa de Lisboa já notava que as "principais nações da Europa" se encontravam particularmente empenhadas em alargar as suas fronteiras africanas, "onde procuram expansão para o seu comércio e consumo para os produtos industriais". O sinal de alarme para esta situação voltou a soar quando o primeiro-ministro britânico entregou uma concessão a um jovem ambicioso, Cecil Rhodes, que tinha feito fortuna em diamantes, nas minas de Kimberley na África do Sul, reservando-lhe direitos de exploração numa região cuja soberania era, alegadamente, reclamada por Portugal. Esta empresa, para além de assegurar a colonização a norte do Limpopo, passou a cobiçar os recursos mineiros do território português do recém-criado distrito administrativo de Manica, com a capital em Macequece. Cecil Rhodes, um pouco como Mouzinho de Albuquerque, achava-se um iluminado. Inspirado pelo darwinismo social e por uma nova visão do imperialismo, pensava convictamente que o destino dos britânicos era civilizar o mundo, sendo convenientemente pagos para tal. Em 1884-1885, iniciou o seu projecto, ainda com o apoio do Governo de Gladstone, anexando a Bechuanalândia (o futuro Botswana), transformada em protectorado, um território de pouco valor económico mas que iria servir de base para as futuras incursões na Zambézia. Conseguirá atingir o cargo de primeiro-ministro da colónia britânica do Cabo.

Com a chegada ao poder de lorde Salisbury a política das grandes companhias britânicas em África seria relançada. Em Maio de 1889 foi criada a British South Africa Chartered Company, conhecida como Chartered. Esta companhia serviu como veículo das ambições do fundador das terras para além do rio Limpopo. Em Abril de 1890, Cecil Rhodes reuniu algumas centenas de homens fortemente armados, que largaram da Cidade do Cabo, tomando a expedição o caminho do nordeste. Atravessaram a Matabelândia, conseguindo primeiro estabelecer um tratado com o régulo dos Matabeles, Lobengula. Seguidamente , entraram na Machonelândia (parte da futura Zâmbia) e ao fim de nove meses de viagem lançaram os fundamentos de uma nova colónia, a Rodésia (futuro Zimbabwe), cujo nome pretendia homenagear o fundador. A capital seria erguida em Fort Salisbury.

Esta não seria a primeira empresa do género criada para servir os interesses britânicos no Ultramar. Já em 1881, o Governo havia fornecido o mesmo tipo de atribuições à British North Borneo Company; em 1886, à Royal Niger Company; e em 1888 à Imperial British East Africa Company. Tratava-se de uma forma alternativa de reivindicar a soberania sobre extensas áreas, entregando a exploração dos recursos a entidades privadas, que ficavam responsáveis pela sua administração. A troco de um valor estipulado por um período de tempo pré-definido, as companhias eram encarregues de aplicar a justiça, zelar pela segurança, cobrar impostos, para além de tratar do aproveitamento económico das regiões concessionadas e criar infra-estruturas. O negócio agradava a todas as partes envolvidas. Por um lado, financeiros e empresários apoderavam-se do poder dos aparelhos estatais, por ténues que fossem, para retirar benefícios pessoais, enquanto por outro se favorecia o estabelecimento de uma autoridade europeia onde antes não existia, equação que tanto serviria os britânicos como os portugueses, ainda que depois a Chartered se viesse a transformar num dos principais obstáculos à acção de Mouzinho de Albuquerque na região.

















Túmulo de Cecil John Rhodes no Zimbabwe. Ver aqui







Seja como for, em 29 de Outubro de 1889 a companhia de Cecil Rhodes recebeu abusivamente, na óptica dos governantes portugueses, a referida concessão sobre a região da Machoa e da Matabelândia, no planalto da África Austral, justamente entre Angola e Moçambique. Dadas as imprecisas referências fronteiriças contidas na autorização de exploração, tratava-se quase de uma "licença de caça", pela qual o "caçador" poderia dispor dos recursos encontrados a seu bel-prazer. Cecil Rhodes não compreendia como é que as terras de Gaza poderiam ser reivindicadas por Portugal. Ao desaforo respondeu o Governo de Lisboa com outro excesso, criando em 7 de Novembro o distrito do Zumbo, no Médio Zambeze, muito para além de Tete, e a Intendência-geral dos Negócios Indígenas nas terras de Gaza, em Moçambique, que abrangia partes dos territórios em disputa. Na impossibilidade de o fazer no plano concreto, as autoridades procuravam afirmar a soberania nacional por decreto.

A polémica parecia instalar-se e até saltou fronteiras, chegando às páginas da imprensa internacional, pois desde o The Times de Londres ao Le Matin de Paris, passando pelo El Liberal de Madrid, vários periódicos discutiam os argumentos portugueses e britânicos quanto à ocupação dos territórios da Zambézia. A "corrida" aos recursos africanos encontrava-se, então, no auge e Portugal, dados os seus antecedentes históricos, não podia ficar afastado da "competição".

Logo a 21 de Novembro de 1889, lorde Salisbury, que considerava as pretensões portuguesas sobre a região como "arqueológicas", fez chegar ao seu homólogo português, José Luciano de Castro, um despacho de protesto contra as recentes ocupações portuguesas junto do lago Niassa, enquanto Barros Gomes fazia saber da insatisfação nacional motivada pelos avanços ingleses nas regiões próximas do rio Zambeze. Os britânicos dispunham-se a reconhecer a soberania lusitana sobre Tete e o Zumbo, mas recusaram-se a aceitar tudo o resto. Quase um mês depois, a 18 de Dezembro, uma nova nota britânica fez subir o tom da reclamação. Em causa, desta vez, estava a expedição de Serpa Pinto que, no Chire, entrara em confronto com os Macololos, supostamente sob protecção britânica. O Governo de Londres exigiu que as forças portuguesas se abstivessem de repetir a proeza no Chire e no Niassa, assim como nos domínios dos Matabeles e dos Machonas.

A réplica de Barros Gomes veio dois dias depois. O ministro reafirmou a sua intenção de que as forças lusitanas não atacassem qualquer estabelecimento britânico, mas deixou, igualmente, claro que iria manter as posições já ocupadas pelas forças portuguesas. Tinha sido atingido o ponto de não-retorno. A 26 de Dezembro, um despacho de lorde Salisbury avisava que Portugal não podia reclamar para si os territorios em causa e a 2 de Janeiro passou a exigir uma garantia formal que os portugueses não iriam mesmo intervir na zona. A 9 de Janeiro, o responsável britânico esticou a corda e intimou as forças lusitanas a retirarem-se da zona contestada, exigência que seria formalizada dois dias depois, a 11 de Janeiro, sob a forma de ultimato, ameaçando com o corte das relações diplomáticas entre os dois países, ao mesmo tempo que a Marinha britânica iniciava manobras em Gibraltar sugerindo a iminência de um ataque a Lisboa, Lourenço Marques e Cabo Verde. O Governo de José Luciano de Castro cedeu, e dois dias depois demitiu-se. Era o fim do chamado "Mapa Cor-de-Rosa" e das pretensões lusas de reunir os territórios entre Angola e Moçambique numa vasta província sob o controlo português.

O Partido Regenerador, que na altura atravessava uma crise interna, onde se digladiavam várias facções, assumiu as responsabilidades políticas do momento. O novo Executivo, liderado por António de Serpa Pimentel, apresentou-se a 15 de Janeiro com promessas de que tudo iria fazer para manter os direitos portugueses em África, numa altura em que uma onda de comoção antibritânica passou a varrer todo o país, com manifestações a ocorrerem quase todos os dias nas principais cidades do reino. Os republicanos capitalizaram politicamente o protesto e aproveitaram o caso para responsabilizar todas as forças monárquicas e o próprio rei D. Carlos, no trono há apenas dois meses, pela afronta recebida, incitando as massas à revolta, enquanto os partidos do sistema procuravam atirar as culpas para os seus adversários. Muitos observadores viram no fenómeno o início do fim do regime.

A resignação do Governo perante o Ultimato de Janeiro de 1890 teve consequências imediatas, que a médio prazo viriam a influenciar a carreira de Mouzinho de Alburquerque. O país via-se agora na contingência de negociar com os britânicos um tratado sobre a delimitação da África Oriental, numa situação de debilidade e de isolamento diplomático. Os "direitos históricos" tradicionalmente evocados como forma de legitimação da afirmação da soberania sobre os territórios em disputa ficavam agora definitivamente ultrapassados pelo princípio da "ocupação efectiva", equação na qual Portugal sairia forçosamente a perder perante um oponente mais poderoso.

O novo ministro dos Negócios Estrangeiros, o acoriano Hintze Ribeiro, ficou com a espinhosa missão de negociar com a Inglaterra, avistando-se com o embaixador inglês, sir George Glyn Petre, em Lisboa, a 28 de Janeiro de 1890, encontro onde as manifestações patrióticas da capital foram menosprezadas pelo ministro português, numa tentativa de criar um clima favorável à discussão.



Ernesto Hintze Ribeiro




O Mapa Cor-de-Rosa, que esteve na origem do Ultimato britânico de 1890.





Mapa mostrando o controlo britânico quase completo da rota do Cabo ao Cairo (1914).




Os progressistas desaprovaram o método das negociações directas. Barros Gomes, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, preferia evocar o artigo 12.º do Tratado do Congo e confiar a resolução da questão à arbitragem das potências europeias. Pretendia-se que, face à pressão internacional, a Inglaterra cedesse nas negociações que se seguiriam. Se o Governo de lorde Salisbury recusasse a intervenção dos mediadores corria o risco de virar contra si a opinião dos principais países com interesses coloniais. Era este jogo diplomático arriscado que os progressistas estavam dispostos a jogar quando foram arredados do poder. Agora, António de Serpa Pimentel e Hintze Ribeiro seguiam o caminho oposto.

Todos os sectores da sociedade registaram movimentações de cariz patriótico, "urgindo aproveitar a efervescência do espirito nacional, tão briosamente manifestada na presente conjuntura". Desta animação destacou-se uma subscrição nacional para a compra de material de guerra destinado à defesa das colónias, organizada por um grupo de várias dezenas de jornalistas, que convocou uma grande reunião para o Teatro da Trindade, em Lisboa, e que teria lugar a 22 de Janeiro».

Paulo Jorge Fernandes («MOUZINHO DE ALBUQUERQUE. Um soldado ao serviço do Império»).


«Quando Serpa Pinto penetrou na área dos Macololos deparou-se com a bandeira inglesa, o que indicava que estavam supostamente sob protecção da coroa britânica (eles que sempre tinham reconhecido a soberania portuguesa). E quando João de Azevedo Coutinho submeteu a região, o governo de Londres considerou tal facto como causa belli e lançou um ultimatum, a 11 de Janeiro de 1890, ao mesmo tempo que concentrou forças navais em Zanzibar, Gibraltar e S. Vicente de Cabo Verde.

As consequências do ultimatum, numa primeira fase, foram traumáticas, para depois passarem a condicionar toda a nossa política interna e externa. No início, porém, todo o país foi varrido por uma reacção patriótica e antibritânica, a qual se esgotou, todavia, num desvario sem nexo, nas lutas partidárias e nas ameaças inconsequentes. Reunido o Conselho de Estado, e com o apoio do governo, ficou decidida qual a melhor resposta a dar à Inglaterra. Entretanto, o governo caiu e foi substituído por outro, agora de cariz regenerador. Foi então negociado, à pressa, um tratado que permitisse sanar a questão com a Inglaterra, que viria a ser assinado em Londres a 20 de Agosto de 1890.

Nesse tratado, a Inglaterra ficava com toda a região do Chire até ao Zumbo, deixando para Portugal, em compensação, o planalto de Manica e um importante território em Angola; além disso, para satisfazer o desejo português de unir as duas costas, Portugal tinha autorização para construir estradas, caminhos-de-ferro, pontes e linhas telegráficas "através dos territórios ao norte do Zambeze reservados à influência britânica, numa zona de 20 milhas inglesas sobre a margem norte do Zambeze", formando-se assim uma espécie de corredor português transafricano. Em contrapartida, porém, a Grã-Bretanha ficava com os mesmos direitos numa zona de dez milhas ao sul do Zambeze, "desde Tete até à sua confluência com o Chobé". Além disso, ficou estipulada a liberdade de navegação nos rios Zambeze e Chire e assegurava-se "inteira liberdade de trânsito" às mercadorias entre a esfera de influência britânica e o porto da Beira, comprometendo-se Portugal a construir um caminho-de-ferro para o serviço desta região, obras essas que deveriam incluir um engenheiro inglês, nomeadamente na comissão encarregada dos respectivos estudos. Enfim, os territórios cuja posse ou influência eram atribuídos a Portugal por este tratado não podiam ser cedidos a outra potência sem prévio consentimento da Grã-Bretanha.

O tratado foi muito mal recebido em Portugal e atacado energicamente pelos partidos da oposição, ou seja, o progressista e o republicano. A propósito desse acordo com a Inglaterra, António Enes escreveu no seu jornal, O Dia: «O território português, na costa oriental, ficou cerceado como não se podia imaginar que ficasse nem mesmo depois do ultimatum. Parece que lorde Salisbury, desde Janeiro para cá, exigiu mais o curso de um rio, mais uma montanha, mais alguns hectares de terreno por cada dia que se protraíram as negociações. Em nome da teoria de que só a ocupação efectiva constitui domínio, os ingleses, que só têm ocupantes nalguns palmos de terra nas margens do Chire, levam-nos territórios de não menos de quatro distritos organizados regularmente, prazos da Coroa antiquíssimos, residências das nossas autoridades sertanejas, e em troca dão-nos (!) o norte da baía do Tungue até ao Rovuma, que estava já na nossa posse e que a Alemanha nos havia reconhecido e alguns palmos de terra no país dos Amatonga onde também deram ao Transval a baía de Kosi para os boers construírem um caminho-de-ferro e um porto que arruínem o de Lourenço Marques!











29.º encontro de antigos alunos e professores do Liceu António Enes (Moçambique).




Helicóptero ALOUETTE III da FAP aterrando na Corveta "António Enes" em Novembro de 1972, ao largo da Baía de Luanda (Angola).








Ganhámos, pois, algumas milhas de areais no litoral; mas da parte do interior, donde vem o comércio, onde há minas, onde demoram os mercados, onde se abrem as vias de penetração, fechou-se sobre nós uma barreira traçada calculadamente de modo que ficassem fora dela todas as chaves do sertão, todas as fontes de riqueza. E por escárnio às nossas grandiosas pretensões a atravessar de costa a costa, concederam-nos licença para construir um caminho-de-ferro até aos limites de Angola, caminho que eles bem sabem que nunca construiremos porque nem o terreno que lhe destinaram se presta a tal empresa para, a pretexto de reciprocidade, nos imporem outra linha férrea que eles farão decerto, e que virá, por território português, terminar em Tete!"

Estas razões determinaram a repulsa dos partidos da oposição em relação ao tratado. O Parlamento recusou-se a ratificá-lo e o governo de António de Serpa caiu (a 16 de Setembro). Apesar disso, a verdade é que o tratado deixava a Portugal uma região salubre e riquíssima em minerais: o planalto de Manica. Tal facto foi contrariado por Cecil Rhodes, que desde Julho de 1890 desempenhava o cargo de primeiro-ministro da Colónia do Cabo e que por um momento temeu a ratificação portuguesa, um descontentamento que fez questão de transmitir ao governo de Londres».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).


«(...) Carlos Ribeiro montara um serviço de escutas telefónicas na Central Automática.

Há um episódio que poucos conhecerão, mas que deu brado nas altas esferas. Sou testemunha fidedigna, porque, no afã de colaborar, exercidas as minhas obrigações diárias na Câmara, ia trabalhar para o CITA, na propaganda e contra-propaganda.

Foi o caso que o dr (?) Ramiro Valadão apareceu em Luanda, quando o prof. Adriano Moreira lá estava. Não sei o que fazia Ramiro Valadão, mas apresentava-se como pessoa importante, figura destacada do regime salazarista, lacaio sempre às ordens do dono.

Ramiro Valadão, sendo "profissional" da Informação (do Estado), recebeu um convite da União Nacional para uma série de conferências sobre técnica e politização. Carlos Ribeiro facultou-lhe o acesso às instalações de escuta e transmissão no CITA, donde Adriano Moreira, no próprio dia, telefonara para os seus pais, em Lisboa. A conversa fora gravada e Carlos Ribeiro, ao mostrar a Ramiro Valadão como funcionava o departamento, passou uma bobina ao acaso. Calhou ser a de Adriano Moreira, totalmente inofensiva, porque o diálogo apenas resumia o carinho que o ministro sentia pelos pais.

À noite, no palácio, Ramiro Valadão, coerente com o seu proverbial espírito subserviente, melífluo e submisso, com uma obsessão doentia por que o julgassem não só útil, mas também indispensável, disse a Adriano Moreira:

"Senhor ministro. Já ouvi hoje a sua voz". E revelou-lhe como a ouvira.

Adriano Moreira ficou preocupado e zangado, porque lhe acudiu à mente outro telefonema que fizera para o general Kaúlza de Arriaga, em que ambos tinham concordado na urgência de remodelar o Governo Central e modificar a sua política ultramarina, que consideravam comprometedora para o futuro nacional.

Procurei esquecer o conteúdo do telefonema (que, de facto, fora gravado) e o tempo ajudou-me. No entanto, de matéria tão importante, alguma lembrança fica. Embora não garantindo pormenores, nem a exactidão das palavras trocadas, recordo que os dois membros do Governo reconheciam vícios e erros do regime, em tudo o que respeitava ao Ultramar; que eram adeptos da descentralização, cuidando o Terreiro do Paço somente dos sectores da Defesa e da Política Externa; que, como nenhum deles era curto de vista, mesmo em 1961, no início da guerra, antecipadamente estavam certos de que o seu termo passava, necessariamente, por uma linha política, fosse ela qual fosse; e que, em consequência, não haveria outra alternativa, senão forçar uma remodelação ministerial, o que pressupunha a destituição de Salazar. Portanto, o fim da ditadura.

Admito que Adriano Moreira, ignorante dos problemas angolanos, mas inteligente e hábil na política, vivia horas de emotividade e de mágoa, perante o quadro funesto que se lhe deparara numa viagem ao Norte. O telefonema para o general Kaúlza de Arriaga julgo-o como um impulso de alarme, um desabafo e um pedido de conselho a um militar experiente e de bom-senso, político de provas dadas (e eu sou insuspeito, porque estou em divergência com ele em alguns aspectos), que, já nessa altura, discordava da feição que o Governo imprimia às coisas do Ultramar. Sei que Kaúlza pensava ser imperiosa uma transformação absoluta, no que respeitava à Administração da África portuguesa.


O Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e o Secretário de Estado da Aeronáutica, coronel Kaúlza de Arriaga, durante uma visita a Angola.


Quanto a Adriano Moreira, desconcerta-me o seu papel como ministro do Ultramar. Salvo erro, promulgou 87 diplomas legislativos e só três foram concretizados.

Retrocedendo à gravação do telefonema Adriano Moreira - Kaúlza de Arriaga, o ministro increpou Silva Tavares que não teve verticalidade para arrostar com o desagrado do seu chefe. Hesitou, titubeou, vagamente se desculpou e terminou por negar que tivesse conhecimento das escutas. Mentiu. Como disse, não só sabia da sua existência como as autorizara.

Carlos Ribeiro que se entregara de alma e coração às tarefas da guerra e cujo trabalho estava a ser de extremo benefício para a defesa de civis e militares, ficou perplexo, revoltado e indeciso sobre a atitude a tomar ao ser admoestado pelo ministro e desfeiteado pelo governador-geral.

Dirigiu-se, por fim, à Central Automática onde se faziam as escutas e ameaçou, de pistola em punho, que mataria os dois funcionários encarregados desse serviço, se cometessem quaisquer gravações. Os dois homens, Eduardo da Costa Oliveira e Ferreira Borges, eram e sempre tinham sido dignos de toda a confiança. Jamais disseram ou escreveram sequer um monossílabo sobre as suas ocupações de então.

Acompanhara Carlos Ribeiro e vi-o acabrunhado, desesperado e desorientado. Que fazer?

Altas horas da noite, procurámos, em sua casa, o director da PIDE, dr. São José Lopes. No carro de Carlos Ribeiro, fomos para a avenida marginal e ali parámos a discutir o destino a dar à gravação. Pelas implicações que o telefonema poderia ter, no momento de crise que se atravessava, entendemos que a bobina deveria ser destruída. Não acredito nos boatos que me chegaram aos ouvidos, segundo os quais se transcreveu essa bobina, antes de a destruírem.

Armou-se quase um exército para localizar a gravação, que, naturalmente, não foi encontrada. Adriano Moreira não perdoou a Carlos Ribeiro: destituiu-o do seu cargo no CITA e transferiu-o para Moçambique onde ocupou as suas anteriores funções, nos Caminhos-de-Ferro de Lourenço Marques.

No aeroporto, ao partir, Carlos Ribeiro foi humilhado pela Polícia que o obrigou a despir-se e lhe vasculhou roupas e bagagens. Ao sair da sala onde suportara o vexame veio para mim a chorar como uma criança. O avião esperou por ele uma hora, mas foram precisos anos para Carlos Ribeiro se recuperar do traumatismo que lhe causaram.

O dr. São José Lopes, muito das relações do ministro, abandonou a PIDE e foi nomeado director do CITA, acumulando com o lugar permanente de inspector dos Serviços de Economia. O inspector Reis que o substituiu ouviu-me e as outras pessoas, sobre o paradeiro da gravação. As buscas e as investigações duraram largo tempo.

Nas minhas declarações, menti, por meu turno, afirmando que não ouvira a gravação, nem dela tivera conhecimento. Menti, na certeza de que era útil ao País mentir.

Ao contrário da mentira de Silva Tavares».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).


«O general Carrasco foi substituído no comando-chefe das forças armadas portuguesas pelo general Augusto dos Santos e o brigadeiro Costa Gomes assumiu o comando das forças terrestres. Estes dois generais transferiram então o centro do dispositivo militar para norte, para junto da área de operações, sendo criada a Zona de Intervenção Norte (ZIN), com o respectivo comando em Nampula. Os distritos do Niassa e de Cabo Delgado foram categorizados como Sectores, A e B, respectivamente, e passaram a ser comandados por um oficial general. A malha da quadrícula de companhias e batalhões foi apertada nos dois sectores, especialmente junto à fronteira e sobre as infiltrantes vindas da Tanzânia.

Este dispositivo era fruto de um conceito operacional que pretendia interdizer a fronteira à passagem de guerrilheiros logo junto ao rio Rovuma e barrar a progressão para sul dos que o conseguissem ultrapassar, de modo a evitar, numa primeira fase, que chegassem ao rio Lúrio e, numa segunda, que ficassem limitados pelo rio Messalo. Em 1970, Kaúlza de Arriaga, ao substituir Augusto dos Santos como comandante-chefe, "introduziu modificações nesta forma de condução da guerra ao lançar a operação 'Nó Górdio' para esmagar militarmente a Frelimo" e o seu antecessor estranhou a mudança: "Nas reuniões em que eu expunha com franqueza as minhas opiniões sobre a situação em Moçambique, nunca o general Kaúlza discordou dos meus pontos de vista. Nunca. Portanto, para mim foi uma surpresa quando percebi que ele tinha mudado tudo".







Assalto das tropas portuguesas a acampamentos da Frelimo.



Aspecto interior da Base Gungunhana, vendo-se ao fundo a "secretaria e porta de armas".



O "mudar tudo" foi passar de um conceito "de captar as populações, para a do mata e esfola", de passar a fazer a guerra à maneira dos americanos, com o search and destroy, sem os meios que eles tinham. De um conceito orientado pela ideia de "restringir a guerra ao longo das fronteiras, junto a Mueda, entretendo lá os terroristas para que não alastrassem de Cabo Delgado para Tete e para o Niassa", para um outro em que esse perigo era minimizado. De um conceito em que a vitória era procurada através de séries de pequenas acções, para um outro assente numa batalha decisiva, uma grande operação, julgada por Augusto dos Santos ainda em Abril de 1969 "que seria altamente irreal por, neste tipo de guerra e na situação previsível de Moçambique, não se vislumbrarem operações desta classe que, por vezes, existem nas guerras convencionais".

Que razões terá encontrado Kaúlza de Arriaga para alterar a manobra de Augusto dos Santos e de Costa Gomes mal acabou de substituir estes dois experientes oficiais e voltar à de Caeiro Carrasco? Para fazer tábua rasa de seis anos de boas e más experiências e desencadear uma grande operação como nunca fora realizada?

(...) Entre os militares portugueses que nos anos cinquenta tiveram acesso a cursos e cargos no estrangeiro, um grupo associou a competência técnica-militar adquirida nesses contactos à consciência da importância dos factores políticos nos assuntos da guerra. Constituirão aquela que os historiadores contemporâneos têm designado como "geração NATO", formada por majores e tenentes-coronéis que estiveram envolvidos no "Golpe Botelho Moniz" para depor Salazar e proporcionar condições para discutir o problema colonial. Quando, mais tarde, ocuparam cargos de chefia, estes oficiais privilegiaram acções orientadas para permitir ganhar tempo até encontrar soluções políticas. É a eles que, em boa parte, se deve a transposição dos conceitos de "quadrícula" e de "acção psicossocial" para a doutrina e prática da luta anti-subversiva das forças portuguesas.

Mas, algo esquecido na sombra das teses dos historiadores e dos analistas, existiu e teve importância significativa um outro grupo de militares portugueses da mesma geração dos anteriores e alguns deles com passagem pelos mesmos centros de formação, que tinha um peso significativo na jovem Força Aérea, da qual o general Kaúlza de Arriaga, foi o primeiro subsecretário e secretário de Estado e que aderiu à doutrina americana do ataque em força e da sobrevalorização do diferencial relativo do potencial de combate, que estava a ser empregue pelos americanos no Vietname. O seu conceito de emprego de forças seria testado no exercício "Himba", realizado no ano de 1959 em Angola com tropas pára-quedistas transportadas de avião desde Portugal e assentava numa manobra desencadeada por um bombardeamento aéreo maciço dos objectivos, seguida de assalto por forças aerotransportadas.

A operação "Nó Górdio" filia-se neste conceito de manobra.

(...) As concepções destes dois grupos cruzar-se-ão para constituir o corpo principal da doutrina militar portuguesa de contra-subversão e serão empregues com maior ou menor peso de cada uma delas durante a guerra. O conceito estratégico-militar da componente militar da reacção portuguesa à guerra subversiva oscilará entre a "busca e destruição do inimigo" (o exército punitivo) e a "conquista das mentes e corações dos africanos" (o exército conciliador).

A operação "Nó Górdio" é o exemplo mais marcante da primeira destas duas concepções e a principal, senão a única, razão para as forças portuguesas a terem realizado, a forma como ela foi planeada, os objectivos que pretendia atingir, os meios de que dispôs, o local e o tempo em que teve lugar, assentam nos conceitos e na personalidade do comandante que a ordenou.

A doutrina portuguesa de contra-subversão havia sido estabelecida em 1963 a partir dos ensinamentos obtidos principalmente pelos ingleses e franceses e também, embora bastante menos pelos americanos, que estiveram envolvidos em conflitos idênticos e no estudo dos mais importantes chefes revolucionários, como Mao Tsé-Tung, Giap ou Guevara.

Os conhecimentos sobre as manobras e acções adequadas, a organização das forças para o combate neste tipo de guerra foram compilados nos cinco volumes do regulamento "O Exército na Guerra Subversiva", tornando estulta a pretensão de inventar o que já estava inventado e era conhecido pelo menos desde que há mais de dois mil anos Sun Tzu escrevera "A Arte da Guerra", se designava universalmente como "guerrilha", agora enquadrada na guerra revolucionária que tomara como base as teorias marxistas-leninistas, que as autoridades de facto ou de direito consideravam subversivas e às quais se opunham tentando "destruir a estrutura subversiva e conquistar física e moralmente a população".






Como os bons livros, "O Exército na Guerra Subversiva" continha a sabedoria, mas não a arte de a utilizar.

O primeiro objectivo conseguia-se através da ocupação em quadrícula do terreno e o isolamento, a flagelação, a redução e a intervenção sobre as forças de guerrilha.

O segundo, através de acções típicas de guerra psicológica, de contra-informação e de apoio ao desenvolvimento e bem-estar das populações, e que ficou conhecida como acção psicossocial, cujo peso e amplitude na manobra geral das forças portuguesas constitui um dos aspectos mais marcantes da forma como estas actuaram durante a guerra.

(...) Os efectivos da Frelimo em Cabo Delgado eram estimados pelas autoridades militares portuguesas em 2 500 guerrilheiros e 5 000 milicianos, correspondendo a efectivos de seis a oito batalhões. Em Nashingwea, no centro de treino na Tanzânia, encontravam-se 550 efectivos prontos e 600 em instrução. É curioso assinalar que, em 1970, a DGS tinha referenciados em Cabo Delgado 1 056 guerrilheiros, 2 334 milicianos e 306 elementos femininos (40 armadas).

(...) Na área da Operação "Nó Górdio", no núcleo central do planalto dos macondes, encontravam-se três grandes bases: Moçambique, Gungunhana e Nampula.

Estas bases eram apoiadas e protegidas por um conjunto significativo de unidades fixas e móveis, constituídas por patrulhas, sentinelas e orgãos político-administrativos.

Para apoiar os feridos que não podiam ser tratados nos postos de socorros das bases, a Frelimo organizara a Base Zambézia, que funcionava como hospital. Os reabastecimentos de material e os recompletamentos de pessoal para Cabo Delgado vinham da Tanzânia e, depois de atravessarem o rio Rovuma, eram reunidos na Base Beira, a primeira grande base no interior, a partir da qual se efectuava a distribuição pelos orgãos do interior. O pessoal e o material que se destinava ao núcleo central era reunido na Base Provincial de Moçambique e o excedente ia para a Base Provincial 25, na base do planalto, na região de Nacatari».

Carlos de Matos Gomes («Moçambique 1970: Operação Nó Górdio»).


«A Operação "Nó Górdio" e as Operações que a Precederam e Seguiram


(...) Na realidade, quando assumi o Comando-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação em Cabo Delgado, e apenas em Cabo Delgado, tinha acentuada gravidade. O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas "bases" inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres. Acabava de lançar a sua grande ofensiva - a operação "Estrada" - que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através do lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para Sul. Visava, seguidamente, formar ou consolidar um "exército de libertação" com base na etnia maconde, e, com ele, atingir o coração de Moçambique, separando a Província em três partes - Tete, o norte e o Sul. De início não poucas das nossas unidades foram efectivamente isoladas e a Frelimo progrediu realmente para Sul, bordejando os aldeamentos do rio Messalo.

Em consequência, desde logo tive de determinar disposições e acções urgentes e de mandar preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, depressa foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas e foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo. Seguidamente foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas e foi lançada a primeira operação heli-móvel ao longo do rio Rovuma da qual resultou a destruição e ocupação das bases fronteiriças da Frelimo. Outras operações de menor vulto, mas de acentuado interesse, tiveram ainda lugar.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português - a operação "Nó Górdio". A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro lado, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram muito volumosas. Não mais alguém pensou no "exército maconde" nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa. Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aeromóveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. Por outro lado, a operação foi extremamente rendosa pois aqueles, diria espectaculares, resultados custaram às nossas tropas, não os cento e tal mortos e inúmeros feridos imaginados por Costa Gomes, mas sim 26 mortos e 27 feridos graves.

O conjunto de todas estas operações, iniciadas com o reabastecimento aéreo e terminadas com a exploração do sucesso da operação "Nó Górdio", venceu drasticamente a Frelimo em Cabo Delgado [a Frelimo foi, nesta ocasião, salva de destruição total pela proximidade imediata do "Santuário" da Tanzânia] - o que foi confirmado após o "25 de Abril", por elementos qualificados desta Frelimo, como consta do livro "País Sem Rumo" do General Spínola. E os seus dirigentes em Dar-es-Salaam entraram em estado de choque e desvario. Começaram, em tentativa de justificação da sua derrota, por afirmar ser eu, Kaúlza de Arriaga, o segundo melhor perito do Mundo em guerra subversiva, logo a seguir a Giap - célebre chefe militar nas guerras da Indochina e do Vietname. Depois, puseram-me a cabeça a prémio, considerando que, enquanto eu vivesse, a Frelimo não tinha qualquer "chance", facto confirmado, já depois do que se chama a independência de Moçambique, também por elementos qualificados da Frelimo, na presença de oficiais portugueses. Finalmente levaram todo o seu problema à Organização da Unidade Africana.



General Kaúlza de Arriaga













E foi nesta Organização, distante dos acontecimentos, mais calma, mas menos realista, que, em face da situação em Cabo Delgado e do início da construção da barragem de Cabora-Bassa, se decidiu uma mudança de manobra da Frelimo no sentido de transferir o esforço principal, até aí feito, com base na Tanzânia, directamente em Cabo Delgado, para, igualmente com base na Tanzânia, mas agora através da Zâmbia, o fazer, como última hipótese de sucesso, em Tete ou mais precisamente sobre aquela barragem e acessos, tentando impedir a sua construção. A manobra, dadas as grandes distâncias entre as bases tanzanianas da Frelimo, através da Zâmbia e parte de Tete, até aos objectivos, teria só por si forçosamente de esgotar a já enfraquecida Frelimo, o que realmente estava sucedendo [A Frelimo foi, agora, salva pela 2.ª vez da destruição, pelo "25 de Abril"]. Esta situação foi, também, confirmada depois do "25 de Abril", igualmente por elementos qualificados da Frelimo, como é referido no mesmo livro "País em Rumo".


A Estratégia de Costa Gomes


No respeitante à estratégia de Costa Gomes, e os seus contagiados, desejavam que eu seguisse em Moçambique, repudiei-a imediatamente. Contudo, ouvi com isenção o Estado-Maior do Comando-Chefe, e pus a questão no Conselho de Defesa, presidido pelo Governador-Geral, em Lourenço Marques, tendo todos emitido espontaneamente pareceres concordantes com o meu. Houve mesmo quem considerasse a estratégia que nos queriam impor uma estratégia de inépcia ou de traição.

Naturalmente que, conhecida a nova manobra da Frelimo, quase no momento da sua decisão e, assim, antecipadamente em relação à sua execução, graças à eficácia da DGS em informações externas, foram transferidas numerosas forças para Tete e garantida a segurança de Cabora-Bassa. Mas tudo sem que se abandonasse território algum a Norte do rio Messalo ou em qualquer outro ponto, dado nada a tal obrigar nem sequer vagamente aconselhar, e dado, pelo contrário, a criação por aquele abandono, se tivesse tido lugar, de áreas "libertadas" e nelas a natural formação, para nós com gravidade evidente, de um governo frelimista no Norte de Cabo Delgado.


O Sucesso em Moçambique


O facto é que no Rovuma, isto é, na fronteira com a Tanzânia, continuaram a nossa acção e trabalhos, agora muito mais dirigidos a convencer a inteligência das populações e a conquistar os seus corações, do que ao ataque de terroristas quase inexistentes. Foram os casos da interessante e promissora operação "Fronteira" e de tantas outras. Era a continuação do sucesso em Cabo Delgado.

E o facto é que uma Delegação da Comissão dos 24 da ONU, querendo convencer-se da existência de áreas "libertadas" em Tete, acompanhada e supostamente protegida por numerosos elementos da Frelimo, vinda da Zâmbia, tentou atravessar a fronteira e, através daquelas inexistentes áreas, penetrar no interior de Tete. Durante perto de um mês e em mais de doze pontos diferentes, tentou aqueles atravessamento e penetração, tendo sido sempre em absoluto impedida de o fazer pelas tropas portuguesas e acabando por retirar, derrotada, para Nova Iorque. Também a construção de Cabora-Bassa prosseguiu sem um segundo de atraso, em relação ao calendário de começo previsto. Era o sucesso em Tete.

A verificação de algumas infiltrações, em Cabo Delgado e, torneando Cabora-Bassa, a Sul e Sudeste desta, que afinal deram apenas lugar a actos terroristas esporádicos, não tinha nem teve importância real, dado em terrorismo esses actos serem sempre possíveis e em nada afectarem a situação geral. Acresce que o esgotamento da Frelimo, atrás referido, impossibilitava a sua continuação e, por maioria de razão, qualquer sua intensificação.

Tudo evidenciou o êxito das operações que precederam e seguiram a operação "Nó Górdio", e desta própria, e o acerto na não-aceitação de alterações estratégicas.


A Operação "Fronteira"


Contudo, cabe aqui um comentário à operação "Fronteira". Esta operação de construção, em termos racionais e modernos, de vilas de populações fiéis ao longo da fronteira com a Tanzânia, decorria por vezes e sem que isso se devesse a qualquer acção inimiga, com lentidão excessiva, circunstância que em mais de uma ocasião me ocupou. Hoje sou levado a admitir ter sido talvez, em Moçambique e em meados de 1973, o único caso em que se verificaria já, além da má vontade do Ministério do Ultramar, oriunda, quero crer, em Costa Gomes, influência sabotadora de alguns futuros capitães do "25 de Abril"».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).






«Dada a sua eficácia em Angola, seria o modelo dos Flechas suficientemente robusto para ser importado para outros teatros insurgentes na região? Em Moçambique, um teatro operacional com muitas similitudes com o de Angola, a PIDE/DGS tentou edificar os Flechas em 1972, com o apoio da África do Sul e do governador-geral de Moçambique. Em Setembro desse mesmo ano, numa carta dirigida ao ministro do Ultramar, o chefe da delegação da PIDE/DGS em Moçambique, depois de salientar diversas circunstâncias que estariam a obstruir a criação dos Flechas no país, solicitou autorização para criar cinco equipas de 30 homens cada, nos distritos de Cabo Delgado, Niassa, Tete, Vila Pery (Chimoio) e Beira. Na mesma carta, a PIDE/DGS alega que os Flechas podiam ser empregues em missões especiais contra os insurgentes, em Moçambique como noutros países vizinhos que lhes proporcionassem protecção. Todas estas tentativas enfrentaram, contudo, uma forte oposição do general Kaúlza de Arriaga, comandante-em-chefe das forças armadas portuguesas em Moçambique entre 1969 e 1974. Alegadamente, o general mostrava-se preocupado com a "africanização" do exército português e com a ameaça que ela poderia representar no futuro.

A sua relutância em aceitar os Flechas baseava-se, aparentemente, em razões ideológicas, pois já em 1960, quando era subsecretário de Estado da Aeronáutica, o general Kaúlza de Arriaga abordara o assunto de forma pragmática numa carta a António de Oliveira Salazar. Nela dizia que o conceito de defesa baseado em tropas africanas era impossível, independentemente do tipo de controlo exercido pelos brancos, pelo que seria necessário reduzir o número de negros nas tropas portuguesas. Portanto, o enorme cepticismo do general Kaúlza de Arriaga quanto a forças de africanos operando fora da esfera de controlo dos militares portugueses e os conflitos entre ele e a PIDE/DGS poderão explicar a rejeição do projecto dos Flechas em Moçambique.

Contudo, em meados de 1973 havia um centro de instrução de Flechas em Vila Pery (Chimoio, Moçambique), com 50 flechas operacionais e outros 200 em formação. O facto foi corroborado por uma mensagem classificada do cônsul-geral norte-americano em Lourenço Marques (Maputo), Hendrick Van Oss, para o secretário de Estado norte-americano em Washington D.C., mencionando que a sua congénere britânica o informara de que o Sr. Sabino, chefe da PIDE/DGS no distrito de Tete, lhe confidenciara que a PIDE/DGS fora autorizada a recrutar e treinar forças especiais similares aos Flechas em Angola. Van Oss acrescenta na mesma mensagem que o comandante-em-chefe Kaúlza de Arriaga se opusera recentemente à formação de Flechas, preferindo manter grupos especializados de indígenas sob estrito controlo militar.

(...) A estratégia aproximou os Flechas de modelos como o dos GE (Grupos Especiais), que tinham um carácter puramente militar, contrário à índole primitiva dos Flechas bosquímanos. Os sul-africanos cometeram um enorme erro quando integraram os bosquímanos nas fileiras do seu exército. Fizeram deles soldados regulares. Ao carregarem os Flechas com equipamento militar, fardamento, botas, acabaram por transformar uma infantaria superligeira numa infantaria pesada desprovida das suas qualidades inatas.

Apesar de tudo, os Flechas não tiveram o mesmo sucesso em Moçambique, pese embora houvesse esperança de que pudessem mudar o rumo da guerra. O conflito em Moçambique vivia, então, um período de grande intensidade e, nos finais de 1971, Óscar Cardoso foi transferido para Moçambique e o inspector Rosa de Oliveira, antigo capitão dos Comandos, foi nomeado responsável máximo da delegação da PIDE/DGS em Serpa Pinto em sua substituição. Em 1972, o director-geral da PIDE/DGS, major Silva Pais, chamou Óscar Cardoso à Metrópole para uma reunião com o ministro da Defesa, Silva Cunha. O ministro da Defesa ordenou que Óscar Cardoso iniciasse a edificação dos Flechas em Moçambique, para contrariar os avanços dos insurgentes da FRELIMO no território. Era um projecto que se desenrolava ao mais alto nível, pelo que as falhas teriam repercussões de maior dimensão.

Em 1973, o então primeiro-ministro Marcello Caetano mandatou o inspector-adjunto Álvaro Alves Cardoso para liderar a criação de uma unidade de Flechas em Vila Pery, Moçambique. Alves Cardoso e outros 14 instrutores pertencentes aos Comandos portugueses terão treinado vários Flechas segundo o método usado nos Comandos. Embora se aceite, em termos gerais, que os Flechas foram fundados pelo director da PIDE/DGS em Angola, São José Lopes, foi o inspector-adjunto Álvaro Alves Cardoso que fomentou o uso da boina camuflada, que também acabou por ser adoptada por outra lendária unidade sul-africana, o 32.º Batalhão. Esse símbolo encheu de orgulho os Flechas, pois a boina distinguia-os de outros grupos paramilitares com uma intervenção operativa menos destacada. Mas o momento de glória teria um final triste e dramático.

A decisão de edificar os Flechas em Moçambique foi algo precipitada, nas palavras de Óscar Cardoso, por já existirem tropas paramilitares autóctones a operar sob as ordens dos portugueses e com excelentes resultados no campo de batalha, tal como os já referidos GE e os Grupos Especiais de Paraquedistas (GEP). Os Flechas não desequilibrariam, por si só, as tendências operacionais em Moçambique, pois a tipologia e as premissas dessa frente de combate eram completamente diferentes das de Angola. As altas chefias militares em Moçambique não viam com bons olhos a criação de uma tropa paramilitar que ficasse na dependência da PIDE/DGS. O paradigma vigente em Moçambique era, então, que as tropas autóctones deviam estar na linha de comando do exército».

Fernando Cavaleiro Ângelo («Os Flechas. A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola - 1967-1974»).
















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«No Times, de Londres, o Padre Adrian Hastings publica um artigo denunciando, com cópia de pormenores, um massacre de nativos perpetrado por tropas portuguesas, na aldeia de Wiryamu, em Moçambique.

A revelação deste episódio, que aliás já aparecera aflorado nas declarações de alguns padres espanhóis expulsos da província, coincide com a próxima visita à capital britânica de Marcelo Caetano. E se é evidente, como exploração publicitária, a data escolhida para as revelações de Hastings, o encadear subsequente dos factos, a desconexa série de declarações negativas e afirmativas dos responsáveis de Lisboa, muito vão contribuir para o agravamento do escândalo.

Massacres de população civil existem desde que há guerras e existirão sempre como acidente ou consequência destas. O problema, numa perspectiva ética, terá de pôr-se em saber em que medida eles decorrem de um propósito intencional ou costume atávico dos que os perpetram, como modo sistemático de domínio pelo terror, ou são desvio ocasional de um processo que aceita a distinção entre militares e civis, ou melhor, combatentes e não combatentes.

Ao longo dos séculos, graças à influência da Igreja (na regulamentação ad hoc do direito feudal), do "direito das gentes" e ao bom senso dos cabos de guerra (que chegaram, além de considerandos morais, à conclusão que é melhor não criar desesperados) foi melhorando, pelo menos na Europa, a situação dos civis em teatro de operações. Estabeleceram-se no papel regras que punem os comandantes por atrocidades praticadas contra elementos da população em território ocupado, etc.

Entretanto, a guerra revolucionária (como a guerra civil) escapa a estas fórmulas de jurisdição. E ensinam os mestres (Mao Tsé-Tung à cabeça) que o terror é o segundo método de obter das populações apoio para a guerrilha (o primeiro não se sabe bem qual é, pois se fala em adesão voluntária, o que dispensa métodos). A partir daí, as noções esbatem-se; até porque, inspirada num messianismo de libertação ou religião de resultados como o marxismo, a guerrilha não se preocupa muito com subtis distinções entre civis e militares, todos reduzidos à condição de inimigos de classe ou obstáculos à marcha da História. E a "consciência universal", representada por algumas dezenas de intelectuais, jornalistas e clérigos, reserva os seus protestos exclusivamente a massacres perpetrados por "fascistas" - forças regulares de países ocidentais ou insurrectos anticomunistas. Os outros (praticados por esquerdistas, países do Leste, ou "movimentos de libertação" marxistas) não têm idoneidade para base de protesto.

Com Portugal sucedeu assim. A consciência universal, de Jean-Paul Sartre às Nações Unidas, ficou muda quando o terrorismo no Norte de Angola massacrou tudo o que era branco ou preto não colaborante com a eliminação dos brancos. Mas despertou com violência quando o Exército e os voluntários reagiram sem aplicar as convenções de Genebra e recorrendo por vezes aos preceitos de Lynch e ao bíblico "olho por olho".

Não vale a pena nem aproveita a ninguém negar que houve excessos. Entre milhares em operações há de tudo e tem de se contar uma percentagem de sádicos, de irresponsáveis, de prepotentes. Depois, muitos estavam sob a acção do que tinham visto, à medida que avançavam nas zonas atacadas pelo terrorismo: as mulheres violadas e mortas com requintes rituais, os homens castrados e torturados até ao fim; os bailundos esquartejados, as crianças... [Entretanto quanto a atrocidades muito terão a dizer alguns oficiais do MFA, cujos feitos em campanha, aliás, se resumem a tais atrocidades. Os dossiers sobre tais temas, recolhidos ad hoc, serviram a seguir ao 25 de Abril para chantagem entre os clãs militares esquerdistas em luta pelo poder].

Ao que se pode, por enquanto, reconstituir, os factos referidos por Hastings ocorreram na segunda quinzena de Dezembro, entre 16 e 19, numa zona situada 30 km a sueste de Tete, nas margens do Taua-Taua, um rio quase seco nesta época do ano. Na área vinham actuando guerrilhas da Frelimo, em número de cerca de trezentos elementos, comandados por um tal Raimundo; a sua acção intensificara-se a partir do Verão, concentrando-se principalmente sobre as populações; um chefe tradicional de nome Rego foi assassinado, mutilado e mostrado como exemplo aos povos locais. Outros régulos tinham sido também raptados ou liquidados. Um balanço da actividade terrorista no período indicava 12 mortos, 28 feridos e 14 raptados entre os civis e 6 mortos e 18 feridos militares, nas baixas causadas pelo inimigo.

A localização destes bandos frelimistas, onde se contavam, particularmente activos, grupos femininos, coincidia com a região das aldeias de Chwala, Jwau e Wiryamu, pequenos aglomerados populacionais que contavam, respectivamente, com doze, oito e vinte e duas palhotas.

Perante a crescente escalada inimiga, o Comando da Zona Operacional de Tete decidiu empreender uma operação de limpeza, utilizando meios terrestres e aéreos, tanto mais que, a partir da área das referidas aldeias, tinham sido efectuados disparos contra aviões civis e militares. A fim de, na medida do possível, poupar a população, que os terroristas tradicionalmente usavam como escudo, foram previamente lançados sobre o terreno milhares de panfletos incitando os civis a abandonarem os guerrilheiros, recolhendo à protecção dos aldeamentos [Perante a reacção suscitada, o Times enviou a Moçambique, para verificar in loco os dados da questão, um repórter seu, Michael Knipe; este chegou a Tete, sendo entretanto detido e recambiado para Lourenço Marques pela DGS, sob o pretexto de não ser possível assegurar a sua protecção. Já na capital da Província, o general Kaúlza de Arriaga, a pedido do governador Pimentel dos Santos, consentiu em avistar-se com o jornalista inglês, a quem pôs a alternativa de lhe dar uma entrevista, em que todas as perguntas seriam respondidas, partindo de seguida para Londres ou, caso preferisse, deslocar-se a Tete, onde o Exército lhe daria todas as facilidades e protecção. Knipe optou pela entrevista e regressou a Londres, via Lisboa, onde tentou avistar-se com o coronel Amílcar Alves, que comandava o sector onde tinham ocorrido os incidentes, o que não lhe foi permitido pelo ministro do Exército. Na sequência, o Times publicou um relato, limitando-se a dizer que o seu enviado encontrara provas dos massacres, deixando pois todas as dúvidas sobre o caso].






No dia 16 de Dezembro inicia-se a operação Marosca, destinada a buscar e destruir o bando de Raimundo e a aliviar a pressão sobre a cidade de Tete; as informações militares dão como base dos guerrilheiros a aldeia de Wiryamu, cujos habitantes colaborariam intimamente com a Frelimo. Integram a operação efectivos da CCS/BCaç17 e quatro grupos de combate da 6.ª Companhia de Comandos, helitransportados, sendo a acção precedida por bombardeamento aéreo. Segundo o relatório oficial, nos três dias de operações foram abatidos 20 colaboradores IN e destruídas 100 cubatas.

Passado algum tempo, como circulassem rumores entre missionários da região, sobre a morte, em condições bárbaras, de 500 pessoas, foi determinado pelo Comando-Chefe o procedimento normal em tais ocorrências - um inquérito que concluiu ter sido o número de mortos na acção de 36 e não de 20, ressalvando entretanto a responsabilidade das tropas em operações, pois "numa região com uma população totalmente subvertida e colaborante com o IN foi absolutamente normal, pois tudo indica que da população em fuga faziam parte guerrilheiros, não havendo possibilidades de, nestas condições, distinguir uns dos outros". Deste modo se chegava à conclusão de dar por encerrado o caso, classificando-o como consequência, porventura grave, mas decorrente de "actos normais de guerra".

O tema viria a ser ressuscitado pelo artigo de Hastings no Times de 10 de Junho de 1973, precedendo, oportunisticamente, a visita de Marcelo Caetano a Londres. O relato baseava-se nas declarações de missionários espanhóis, comprovadamente hostis aos portugueses, que, como depois seria verificado, eram falsas quanto ao número de vítimas e pormenores de atrocidades (mulheres esventradas, jogo da bola com cabeças de crianças, gente queimada viva nas palhotas). Além disso, Hastings revelava-se um marxista confesso e simpatizante da Frelimo.

Não foi entretanto feliz a réplica das autoridades portuguesas que, com certo desconcerto de estratégia e respostas, se envolveram numa trama confusa que reflectia a descoordenação já reinante a nível superior.

Na verdade, tropas em operações teriam efectuado represálias sobre elementos da população civil, entre os quais mulheres e crianças, na região das três aldeias. O que era um facto, condenável em si, embora deixasse muito a desejar a autoridade e oportunidade dos arautos da consciência universal - alterando a realidade com a menção de pormenores sádicos completamente falsos, enquanto, por outro lado, enalteciam os homens da Frelimo que, por sistema, usavam tais métodos para intimidar as populações recalcitrantes. Depois, havia que levar em conta que nas dezenas de milhares de operações levadas a cabo em Moçambique, se contavam pelos dedos sucessos deste tipo, pois no clima desfavorável da grande imprensa internacional logo seriam relatados e aumentados pelos nossos inimigos. E numa guerra subversiva, seria de esperar que se multiplicassem [Aliás não pode deixar de pensar-se, a propósito da atitude da imprensa progressista britânica perante o morticínio de umas dezenas de civis num conflito subversivo, que foi Winston Churchill quem pessoalmente fez questão, a poucos meses do fim da Segunda Guerra e num momento em que esta já estava ganha pelos Aliados, de que a RAF bombardeasse com bombas de fósforo as cidades alemãs de Dresden e Hamburgo, onde se produziram as maiores carnificinas da História entre populações civis - depois, é certo, de Hiroshima e Nagasaqui, também realizados para mais rápida vitória e glória da "Cruzada das democracias". Parecem pois os seus compatriotas moralmente pouco idóneos para vir pregar na matéria aos Portugueses, que além do mais defrontavam um inimigo que apenas se guiava pela filosofia dos resultados].

Passada a visita de Marcelo Caetano, animada por uma modesta manifestação, onde ao tradicional cocktail de vagabundos e esquerdistas de serviço se juntaram Mário Soares e alguns refractários ao serviço militar, num espectáculo pobrezinho que fazia o circunspecto The Economist interrogar-se - What has happened to the revolution? (Que aconteceu à revolução?), a pressão esmoreceu, como sempre acontece.

O assunto parecia encerrado. Entretanto, sob o pretexto de que certos meios de informação voltavam à carga, organizou-se uma operação cujo objectivo era, segundo os seus promotores, desmentirem de vez as bases da campanha antiportuguesa. O Eng.º Jorge Jardim, acompanhado pelo jornalista Bruce London, do Daily Telegraph, pelo repórter francês Patrick Chauvel, por um jornalista do Notícias da Beira, com uma escolta militar e alguns colaboradores, deslocou-se em meados de Agosto à zona onde se tinham praticado os alegados massacres, visitando as aldeias de Jwau, Wiryamu, e Chwala. Enquanto nas duas primeiras nada de assinalável foi encontrado, em Chwala o grupo deparou com a presença de ossadas, correspondentes a cerca de trinta corpos que, segundo depoimento de uma jovem negra sobrevivente, pertenceriam aos habitantes fuzilados pelos soldados. A descoberta deixa perplexas as autoridades civis e militares da Província, imediatamente informadas por Jardim do macabro achado, para o que se deslocou a Nampula e a Lourenço Marques, partindo na noite de 17 para Lisboa. Aí, após ter dado conhecimento prévio, por interposta pessoa, a Marcelo Caetano, da sua missão, Jardim assiste a uma reunião no Palácio Nacional de Queluz, presidida pelo chefe do Governo, em que participaram os ministros da Defesa, Ultramar, Negócios Estrangeiros e o Governador-Geral de Moçambique, que se encontrava na Metrópole.

Jorge Jardim






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Perante a exposição de Jardim, corroborada pela exibição das fotografias de Chauvel (adquiridas, a título de exclusivo, para o Notícias da Beira), Marcelo Caetano resolveu que se publicasse uma nota da Defesa Nacional sobre o caso - contra a opinião dos membros do governo presentes - nota que redigiu pelo seu próprio punho e que rezava assim:

"Logo que surgiram acusações ao comportamento de certos elementos das Forças Armadas em Moçambique, o governo determinou que se procedesse a rigoroso inquérito.

Os primeiros resultados desse inquérito mostravam a inexistência dos factos alegados, nos lugares e com os caracteres alegados pelos acusadores. Isso mesmo foi comprovado por numerosos jornalistas estrangeiros que livremente percorreram a região de Tete.

No prosseguimento do inquérito apurou-se que forças isoladas, em contrário das ordens recebidas, praticaram, num caso pelo menos, noutro ponto da região actos reprováveis.

Dentro da linha de orientação que sempre tem sido afirmada pelo governo português, vão ser apuradas pelas entidades competentes as responsabilidades para aplicação de justas sanções".

Esta nota governamental foi muito criticada, não só por extemporânea - o assunto tinha morrido nos meios de informação - como por se tratar, no fundo, de um episódio já conhecido e investigado pelas autoridades competentes e do qual o chefe do Governo, teria notícia anterior. Além do mais, tudo se inseria num contexto polémico de posições perfeitamente demarcadas, e uma confissão deste género servia apenas as versões - exageradas quanto a circunstâncias e números - dadas pelo inimigo, pois admissão de parte da culpa nunca poderia deixar de ser tomada, com o devido desconto, como confissão do todo, tanto mais que estava em desacordo com declarações anteriormente fornecidas por fontes oficiais.

E não faltou quem pensasse, com alguma razão, que mais que um acrisolado amor à verdade, capaz de se sobrepor na consciência do chefe do Governo aos interesses directos do Estado, poderiam jogar em toda a história considerações de política interna: com o reconhecimento dos "actos condenáveis" praticados em Moçambique, também se punha em causa, de algum modo, o comandante-chefe, Kaúlza de Arriaga, que na ocasião terminara a sua comissão, regressando a Lisboa, onde não era persona grata aos senhores do poder [Não deixa de ser estranho, visto à distância, este ressuscitar da questão, a partir de uma notícia no jornal Times of Zambia, de Lusaka, sobre as declarações de um jovem negro, mais ou menos sequestrado pelos missionários espanhóis e que, segundo os seus promotores, seria a justificação da operação "Desmentido" que se saldaria, paradoxalmente, por uma confissão. A propósito, recordo-me de, durante o meu exílio em Joanesburgo, ter ouvido da boca de pessoa amiga, antigo alto funcionário em Moçambique e colaborador próximo de Jardim, uma versão dos acontecimentos relacionados com Wiryamu, segundo o qual o próprio Marcelo Caetano, perante a evidência dos mesmos, optara pela sua denúncia na imprensa internacional, mas em moldes e termos que não fossem muito desfavoráveis à operação que podiam levar a cabo. Confesso que o maquiavelismo um pouco primário da pretensa trama não me convenceu então, apesar de a pessoa em causa me merecer a maior confiança; entretanto, o conhecimento de certos pormenores da expedição "Desmentido", os termos da reunião do Conselho de Ministros, as negociações com Loudon e Chauvel quanto aos termos de publicação (e não publicação) do material obtido deixam em aberto algumas dúvidas e hipóteses de explicação.

Tudo leva a crer que o terreno a ser visitado pelo grupo de jornalistas conduzido por Jardim fora preparado para que aí não se achassem vestígios de corpos ou semelhantes, atribuindo-se a incúria do oficial encarregado de o fazer, o macabro achado em Chwala. Com base em tal negligência, foi decidido demitir o comandante militar da ZOT e Governador de Tete, embora oficialmente se desse a entender que tal demissão vinha como consequência de, em território da sua responsabilidade, terem ocorrido os lamentáveis incidentes. Parece entretanto que os oficiais visados alegam que Jardim se desviara, na sua visita, do itinerário predeterminado que comunicara às entidades competentes.

Este conjunto de dados, por enquanto um tanto confusos e que talvez nunca venham a aclarar-se, poderia ser interpretado no sentido de uma manobra complicada para comprometer, perante a opinião pública internacional, os altos responsáveis militares de Moçambique ao tempo das operações que deram origem aos incidentes, obtendo também certos efeitos de política interna, por o odioso dos massacres vir a cair sobre personalidades que potencialmente se receavam. Não seria a primeira vez que a miopia ou má-fé dos dirigentes políticos, neste período, se sobrepunham aos interesses do País, embora, repetimo-lo, esta explicação não se possa confirmar fora dos termos que aqui deixamos lavrados e os actos condenáveis das forças em operações tenham ficado muito aquém das efabulações da imprensa da época, retomadas posteriormente ao 25 de Abril por indivíduos sem escrúpulos, movidos por meros intuitos sensacionalistas e pela preocupação de ameaçar certos meios militares com a chantagem de um mini-Nuremberga para o Exército Português em África]».

Jaime Nogueira Pinto («Portugal - Os Anos do Fim. A Revolução que Veio de Dentro»).





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«Os aspectos do foro psicológico, quer no campo individual, quer colectivo, são os mais importantes e os mais perigosos de todos, já que têm uma grande influência nas crenças e convicções de toda a população. Os políticos têm obrigação de saber isto, pois faz parte do seu ofício, tal como os militares, sobretudo os daquele tempo, que estavam a realizar uma campanha notável de acção psicológica nos teatros de operações, onde existia uma guerra de guerrilha.

Tanto uns como outros, aparentemente, esqueceram-se de aplicar estes conceitos a si próprios e na retaguarda. Por causa disso, foi-se desenvolvendo a vários níveis e áreas da sociedade um conjunto de acções que, a pouco e pouco, foram influenciando o estado de espírito da população e mudando o modo como esta encarava o conflito em que a nação portuguesa estava envolvida. Ora, o que as pessoas "vêem" e "sentem" acaba por ser aquilo que elas percepcionam como sendo a verdade, mesmo que tal não corresponda à realidade dos factos.

As acções ou acontecimentos mais prejudiciais para a coesão nacional tiveram uma origem política, social e militar, tanto a nível interno, como na atitude hostil de muitos países e de grande parte dos media internacionais. Esta campanha, mais o alarido que se fazia na ONU e noutros fóruns internacionais contra o "colonialismo" português, apesar de não ter produzido efeitos inibidores na sustentação da economia do país nem na condução das acções de contra-guerrilha, perturbavam (e assustavam até) parte da opinião pública nacional, o que era logo utilizado como arma de arremesso pelos sectores políticos nacionais de oposição ao regime.

O caso que mais deu que falar durante toda a guerra foi o célebre episódio do "massacre de Wiriamu", toponímia que não existe em nenhum mapa. Vale a pena determo-nos um pouco neste tema, desde logo porque ainda hoje, não raro, continua a ser "desenterrado" (à míngua de outros) como símbolo das "atrocidades" cometidas pelas tropas portuguesas. O incidente ocorreu na povoação de Chawola, perto de Tete, em Dezembro de 1972, onde um grupo de combate de uma companhia de comandos, liderada por um alferes (o capitão estava ausente por doença), tinha sido destacado para uma operação, que consistia em transportar os habitantes de uma povoação que estava debaixo de um duplo controlo, nosso e do inimigo. Um dos helicópteros destacados para apoiar a operação aterrou no meio da aldeia com o alferes comandante e um auxiliar negro da PIDE. Este tentou obter informações sobre elementos do inimigo eventualmente infiltrados, e durante um dos interrogatórios, um ou mais elementos que estavam a ser inquiridos assustaram-se (possivelmente devido a alguma violência exercida) e tentaram fugir. No meio da confusão, um dos soldados terá disparado uma rajada e, a partir daí, a situação ficou fora de controlo, tendo sido abatidos largas dezenas de elementos da população. Foi um acontecimento absolutamente lamentável, mas que pode perfeitamente ocorrer em situações como as descritas (mais a mais quando aqueles militares estavam completamente esgotados por várias semanas de operações contínuas).

As autoridades tiveram conhecimento do sucedido, mas não tomaram quaisquer providências excepcionais. No entanto, a informação sobre o caso foi passada para fora da província por missionários estrangeiros, tendo chegado inclusive ao conhecimento do Núncio Apostólico em Lisboa, monsenhor Sensi, que referiu o caso ao chefe do governo, em Abril de 1973. O pior ocorreu quando, na véspera da viagem de Marcello Caetano a Inglaterra, a 16 de Julho, para estar presente nas comemorações dos 600 anos da Aliança Inglesa, o caso veio relatado no conceituado Times de Londres, onde chegou por via de um tal padre Hastings. A notícia teve vasta repercussão internacional, principalmente porque a maioria dos correspondentes era hostil à política portuguesa.

O chefe do governo mandou instaurar um novo processo, para o qual foi encarregado um brigadeiro que se deslocou a Moçambique, proveniente de Lisboa propositadamente para essa missão. Todavia, do seu relatório não constava a necessidade de levantar qualquer auto de corpo de delito. Marcello Caetano não ficou muito convencido disso, tendo dado ordens para que o governador-chefe do distrito de Tete fosse exonerado e para que o comandante-chefe [general Kaúlza de Arriaga] não fosse reconduzido no cargo, entendendo que este deveria ter actuado na altura.

No entanto, segundo aquilo que foi apurado, houve de facto várias mortes de civis, algo eticamente reprovável do ponto de vista militar, embora também seja verdade que casos como aquele podem sempre acontecer num cenário de guerra, onde as emoções facilmente se alteram (hoje costumam ser designados como "danos colaterais"). De qualquer modo, deve registar-se que se tratou de um caso isolado e que a doutrina e a acção de comando dos portugueses condenavam todo e qualquer acto de violência gratuita. As consequências do caso "Wiriamu" levaram o chefe do governo a não autorizar o ataque à grande base da Frelimo, de Nashinguea, na Tanzânia, que já estava planeado e preparado, e que poderia ter constituído um importante ganho operacional para as nossas tropas».

João José Brandão Ferreira («Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa»).








«OS PSEUDO-MASSACRES DE MOÇAMBIQUE

1.º 

Ultimamente têm-se referido de novo, na Comunicação Social, os massacres ou mais correctamente os pseudo-massacres, havidos, ou inventados, nas últimas lutas ultramarinas, particularmente em Moçambique e no período de Março/1970 - Agosto/1973.

Parece justificado que se procure informar o grande público da verdade sobre a questão.

2.º 

Em todas as guerras, mesmo naquelas travadas entre os países mais evoluídos, como é o caso da II Guerra Mundial, as populações, na sua generalidade inocentes, sofreram pesadamente as consequências, sendo imensas as vítimas mortais e com ferimentos graves ou gravíssimos que tiveram. De tal são exemplos característicos, os bombardeamentos de cidades da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, distinguindo-se, no último, os ataques atómicos a Hiroshima e Nagasaki, e o ataque com bombas incendiárias a Tóquio. Este, o mais mortífero de toda aquela guerra, produziu mais de 80 000 baixas.

Mesmo no presente, a dissuasão nuclear, que tem presidido na confrontação Oeste-Leste, ou principalmente EUA-URSS baseia-se fundamentalmente na ameaça recíproca de destruição de cidades inteiras, com a morte, ferimentos e doenças horrorosas nas suas generalizadamente inocentes populações. Os números estimados de vítimas atingem as dezenas de milhões. Isto em hipóteses favoráveis.

Também, em situações, que se não têm considerado de guerra, como foi a descolonização portuguesa, se verificaram uma enormidade de baixas entre as populações. Nesta descolonização e em Angola, Moçambique e Guiné, foram assassinadas, directamente e a frio, muitas dezenas de milhar de pessoas. E a estas há a somar, pelo menos, os morticínios de Timor.

Em Moçambique, a Frelimo praticava terrorismo, directo e a frio, sobre as populações, com a finalidade de coercivamente obter o seu apoio. Este terrorismo era muitas vezes selectivo, escolhendo para os seus alvos os chefes nativos ou homens com influência nas populações. Vários milhares de vítimas assim ocorreram.

3.º 

Apesar de tudo isto e em contraste total, na mesma Moçambique e, pelo menos, no período citado, a luta conduzida pelas Forças Armadas Portuguesas foi, em termos morais, eminentemente positiva, orientando-se pelo lema "convencer inteligências e conquistar corações". Nessa luta, procurava-se, acima de tudo, construir, e só, quando a necessidade impunha, se destruía. Chegou-se até ao ponto de, quando tinham de realizar-se bombardeamentos aéreos de organizações terroristas, se anunciarem previamente as áreas onde iriam incidir para que as populações se precavessem. Semelhantes atitudes e procedimentos por parte das Forças Armadas Portuguesas decorriam da observância de sólidos princípios humanos, éticos e ligados à honra militar, e, também, da concepção que aquelas Forças tinham de guerra contra-subversiva, na qual primava a dignificação e a promoção das populações.

Por outro lado, elementos de unidades em acção, desesperados com os métodos traiçoeiros dos terroristas e com mortes ou mutilações, no momento ou recentemente presenciadas, de camaradas seus, poderiam, no calor da excitação do combate, embora quanto se sabe raramente, ser levados a excessos, abrangendo terroristas e populações com eles misturadas. Estes casos, de resto, repete-se, em quantitativo conhecido mínimo, mesmo que não poucas vezes compreensíveis, eram, logo que denunciados, sempre averiguados pelos oficiais competentes do Serviço de Justiça Militar. E, ou se concluía terem sido incidentes infelizes mas correntes de guerra a arquivar, ou se concluía constituírem reais desmandos, sendo, nesta hipótese, os responsáveis enviados para juízo e ficando a cargo dos Tribunais o seu julgamento e punição.

Contudo, pareceu ao Comando que, mesmo aqueles pouquíssimos casos, em que os oficiais averiguantes concluíam terem-se verificado incidentes infelizes mas correntes de guerra, deveriam ser confirmados. De aqui a mensagem que o Comandante-Chefe enviou à Defesa Nacional de Lisboa, em Dezembro de 1971, que se transcreve:


                               IMEDIATO                             Z    14DEZ71


                                                      COMCHEFEÇAMBIQUE                               MUITO SECRETO


                                                      GERALDEFNAC                                                                 5200/CC


                                                                                                                                                VIA    CNM



MINHA  MENSAGEM  4628/CC  REFERIA  RUMORES  SEIS  CASOS  DE  POSSÍVEL  INDEVIDO  COMPORTAMENTO  NOSSAS TROPAS  PERANTE  POPULAÇÕES  STOP  POSTERIORMENTE  SURGIRAM  RUMORES  MAIS  DOIS  CASOS  O  QUE  PERFAZ  TOTAL  OITO  STOP  EMBORA  OITO  CASOS  EM  MAIS  DE  TRÊS  MIL  OPERAÇÕES  REALIZADAS  PRIMEIROS  DEZ  MESES  1971  CONSTITUA  PERCENTAGEM  MÍNIMA  RAZÕES  HUMANAS,  ÉTICAS  E  LIGADAS  COM  PROJECÇÃO  ESTRANGEIRO  ACONSELHAM  AVERIGUAÇÕES  COMPLETAS  E PUNIÇÃO  RESPONSÁVEIS  SE  DISSO  FOR  CASO  STOP  CONTUDO  AVERIGUAÇÕES  AQUI  REALIZADAS  CONDUZEM  SISTEMATICAMENTE  A  RUMORES  NÃO  PROVADOS  VERIFICANDO-SE  APENAS  INCIDENTES  CORRENTES  GUERRA  STOP  EM  CONSEQUÊNCIA  PONHO  CONSIDERAÇÃO  VEXA  POSSIBILIDADE  AVERIGUAÇÕES  SEREM  DE  NOVO  REALIZADAS  OFICIAL  ESTRANHO  TEATRO  OPERAÇÕES  MOÇAMBIQUE STOP  RESPEITOSOS  CUMPRIMENTOS



A Defesa Nacional não considerou necessária a confirmação proposta.



General Kaúlza de Arriaga e Dominique de Roux. Ver aqui


4.º 

O Comandante-Chefe das Forças Armadas de Moçambique, General Kaúlza de Arriaga, manteve-se em Lisboa nas primeiras três semanas de Dezembro de 1972, só regressando a Moçambique nas vésperas do Natal para o viver com as Tropas. Quando chegou a Nampula, foi procurado pelo Comandante da Zona de Operações de Tete por inerência legal também Governador do respectivo Distrito, que comunicou terem ocorrido, entre 16 e 18 de Dezembro, acontecimentos em Wiriamu, sobre os quais havia rumores de mau comportamento das tropas para com as populações, pelo que lhe parecia deverem realizar-se as averiguações adequadas. Foram, desde logo, expedidas as devidas ordens e foi o 1.º inquérito Wiriamu.

O relatório do oficial do Serviço de Justiça Militar, averiguante, descrevia o que se tinha passado, em que haviam morrido alguns terroristas, e algumas pessoas que o não seriam ou o não eram, mas que se tratava de mais um incidente infeliz e corrente da guerra, que não exigia maior procedimento. A conclusão foi homologada pelo Comando e o assunto foi mandado arquivar até melhor prova. E o caso Wiriamu foi encerrado pela 1.ª vez.

Passaram-se cerca de 7 meses, ninguém de boa-fé pensou mais em Wiriamu, quando, a 10 de Julho de 1973, vésperas da chegada do Presidente do Conselho de Ministros Português a Londres, em visita oficial, explodiu, forjadamente deturpado, ampliado e agudizado, e expressamente ressuscitado e espoletado por um Padre inglês de nome Hastings, do conhecimento do Dr. Mário Soares, e através do conceituado jornal "The Times", o caso Wiriamu, agora com foros de escândalo. Pretendia-se, com base em problemas humanitários e éticos, que o 1.º inquérito mostrara não existirem, criar um grave facto político que bem servisse a oposição ao regime do Dr. Marcello Caetano e que bem servisse os inimigos de Portugal. Em consequência, teve lugar o 2.º inquérito Wiriamu, mandado fazer pelo Comandante-Chefe, que, por outro lado, concedeu oportunamente, em Lourenço Marques, uma entrevista a um representante qualificado do "The Times", que se deslocara a Moçambique para fazer aquilo que este jornal deveria ter feito antes do seu artigo de 10 de Julho - informar-se completamente.

As conclusões do segundo inquérito Wiriamu, igualmente homologadas pelo Comando, foram semelhantes às do 1.º inquérito - incidentes infelizes mas correntes de guerra. A entrevista concedida ao "The Times" e, em grande parte por este publicada, com comentários, em Londres, conduziu também à conclusão de nada se provar das acusações feitas pelo Padre Hastings. E o caso Wiriamu foi encerrado pela 2.ª vez.

5.º 

Em Dezembro de 1972, quando o General Kaúlza de Arriaga estava em Lisboa, o Governo insistiu fortemente para que o General aceitasse continuar por mais dois anos em Moçambique, perfazendo seis. Kaúlza de Arriaga acabou por aceitar, mas mediante a verificação, sem equívocos, de determinadas condições, relativas a competências e a apoios, a conceder por Lisboa. Se tais condições não viessem a concretizar-se até Junho de 1973, o General declarou que, de acordo com o inicialmente previsto, regressaria em Julho à Metrópole.

Porém, e por carta de 31 de Maio desse ano, o Ministro da Defesa Nacional, anunciava a Kaúlza de Arriaga que, não podendo as Autoridades Centrais satisfazer as condições que ele, Kaúlza de Arriaga, pusera, "sine qua non", para prolongar o seu comando deveria considerar terminada a sua comissão em Moçambique, em 31 de Julho seguinte. O Presidente do Conselho de Ministros, dias depois, referia igualmente ao General Kaúlza de Arriaga, também em carta, aquele termo de comissão. O General regressou efectivamente a Lisboa em 1 ou 2 de Agosto desse ano de 1973.

6.º 

Durante parte deste mês de Agosto, o Eng. Jorge Jardim, por razões de fundo ainda desconhecidas, resolveu tratar de novo e pessoalmente do caso Wiriamu [Atitude estranha, tanto mais que o Eng. Jardim prestara sempre ao País, particularmente no plano ultramarino, serviços excepcionais]. Contratou um jornalista inglês e um fotógrafo francês, e propôs-se ir a Wiriamu para, segundo ele, - razão pouco consistente - mais uma vez provar a inexistência de actos menos próprios por parte das Tropas portuguesas. Mas não foi a Wiriamu, foi sim, sempre sem quaisquer entraves, a Chawola, onde encontrou alguns restos mortais, que foram fotografados.

A origem desses restos mortais não era e não é conhecida do Comando. O próprio já ex-Comandante-Chefe de Moçambique, Kaúlza de Arriaga, em férias no Algarve, consultado, de nada sabia.

Porém, Jorge Jardim veio a Lisboa e, em reunião, no dia 18 de Agosto, com o Presidente do Conselho de Ministros, o Ministro da Defesa Nacional, o Ministro do Ultramar e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, deve ter feito um relato imaginativo e terrífico, com exibição das fotografias preparadas, do que descobrira. A assistência impressionou-se e acabou por admitir que talvez em Moçambique alguma coisa de grave e inusitado se tivesse passado. A mesma assistência, misturando Chawola com Wiriamu, ressuscitou pela segunda vez este último, e o Presidente do Conselho de Ministros, numa atitude inexplicável e em acto errado e da maior injustiça, mandou destituir o Governador de Tete, o que por ilícito arrastamento produziu também a destituição da mesma entidade das suas funções de Comandante da Zona de Operações de Tete - um óptimo oficial, de excelente formação moral e que nada tinha com supostos desmandos de tropas, como todos "in loco" o sabiam, incluindo o Presidente da Cruz Vermelha regional que, em relatório para os seus superiores de Lisboa, o afirmou.



Jorge Jardim




Seguidamente, um Brigadeiro foi nomeado para se deslocar expressamente de Lisboa a Moçambique, e aqui realizar novo inquérito - o 3.º inquérito Wiriamu e, também, de Chawola. Foram-lhe dadas instruções para instaurar, "in loco", os autos de corpo de delito necessários. Mas, após tudo averiguado, o Brigadeiro concluiu, mais uma vez, não haver matéria crime que permitisse aqueles autos.

A conclusão foi homologada superiormente em Lisboa e pela 3.ª vez foi encerrado o caso Wiriamu e, também, encerrado o caso Chawola. Mas manteve-se a situação de destituição, errada e iníqua, do Governador e Comandante Militar da área de Tete. E, ulteriormente, já no exílio, profundamente traumatizado e muito doente, o Prof. Marcello Caetano teria escrito absurdas e delirantes acusações.

7.º 

Assim, em Moçambique, sempre que surgiam rumores de mau comprtamento de elementos militares perante as populações, logo as devidas averiguações ou inquéritos se realizavam e por vezes eram repetidos, e logo os correspondentes arquivamentos ou envios para juízo tinham lugar. No caso de Wiriamu instauraram-se três inquéritos e nenhum mostrou a existência de responsabilidades a julgar e condenar em Tribunal. Eis a questão dos pseudo-massacres de Moçambique».

Kaúlza de Arriaga («Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos»).


«O tratamento dado aos africanos pelos insurrectos (...) contrastava fortemente com o modo como eram tratados pelos portugueses. Qualquer erro, desde a simples perda de uma arma ou de um kit até um questionar racional da autoridade, podiam dar origem a severas penas por parte da liderança da guerrilha. Assim, era muito raro que um insurrecto capturado, "apresentado" ou desertor, se juntasse novamente aos seus, mesmo tendo oportunidade para o fazer [Correspondência com Inocentes, 5 de Junho de 1995, Londres]. A alternativa era um dos campos de prisioneiros de guerra. Estas instalações eram isoladas e todas semelhantes a S. Nicolau, na costa meridional de Angola, limitada por um mar infestado de tubarões de um lado e pelo deserto do outro. Privados da oportunidade de fuga pelos obstáculos naturais, a atmosfera era descontraída. Com frequência, os antigos insurrectos arranjavam nova mulher e, com a ajuda dos portugueses, começavam vida nova [Entrevista a Marques Pinto, 30 de Março de 1995]».

John P. Cann («Contra-Insurreição em África. O Modo Português de Fazer a Guerra, 1961-1974»).


«Na tomada de posse do Governo de Transição, estranhei não ter visto o Iko Carreira que era um dos meus interlocutores favoritos no MPLA. Muito discretamente indaguei o porquê desta ausência, tendo sido informado que, logo após a cimeira do Algarve, tinha seguido para Moscovo a fim de escolher e seleccionar armamento para as FAPLA. Fiquei triste, primeiro porque se tinha acabado de assinar um acordo de paz, depois porque este acto era mais um sinal claro e evidente do futuro que esperava Angola. Passados uns dias encontrava-me no aeroporto aguardando a chegada do avião de Moçambique onde viajava o almirante Vítor Crespo, Alto-Comissário daquele Estado, para lhe apresentar cumprimentos e trocar impressões sobre a situação naquele território. Durante aquele período de espera, aproximou-se o Major Moreira Dias, comandante da Polícia Militar, informando que tinha aterrado um avião Dakota proveniente de Cabinda e que o pessoal do MPLA não deixava proceder à inspecção da carga, como estava determinado. Contactado um dos responsáveis do movimento, Hermínio Escórcio, garantiu que o avião só transportava fardamento e medicamentos. Apenas lhe disse que ordens são ordens e voltando-me para o Moreira Dias: "Mande proceder à inspecção da carga do avião". Afinal as fardas e aspirinas haviam-se transformado em armas pesadas, como canhões sem recuo, morteiros, bazucas, entre outras. O avião foi de imediato selado, tendo o armamento seguido no dia seguinte para o batalhão de Caçadores Pára-quedistas onde ficou sob a sua custódia.

O Alm. Vítor Crespo respondeu às questões postas pelos jornalistas presentes, salientando as extraodinárias perspectivas que se apresentavam para Moçambique vir a ser um dos países mais prósperos da África Austral. Teceu uma série de elogios à nova classe dirigente e à forma inteligente como se estava a proceder à transição para a nova nação moçambicana. Limitei-me a felicitá-lo e a congratular-me com a situação que infelizmente não tinha paralelo em Angola onde, apesar de todos os acordos, ainda se vivia uma instabilidade e insegurança consideráveis e muito preocupantes. Todas as vezes que o Alm. Crespo passava por Luanda, a cassete repetia-se, até que comecei a ficar bastante céptico quanto às suas afirmações, em contradição com os sinais que me chegavam de outros sectores e que manifestavam bastante desconfiança face às promessas feitas. Afinal o seu cego optimismo acabou por se transformar em dor, sofrimento e morte para o povo de Moçambique que chegou a atingir padrões de vida dos mais baixos do planeta».

General Silva Cardoso («ANGOLA, Anatomia de uma Tragédia»).


«Em Moçambique, a descolonização dita "exemplar" levou para as cadeias centenas de portugueses, homens, mulheres e crianças. Acusavam-nos de "crimes contra a descolonização". Três meses antes da independência, as forças portuguesas às ordens do comandante Vítor Crespo, Alto-Comissário em Moçambique, entregou um grupo de sete desses prisioneiros à FRELIMO, para serem mortos. Mantiveram-nos, contudo, durante mais de um ano e meio, em campos de "reeducação". As restantes centenas foram sendo progressivamente libertadas e, em Novembro de 1976, ainda havia cerca de vinte prisioneiros brancos».

Pompílio da Cruz («Angola: Os Vivos e os Mortos»).







Vítor Crespo



Moçambique



I. ABERTURA


1. A análise da luta em Moçambique, travada na década de 1964 a 1974, implica, por um lado, o conhecimento pleno dos factores inerentes à própria luta e, por outro, a consciência correcta do ambiente que a enquadrava.

Assim, considerei, em primeiro lugar, as causas da luta, a sua natureza, as teorias, estratégias e tácticas aplicadas e aplicáveis e o decorrer das operações.

Depois referirei as crenças, hábitos, tendências, estado de espírito e acção das populações, da Igreja, da Administração Civil e das Forças Armadas.

Finalmente, deduzirei uma conclusão.

2. Durante o período em que fiz parte do Corpo Docente do Instituto de Altos Estudos Militares, dediquei-me ao estudo do Teatro de Operações de Moçambique.

Fui, depois, oito meses Comandante das suas Forças Terrestres e durante mais de três anos, exactamente quarenta meses, seu Comandante-Chefe.

Então, mantive constante contacto, com os meios internacionais, e, naturalmente, relações cerradas com o Governo e as Autoridades Militares de Lisboa; trabalhei intimamente com os Governos de Lourenço Marques e fiz uma condução da luta permanente e directa, processando-a no gabinete, nas salas de operações e, com grande frequência, no próprio campo de acção.

Tudo isto me permite analisar o caso de Moçambique com conhecimento de causa.

Tratá-lo-ei isentamente, de harmonia com os valores morais e éticos em que me fiz homem e militar e aplicando todas as minhas, poucas ou muitas, possibilidades intelectuais. E com serenidade, mas sem prejuízo do vigor de expressão que tamanha questão merece e exige.


II. AS CAUSAS DA LUTA


A causa profunda e primeira


3. Um dos fenómenos que, após a II Grande Guerra, maior projecção tem tido nas relações entre as nações e mais tem incidido na vida dos povos e na actividade dos homens, é, indiscutivelmente, a confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

O primeiro, conduzido, de início, pela Rússia e pela China e, depois, apenas por aquela super-potência, tem assumido uma atitude ofensiva sistemática e impregnada de grande fanatismo. O Ocidente, orientado pelos Estados Unidos da América e pela Europa, embora baseado principalmente na extraordinária capacidade norte-americana, tem-se mantido em posição defensiva, de certo modo tímida e pouco motivada.

Paralelamente afirmou-se - mantendo ainda hoje validade significativa - a dissuasão clássico-nuclear. Esta vem conduzindo a que tal confrontação se processe através de uma estratégia indirecta no espaço e nos métodos e a uma política de pseudo-causas.

A estratégia indirecta no espaço concretiza-se não, ou limitadamente, na incidência sobre os próprios adversários, mas sim, sobretudo, na procura do controle de áreas importantes do Mundo que os afecte ou contribua para o seu isolamento. A estratégia indirecta nos métodos consiste na substituição da guerra clássico-nuclear pela acção psicológica e subversão, pelo terrorismo e guerrilha, pelo golpe de estado e revolução e pelas guerras limitadas.

Esta estratégia indirecta no espaço e nos métodos generalizou-se, manifestando-se em todas as áreas críticas do Mundo, não sob forma paroxística, mas constituindo um conjunto de conflitos locais e menores, coordenado e indefinido no tempo.









Na política de pseudo-causas, age-se por forma a que a confrontação referida, causa profunda e primeira dos conflitos locais e menores, seja minimizada ou mesmo camuflada perante problemas internos, como insuficiências, dificuldades e atritos, sempre existentes e artificialmente utilizados, ampliados e agudizados. E esta política tem-se mostrado eficaz na medida em que a necessidade de evitar perigosas escaladas guerreiras e o princípio da não-intervenção em assuntos internos de outros estados impõem - embora se conheça mas não se reconheça a causa autêntica - a consideração daqueles conflitos como de origem realmente interna e assim insusceptíveis de merecerem atitudes ou acções muito explícitas dos principais interessados.

4. Entre as áreas importantes do Mundo cujo controle permite afectar e contribuir para o isolamento dos grandes adversários, distinguem-se, sem dúvida, a Ásia Marítima, a América do Sul, o Médio Oriente, a África do Norte e a África Austral.

A primeira, cinturão de contenção da China, teve grande significado antes da ruptura soviético-chinesa, deu origem às duas Chinas, conferiu importância capital ao Japão, processou mudanças políticas na Indonésia e está na base das guerras da Coreia e do Vietname.

A América do Sul, grande e naturalmente rica, constituindo o flanco Sul dos Estados Unidos da América, é teatro constante mas não presentemente o principal, da confrontação em causa.

O Médio Oriente e a África do Norte, por um lado, e a África Austral, por outro, também extensos e com zonas naturais muito ricas, constituindo a cobertura sul da Europa e dominando as comunicações marítimas do Índico, no Mediterrâneo e no Atlântico Sul, vêm sendo objectivo actual e prioritário na mesma confrontação. Daqui e em grande parte, os problemas políticos da Síria, Iraque, Jordânia, Líbia e Argélia, as alterações políticas no Egipto, os conflitos no Líbano e as guerras israelo-árabes. E daqui, igualmente em grande parte, as atitudes políticas da Tanzânia e da Zâmbia, as perturbações no Congo, os acontecimentos ocorridos em tempos no Congo Belga e os que agora se verificam no Zaire, as lutas que sustentámos na Guiné, Angola e Moçambique, a posterior descolonização destes territórios e a de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e os problemas candentes da Rodésia e da República da África do Sul.

5. Está assim definida a causa profunda e primeira da luta em Moçambique.

Esta luta mais não foi, e talvez mais não seja, do que um conflito local e menor na conquista da África Austral, objectivo presentemente prioritário na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente.

6. Mas, sendo assim, é legítima a pergunta: porque não apoiou o Ocidente Portugal em África e até, pelo menos em certa medida, o hostilizou?

A verdade é que, a par de tal falta de apoio e hostilização explícitas, houve, também, muita simpatia e apoio implícitos.

Contudo e no seu somatório, a atitude e actuação ocidentais foram, em verdade, negativas em relação a Portugal ou, pelo menos, não suficientemente positivas. E, deste modo, a pergunta persiste: porquê?

Em primeiro lugar, na confrontação com o neo-imperalismo comunista o Ocidente, como referi, tem-se mantido em posição defensiva, tímida e pouco motivada. Isto porque uma opinião escrupulosa, sobretudo norte-americana mas também europeia, mal informada, perturbada por propaganda intensíssima e não poucas infiltrações, quer ter a certeza de estar na razão.Também, porque o superior nível de vida ocidental tem como preço o comodismo acentuado e a tendência para a dilação das questões difíceis. E, ainda, porque as preocupações internas dos países ocidentais têm conduzido à preterição de uma política a longo e médio prazo em favor do imediato.

Depois, os mesmos países sentem o peso de um Terceiro Mundo, que reconhecem obcecado, mas cuja população imensa e em estado de sub-desenvolvimento lhes origina complexos, e cujas matérias-primas lhes são indispensáveis.

Finalmente, porque os países em causa nunca entenderam plenamente o caso português, nem acreditaram verdadeiramente nas nossas teses, nem aceitaram completamente a nossa argumentação.

Apesar de tais explicações, a verdade é que o que acabo de referir relativamente a Portugal se integra numa passividade ocidental de carácter, pelo menos, tendencialmente suicida.













Isto na medida em que o comunismo soviético obteve, com a chamada descolonização portuguesa, uma das suas mais significativas vitórias. Vitória tão grande que lhe permite encarar já a hipótese de, numa estratégia mais directa, cercar o coração da Europa, mediante uma ameaça brutal na fronteira da Alemanha Federal, mediante um crescente controlo das comunicações marítimas e áereas no Mediterrâneo e no Oceano Atlântico, conseguido nomeadamente pela aquisição, permanente ou temporária e oportuna, de posições na África do Norte e nos arquipélagos de Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores, e mediante ainda o assentamento de pés, bem firme, nas Penínsulas Itálica e Ibérica.

É provável e desejável que aqueles, que referi, como não entendendo o caso português, não acreditando nas nossas teses e não aceitando a nossa argumentação, comecem a aperceber-se de que afinal a razão estava connosco e que, a continuarem como até aqui, caminharão infalivelmente para a catástrofe.


Outras causas


7. Não pode contrariar-se, à luz dos sãos princípios vigentes na actualidade, o desejo de qualquer povo de ser auto-governado, mesmo que de tal decorra para ele menor riqueza espiritual e material, menor nível de vida e maior infelicidade.

A isto veio juntar-se o anticolonialismo, muitas vezes eminentemente justo, na medida em que um mau colonizador, isto é, um colonialista, em lugar de civilizar, explorava.

E estas circunstâncias foram transformadas em factores de tensão, altamente obsessivos, por interesses estranhos que nada tinham a ver com a autodeterminação ou com o acerto do colonizador ou as injustiças do colonialista.

Assim se formou a psicose terceiro-mundista de independência a todo o custo, sob qualquer fórmula, descuidando consequências.

Mas deve considerar-se que a autodeterminação, para ser autêntica, deveria pressupor um estádio político, económico e social dos povos que impedisse que, ao adquirirem, por via dessa própria autodeterminação, a independência, não caíssem logo sob o jugo de estrangeiros. O caso dos antigos Territórios Ultramarinos Portugueses é disso exemplo flagrante.

De qualquer maneira, a psicose referida foi também uma das causas, embora não a principal, da luta em Moçambique.

8. Algumas pessoas nascidas na então Metrópole Portuguesa ou nos então Territórios Ultramarinos Portugueses, umas na observância dos interesses do comunismo internacional, outras apenas na ânsia de derrubarem o regime de Salazar e de Caetano, fizeram tudo o que lhes foi possível para que Portugal e as suas Forças Armadas fossem derrotados em África.

Foi uma atitude de desvario, de apostasia nacional. Nela desprezaram o País e os povos portugueses, quer europeus quer africanos e asiáticos, a sua História construída no suor e no sangue, o seu presente que poderia ser de riqueza e progresso. Nela contribuíram para a desastrosa situação que Portugal e os seus antigos Territórios Ultramarinos viveram recentemente, vivem e viverão ainda por muito tempo. Nela contribuíram para a ruptura do sistema de paridade e harmonia étnicas, em que Portugal era vanguarda no Mundo, e para a ruína de territórios prósperos ou em vias de sê-lo, como Angola e Moçambique. Nela assumiram responsabilidades indeléveis na morte e mutilação de bons e jovens portugueses, brancos, negros e mestiços, que cumpriam honestamente o seu dever militar, e nas centenas de milhares de mortos e milhões de destroçados moral e materialmente, fruto da descolonização.

E hoje, prisioneiros do seu erro, incapazes de um «mea culpa» histórico, limitam-se a uma defesa cega das suas posições e à tentativa de neutralização daqueles que, com seriedade lhes mostram o caminho errado que infelizmente seguiram.

A acção de tais portugueses foi igualmente uma das causas, se bem que factualmente menor, da luta em Moçambique.

9. As teses ultramarinas portuguesas, na sua fórmula actualizada, já então vigente em Moçambique, não só respeitavam o passado português e estavam perfeitamente harmónicas com os conceitos sociais mais avançados, como são aquelas que terão de vigorar generalizadamente no grande futuro de um Mundo viável e harmonioso.





Rua dos Arcos na Ilha de Moçambique (finais da década de sessenta do século passado).







Lourenço Marques


Contudo, havia e houve, quer no plano oficial quer no sector privado, alguns desvios a tais teses. Desvios que vinham sendo progressivamente corrigidos pelas Forças Armadas e pela parte boa da Administração Civil. Desvios que acabariam por desaparecer.

Mas a política das pseudo-causas, como sempre, aproveitou-se de tais desvios, ampliou-os, agudizou-os e fez deles uma bandeira que iludiu muitos portugueses e muitos estrangeiros.

Eis, ainda, uma outra causa menor da luta em Moçambique.



III. A NATUREZA DA LUTA EM MOÇAMBIQUE


A guerra destruidora, ofensiva e defensiva


10. A Guerra é na quase totalidade dos casos, por essência, destruidora.

Nela se procura impor uma vontade, destruindo, nos domínios material e espiritual, o adversário. E, em particular, nela se destrói o que de mais sagrado existe - a vida humana.

Por tudo isto, a guerra é condenável. Outras fórmulas deveriam utilizar-se para solução dos diferendos entre os homens. E, embora muitas vezes esquecidas, elas existem efectivamente.

11. Mas há, também, que distinguir a guerra ofensiva, a agressão violenta, que toma a iniciativa da destruição e que deliberadamente sacrifica vidas humanas, da guerra defensiva, do enfrentar da agressão, que só destrói para evitar a destruição e que só admite matar para não morrer.

Em relação à primeira, não parece poderem existir dúvidas sobre a sua ilegitimidade, e sobre a atitude criminosa de quem a promove e pratica.

A guerra defensiva, em contrário, reveste-se de legitimidade inteira e constitui dever maior, para os que sofrem a agressão, o nela participarem e agirem conscientemente e em total entrega.


A luta construtiva de Moçambique


12. Na luta em Moçambique uma característica dominava, em antagonismo com o normal da guerra - a construção. Uma construção apontada ao futuro.

Na realidade, tal luta concretizava-se numa acção imensa de dignificação e promoção das populações e de valorização do território, tendo como objectivos fundamentais, procurados com coragem, tenacidade e fé, a plena paridade e harmonia étnicas, a produção crescente de riqueza e a sua justa distribuição.

Estava a conseguir-se, no plano da verdadeira civilização e no espaço de uma década, aquilo que, ao ritmo normal do progresso dos povos africanos, levaria pelo menos um século e que, após a descolonização, demorará muitíssimo mais tempo.

13. Assim se poderiam ter elevado territórios, não nos anos 60, como alguns com ligeireza ou habilidosamente afirmam, nem nos anos 70, como ficou provado, mas talvez nos anos 80 ou 90, a um nível político, económico e social que lhes permitisse uma autodeterminação livre, consciente e autêntica no seu processamento e nas suas consequências. Isto em contraste com o que efectivamente sucedeu - o ignorar-se a vontade ou simples opinião dos povos e o seu encaminhamento forçado para a submissão a potências estrangeiras.


A guerra defensiva e humana de Moçambique


14. Mas, em Moçambique, houve, também, grandes e intensas operações especificamente militares.

Elas eram, em última análise, defensivas ao enfrentarem a agressão de origem fundamentalmente externa e ao terem como finalidade impedir que o inimigo dificultasse a construção em curso. Isto é, a própria destruição tinha como objectivo defender e permitir a construção.

15. Um outro aspecto não pode deixar de ser recordado. É o da grande humanidade com que as operações especificamente militares eram conduzidas e executadas.

Isto sem prejuízo do sofrimento geral e pontual que tais operações inevitavelmente trazem e sem prejuízo de uma ou outra acção abusiva que, quando conhecida e confirmada, logo foi punida ou enviada para juízo. Neste domínio e considerando todos os casos denunciados, de resto muitos dos quais falsos, o seu volume, face ao conjunto da actividade militar, foi mínimo e conferiu às Tropas Portuguesas de Moçambique o galardão de, pelo menos, se situarem entre as que melhor comportamento tiveram, no Mundo e em todas as épocas, perante as populações.

As operações especificamente militares eram moduladas pelo lema «convencer inteligências e conquistar corações» e, com frequência, foram previamente anunciadas as áreas e as datas onde iam ter lugar acções terrestres ou aéreas, na esperança de que delas se afastassem as populações. E nunca tive conhecimento de um apresentado ou prisioneiro ter sido menos bem tratado pelas Forças Armadas.



Imagem emblemática dos Portugueses na guerra.



Militar português no apoio sanitário, no âmbito da acção psicológica (APSIC). Para conquistar a adesão das populações locais, as Forças Armadas desdobravam-se em cuidados de saúde e acções formativas.


Não sei onde se tenha ido mais longe, e como se poderia fazê-lo, em matéria de protecção a civis e de acolhimento de apresentados e prisioneiros. Parece existirem algumas diferenças entre este procedimento e, por exemplo, os bombardeamentos da Inglaterra, da Alemanha e do Japão, na II Grande Guerra, ou, continuando a exemplificar, o bombardeamento de Nova Lisboa e os massacres e fuzilamentos, a quente e a frio, que se perpetraram na Guiné, em Angola, em Moçambique e em Timor, no passado recente.


A natureza da luta em Moçambique


16. Em síntese, a luta em Moçambique foi eminentemente construtiva e apontada ao futuro, teve um carácter defensivo e foi conduzida e executada pela forma mais humana.

Tal já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

E aqueles que nela participaram, particularmente quando o fizeram com dedicação e eficácia, são dignos do respeito e da gratidão da Pátria e dos seus povos e podem considerar-se orgulhosos de si mesmos.



IV. AS TEORIAS, ESTRATÉGIAS E TÁCTICAS APLICADAS E APLICÁVEIS E O DECORRER DAS OPERAÇÕES NA LUTA EM MOÇAMBIQUE


As áreas de luta


17. Em 1970, a luta em Moçambique abrangia as seguintes áreas principais:

a) A campanha de dignificação e promoção geral das populações.

b) O ensino.

c) Os estudos e trabalhos de valorização do território.

d) O aldeamento.

e) A acção contra-subversiva, especialmente nos distritos do Niassa, Cabo Delgado e Tete.

Nas três primeiras áreas trabalhava-se intensamente e, se o sucesso nelas conseguido influenciava fortemente o êxito das suas últimas, também aquele sucesso estava dependente dos resultados do aldeamento e da contra-subversão.

É sobre o aldeamento e a contra-subversão, mais da responsabilidade do Comando-Chefe, que vou referir teorias, estratégias, tácticas, operações e seus resultados.


A teoria do aldeamento


18. A promoção das populações só pode ter lugar em sociedades organizadas em cidades, vilas e aldeias e não quando predomina a vida nómada.

Em Moçambique existiam numerosas e magníficas cidades e mesmo as mais modestas foram talhadas com largueza, visando o futuro.

Porém, as vilas e aldeias moçambicanas eram limitadíssimas em quantidade e qualidade, verificando-se acentuado nomadismo.

Impunha-se, pois, um grande trabalho neste capítulo. Daqui a obra-padrão de Nangade. Daqui os aldeamentos.

Nangade era uma vila-tipo, uma vila que seria a primeira de uma série a estabelecer ao longo do rio Rovuma e que seria, também, o modelo de centenas e centenas de vilas a edificar, com o tempo, em todo o Moçambique. Nangade era uma vila planeada e em execução segundo parâmetros modernos. A sua construção começou pelas infraestruturas básicas - electricidade, águas e esgotos -, seguiram-se-lhes os arruamentos e os edifícios de interesse comum e, depois, seguir-se-lhe-iam as habitações normalizadas.

Os aldeamentos constituíam a base da promoção do povo moçambicano. Tinham de ser implantados em grande quantidade e depressa, sacrificando-se inicialmente a qualidade à quantidade. Fizeram-se mais de mil, abrangendo aproximadamente um milhão de pessoas. Faltavam ainda uns quatro mil. Sobre aldeamentos reproduzo um texto que escrevi há algum tempo:

«Realmente aqueles que nos hostilizavam elegiam para os seus ataques físicos, procurando ferir e matar populações, e para os seus ataques propagandísticos pseudo-intelectuais, negando a verdade evidente, o aldeamento ou melhor os aldeamentos.






Estes, ao contrário do que dizia aquela propaganda que os considerava campos de concentração de estilo hitleriano, e diferindo das ideias que os julgavam de necessidade essencialmente militar e de duração efémera, eram pólos e fontes definitivos de civilização.

Em verdade constituíam mesmo a fórmula única de promoção rápida das populações sub-desenvolvidas.

A promoção das populações dispersas era e é, na prática da vida, impossível. O ensino, a assistência sanitária, a assistência técnica agro-pecuária ou industrial, o comércio e, de uma forma geral, a fruição dos benefícios do progresso só podiam e podem incidir nos aglomerados populacionais.

Assim, o aldeamento a que procedíamos e os aldeamentos que construíamos eram obra imensa de promoção e fomento. Talvez a maior obra então em curso em Moçambique e na grande maioria dos territórios africanos.

Naturalmente, muitos dos aldeamentos construídos e em construção e muitos dos que se iriam construir estavam e seriam inicialmente incompletos e imperfeitos, apresentando deficiências mais ou menos pronunciadas.

Tal resultava de certa limitação em meios, mas sobretudo da velocidade de execução.

Daqui o facto do aldeamento não terminar com a construção dos aldeamentos, mas, bem pelo contrário, esta construção ser apenas a fase inicial a que se seguiam outras numa tarefa contínua de melhoramento e aperfeiçoamento.

No relativo a muitas populações e como consequência dos seus hábitos tradicionais, verificava-se, de começo, alguma estranheza ao conceito de aldeamento e alguma dificuldade na vida de comunidade. Mas, após poucos meses de tal vida, ela tornava-se o normal, o natural e ninguém mais pensava em abandoná-la.

Outras populações, porém, de raiz mais evoluída, logo desejavam e solicitavam o aldeamento.

De resto, os aldeamentos eram abertos e quem os quisesse abandonar podia fazê-lo. Este abandono teve efectivamente lugar, mas apenas esporadicamente e somente nas áreas que a subversão tornara instáveis.

Os aldeamentos tinham, também, um papel na contra-subversão.

Um papel indirecto, ao constituírem antídoto do aliciamento subversivo, na medida em que, melhorando o nível de vida das populações, aumentavam o contraste com aquele que a Frelimo lhes podia oferecer.

E um papel directo, ao dificultarem o trabalho dos agentes subversivos e ao limitarem o terrorismo selectivo ou generalizado com que a Frelimo procurava obter coercivamente o apoio das populações».

Espantosamente, porém, as Autoridades Centrais nunca se interessaram decididamente pelo aldeamento.


 A contra-subversão


19. Quando assumi o Comando-Chefe do Teatro de Operações de Moçambique, em fins de Março de 1970, a situação subversiva e contra-subversiva podia sintetizar-se como segue:

Niassa Norte - A subversão tinha sido praticamente derrotada pelos meus antecessores. A população estava na sua grande maioria aldeada, havendo apenas alguns focos subversivos nas altas montanhas e muito a norte.

Niassa Sul - Não existia praticamente subversão e a população estava em condições óptimas para o estabelecimento de um sistema de auto-defesa.

Lago Niassa - Estava inteiramente controlado pela Armada portuguesa em cooperação com as Forças Lacustres malawianas.

Cabo Delgado - O inimigo mostrava-se em plena força, bem enraizado no terreno, considerando as suas bases inexpugnáveis, com grande domínio sobre as comunicações terrestres, e acabava de lançar a sua grande ofensiva que tinha por objectivos o isolamento das nossas unidades, através de um lançamento maciço de minas, e uma profunda progressão para sul. Contudo, a Autoridade portuguesa local havia procedido à construção de uma faixa de aldeamentos a sul do rio Messalo, em verdade notável.

Tete - Verificava-se uma subversão incipiente.



Kaúlza de Arriaga


















Vista aérea da Cidade de Nampula (início dos anos 1960).



20. A estratégia inimiga tinha nessa época as seguintes finalidades principais:

- formar ou consolidar um «exército de libertação» com base na etnia maconde;

- atingir com tal «exército» o coração de Moçambique (região limitada pelo rio Zambeze, rio Luenha, fronteira com a Rodésia, estrada Vila Pery-Beira e litoral entre a Beira e a foz do rio Zambeze), separando Moçambique em três partes (Tete, o Norte e o Sul) e afectando as ligações Beira-Rodésia;

- para tanto, manter uma acção reduzida no Niassa e exercer o seu grande esforço em Cabo Delgado.

No relativo à táctica, de inspiração soviética, ela assentava mais na força do que na subtileza, admitindo grandes bases, colunas com efectivos avultados e acções maciças.

Aquela estratégia e esta táctica resultaram inicialmente, na medida em que as nossas unidades foram isoladas e o terrorismo progrediu acentuadamente para sul.

21. Deste modo, o Comando-Chefe teve de determinar disposições e acções urgentes e mandou preparar um plano de fundo que neutralizasse e destruísse as intenções e actuações do inimigo e trouxesse a iniciativa para o lado português.

Assim, foi executada uma grande operação de reabastecimento aéreo das unidades isoladas, foi reforçada a faixa de aldeamentos do rio Messalo por forma a impedir a progressão para sul e, seguidamente, foi realizada uma também grande operação de levantamento de minas.

Mais tarde, na sequência do plano de fundo acima referido, lançou-se a maior operação que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português - a operação «Nó Górdio».

A operação, na qual se utilizaram novas tácticas com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia e em tropas especiais de assalto e, por outro, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado e posto em fuga. As suas baixas, se bem que infligidas no menor número possível, foram consideráveis. Não mais alguém pensou no «exército maconde» nem na sua progressão para sul. Restabeleceu-se o domínio português sobre as comunicações terrestres e as nossas forças passaram a ter inteira liberdade de acção e plena iniciativa.

Na exploração do sucesso, levada a efeito sobretudo por forças aero-móveis, o inimigo restante em Cabo Delgado quase desapareceu, refugiando-se na Tanzânia. E esteve à vista a vitória portuguesa total na área e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

A pedido do Presidente do Conselho de Ministros e do Ministro da Defesa Nacional, fiz uma intervenção televisionada em Lisboa, expondo honestamente a situação.

Esta intervenção valeu-me posteriormente muitas críticas, pois tinha dado a entender um triunfo final breve, quando, dois anos depois, em 1973, este ainda se não verificara e, pelo contrário, parecia que a conjuntura havia piorado.

E era verdade. É que não contara, porque o não conhecia, com o erro de Cabora Bassa.

22. Cabora Bassa era e é uma realização de excepcional grandeza e importância no domínio da economia. Poderia ter transformado, no sentido do enriquecimento, todo o enormíssimo vale do médio e baixo Zambeze e poderia ter contribuído, por forma notável, para o progresso global de Moçambique.

Contudo, a construção de Cabora Bassa foi decidida e iniciada levianamente, sem que tivesse sido feita qualquer avaliação da sua projecção nos domínios político e estratégico. E, em consequência, sem que se tivessem tomado, nestes domínios, medidas adequadas. Tal facto constituiu grave erro do Governo de Lisboa.

Depressa Cabora Bassa se transformou no símbolo do sucesso. Ou Cabora Bassa era construída sem perturbações significativas, ou Cabora Bassa não era construída, ou na sua construção se verificavam perturbações sérias, e Portugal estaria derrotado.


Kaúlza de Arriaga na Barragem de Cabora Bassa






Lago de Cabora Bassa



Assim, Cabora Bassa - o estaleiro ligado à construção da barragem, a área da sua futura albufeira, os seus acessos de quase um mihar de quilómetros, pelos quais transitavam diariamente centenas de toneladas de cimentos, semanalmente centenas de quilos de explosivos e, com frequência, equipamento num total de 36.000 toneladas que não podia, de modo algum, ser danificado e muito menos destruído, a sua linha de transporte de energia eléctrica de mais de 6.000 postes, etc.  - passou a constituir questão vital e ponto de honra no relativo à sua segurança.

23. A DGS, cuja informação estratégica era magnífica, logo informou da decisão da Organização da Unidade Africana de adopção de nova estratégia para Moçambique. A derrota espectacular da Frelimo em Cabo Delgado e a necessidade de impedir ou dificultar quanto possível a construção de Cabora Bassa foram as causas dessa nova estratégia.

Ela consistia fundamentalmente em:

- continuar com a acção reduzida no Niassa;

- com os restos do «exército maconde» e com os novos terroristas da mesma etnia, que entretanto fora possível recrutar e treinar, manter o esforço possível, embora secundário, em Cabo Delgado, com a finalidade de fixar forças portuguesas;

- exercer o esforço principal em Tete, torneando Cabora Bassa, atingindo o istmo de Tete e seguidamente o coração de Moçambique com as consequências conhecidas;

- incluir neste esforço as acções possíveis contra Cabora Bassa e o ataque intenso aos seus acessos e acessório à estrada Rodésia-Malawi.

Mas não só a estratégia foi alterada, também a táctica. Esta, agora de inspiração chinesa, era extremamente subtil, com bases muito pequenas de vigência curtíssima e empregando grupos dígitos, peritos no aliciar e na realização de pequenas acções de grandes efeitos psicológicos e dotados de capacidade notável de diluição nas populações.

24. A Portugal, conhecedor da futura estratégia inimiga, duas alternativas se punham e por mim foram propostas:

- ou impedir essa estratégia, usando a poderosa arma económica que tinha sobre a Zâmbia, no sentido de não permitir o trânsito de terroristas no seu território e, assim, impossibilitar o acesso destes a Tete;

- ou favorecer ao Comando-Chefe os meios necessários para que, sem prejuízo do ritmo do sucesso em Cabo Delgado, se pudesse enfrentar a situação em Tete.

Contudo, nenhuma destas alternativas foi adoptada. A primeira, talvez porque o Governo de Lisboa não tivesse nem a posição nem a coragem para suportar as complicações que certamente surgiriam na ONU com o corte, em Angola e Moçambique, das vias de comunicação com os Oceanos Atlântico e Índico que serviam a Zâmbia e eram para ela de interesse económico vital. A segunda, certamente porque, nessa época, as Autoridades Centrais não primariam pela clarividência e capacidade de decisão.

Propus então que tropas numerosas, mais ou menos inactivas de Angola, dada a situação muito favorável ali vigente, fossem empregadas em Moçambique. E propus mesmo, para facilitar a sua manobra, que um Comandante-Chefe único fosse designado para os Teatros de Operações de Angola e Moçambique. Tudo foi recusado, tendo a minha proposta sido interpretada, segundo parece, não como uma medida bem intencionada e fecunda, mas apenas como desejo meu de ser o «dono» da guerra na África Austral.

E ficava Cabora Bassa com a sua grande imobilização de efectivos.

Resolvi então produzir mais tropas locais. E mais Companhias de Comandos e as primeiras dezenas de novos Grupos Especiais e de Grupos Especiais Paraquedistas foram mandadas constituir.

De Lisboa surgiram dificuldades, proibições, etc., mas mantive a minha decisão e, quando deixei Moçambique, aquelas Companhias de Comandos estavam em formação e aqueles GE e GEP encontravam-se quase prontos da sua instrução e treino.

Levantamento de mina anti-carro colocada pela Frelimo.


25. Enquanto mantinha toda esta polémica com as Autoridades Centrais, defini a nova estratégia portuguesa em Moçambique:

Ela baseava-se nos seguintes parâmetros:


Numa primeira fase defensiva


- reduzir ao mínimo compatível com o equilíbrio táctico os efectivos no Niassa e em Cabo Delgado;

- organizar em auto-defesa as populações do Niassa Sul;

- procurar consolidar a faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- exercer o esforço nos acessos a Cabora Bassa, nas posições que a protegiam e noutras áreas-chave ou importantes do distrito de Tete;

- acelerar o aldeamento das áreas convenientes do mesmo distrito;

- tentar impedir as infiltrações ao longo do istmo de Tete e o acesso inimigo a áreas mais a sul e sudeste;

- Aldear as populações do istmo de Tete e do norte dos distritos de Vila Pery e da Beira.


Numa segunda fase defensiva-ofensiva


- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com tropas vindas eventualmente de Angola, somente com alguns dos novos Comandos, GE e GEP ou com umas e outros, retomar a ofensiva em Cabo Delgado;

- com a maioria dos novos Comandos, GE e GEP, consolidar a segurança do complexo de Cabora Bassa e eliminar as infiltrações que tivessem tido lugar no istmo de Tete e nas áreas mais a sul e sudeste;

- manter e aumentar no possível o esforço de aldeamento.


Numa terceira fase ofensiva


- efectuar com meios navais e aero-navais a interdição da albufeira de Cabora Bassa;

- recuperar as tropas libertadas por tal interdição;

- continuar a manter o equilíbrio no Niassa;

- com as anteriores tropas, com as recuperadas e com outros novos Comandos, GE e GEP, intensificar a ofensiva em Cabo Delgado e limpar o distrito de Tete e a este da linha albufeira-Cabora Bassa-furancungo.

26. No decurso das operações correspondentes à primeira fase da estratégia referida verificaram-se:

- o equilíbrio no Niassa;

- certo recrudescimento de actividade inimiga em Cabo Delgado, com algumas perturbações sem significado especial na faixa de aldeamentos do rio Messalo;

- a manutenção da invulnerabilidade da área da barragem em construção;

- a manutenção do ritmo desta construção sem o atraso de um segundo sequer;

- a manutenção da invulnerabilidade dos equipamentos transportados e da linha de transporte de energia eléctrica;

- infiltrações inimigas no istmo de Tete e em áreas mais a sul e sudeste.

E, apesar de em relação ao complexo de Cabora Bassa o sucesso português ter sido total e de as infiltrações no istmo de Tete e ao norte dos distritos de Vila Pery e da Beira serem reduzidas, a projecção psicológica destas infiltrações, quer em Moçambique quer na então Metrópole Portuguesa, foi enorme.

27. Contudo, a análise fria da situação mostrava que o inimigo sabia que, com as tropas locais que tínhamos em preparação e que podiam e deviam ser multiplicadas, com a finalização da obra de Cabora Bassa no dia desde início previsto - símbolo do sucesso -, com as decorrentes repercussões psicológicas e políticas e com as vantagens tácticas oferecidas pela albufeira, a sua derrota seria um facto.

E concluiu que a única hipótese positiva, que lhe restava, era uma decisão obtida antes da formação de mais Comandos, GE e GEP e antes do termo da construção de Cabora Bassa. Daqui, o seu esforço desesperado no ano de 1973.

Esforço que, perante as suas extensíssimas linhas de comunicação, desde Dar-es-Salaam ou Nashingwea, atravessando toda ou parte da Tanzânia, a Zâmbia, Tete e o seu istmo, até ao centro de Moçambique, e por exceder as suas possibilidades reais, a mais não poderia conduzir do que ao seu esgotamento.

E assim sucedeu. A Frelimo conseguiu as referidas infiltrações nos distritos de Vila Pery e da Beira e esgotou-se.

Por outro lado, ela não tinha qualquer outra alternativa estratégica.

Estes factos podem ser negados. Porém, nem por isso deixam de corresponder à realidade.


Formação de helicópteros em Nangololo.



V. AS POPULAÇÕES, A IGREJA, A ADMINISTRAÇÃO CIVIL E AS FORÇAS ARMADAS


As populações


28. Em guerra subversiva, as populações constituem factor predominante, senão decisivo.

Em Moçambique, elas estavam sujeitas a uma acção inimiga de propaganda intensa que começava em Nova Iorque, na ONU, e terminava em cada tribo e em cada homem. Algumas, localizadas em áreas que contactavam directamente com países adjacentes, suportavam ainda uma acção coerciva, terrorista primária e implacável.

Por outro lado, as populações absorviam também a verdade portuguesa. E muitas delas sabiam da campanha levada a efeito para sua dignificação e promoção e dos estudos e trabalhos de valorização do território, como reconheciam ou acabavam por reconhecer as vantagens do aldeamento.

Mas, talvez acima de tudo, elas mantiveram as suas crenças, hábitos e tendências.

Tudo somado, o facto é que a grande maioria das populações moçambicanas sentia-se portuguesa ou, pelo menos, na luta em curso, opunha-se à Frelimo. Neste aspecto, distinguiam-se a etnia macua, a única inteiramente e só moçambicana, constituindo mais de metade do total demográfico, e os islamizados da orla marítima, também muito numerosos.

Tal fundamentava definitivamente a legitimidade e a moralidade e justiça da contra-subversão.

29. Neste capítulo das populações, merece especial referência o caso dos Grupos Especiais e dos Grupos Especiais Paraquedistas, GE e GEP.

Inicialmente criados com a finalidade de constituírem pequenas boas unidades anti-terroristas e anti-guerrilha, depressa se transformaram em arma de elite na luta global em curso.

Cada GE, cada GEP, formado exclusivamente por voluntários, passou a constituir, na massa populacional de que era emanação e com a qual convivia e agia, centro irradiante de portuguesismo, factor capital de dignificação e promoção, instrumento importante de valorização, exemplo presente do benefício-aldeamento, que usufruía, e unidade de combate eficaz.

Formaram-se mais de uma centena de GE e GEP. Mas a afluência de voluntários era tal que poderiam ter-se constituído alguns milhares de grupos. E aqueles que, nas operações de recrutamento, eram recusados por falta de qualificação ou por excessiva quantidade, afastavam-se sem poderem esconder a sua desolação.

Os GE e GEP estavam em curso de se transformar numa instituição. Instituição que cobriria Moçambique inteiro e que, só por si, seria capaz de lutar e vencer.

Mas, estranhamente, as Autoridades Centrais sempre reagiram mal aos GE e GEP. E, ulteriormente, não se soube ou não se quis aproveitar esta magnífica juventude africana. Magnífica na sua generosidade, na sua pureza, na sua exigência e na sua autenticidade.

Não resisto, ao terminar esta referência, a transcrever a parte final da mensagem de despedida que lhes dirigi:

«GE e GEP!

Muitos têm os olhos postos em vós.

As próprias Forças Armadas a que pertenceis, as populações, o País e numerosos amigos estrangeiros. Todos estes vos olham na expectativa e com esperança e fé na vossa acção e nos vossos feitos.

E o inimigo fala em vós, de Pequim, de Moscovo, de Dar-es-Salaam, de Lusaka, através de constantes emissões radiofónicas ou doutros processos de difusão e propaganda, pela razão única de que vos considera e teme.

GE e GEP tendes já fama a sustentar e dilatar!

Sustentai-a e dilatai-a, pela tenacidade e agressividade no combate contra o inimigo e pelo esforço na ajuda às populações e na justiça e amizade com que as tratais.

Fazei-o para bem de Moçambique e de Portugal, fazei-o como lição ao Mundo».








Ver aqui e aqui


Beira: largada de GEP (Grupos Especiais Pára-quedistas), num curso de paraquedismo.





30. Também neste mesmo capítulo das populações, uma nota particular, esta bem triste, não pode deixar de ser formulada a propósito de certo sector das populações de etnia branca.

Esse sector, ao que se julga auto-denominado de «os democratas de Moçambique», vivia acima de tudo sob o sentimento da hostilidade ao regime de Salazar e de Caetano. E estava ou procedia como se estivesse, não com Portugal, mas sim ao lado da Frelimo.

É quase espantoso como tal sector, vivendo há longo tempo «in loco», conhecendo ou devendo conhecer perfeitamente Moçambique e os seus povos, se não apercebia de que a sua acção apenas contribuía para o drama imenso que foi e é a chamada descolonização.

E, presentemente, ou conseguiram, a tempo, sair de Moçambique com os seus haveres e não podem deixar de classificar-se como colonialistas que ali foram apenas para enriquecer, ou se encontram arruinados, lamentando a sua conduta.


A Igreja


31. A Igreja moçambicana, apesar das grandes dificuldades que teve de enfrentar, particularmente nos últimos anos da luta, comportou-se no seu conjunto, como era de esperar, com sabedoria, prudência e acerto.

Do meio milhar de sacerdotes que a constituía, pouco mais de meia centena, muitos dos quais estrangeiros, agiu contra Portugal, inclusivamente colaborando com a Frelimo.

32. Mau grado este diminuto número, o facto impressiona-me, pois ultrapassa o meu entendimento de católico que alguém, religioso, e sejam quais forem as razões, aceite e muito menos apoie actos terroristas.

Igualmente me impressiona que incidentes infelizes, que nunca foi possível evitar em guerra alguma, não tenham sido relatados por certos sacerdotes na sua verdadeira dimensão, mas, bem pelo contrário, surgissem falsamente aumentados, agigantados mesmo, no que tinham de mais negativo, com propósitos de escândalo oportuno a nível internacional.

E, também, não consigo encontrar explicação para o silêncio de alguns poucos elementos da Igreja, quando, na noite de 15 de Março de 1961 e nos dois ou três dias que se lhe seguiram, foram assassinadas com requintes de primitivo barbarismo, em Angola, mais de 7.000 pessoas, ou quando, recentemente e ainda hoje, se verificaram e verificam massacres, a quente e a frio, no ex-Ultramar Português, que atingiram já o quantitativo de centenas de milhares de pessoas.


A Administração Civil


33. Havia, naturalmente, em Moçambique excelentes elementos na Administração Civil.

Contudo e no seu conjunto, tal Administração estava ultrapassada nos conceitos e nos métodos. Enfermava de ideias, sistemas e modos de actuação que haviam feito o seu tempo mas já se não adaptavam, nem ao sentir e saber dos povos, nem às teses ultramarinas portuguesas já então actualizadas.

34. Não poucos foram os diferendos entre as Forças Armadas, que ali lutavam em todas as áreas de acção, e aquela Administração.

Em determinado momento, porém, a situação melhorou muito com um novo Governador-Geral, que, apercebendo-se desde o primeiro momento da situação, tudo procurou corrigir e muito corrigiu efectivamente.

E a plena harmonia de princípios e propósitos existente entre o Comandante-Chefe e o mesmo Governador-Geral permitiu que a luta fosse conduzida com unidade e que as divergências surgidas, aqui e ali, nos escalões de execução, depressa fossem sanadas.


As Forças Armadas


35. Abordo agora uma das questões mais candentes relativas à luta em África - o comportamento das Forças Armadas.

36. Começo por afirmar que uma luta com a natureza que referi, nas áreas de acção que citei, em regra só pode ser ganha pelo conjunto das forças de um País, lideradas pela política, e raramente apenas pelas suas Forças Armadas. O que estas normalmente podem e devem conseguir é impedir a derrota e conceder à política o tempo bastante, pouco ou muito, para que ela construa a vitória.

Mesmo assim, em Moçambique, as Forças Armadas quase terminaram com a luta em 1970/1971 e, de qualquer modo, concederam à política tempo mais do que bastante - e conceder-lhe-iam aquele que fosse necessário. E, ainda no começo do segundo semestre de 1973, as forças metropolitanas, na sua generalidade, mantinham-se firmes e razoavelmente capazes, e as forças locais cresciam quantitativamente e na sua eficácia.

37. No relativo ao valor das Forças Armadas, um caso especial tem de evidenciar-se.

Ele é o das Tropas de Comandos, incluindo as formadas em Moçambique.

Tais Tropas, desde sempre excelentes, foram melhorando ainda e atingiram os mais altos padrões na sua concepção e maneira de serem portuguesas, na sua capacidade física, na sua coragem e bravura, na sua táctica e técnica, em síntese, no seu patriotismo e eficácia.

E os seus efectivos iam crescendo de acordo com as possibilidades de uma preparação apurada.

Elas acabariam por ser a coluna vertebral irredutível das forças militares.

Também aqui estranhamente, as Autoridades Centrais procuraram limitar o seu emprego em Moçambique e contrariaram francamente a formação dos Comandos moçambicanos. E, mais tarde, inconsciente ou deliberadamente, nada se extraiu da sua superior condição militar.

38. Por mais absurdo e apóstata que pareça, foi a política, a que foi concedido tanto tempo para vencer, que acabou por desmoralizar, desagregar e destruir o conjunto das Forças Armadas, impedindo-as de lhe garantirem mais tempo ainda.

A grande responsável pelo desastre ultramarino português é a política e não as Forças Armadas.

Mas a política é feita por políticos e a responsabilidade da política é a responsabilidade dos políticos.

Dos políticos anteriores e posteriores ao 25 de Abril que não souberam ganhar ou evitar a derrota e dos políticos posteriores ao 25 de Abril que quiseram perder. Naturalmente, que os primeiros são passíveis de acusação de incompetência e os segundos da gravíssima acusação de traição.




Simplesmente, antes e depois do 25 de Abril, havia políticos militares, em número pouco mais que dígito, mas havia-os.

Assim, se no campo civil há políticos a responsabilizar e, eventualmente condenar, no sector castrense não estarão em causa as Forças Armadas mas há também, naquele número pouco mais do que dígito, militares a responsabilizar e eventualmente condenar.

39. Contudo, para julgamento pleno das Forças Armadas, resta esclarecer um ponto.

Este é o de saber se, à política desmoralizadora, desagregadora e destruidora, as Forças Armadas opuseram resistência que as dignificasse.

O processo de corrosão das Forças Armadas vem de longe. Denunciei-o pela primeira vez em 1958, em memorandum dirigido ao Presidente do Conselho de Ministros e em carta enviada ao Ministro da Defesa Nacional. Referi-o com frequência ao longo dos anos e, perante a sua intensificação e o desajustamento da orgânica e preparação das Forças Armadas a uma missão já concretizada, exprimi críticas com especial acuidade a partir de 1964, em lições do Instituto de Altos Estudos Militares e em conferências públicas, mas sobretudo em conversações e documentos reservados.

Semelhantes corrosão e desajustamento, em alguns casos provavelmente inconscientes mas noutros inteiramente premeditados, provinham de governos medíocres, de outros orgãos de soberania desinteressados, de cúpulas militares apáticas, de portugueses pouco motivados, egoístas ou renegados e, ainda, de estrangeiros e internacionais mal informados, errados ou representando interesses inconfessáveis.

A luta das Forças Armadas, em todo aquele tempo, foi muito a da sua sobrevivência ou vivência efectiva, em termos de ética e eficácia.

E, ultimamente, a maioria dos que, quase todos militares, se diziam defensores do prestígio das Forças Armadas, apenas contribuiu, ingénua ou criminosamente, para acelerar o seu colapso.

Perante tão prolongada e tamanha agressão, não é de aceitar qualquer acusação e, muito menos, qualquer propósito de condenação da Instituição Militar.


VI. CONCLUSÃO


40. Pode sintetizar-se tudo o que ficou dito como segue:

a) A luta conduzida por Portugal em Moçambique integrava-se na confrontação entre o neo-imperialismo comunista e o Ocidente, embora tivesse, também, como causa a psicose terceiro-mundista de independência e, ainda, outras causas menores.

À mesma luta pretendia conferir-se um carácter essencialmente de revolta interna, o que, por outro lado, impedia intervenções externas de vulto.

b) A luta conduzida por Portugal em Moçambique era construtiva e defensiva e foi levada a efeito pela forma mais humana, o que já a legitimaria e a tornaria moral e justa.

Na mesma luta, a grande maioria das populações, sentia-se portuguesa ou, pelo menos, opunha-se à Frelimo, o que fundamentava definitivamente a sua legitimidade, moralidade e justiça.

c) Em 1970/1971, a vitória total, na área então chave que era Cabo Delgado, esteve à vista e, talvez mesmo, o fim da luta em Moçambique.

d) Em meados de 1973, a situação mantinha-se em equilíbrio no Niassa; verificavam-se certo recrudescimento da subversão e algumas perturbações sem significado especial em Cabo Delgado; o sucesso português relativo a Cabora Bassa era total, mantendo-se imutável o ritmo da sua construção; a Frelimo tinha conseguido infiltrações no istmo de Tete e nos distritos de Vila Pery e da Beira, reduzidas mas de grande projecção psicológica; as forças portuguesas metropolitanas, apesar do esforço de desmoralização, desagregação e destruição que sobre elas incidia, mostravam-se na sua generalidade firmes e razoavelmente capazes, os Comandos, incluindo os moçambicanos continuavam excepcionais, e as outras forças portuguesas locais cresciam em quantidade e eficácia; a Frelimo encontrava-se esgotada.

Base de guerrilheiros incendiada.







Vista aérea da cidade de Porto Amélia (anos 1960).





Na mesma época, estavam definidas as novas fases da estratégia portuguesa, a defensiva-ofensiva, baseada nos novos Comandos, GE e GEP e no aldeamento, e a ofensiva, que se seguiria, baseada em mais Comandos, GE e GEP, nos efeitos psicológicos e políticos do termo da construção de Cabora Bassa, nas vantagens tácticas que a sua albufeira ofereceria e, também, no aldeamento; a Frelimo não tinha qualquer alternativa estratégica.

É do acabado de referir que vou deduzir uma conclusão.

41. Após o grave erro de Cabora Bassa e apesar dele, qualquer das duas alternativas referidas no número 24, poderia ter terminado com a luta em Moçambique.

Em particular, se as Autoridades Centrais tivessem procedido com um mínimo de acerto, existiria uma estratégia a nível nacional e a respectiva reserva estratégica de forças. E esta reserva permitiria a adopção da segunda alternativa com a sua aplicação, durante três ou quatro meses, em Cabo Delgado, o que conduziria à consumação do triunfo final português em Moçambique. Mas não existia estratégia nacional, nem reserva nacional.

42. Este outro erro igualmente grave deu lugar à conjuntura já descrita de meados de 1973.

Nesta conjuntura, evidenciavam-se os seguintes factores favoráveis a Portugal:

- nenhuma intervenção de vulto de apoio à Frelimo, consequência do carácter interno que, embora falsamente, se pretendia imprimir à luta;

- apoio da maioria das populações à causa portuguesa;

- nova estratégia perfeitamente definida;

- manutenção do valor dos Comandos e acréscimo quantitativo e melhoria qualitativa das forças portuguesas locais;

- efeitos psicológicos e políticos que resultariam do termo da construção de Cabora Bassa e vantagens tácticas da sua albufeira;

- nenhuma alternativa estratégica para a Frelimo;

- esgotamento da Frelimo.

E verificava-se o seguinte factor favorável à Frelimo:

- pequenas infiltrações, mas de grande projecção psicológica, nos distritos de Vila Pery e da Beira.

A conclusão resultante deste quadro é evidente.

Isto é, apesar dos dois erros capitais citados e de tantos outros importantes, embora de menor projecção, o triunfo final português em Moçambique apenas fora adiado de 1970/1971 para alguns anos depois.

Entretanto, e sobretudo após o 25 de Abril um outro factor favorável ao inimigo se generalizou e intensificou, tudo acabando por dominar -  a política absurda e apóstata que, como disse, desmoralizou, desagregou e destruiu o conjunto das Forças Armadas.

Tal deu lugar à paralisação estratégica e mesmo a desonrosas atitudes de inoperância táctica perante o inimigo.

E tudo se perdeu (in África: A Vitória Traída, Intervenção, 1977, pp. 187-249).





Brasão da Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique





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