domingo, 15 de janeiro de 2017

...Nós Somos uma Força Destinada a Vencer...

Escrito por Oliveira Salazar








«Subsistia há três anos e meio a ditadura militar. Obedecia ao programa revolucionário do 28 de Maio de 1926. Este propunha-se restaurar as finanças portuguesas, sanear a administração, garantir a ordem pública; mas destinava-se também a liquidar um passado, criar uma nova mentalidade política e social, reformar o Estado e as instituições; e haveria, para realizar os seus objectivos, de apresentar ao país um novo projecto nacional e de suscitar em torno deste uma nova mística colectiva. Para tudo, imponha-se a definição de prioridades. Mais grave que todos, e urgente, era o problema financeiro: e este recebeu a primeira prioridade. Mas agora, dentro de uma orientação clássica, ortodoxa e severamente aplicada, estavam assentes as bases da sua solução. Resolver a questão do Tesouro e recuperar para o país o crédito perdido constituíam as premissas de uma política: não eram em si uma política. Decerto Salazar confidenciaria a Mário de Figueiredo: "agora, que já temos algum dinheiro, podemos começar a fazer alguma política". No seu discurso às forças militares, de 9 de Junho de 1928, o ministro ordenara os problemas nacionais: o financeiro, o económico, o social, o político. Mais tarde, ao submeter o seu segundo orçamento, recomendara: "a atenção e o interesse do País devem abandonar as preocupações financeiras, e ser atraídos para outros problemas da vida colectiva". Queria o ministro dizer que, esmiuçado o problema financeiro, se lhe deveriam seguir o económico e o social; e que após a resolução destes se deveria abordar a questão política. Nestas afirmações singelas continha-se um programa de governo. Pretende o ministro sugerir que, antes de tudo, haveria que administrar bem, governar bem, assegurar o bem-comum. Apenas mais tarde se deveria enfrentar o problema político: significava com isto que constituíam matéria remota a reforma do Estado e as novas instituições políticas a implantar. Simplesmente, ficava por esclarecer como se administrava bem e em nome de que ideologia ou doutrina se governava bem. De outro modo: em que consistia administrar bem, governar bem, e o que era o bem-comum? Nas suas conferências doutrinais de Lisboa, em 1922, e do Funchal e de Coimbra, em 1925, Oliveira Salazar sustentara que o Estado, ainda que o não quisesse, não podia deixar de ter um conteúdo ideológico, moral, doutrinário. E na sua entrevista às Novidades, de 1 de Maio de 1929, o ministro desvendara os grandes princípios que propunha à ditadura: inventariar os vícios e os erros da sociedade portuguesa, e extirpá-los; destruir a mentira, a hipocrisia e a injustiça social na vida colectiva; liquidar os decadentes que se revelassem incapazes de regeneração; retomar as grandes linhas da civilização cristã e latina; afirmar um nacionalismo extremado; e caldear nesta visão todos os materiais vivos do país, e todos os homens, sem curar se provinham das direitas, das esquerdas ou do centro. Em fórmulas singelas, e acaso herméticas, era um vasto programa. E subentendia pelo menos estes conceitos básicos: fomentar riqueza, para resolver o problema económico; nivelar as classes, mantendo-as sem privilegiar nenhuma, para resolver o problema social; abolir os partidos e cristianizar o Estado, para resolver o problema político. Sem que alguém se apercebesse, Oliveira Salazar retoma as encíclicas de Leão XIII; e, fazendo-as reverdecer e remoçar, mergulha nas raízes ideológicas que são as suas desde os tempos do Colégio da Via Sacra, do CADC, do Imparcial, e da nova escola de Coimbra, proclamada pelo Padre Gonçalves Cerejeira havia uma dúzia de anos. Fora um caminho ideológico e doutrinal para o 28 de Maio: e é uma revolução. Desejava-se esta, sem dúvida. Mas ao cabo de três anos e meio, a ditadura ainda procura como realizá-la. Num aspecto havia acordo entre os homens da nova situação: não se fizera o 28 de Maio para que, depois de esforços e sacrifícios, se regressasse ao passado. E no entanto, quando se interrogavam sobre o futuro, esbarravam no vácuo ideológico: sob o ponto de vista doutrinal, era indigente a ditadura. Oliveira Salazar indica a maneira de preencher esse vazio: e surge competente, lúcido, íntegro, severo: e impelido por uma fé, animado por certezas íntimas, servido por vontade sem quebras, sabia muito bem o que queria e para onde ia.

Porque revolucionária, é radical esta posição. Suscitava apoio, e mesmo entusiasmo, em largas camadas do país. Além da opinião pública, davam-lhe a sua adesão, antes de mais, os militantes católicos, os conservadores liberais, os republicanos moderados. Mercê da actuação de Carmona, as forças armadas mantinham-se fiéis à ditadura. E também a aceitavam muitos monárquicos. Mas avultava igualmente a oposição. Em círculos militares restritos, sobretudo entre os oficiais comprometidos na situação anterior, não deixava de se perguntar com insistência crescente para onde se ia. A alta roda económica e financeira, que receara os tumultos e a insegurança, e uma vez que julgava estarem restabelecidos a ordem e o crédito, hesitava em aplaudir um estado de coisas que vinha cercear os seus privilégios, contrariar os seus hábitos, retirar-lhe posições. E opunham-se por fim todos os saudosistas, os democráticos, os parlamentaristas, os partidários de uma revolução vinda da esquerda.



Teófilo Braga



Destes últimos provinha o combate mais aguerrido. Não haviam desaparecido todos os grandes chefes do regime anterior. Mas muitos estavam inutilizados, ou exilados, ou dispersos. Manuel Teixeira Gomes, antigo Presidente da República, expatriara-se voluntariamente, minado de desgosto e frustração; vivia isolado na Argélia, na cidadezinha de Bougie; abeirava-se dos setenta anos; era um ático, um clássico, um esteta; e reeditava o seu Agosto Azul, escrevia os seus Regressos, dirigia Cartas a Columbano, elaborava as suas Novelas Eróticas. Brito Camacho, acaso o maior homem de Estado potencial do seu tempo, dobrava a esquina dos sessenta e sete, e aposentara-se politicamente: compunha volumes de memórias e dedicava-se à ficção em Gente Vária e Cenas da Vida. João Chagas, homem ardente e jornalista de nervo e turbulento, está morto há quatro anos; António José de Almeida, o grande tribuno romântico e ingénuo, encontrava-se gravemente enfermo; Álvaro de Castro falecera havia pouco; e Teófilo Braga, patriarca das letras, do socialismo, e da república, tinha morrido pelos inícios de 1924, desenganado dos homens, da vida, das instituições. Mas outros grandes nomes mantinham-se activos. Bernardino Machado, duas vezes Presidente da República, abeirava-se dos setenta e oito anos; permanecia activo, todavia; e da sua casa de Beyris, no sul de França, escrevia, conspirava, intrigava. Afonso Costa está exilado em Paris: atrás de si, em Portugal, deixara um rasto de devoção fanática nalguns e de ódio cego noutros: ainda relativamente novo, com escassos cinquenta e oito anos, exerce advocacia entre Londres, Bruxelas e Paris: e do seu quarto do Hotel Vernet, ou do seu escritório no Boulevard Malesherbes e depois no Faubourg de Saint-Honoré, desenvolve uma incansável diligência política para restauração da república parlamentar. Norton de Matos, antigo ministro da Guerra e alto-comissário em Angola, vai nos sessenta e dois anos: e está exilado em Londres. E igualmente irrequietos se encontram no estrangeiro outros vultos democráticos mais novos: José Domingues dos Santos, que fora chefe do governo entre 1924 e 1925; Jaime Cortesão, nos seus quarenta e cinco anos, poeta, deputado, intelectual de primeira grandeza; António Sérgio, apenas um ano mais velho, ensaísta, pensador, nacionalista pedagógico [Quando director da Biblioteca Nacional, Jaime Cortesão reunia habitualmente no seu gabinete um núcleo de amigos: António Sérgio, Raul Proença, Aquilino Ribeiro, entre outros. Esse grupo, que pelo alto talento dos seus membros exerceu grande influência intelectual e mental, ficou conhecido pelo grupo da biblioteca, e encontrou a sua expressão política, literária e ideológica na Seara Nova]; Jaime de Morais, médico, oficial de Marinha, antigo governador-geral da Índia, e que habitava em Madrid; e outros ainda, de menor nomeada. Mas se todos estes se encontravam dispersos pelo estrangeiro, ou em contactos a distância, ou em reuniões ocasionais, outros permaneciam em Portugal. Cunha Leal, nascido como Salazar em 1889, chefiava a União Liberal Republicana, reivindicava o retorno ao parlamentarismo sem os excessos anteriores: mas era um moderado, um homem de lei e ordem: e dirigia o Banco de Angola. E Sá Cardoso, antigo chefe do governo; Adalberto de Sousa Dias, oficial distinto; Hélder Ribeiro, que fora ministro da Guerra e da Instrução; Rego Chaves, que ocupara as Finanças: todos se viam afastados dos seus postos de oficiais, mas não abandonam a oposição. Nesta atitude eram acompanhados por outros, desde Álvaro Poppe a Prestes Salgueiro, desde João Soares a Sarmento Beires, desde Agatão Lança a Utra Machado. E todos se mantinham fiéis a convicções de que não abdicam, a uma luta em que não cedem, até a sacrifícios de que não se eximem.

Simplesmente, estes homens nada possuem agora para oferecer ao país. Propunham de novo um projecto antigo: o regresso ao regime de assembleia. Mas fora este que precisamente conduzira ao 28 de Maio. Para mais, aqueles homens não assumiam, nem o dever lho impunha, a responsabilidade pessoal por erros praticados e vícios permitidos. Todavia, não tomando essa atitude, estavam por esse modo responsabilizando as instituições e a estrutura do Estado. Tornava-se portanto inviável, porque não encontraria aceitação, dar ao país o que este repudiara havia pouco. Também não podiam apresentar-se num rumo político considerado direitista: porque justamente as direitas, desde o início, haviam chamado a si a ditadura: e portanto, se o tentassem, não teriam crédito na opinião pública ou estariam a aderir à situação ditatorial. Desta forma, e com a repugnância de muitos, das suas reuniões de exílio, e dos golpes e conspirações que procuravam concertar com elementos do interior do país, emergia um esboço de república que, se triunfante, caminharia rapidamente para a extrema-esquerda, porque apenas em forças deste matiz político encontraria decidido apoio. Este facto tornava-se patente: e daqui resultava, por outro lado, que algumas forças conservadoras e centristas, que recusavam o seu aplauso à ditadura, não o davam também ao aliciamento que de fora os homens antigos procuravam organizar. Era o caso típico dos monárquicos: uma parte estava com a ditadura, na esperança de que esta repusesse o trono: outra parte, sem essa esperança, mantinha-se alheia, ou até a hostilizava, sem no entanto enfileirar com os homens do sistema anterior. E assim, se o governo ditatorial mantivesse a sua firmeza, administrasse com competência, e formulasse um novo esquema político nacional, poderia condenar ao esgotamento e ao insucesso os adversários».

Franco Nogueira («Salazar. Os tempos áureos - 1928-1936», Vol. II).







«Sigo o princípio de ordenação de Richard Bloch para uma rápida síntese do panorama geral europeu através da sua carreira nas idades: - a primeira formulação duma Europa deve-se à Igreja Católica (na Idade Média o Papa "presidia verdadeiramente a uma autêntica Sociedade das Nações); no século XVIII o espírito enciclopedista e a língua francesa substituem Roma e o latim. O humanismo europeu fixa-se com nítida base francesa. Depois da Revolução, durante o século XIX, explodem os antagonismos. "A Europa não será, dentro em breve, mais que um mosaico e os espíritos lançam-se à procura de uma unidade impossível".

Vem a Guerra. Segue-se aquilo a que chamaram a apoteose do progresso republicano e democrático. Mas logo após o fim do conflito surgem três candidatos à sucessão do velho espírito europeu: - Roma católica; os representantes do fatigado humanismo liberal; e a Internacional Comunista. Aparecem os Estados totalitários e um político da França - Blum, impotente para uma reacção, julga-se apto para uma sentença: "as férias da legalidade".

A democracia representativa e o parlamentarismo entram em crise aguda. Lenine, Primo de Rivera, Pilsudski, Alexandre da Jugoslávia, Mussolini e até Venizelos vão exercer a "ditadura", palavra ainda então limitada como designação de um "fenómeno político".

O próprio Barthélemy, apóstolo do democratismo, acentua que a nossa época é apaixonadamente interessante: "Não é um campo de ruínas; é o estaleiro onde, ao som da vibração das serras, das trolhas e dos martelos, se constrói um mundo". E referindo-se a 1914. "Então podia dizer-se que o futuro parecia pertencer às democracias. Não há hoje a mesma certeza"».

Luiz Teixeira («Perfil de Salazar. Elementos para a história da sua vida e da sua época»).


«Pode dizer-se que Portugal se antecipara, no após-guerra, a romper com o passado. Fora de início simplesmente negativa essa ruptura: antidemocrática, antiparlamentar, antiliberal. Durante dois anos, a ditadura procura administrar: ordem pública, economia nos gastos, honestidade, isenção. Mas não tem um conteúdo ideológico. Por isso o debate com a oposição processava-se em termos clássicos. Se em 1910 o conflito se trava entre Monarquia e República, em 1926 o choque produz-se entre parlamentarismo e antiparlamentarismo. Decerto: já se seguiam com atenção o riverismo espanhol e a crise profunda a que conduzira, o comunismo russo, o fascismo italiano. Mas estes totalitarismos são havidos por experiências nacionais: não tinham assumido o carácter messiânico e de vocação internacional. Por isso, de 1926 a 1930, a luta entre ditadura e oposição gira em torno de um problema simples: restaurar ou não restaurar o sistema democrático e parlamentar. Não está em causa o tipo de sociedade: discute-se a estrutura e orgânica do Estado. Desde 1930, todavia, são alterados os parâmetros da questão, e isso tanto no seio das forças que sustentam a ditadura como no daquelas que pretendem derrubá-la. Entre os homens da União Nacional, da Liga 28 de Maio, da ditadura em suma, estão os conservadores à maneira antiga, os monárquicos tradicionais, os liberais e republicanos moderados, e todos estes, educados à luz de uma Europa que vinha do século XIX, queriam ordem, paz, boa administração; mas não sabiam que espécie de ordem, de paz, de administração. No ângulo oposto, continuam a existir correntes políticas filiadas na democracia parlamentar, no republicanismo clássico, no socialismo histórico. E no entanto também estes a partir de 1930 sentiam que era de momento inviável, sem que soubessem exactamente qual a alternativa, um regresso puro e simples ao quadro político de 1926. Num campo e noutro havia que defrontar as gerações novas - as que despontam para a vida política na década de trinta - que pretendem fazer e afirmar uma opção social e ideológica já à sombra do novo debate europeu. Do lado da ditadura, o vazio ideológico é preenchido por Oliveira Salazar com princípios políticos e sociais cuja raiz é muito anterior a qualquer dos novos totalitarismos, e cuja substância é diferente da destes, e até contrária. Por isso Salazar rejeita-os, e o ideário que tem proclamado tenta manter-se fora de qualquer enquadramento internacionalista. Mas as forças que o rodeiam têm tendência a alinhar, ao menos politicamente se não ideologicamente, com o totalitarismo de direita: porque são comuns alguns valores (ideias de pátria, de ordem, de propriedade privada, de hierarquia social) e sentem naqueles amparo para subsistirem: e ainda porque são nesse sentido impelidas por uma clara opção ideológica afim. Do lado das oposições, há uma aproximação, decerto política mas também não necessariamente ideológica com o totalitarismo de esquerda: porque partilham de alguns valores, são arrastados pela ala das novas gerações que faz uma opção de esquerdas, e ainda porque julgam ver no auxílio destas a possibilidade de destruir a situação que se instala no país. Mas tanto num campo como noutro há homens a quem repugna qualquer dos extremismos: Salazar, chefe da situação que está no poder, repudia a aceitação em bloco do totalitarismo de direita; Cunha Leal, oposicionista tenaz, repele um totalitarismo de esquerdas; aquele por considerar como valor primacial a consciência cristã da pessoa humana, este por considerar sagrada a liberdade individual de expressão e de actuação; e ambos sabem que qualquer dos totalitarismos sufoca e mata aqueles valores. De todo este condicionalismo resulta que a ruptura portuguesa com o passado político e a sua inserção na Europa da década de trinta traduz um compromisso: a ditadura, nas vésperas de se institucionalizar, repudia a essência do fascismo, mas acolhe alguns dos seus princípios; nega a democracia parlamentar, mas aceita algumas das suas formas exteriores; e a oposição rejeita a substância do comunismo, mas não recusa alguns dos seus auxílios; e defende a pureza da democracia parlamentar, mas reconhece as suas limitações.










Esta ruptura portuguesa com as formas políticas do liberalismo do século XIX encontra o seu reflexo na geração que se afirma literariamente durante a década de 1930. Há grandes nomes que são figuras literárias já feitas e em pujança criadora. Na prosa, Aquilino Ribeiro tem vinte anos de letras, e acalmados os seus ímpetos de revolucionário ardente regressa do exílio a Portugal para se tornar o estilista que constrói um mundo de serranos, camponeses, de almocreves, de velhacos pícaros, que corresponderiam aos oprimidos da sociedade; Raul Brandão acaba de morrer, mas a sua obra contemplativa, cheia de humildes e esmagados, mantém a sua influência; e Ferreira de Castro, mais novo cerca de quinze anos, de capacidade literária limitada e usando um humanitarismo convencional, desfruta de largo sucesso ao traçar o quadro dos párias sociais forçados a emigrar. Na poesia, projecta-se o vulto de Teixeira de Pascoaes, com o seu saudosismo; Afonso Lopes Vieira valoriza temas românticos do lirismo tradicional; António Correia de Oliveira cultiva a poesia nacionalista; e em círculos literários restritos cita-se um nome, Fernando Pessoa, que o grande público ignora e que os admiradores consideram poeta genial. Através da prosa, do teatro e da poesia, Júlio Dantas, amaneirado, postiço e formal, atravanca o mundo das letras, e sobrevive ao manifesto anti-Dantas com que Almada Negreiros agredira o convencionalismo literário, havia mais de uma década. Estes nomes, se no plano individual fazem opções políticas e se constituem um produto do após-guerra, não reflectem todavia o debate emocional de que, simultaneamente com o debate político, a Europa está agora prisioneira. Neste particular, é o grupo da Presença que realiza a ruptura. José Régio e António de Navarro, na poesia; Miguel Torga na poesia, no conto, na novela; Adolfo Casais Monteiro na poesia, no ensaio, na crítica; Branquinho da Fonseca na novela e no romance; João Gaspar Simões no romance e sobretudo no ensaio e na crítica - aparecem como vultos fundamentais da Presença. Todos proclamam uma rebeldia de princípio em face de qualquer literatura comprometida; não escondem o seu cepticismo perante os ideais republicanos clássicos, de direita ou de esquerda; a liberdade do espírito criador é reivindicada como sacrossanta; não ocultam a sua revolta contra os valores consagrados; e, se ao seu esteticismo repugna qualquer sistema totalitário, o seu protesto contra a sociedade constituída empresta-lhes uma imagem onde há traços de um socialismo que é ao mesmo tempo liberal e patriótico. Estes homens estão mobilizando as atenções do público leitor: não fazem doutrinação política: mas a sua atitude estética implica uma recusa do ideário do Estado Novo. Na medida em que o grande debate europeu atinge Portugal, as suas simpatias, senão a sua adesão, estão com um regime político de esquerdas, sem que aceitem o seu internacionalismo, e isso dentro de uma sociedade de direitas, sem que partilhem do classicismo destas.

Para além do escol político e intelectual, no entanto, está a massa da nação. Fatigada de caos administrativo, exausta de sacrifícios, ávida de ordem e segurança, ansiosa pelos destinos nacionais, descrente dos políticos e da política, alheia a teses e especulações doutrinárias, a opinião pública encontra a sua exaltação e a sua mística num ideário nacional: o projecto de aventura, de uns ou de outros, não está afectando o cerne do país. Mas aceita a revolução, porque esta constitui um projecto de vida nova, e português».

Franco Nogueira («Salazar. Os tempos áureos - 1928-1936», Vol. II).


«Difícil é apelidarmos o regime português de democracia autoritária, como ao regime fascista chamou o chefe do governo italiano (mesmo a palavra democracia desacreditou-se ou obscureceu-se bastante para que nos importe adoptá-la). A sua característica fundamental há-de vir-lhe da organização corporativa num Estado de forte autoridade, não autoridade proveniente da força mas assente nela, na razão, na bondade, no interesse público, na consciência geral das virtudes do sistema. A moderação nos processos do governo não invalida toda a decisão e rasgo nos objectivos a atingir; não sacrificamos aos "sagrados princípios" a que não reconheçamos verdade e utilidade prática; nada nos limita senão os princípios superiores que regem a vida, a justiça e a caridade, devidas a todos os homens, e o bem da Nação [1936].

Não temos posto de lado os erros e vícios do falso liberalismo e da falsa democracia para abraçarmos outros que podem ser ainda maiores, mas antes para reorganizar e robustecer o País com os princípios de autoridade, de ordem, de tradição nacional, conciliados com aquelas verdades eternas que são, felizmente, património da humanidade e apanágio da civilização cristã [26 de Maio de 1934].

A estrutura filosófica do sistema não permite, no entanto, confusões: o conceito de limitação do Estado pela moral e pelo direito na ordem interna e pelos tratados e convenções livremente aceitos na ordem internacional; a moderação dos processos políticos; um nacionalismo saudável sem agressividade; uma extensa base moral em todas as manifestações da vida pública ou particular; o respeito pela pessoa humana e pela realização dos seus fins superiores; a cultura da vocação civilizadora da Nação que por isso mesmo se dá uma colaboração largamente humana; o espírito e tendência educativa das instituições públicas - são traços que, mesmo antes da Constituição de 1933, permitiram distinguir de ditaduras militares ou de partidos, esta ditadura a que, se me fosse permitido, chamaria ditadura da razão ou da inteligência [1936].






Estamos no limiar duma época, envoltos ainda em sombras - aurora de novo dia - e sem mesmo nos poderem servir de guia modelos estranhos pela diversidade de algumas concepções fundamentais. Eis a primeira dificuldade.

Nenhum de nós afirmaria em Portugal a omnipotência do Estado em face da massa humana, simples matéria-prima das grandes realizações políticas. Nenhum de nós se lembraria de considerá-lo a fonte da moral e da justiça sem que às suas decisões e normas se sobreponham os ditames de uma justiça superior. Nenhum de nós ousaria proclamar a força mãe de todos os direitos sem respeito pela consciência individual, pelas legítimas liberdades dos cidadãos, pelos fins que se impõem à pessoa humana. Nenhum de nós - nacionalista e amante do seu País - faz profissão de nacionalismo agressivo, exclusivo, odioso, antes, se se apega à noção de pátria, é que compreende, por instinto do coração e por imposição da inteligência, que o plano nacional é ainda o melhor para a vida e os interesses da humanidade. E no entanto, fugindo da divinização do Estado e da sua força, em nome da razão e da história, nós temos de realizar o Estado forte, em nome dos mais sagrados interesses da Nação; temos de fortalecer a autoridade, desprestigiada e diminuída, diante das arremetidas de mal compreendida liberdade; temos de dar à engrenagem do Estado a possibilidade de direcção firme, de deliberação rápida, de execução perfeita [13 de Janeiro de 1934]».

J. P. D'Assac («O Pensamento de Salazar extraído dos seus Discursos»).


«[...] os políticos portugueses exilados não desistem da sua actividade. Apelos são dirigidos a governos e organizações internacionais. São praticadas diligências junto de personalidades estrangeiras. No outono de 1931, idos dos diferentes locais, reúnem-se no sul de França, na casa de Bernardino Machado em Beyris, elementos de diversos matizes ideológicos. Estão Afonso Costa, José Domingues dos Santos, Cunha Leal, Jaime Cortesão, Jaime de Morais, outros ainda. Todos têm a queda da ditadura em Portugal como objectivo supremo, e a curto prazo. Para a luta, preconizam dois organismos: o primeiro actuaria dentro da legalidade, à luz do dia, e seria a Aliança Republicana-Socialista; o segundo, a criar, seria estabelecido no estrangeiro com o fim de desenvolver dentro das fronteiras portuguesas uma acção clandestina. Ao mesmo tempo, propõem-se angariar fundos para auxílio àqueles a quem fora fixada residência em pontos afastados no território nacional. Mas a polícia de informações está atenta; é escasso o apoio interno e externo que os exilados reúnem; e dos seus propósitos revolucionários são estéreis os resultados.

[...] Dois decretos são examinados em Conselho de Ministros. Pelo Ministério da Justiça, Manuel Rodrigues submete um diploma que regula e agrava a punição de delitos de carácter político; e pelo Ministério do Interior Albino dos Reis faz aprovar um outro diploma que, extinguindo a polícia de informações, cria e organiza a Polícia de Defesa Política e Social. Mais importante, no entanto, e mais difícil, é o problema da amnistia que o novo governo, em vésperas de dotar o país com nova Constituição, pensa conceder aos adversários políticos. Divergem os critérios: uns são favoráveis a uma amnistia larga, liberal, quase completa, salvo para os acusados de crime comum; mas outros, receosos pela segurança ou animados por ideologia extremista, manifestam-se por uma amnistia reduzida, ou até contra qualquer concessão. Circulam entre os membros do governo listas de nomes que deveriam ser exceptuados de qualquer perdão. A Salazar é proposta pelo Ministério do Interior uma lista de cinquenta e oito nomes: todos estes deveriam continuar banidos no exílio. Mas o chefe do governo corta os nomes de dez homens, que assim ficam inteiramente livres: entre estes estão Jaime Cortesão, intelectual de primeira grandeza; José Domingues dos Santos, que fora ministro do Trabalho nos dois gabinetes Sá Cardoso e nos de Liberato Pinto e Bernardino Machado, e chefe do governo, por cerca de três meses, entre 1924 e 1925; Moura Pinto, antigo oficial do Exército; João Camoezas, antigo deputado; outros ainda. A lista final, aprovada como anexo ao decreto, contém cinquenta nomes, de homens que não são amnistiados e que continuarão proscritos por dois anos [Decreto n.º 21 943, de 5 de Dezembro de 1932. À última hora foram acrescentados mais dois nomes - Manuel António Correia e Júlio Faria Lapa - que não constavam da lista submetida a Salazar]. Entre eles estão Bernardino Machado, Afonso Costa, Sousa Dias, Agatão Lança, Jaime de Morais, Sarmento de Beires, Pestana Júnior, Prestes Salgueiro, Utra Machado. E o articulado do decreto estabelece a cessação de procedimento criminal contra os indiciados na altura, e considera expiada a pena aos que se encontrem presos, que são imediatamente libertos [O decreto aplicava-se aos que por crimes políticos estivessem incursos nos arts. 1.º e 2.º do decreto n.º 21 942, também de 5-12-1932]. Por outro lado, grandes nomes do regime parlamentar, que se encontram deportados em território nacional, deixam de estar submetidos a quaisquer restrições. Regressam a Lisboa ou ao continente Hélder Ribeiro, João Soares, Rego Chaves, Sá Cardoso, Cunha Leal, Maia Pinto. Do exílio, a pouco e pouco tornam ao país Norton de Matos, António Sérgio, entre outros; mas alguns, como José Domingues dos Santos, preferem continuar no estrangeiro».

Franco Nogueira («Salazar. Os tempos áureos - 1928-1936», Vol. II).







«A Inglaterra usa a influência nos jornalistas portugueses para reproduzir panfletos e literatura de propaganda em casos de emergência. A PVDE sabia que as tipografias do Jornal do Comércio e das Colónias, por exemplo, eram utilizadas para reproduções clandestinas de panfletos de propaganda para Portugal e para Espanha, que eram em seguida distribuídos por redes próprias para o país vizinho.

As editoras eram outro dos alvos da propaganda inglesa, que as procurava influenciar através de testas de ferro. Algumas editoras eram conhecidas pela sua declarada parcialidade anglófila, como acontecia com a "Parcela A.M. Pereira", que tinha várias colecções de autores portugueses e traduções que eram propaganda disfarçada. Noutros casos, a intervenção aliada tinha de ser mais directa, como aconteceu com a "Bertrand" em 1942.

O adido de Imprensa inglês mantinha contactos regulares com a Censura, pela qual passavam os artigos dos correspondentes locais e os cedidos aos periódicos portugueses. No geral, as relações eram consideradas satisfatórias e no fim da guerra mesmo boas, excepto durante as eleições de 1945 em Portugal, quando muitos dos artigos dos correspondentes aliados são mutilados.

[...] As boas relações tinham o seu preço e as suas vítimas. Uma delas foi Armando Cortesão, um português ligado à oposição que trabalhava na BBC e que é despedido sem explicações em 1942. A razão é simples: certas cartas de Armando Cortesão criticavam a BBC por não atacar o regime português e foram apanhadas pela PVDE em Portugal; imediatamente a PVDE pede o seu despedimento e a Censura passa a ter uma atitude menos favorável aos ingleses como forma de pressão, até que estes cedem. O FO foi informado do facto e tanto Williams como Kirkpatrick "lamentam" o sucedido, mas são de opinião que Armando Cortesão deve ser despedido, sem o informarem das verdadeiras razões. FO 371 31113 C8635».

António José Telo («Propaganda e Guerra Secreta em Portugal - 1939-45»).


«[...] não findam as actividades dos exilados em Espanha: e agravam-se as relações com Madrid. Sobre o armamento fornecido àqueles, relatam pormenores António Ferro, Vasco Borges, Pereira da Rosa; e segundo Abel de Andrade a Maçonaria não seria alheia ao processo. Salazar manda fazer em Madrid os devidos reparos e protestos. E combina com José Alberto dos Reis o debate do assunto na Assembleia Nacional. Todavia, em Espanha o caso transpira dos bastidores para a arena política. Em fins de Março, o governo espanhol é interpelado no parlamento; e os grandes nomes das direitas espanholas - Gil Robles, José António Primo de Rivera, Goicochea - acusam Manuel Azaña e Casares Quiroga, ministros da Guerra e do Interior, de promoverem uma revolução em Portugal e de estarem a armar, municiar e subsidiar emigrados portugueses. E exibem peças comprovativas, emanadas de um tribunal espanhol, que procedera a averiguações. Azaña e Quiroga defendem-se; mas, subjugado pela evidência, o parlamento espanhol aprova por grande maioria os documentos acusadores vindos do tribunal. Em Lisboa, dois dias mais tarde, Mário de Figueiredo levanta o problema na Assembleia Nacional, em aviso prévio: desejava tratar da "actividade criminosa desenvolvida em Espanha pelos emigrados portugueses e dos prejuízos que dela podem advir para o sistema das boas relações que importa manter entre os dois países da Península". Desperta o debate vasto interesse na opinião pública; mas a votação anterior do parlamento espanhol retira-lhe o conteúdo emocional. Figueiredo distingue entre a nação espanhola e alguns homens: e só estes eram os responsáveis. Dada a atitude da câmara espanhola, as boas relações entre os dois países poderiam continuar como "sempre tem existido, desde há séculos". Figueiredo, todavia, não se exime de recordar e vincar os factos: "as bombas foram fornecidas pelas estâncias oficiais espanholas, superiormente cobertas pelo Sr. Azaña"; os emigrados portugueses dispunham de um posto de rádio na fronteira; e Moura Pinto, Jaime Cortesão e Jaime de Morais haviam obtido, com aprovação de Madrid, meio milhão de pesetas do banqueiro Echevarrieta. E quanto aos emigrados portugueses? Esses "procuram o apoio de homens que em Espanha representavam a ideia federalista; procuram ligações com pessoas que querem desmembrar a Espanha para nela incorporarem Portugal", e isto "é um crime de alta traição à Pátria, um acto miserável e antinacional". Garcia Pulido, Vasco Borges, Cancela de Abreu, Lopes da Fonseca intervêm em apoio e aplauso a Mário de Figueiredo. E Cancela de Abreu apresenta uma moção: esta repudia todas as modalidades de federalismo ibérico, nota as decisões do parlamento espanhol, condena a acção dos emigrados portugueses e urge o governo português a apurar da sua culpabilidade, e formula o voto de que no futuro "nenhuma sombra volte a atingir a amizade entre Portugal e a Espanha e as cordiais relações entre os seus governos". Recolhe a moção a unanimidade da Câmara».

Franco NogueiraSalazar. Os tempos áureos - 1928-1936», Vol. II).









...NÓS SOMOS UMA FORÇA DESTINADA A VENCER...


Legionários! Além do que possa significar a minha presença entre vós - pouco ou muito, vós o avaliareis - para mais não vim que para ouvir, gritada a toda a força dos pulmões sadios e do entusiasmo viril, a palavra que sôbre tudo o que pudesse dividir, nos une na mesma aspiração, na mesma luta e cremos firmemente que na mesma vitória: Portugal! Não vim para mais nada, repito, mas porque vim, terei de dizer algumas palavras, muito poucas e certamente desnecessárias para quem não precisa de encorajamentos e revela tal consciência do dever que prescinde mesmo de louvores.

Nós não somos uma força destinada só a batalhar; nós somos uma força destinada a vencer e a manter intacta a vitória; e é por isso que em cada peito legionário, em cada bandeira, em cada quartel ou acampamento há-de poder ler-se, gravada por vontade de aço, esta legenda simples: aqui não reside o temor. Vieira escreveu magistralmente: «a audácia é a metade da vitória e quem temeu ao inimigo já vai vencido». Eis onde eu veria um risco enorme; por isso, antes de apelar para o sentimento, não fujo, segundo a minha predilecção, a fazer apelo à inteligência, e desta solicito as razões de não temer.

Uma das maiores fontes do temor é a ignorância do inimigo: não saber quem seja, qual o seu número, a sua força, as armas de que dispõe, as suas posições, a direcção dos seus ataques paralisa ou enfraquece os mais esforçados ânimos. Nenhum general se arrisca a dar batalha sem ter colhido e estudado as informações mais minuciosas; e de não serem suficientes ou precisas se arriscam ou perdem muitas vitórias.

Ora a primeira vantagem que temos na luta e a primeira razão de não temer é que o inimigo - o grande inimigo a cuja sombra se agitam alguns aliados ocasionais que importa não confundir com ele - é perfeitamente conhecido; e neste ponto não tivemos nunca as ilusões que embalaram muitos outros. Nunca nos iludiu quando se esforçou por parecer pacifista em Genebra, condescendente em Londres, humanitarista em Espanha, cordato nas chancelarias, civilizado nas cortes europeias. E porque nunca nos iludiu, nada perdemos nos negócios e financiamentos, não fomos obrigados a dar foros de legitimidade à sua propaganda oficial, não sofremos o desaparecimento de homens entregues confiadamente à nossa protecção, nem sentimos o desgosto de ver passar diplomatas das recepções das Necessidades para o cadafalso dos criminosos ou dos desgraçados.

O inimigo é conhecido e não sei por que espécie de trágica cegueira se não viu que tem de sê-lo por necessidade da sua mesma existência, por lógica irremovível dos seus princípios, quando não pela natural força de expansão dos erros que acordam, no espírito dos homens, baixos instintos adormecidos ou acorrentados por séculos de civilização.

Mas não deixando já lugar a quaisquer dúvidas, atirando fora as confusões possíveis, desistindo de diáfanas separações estabelecidas e fingidamente aceites entre orgãos de Estado e organismos revolucionários, o homem que parece depositário do maior poder efectivo no Império russo, claramente, expressivamente retoma a tese da revolução universal para defesa e consolidação dos sovietes, e prega e promete ajudar a luta civil em todos países para a implantação do comunismo. Temos de reconhecer-nos obrigados!

Andam por aí uns pobres homens que por já não saberem onde hão-de ter as mãos as estendem pressurosos aos operários, aos proprietários rurais, aos donos das empresas, aos tímidos conservadores e até aos católicos e a velhos caudilhos monárquicos. E é bom que por inequívoca confissão dos responsáveis saibam todos donde vem a ordem para a guerra civil, donde é inspirado o internacionalismo contra a Pátria, o domínio estrangeiro contra a independência da Nação, a propaganda contra a beleza e o valor da vida, o ódio a Deus e ao próximo, a ditadura execranda da ininteligência e da insensibilidade moral. O inimigo é pois conhecido, e mais do que conhecido, confessado - «tu o dizes». E aqui temos a primeira razão para não o temer.




Conhecendo o inimigo e o alvo dos seus ataques, importa ter igualmente presentes a qualidade e têmpera das suas armas.

O inimigo tem do seu lado dinheiro com que procura comprar consciências e armamento, técnica com que busca vencer as dificuldades, a eterna fascinação do mal, absoluta independência de regras morais, o ódio - ódio ao homem, ao pai, ao filho, à mulher, à inteligência, à cultura, à bondade, o ódio que parece não cansar, que parece não se satisfazer nunca e desdobra sobre as nações desprevenidas o manto negro da crueldade e do terror. Armas temíveis, sem dúvida; melhores que as nossas? Não o direi: sobretudo diferentes.

A guerra não é estado permanente mas colapso da paz; o ódio não pode ser eterno, pois os corações anseiam pelo amor e rendem-se facilmente à bondade; o terror nem sempre paralisa as vontades: do paroxismo do medo brotam com o desprezo da vida rasgos de heroísmo. Para sustentar a crueldade, o comunismo tem-se visto obrigado a substituir a cada passo os algozes, convertendo estes em vítimas; e montes de cadáveres não têm evitado que sobre eles muitos outros tenham de ser lançados também.

Parece a alguns que o nosso poder ofensivo é afectado exactamente porque nem pregamos o ódio nem prescindimos de nobreza e dignidade na luta. Mas seria incompreensível que adoptássemos os mesmos processos que combatemos; nem a experiência deixou de revelar ainda a força, o ascendente especial de ter sempre razão. Fazemos constantemente apelo a sentimentos superiores, a motivos elevados de acção e de luta; haurimos da consciência recta a força com que batalhamos e tiramos das próprias veias - não de outras - o sangue dos sacrifícios; e certamente a Providência abençoa estas armas, pois temos sempre vencido.

O último motivo de não temer é conhecermos as posições que o inimigo ocupa e aquelas que se esforça por ocupar. Ele está em muita parte, sem dúvida, e até em nós mesmos, se não sabemos medir a gravidade desta hora nem cumprir todo o nosso dever. Está o inimigo ainda na repartição pública, está ainda no ensino, está ainda na imprensa, está ainda no teatro e no cinema, no boato, na má língua, no desalento dos derrotistas. Fixa-se ou muda conforme as circunstâncias e as necessidades; vai do campo para a cidade e da cidade para as aldeias em segredos alvoraçados, e propagandas dissolventes, em resistências e más vontades. Neste ou naquele momento ora se manifesta aqui, ora surge de além. Simplesmente nós também estamos, estamos sempre e em toda a parte. Estamos sempre na vigilância, na contradita, na acção; estamos em toda a parte - nos cafés, nos teatros, nos serviços públicos ou particulares, nos comboios, nas serras, nos campos, nas cidades, nas praças e nas ruas, e depois que nos mostrámos dispostos a ocupá-las, nunca mais o inimigo conseguiu apoderar-se delas.

Como poderia pois haver medo, se não há razão para o temor? E como poderia o inimigo vencer-nos, se não temos medo dele? - Eis porque desde o princípio me pareceram inúteis estas palavras.

Legionários! Quem vive? - PORTUGAL!

... O Portugal de nossos avós - de Afonso Henriques, de D. João I, do Infante de Sagres, dos Gamas, dos Albuquerques, de Camões; dos descobrimentos, da restauração; conquistador de reinos, fundador de impérios, pregoeiro e defensor nos outros continentes da civilização latina e da palavra de Cristo!

Legionários! Quem vive? - PORTUGAL!

... O Portugal de nossos pais, explorador de sertões, fundador de colónias a repetir-se e multiplicar-se pelo Mundo - pedaços da sua alma, da sua carne e do seu sangue - tirando dos revesses da fortuna, dos azares da sorte e até da desconsideração alheia a revolta e orgulho que nos transmitiu a nós!

Legionários! Quem vive? - PORTUGAL!

... O Portugal de vossos filhos, redimido no sacrifício e na dor, nas privações, no trabalho, na angústia destes calamitosos tempos, mas salvo, honrado, belo, forte, engrandecido, como o divisamos já na aurora de amanhã! (Alocução aos Legionários, no Ginásio do Liceu Camões, em 11 de Março de 1938, in Discursos e Notas Políticas, III, 1938-1943, Coimbra Editora, pp. 15-22).






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