segunda-feira, 15 de maio de 2017

Guerra e Política

Escrito por Kaúlza de Arriaga





«O sentido geral da remodelação governamental de Agosto de 1958 acabou por conferir um novo peso na estrutura política e militar da nação portuguesa a um grupo de militares que considerava essencial a adopção de um conjunto de reformas no seio das Forças Armadas. Ao chegarem ao Governo, Botelho Moniz, Almeida Fernandes e Costa Gomes constataram, de imediato, aquilo que Almeida Fernandes definiu como o estado de "total ineficiência" em que se encontrava o Exército. Essa ineficiência, adiantava o novo ministro, traduzia-se em "todos os campos". Desde logo, a nível do pessoal, "onde se registavam deficiências de enquadramento, no que respeita a oficiais - principalmente subalternos -, graduados e especialistas de toda a natureza". Depois, no que dizia respeito à instrução, "onde, à falta de instrutores se juntava um exíguo número de tempos de instrução individual ou de combate e de preparação de especialistas" e ainda "a falta de materiais de instrução". Quanto ao material ao dispor do Exército, "era grande a falta de viaturas de transporte, de meios de transmissão, de armas automáticas e respectivas munições, material de bivaque, material sanitário, sobressalentes, etc.". A nível financeiro, "a estrutura e a mecânica orçamental das forças terrestres da Metrópole e do Ultramar e a carência de verbas exigiam uma profunda remodelação de conceitos e rotinas". Por fim, eram imperiosas as reformas "no campo da organização, desde o próprio Ministério do Exército à organização territorial do exército na Metrópole e no Ultramar, cujos conceitos se achavam inteiramente desactualizados", primando ainda, pela ausência, as "medidas a tomar para fazer face às ameaças de uma guerra subversiva".

Era, no fundo, um conjunto de situações que, muito naturalmente, chocava homens como Botelho Moniz, Almeida Fernandes e Costa Gomes que, ao longo da sua carreira, tinham tomado contacto com modelos organizativos e de funcionamento de Forças Armadas de diferentes países. Como identificou o historiador António Telo, tratava-se, na verdade, de representantes de uma geração de oficiais que contava quase sempre no seu currículo com uma passagem mais ou menos longa pelos Estados Unidos da América ou com "um estágio nos orgãos da NATO", instâncias que não só lhes incutiram uma "mentalidade bastante mais tecnológica do que a anterior e com um culto anormal da eficácia", como também lhes permitiram confirmar "na prática o abismo que existe em relação a Portugal". Ainda de acordo com António Telo, a "procura de eficácia" que se tornou premente para estes homens acaba por ser "o elemento mais dissolvente e subversivo de todos", minando a "orgânica tradicional" das Forças Armadas, "pouco dada a mudanças e corporativa". O novo quadro mental que os oficiais foram encontrar nas estruturas da NATO implicava, por exemplo, "a valorização da qualidade, a alteração dos factores de promoção, a mudança dos esquemas de carreira, a multiplicação das acções de formação, a concentração dos recursos nos organismos que produzem, tudo factores pouco compatíveis com a orgânica portuguesa tradicional".

[...] Não surpreende, assim, que uma vez chegados ao Governo, estes militares tenham posto em acção um vasto plano de reformas tendentes a solucionar os problemas encontrados e a dotar as Forças Armadas portuguesas dos meios, da organização e da eficácia que se pretendia. A principal área de actuação de Costa Gomes, neste contexto, foi a da organização das chamadas forças ultramarinas. Costa Gomes recorda que a ideia predominante quando a nova equipa chegou ao Governo era a de que estaria iminente uma Terceira Guerra Mundial centrada na Europa. Esta opinião era partilhada, por exemplo, pelo anterior ministro da Defesa, Santos Costa que, após uma curta visita a Angola e a Moçambique, tinha promovido uma reorganização das "forças coloniais" na qual se encontrava prevista "a possibilidade de as províncias de Angola e Moçambique mandarem uma divisão cada uma para combater na Europa, nessa previsível Terceira Guerra Mundial". Conforme recorda Costa Gomes, os novos responsáveis governativos não concordavam com os princípios que enformavam a legislação de Santos Costa. A evolução do panorama internacional, marcada pelo conflito do Suez e, acima de tudo, pelo deflagrar da guerra na Argélia, tinha contribuído para "alterar essa mentalidade dominante, mostrando que o Terceiro Mundo era o palco da guerra fria".

A tarefa de substituir o plano de Santos Costa relativo ao dispositivo militar nos "territórios ultramarinos" iria recair sobre os ombros de Costa Gomes, para quem o plano de Santos Costa preconizava uma organização das Forças Armadas portuguesas que era verdadeiramente "inadequada" para fazer face ao tipo de guerra que Portugal acabou por ter de enfrentar. A ideia base que deveria presidir à reorganização das forças militares portuguesas, na opinião de Costa Gomes, era a de que "a independência ou a autodeterminação dos territórios ultramarinos era um fenómeno que não poderíamos evitar". Por conseguinte, a missão das Forças Armadas nos territórios deveria ser, muito simplesmente, a de "garantir nesses territórios uma paz ainda que relativa". Para o fazer seria necessário reforçar muito substancialmente o número de tropas portuguesas estacionadas nos territórios e também modificar por completo os seus métodos de instrução de modo a prepará-las para uma eventual "guerra contra-subversiva". Foi com esta convicção que o então subsecretário de Estado do Exército veio a proceder à reorganização militar dos vários "territórios ultramarinos", anulando aquela que tinha sido decretada por Santos Costa em Abril de 1958».

Luís Nuno Rodrigues («Marechal Costa Gomes. No centro da tempestade»).










«[...] a 16 de Fevereiro de 1961, entra em Lisboa o Santa Maria. Há pela cidade, e até pelo país, uma atmosfera de alívio, de contentamento. No cais, congrega-se multidão que alastra pelos edifícios, pelas imediações. Acompanhado de Pedro Theotónio e de Quintanilha Dias, Salazar vai a bordo. Inspecciona o navio. Informa-se em pormenor do ocorrido durante a aventura. Conversa demoradamente com o comandante Simões Maia. Faz ponto de cumprimentar a tripulação. Solicitado para fazer declarações à imprensa e à rádio, Salazar recusa. Instam os ministros: é preciso proferir uma simples palavra, uma frase. Salazar diz para os jornalistas e a rádio: "Temos de novo o Santa Maria connosco. Obrigado, portugueses". De outra forma, manifesta-se o presidente da República: a título póstumo, o piloto Nascimento e Costa é condecorado com a Torre e Espada, cujas insígnias Américo Thomaz depõe sobre a urna, quando do funeral. Mas no dia seguinte ao da chegada do Santa Maria, o ministro da Defesa Nacional, Botelho Moniz, avista-se com outras personalidades do regime, havia decidido forçar Salazar a liberalizar a sua política, tanto na metrópole como no ultramar.

[...] Um facto, no entanto, lembra aos mais atentos que algumas preocupações existem nos responsáveis: uma missão militar, encabeçada pelo general Beleza Ferraz, chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e em que participam o general Câmara Pina, chefe do Estado-Maior do Exército, e outros oficiais, desloca-se a Angola para conferenciar com os comandos militares locais. [Faziam também parte da missão os tenentes-coronéis José Bettencourt Rodrigues e Pinto Resende e o major Pedro Cardoso]. Num plano mais amplo, e sem que transpire para o grande público, o ministério do Exército, na consciência de que se desenrola uma crise, toma uma atitude nítida. Em circular aos comandos, diz: antes da crise, ainda seria lícito apreciar a situação vigente; mas hoje a "conjura internacional" pretende "impor às nossas províncias ultramarinas uma independência que elas não desejam e reduzir a Metrópole à condição de Estado vassalo ou simples província duma Ibéria unificada"; por isso, há que ter consciência que "é a Portugal que atacam", é "Portugal que pretendem abater e destruir como nação independente"; e assim todos os portugueses devem estar "do lado onde só há portugueses".

[...] No dia 6 de Março de 1961, Botelho Moniz e Elbrick almoçam juntos, a sós, e o embaixador americano desvenda ao ministro que tem instruções para uma firme diligência com o objectivo de forçar o chefe do governo a alterar a sua política africana. E na verdade, no dia seguinte, 7 de Março, o embaixador dos Estados Unidos, solicita uma entrevista com Oliveira Salazar, e pede urgência. Pergunta o ministério dos Estrangeiros: de que assunto deseja o embaixador ocupar-se? Responde Elbrick: está actuando por instruções pessoais do presidente Kennedy e apenas ao presidente do Conselho pode revelar a matéria. Elbrick chega acompanhado de Xanthaky, conselheiro e intérprete, e apresenta-se de semblante grave. É no gabinete do chefe do governo, em S. Bento. Desempenha-se o enviado americano do seu encargo. Diz, em síntese: estão preocupados os Estados Unidos com a África, e com os perigos de uma implantação comunista no continente, que importa ao mundo livre evitar; o presidente Kennedy pensa que a auto-determinação e a independência dos países africanos constitui a maneira mais eficaz de barrar o caminho à União Soviética; o nacionalismo africano é aliás irresistível, e a descolonização é um fenómeno inevitável, além de corresponder aos ideais de liberdade e dos direitos humanos; neste particular, o presidente Kennedy está especialmente apreensivo com a situação em Angola e, dadas as cordiais relações luso-americanas, muito desejaria que aquela se resolvesse à luz dos princípios geralmente aceites; de outra forma, poderá suscitar-se na ONU uma situação muito embaraçosa para Portugal, não sendo possível contar com o apoio dos Estados Unidos; apenas uma declaração de intenções, pública e formal, a fazer urgentemente pelo governo português, e anunciando não só reformas como a aceitação do princípio de auto-determinação e de independência para aquele território, poderá prevenir dificuldades de toda a ordem; se essa declaração não for feita, será de esperar um ponto crítico nas relações entre os Estados Unidos e Portugal, de que não caberá qualquer responsabilidade ao governo de Washington; e por último, como a independência de Angola deverá causar perturbações à economia portuguesa, os Estados Unidos declaram-se prontos a estudar com outros países da NATO a melhor maneira de compensar financeiramente aquelas perturbações. Salazar escuta com atenção concentrada. Elbrick conclui a sua comunicação. Entrega um muito curto memorial, que contém uma breve síntese. Oliveira Salazar pergunta se o embaixador esgotou as suas instruções ou tem mais alguma coisa a acrescentar. Mais nada, declara Elbrick. Levanta-se o chefe do governo, dirige-se à porta do gabinete, que abre. "Ouvi atentamente e agradeço-lhe a sua visita. Muitos cumprimentos para o Presidente Kennedy. Muito boas tardes, Senhor Embaixador". Saem os dois americanos. Nos corredores, diz Xanthaky para Elbrick: "Nunca mais ouviremos falar desta diligência nem jamais obteremos qualquer resposta".









Na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Outubro de 1962: Franco Nogueira, Vasco Garin, Pedro Theotónio Pereira, Pinto Bull, António Patrício, Milton Moniz e António Bandeira.






Em Nova Iorque, continua a campanha da Libéria para uma reunião do Conselho de Segurança contra Portugal. E nos círculos afro-asiáticos da ONU, e numa larga parte da imprensa, traça-se de Angola um quadro dramático: o território está em revolta; a repressão das autoridades portuguesas é selvática; jorram torrentes de sangue; está assim comprometida a própria paz mundial. No Brasil, Humberto Delgado apoia a reunião do Conselho, e defende a independência do Ultramar português e a integração de Goa na União Indiana. Por Lisboa, numa escala entre dois aviões, faz uma breve paragem Kwame Nkruma, presidente da República do Gana, e arauto da luta antiportuguesa; [Na altura, o Gana apresenta na Organização Internacional do Trabalho uma queixa contra Portugal, acusando este de prática de trabalho forçado em Angola. Portugal aceitou o inquérito, e este foi conduzido por uma comissão internacional presidida por um juiz senegalês; do inquérito, conduzido com minúcia em Angola, saiu Portugal totalmente ilibado. Então, e usando exactamente os mesmos trâmites processuais, Portugal apresenta na OIT uma queixa contra a Libéria, com uma acusação formulada nos mesmos termos. A OIT tinha de a fazer prosseguir contra aquele país como o fizera contra Portugal; este assim o exige; e assim se faz. Mas então há alarme nos círculos afro-asiáticos da OIT e da ONU; ficam em causa as grandes plantações estrangeiras na Libéria, o governo deste país lamenta-se que a falta de transportes não lhe permite cooperar com a comissão a ser designada pela OIT, etc. Conclusão: a queixa portuguesa é arquivada; mas a Portugal é dada a garantia de que, na OIT, nunca mais se pronunciará uma acusação contra Portugal no Ultramar]; dá um passeio pela cidade; e aos funcionários portugueses destacados para o acompanharem, manifesta em termos tocantes profundo interesse pela saúde de Oliveira Salazar e pede-lhes que transmitam a este os seus cumprimentos e desejos de longa vida. Por seu lado, o governo de Lisboa protesta em Nova Iorque, junto da presidência do Conselho de Segurança, contra o pedido da Libéria, que considera ilegal, não justificado, e violador do n.º 7 do art.º 2.º da Carta, que proíbe qualquer interferência nos assuntos internos dos Estados. Sem embargo, e no caso de se efectivar a reunião, Portugal deseja participar nos debates. Dias depois, a 10 de Março de 1961, o Conselho de Segurança inscreve efectivamente a questão de Angola na sua ordem do dia. E o ministério do Ultramar, num comunicado, sublinha a existência de um plano internacional de subversão da África portuguesa. Pelo Norte de Angola circulam estranhos panfletos convidando a população para as festas de 15 de Março, e a limpar estradas e pontes, e a tratar bem os chefes de posto, suas famílias, e todos os brancos; mas as autoridades locais não atribuem importância a tais papéis, nem lhes dão interpretação especial. E elementos oficiais americanos em Lisboa e Luanda insistem em perguntar, por razões misteriosas, se no território da província de Angola tudo está calmo.

Atendendo ao prestígio do Conselho de Segurança, e ao temor que infunde nos mais tíbios ou menos prevenidos, produz-se na opinião pública portuguesa alguma emoção, e muitos prevêem que aquele orgão da ONU tomará as decisões mais graves contra Portugal: sanções políticas, ou económicas, ou até intervenção armada. Há alarme, há receios. Inicia o Conselho os debates a 13 de Março; Vasco Garin representa Portugal; e de Lisboa, com urgência, segue Jorge Jardim, portador de elementos de facto e dados estatísticos fornecidos pelo ministério do Ultramar. Simultaneamente, e em pagamento da que lhe fizera Marcello Mathias, chega em visita oficial a Lisboa o ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha, Fernando Maria Castiella. Desenrola-se o programa habitual de recepções e conversas. Castiella e Mathias falam longamente; e o ministro espanhol é recebido por Thomaz e Salazar. Castiella afecta sempre uma atitude de grande compreensão, de entranhada amizade por Portugal, e de incondicional e dedicado apoio em tudo o que os portugueses desejarem. Para Castiella, não há problemas na "fraternidade ibérica" [Recorde-se que Castiella, com outros, era autor de trabalhos em que se advogava a "união ibérica"]. Mathias vinca sempre os "dois países da Península". Em Nova Iorque, na violência e no vitupério, desenrola-se o debate. Além da Libéria, são particularmente brutais o Ceilão, a República Árabe Unida, a União Soviética. Até à saciedade, é repisado o inferno das acusações rituais: opressão, atraso, genocídio, perigo para a paz mundial. Pede-se o cumprimento imediato, por Portugal, das resoluções votadas anteriormente; solicita-se uma declaração de princípio, outorgando a Angola a independência. Um aspecto do debate surpreende alguns círculos do Conselho de Segurança: pela primeira vez, a delegação americana, chefiada por Stevenson , ataca a política portuguesa em África, alinha com as acusações afro-asiáticas ainda que em linguagem mais moderada, e deixa entrever um voto contrário a Portugal [Adlai Stevenson, membro destacado do Partido Democrático, candidato presidencial; derrotado por Kennedy, este nomeia-o para o posto de embaixador dos Estados Unidos na ONU]. Não causa surpresa em Lisboa a nova atitude dos Estados Unidos, que está no caminho da diligência de Elbrick, de há dias; mas Salazar e Mathias não ocultam a sua preocupação, nem ignoram as implicações futuras da política de Washington. Como fecho do debate, e para ser submetido ao voto, a Libéria, o Ceilão e a República Árabe Unida apresentam um projecto de resolução que engloba e sintetiza o ponto de vista afro-asiático expresso no debate: por duas vezes se acentuam os perigos que a situação em Angola representa para a paz e a segurança mundiais; reitera-se a doutrina das resoluções anteriores contra Portugal; e solicitam-se reformas imediatas no contexto da resolução sobre extinção do colonialismo. E quando, na noite de 15 de Março de 1961, Mathias oferece a Castiella um banquete nas Necessidades, e os dois ministros celebram o fortalecimento do Pacto Peninsular, vai em Nova Iorque ser posto ao voto o projecto afro-asiático. Como se aprestam a votar os Estados Unidos? Stevenson telefona a Kennedy, que está no seu gabinete da Casa Branca [Convém lembrar a diferença de horas entre Lisboa e Nova Iorque; quando em Lisboa era o princípio da noite, em Nova Iorque e Washington estava-se no meio da tarde]; recomenda que a delegação americana apoie o projecto afro-asiático, votando portanto contra Portugal, e pede ao presidente instruções finais. Que atitude tomarão os outros ocidentais? - pergunta Kennedy. Provavelmente abster-se-ão, diz Stevenson; mas igual atitude da parte dos Estados Unidos causaria deplorável impressão por todo o terceiro mundo. Dean Acheson [antigo secretário de Estado, que falara longamente com Salazar numa visita a Lisboa em 1952], que naquele momento se encontra no gabinete de Kennedy, sugere ao presidente que não tome uma decisão precipitada, e acentuou que o assunto deve ser mais ponderado. Não há tempo, a votação vai realizar-se dentro de minutos, diz Kennedy; e depois de consultar Dean Rusk pelo telefone, e retomando a conversa com Stevenson, instrui este para votar contra Portugal. Comenta então Acheson: "Senhor Presidente, acaba de tomar uma decisão que é ao mesmo tempo um erro e um perigo, e terá as mais graves consequências para Portugal e para os Estados Unidos". E procede-se à votação em Nova Iorque: votam a favor da resolução a Rússia, a República Árabe Unida, a Libéria, o Ceilão e os Estados Unidos. Abstêm-se a França, a Inglaterra, a China, o Chile, o Equador e a Turquia. Há assim cinco votos afirmativos e seis abstenções. Não obtivera o texto, portanto, a maioria de votos positivos exigida, entre os 11 membros do Conselho, para que seja aprovada uma resolução, e nos termos regulamentares é havida por derrotada. Mas os Estados Unidos tinham votado contra Portugal pela primeira vez na história dos debates de problemas portugueses na ONU; e deste modo haviam rompido a solidariedade ocidental (França, Inglaterra, Turquia) e ignorado a amizade latino-americana (Chile, Equador).

Acheson, velho e experimentado estadista, advertira Kennedy. Mas não se conforma com a atitude dos Estados Unidos, nem tem por bastante o seu aviso, e quer resgatá-lo. Escreve a Kennedy uma longa carta. Depois de referir notícias da imprensa sobre a mudança da política africana dos Estados Unidos, Dean Acheson aprecia directamente o voto americano no Conselho de Segurança. Diz o antigo secretário de Estado: "O embate causado pelo voto na semana passada - e ainda mais significativamente o do discurso que foi feito, com a sua sinistra ameaça para o futuro - não atingiu principalmente os portugueses ou a crise de Angola". Do voto americano, a mais grave consequência, pensa Acheson, está em tornar impossível qualquer negociação que poderia trazer à África alguma "sanidade". Vai ter reflexos na Argélia, e em toda a África. "Na verdade", continua Dean Acheson, "através de África a grande necessidade não está em empurrar mais povos mais depressa para a independência, que não sabem usar melhor do que o têm sabido os congoleses. Independência para todos esses povos não é já um problema realista. O grande e crucial problema consiste em prepará-los, com muito mais do que simples velocidade, para enfrentarem o futuro inevitável". E por último Dean Acheson atira a Kennedy um doesto: "Qualquer estadista, soldado ou advogado sabe que o caminho para o desastre consiste em dar combate no terreno escolhido por outrem". As Nações Unidas são uma ratoeira: pequenos países têm-se permitido manobrar as potências responsáveis e obrigam-nas a votar em todos os problemas concebíveis: "Nós (os americanos) somos suficientemente grandes para não fazermos isto". E a "nossa própria grandeza e responsabilidade impõe-nos que em todas as situações não percamos de vista o conjunto" [carta de 19 de Março de 1961]. Em Lisboa, Jacques de Lacretelle pronuncia no Instituto Francês uma palestra sobre Marcel Proust. E na Casa do Infante, no Porto, Adriano Moreira, subsecretário do Ultramar, profere uma conferência com o título de Provocação e Resposta. Num óbvio remoque ao voto americano, diz: "Só nós temos resistido ao desafio dos adversários; teremos também de resistir à provocação e à transigência dos que se dizem amigos".



Terrorismo em Angola. Quibaxe (1961). Ver aqui






Catanas da UPA (União dos Povos de Angola).






















Encerram-se em Nova Iorque os debates, e de Angola chegam a Lisboa notícias trágicas. Justamente de 14 para 15 de Março de 1961, vagas de terroristas invadem o Norte de Angola. Aboletados e municiados na República do Congo, atravessam em toda a extensão a linha de fronteira e, providos de catanas e armas de fogo rudimentares, assaltam povoações e fazendas. São atacadas Santo António do Zaire, S. Salvador do Congo, Maquela do Zombo, que se podem considerar quase raianas; mas são igualmente acometidas Ambrizete, Negaje, Mucaba, Sanza-Pombo; toda a baixa do Cassange está em alvoroço; e os terroristas estão às portas de Carmona. São claros para as autoridades os propósitos de implantar o terror. São óbvios os desígnios de se dirigirem a Luanda. Nos círculos do governo central, na alta administração, toma-se então consciência de que em Angola há uma situação de guerra, e de que no território se move guerra contra Portugal.

Em menos de quarenta e oito horas, pelos distritos do Zaire e do Uíje é a devastação maldita. Plantações e casas solitárias são saqueadas e incendiadas; aldeias são arrasadas; é posto cerco a vilas e pequenas povoações, cortando-se-lhes os abastecimentos; vias e meios de comunicação ficam destruídos; e a cidade de Carmona apenas consegue resistir graças ao heroísmo dos seus habitantes, encorajados e orientados pela serenidade e espírito decidido do governador Rebocho Vaz. Mas a fúria do ataque visa sobretudo as populações. Não se faz distinção de etnias, nem de sexo, nem de idades tão-pouco. É o terror, maciço e cru. Além dos praticados na Baixa do Cassange, e contra as vilas fronteiriças, parecem ser particularmente violentos os massacres nas regiões de Nambuangongo, Quicabo e Quitexe. Como nos tempos remotos das grandes barbáries, são assassinados homens, mulheres, velhos e crianças, autoridades administrativas, agentes da ordem, brancos, negros e mestiços; ou fuzilados; ou queimados dentro de casas e cubatas; ou esquartejados, e degolados; ou cerrados vivos. São fazendeiros, habitantes de vilas e cidades, homens de profissões liberais, missionários, enfermeiros; no ímpeto do inferno, não se faz discriminação. Propagam-se as notícias, e os que ficam ainda aquém do terror que alastra procuram na fuga a salvação. Amontoam-se em transportes que regurgitam muito para além das lotações, e aos milhares tentam dirigir-se a Luanda. Para trás, ficam haveres, que são o esforço de muitos anos; e comércios e indústrias, que representam gerações de tenacidade. E os itinerários não estão protegidos; há cortes de picadas; não se sabe que situação existe na próxima localidade; e nas pistas por que tomam ou nas povoações por que passam apenas encontram corpos chacinados, e ruína. Grupos de fugitivos cruzam-se a esmo com outros grupos: trocam-se informações: e não pode ser mais ensanguentado o quadro que emerge. Carmona sobrevive, e Rebocho Vaz organiza um centro de resistência e acolhimento: a cidade torna-se um símbolo da resolução portuguesa de estar. Continua o pesadelo de dias excomungados mas, vencido o primeiro choque, os que sobrevivem, autoridades locais ou simples particulares, lançam mão de quanto podem, desde cajados a armas de caça, e congregam-se em bandos; e improvisam redutos que se defendem por dias e dias até serem socorridos, ou sucumbirem trucidados por vagas de terroristas que parecem drogados e se renovam sem cessar, não cuidando de quantos são abatidos. E surge Jorge Jardim, com um largo grupo, os "voluntários de Moçambique", que procuram assistir as autoridades e acorrer, por picadas e matos, aos locais de maior ameaça, e que se portam com destemor que logo cria lenda. Simultaneamente, nos muceques de Luanda o ambiente é de agitação, e de boca em boca passa o grito: matar branco, matar branco.

Entretanto, começam a afluir a Luanda os fugitivos: são chusmas em tropel, feridos, esfarrapados, cobertos de pó e terra encarnada, mutilados à beira da morte por míngua de cuidados, amargos com o ferrete da miséria, raivosos porque as suas vidas são de súbito uma ruína; e clamam por providências, exigem pelo menos o sangue das populações negras que ficam ao norte, e culpam de tudo as autoridades e o governo. Por governador-geral continua Álvaro da Silva Tavares, há pouco chegado: este não perde o sangue-frio, consegue suscitar à sua volta alguma calma. De acordo com as autoridades policiais e militares, são decididas as medidas possíveis. Em toda a província existem cerca de 2000 soldados brancos e cerca de 6000 soldados negros. É comandante militar de Angola o general Monteiro Libório. Em cooperação com os administradores, os chefes militares procuram usar aqueles escassos de efectivos na abertura de itinerários, protecção de aldeias e vilas, guarda de instalações e de serviços públicos essenciais; e a Força Aérea, do comando do brigadeiro Fernando Resende, assegura comunicações e transporte de feridos graves. Mas é imensa a área, as forças não estão apetrechadas para uma actuação daquele tipo; e de momento, para mais, não sabem as autoridades se acaso não será desencadeado terrorismo em outros pontos do território, não podendo por isso deixar completamente desprotegidas outras cidades. Luanda tem, decerto, de ser protegida e defendida, seja por que preço for; mas Nova Lisboa ou Sá da Bandeira, Benguela ou Lobito, Luso ou Moçâmedes, não podem também ser abandonadas. Não se produzem alterações de ordem pública em outros pontos da província, todavia, nem se notam entre as populações indícios que inquietem as autoridades. A pouco e pouco, os meios existentes podem ser concentrados no Norte. E em Luanda, por entre dificuldades e cenas de emoção, organiza-se o acolhimento aos estropiados do Zaire e do Uíje: e somam muitos milhares.

São velozes as notícias e é instantâneo o conhecimento que em toda a província há da tragédia do Norte. São divulgados os cálculos provisórios das autoridades: devem ter sido assassinados, entre elementos da população, cinco a seis mil pessoas, e abatidos dois a três mil terroristas. De lés a lés de Angola é profundo o traumatismo, e o desespero domina todos. É radical a perturbação numa vida colectiva, de brancos e de pretos, que decorria no trabalho, decerto, mas sem sobressalto de monta. E de repente está criado um clima de suspeita, de ódio entre raças: os brancos vêem em cada negro um possível terrorista, os negros vêem em cada branco um homem que se quer vingar e que agora mata sem hesitar. Deste modo, e além das atrocidades dos assaltantes, assumem gravidade o ataque preventivo e a retaliação indiscriminada de brancos sobre negros e destes sobre aqueles. Homem a homem, nas ruas, nos empregos, em toda a parte, espiam-se com rancor, e a um gesto equívoco é abatido o suposto adversário. Parece em escombros a secular igualdade racial que é timbre da política portuguesa, dir-se-ia destruído o tradicional convívio e cruzamento entre etnias. Depois, no ânimo da população de Angola, firma-se uma ideia: o governo de Lisboa abandona todos, e o território, a um destino trágico. Todos interrogam o futuro: consideram perdidos os seus bens, os seus capitais, os seus investimentos, os seus comércios e indústrias, as suas casas; consideram-se na pobreza; e além de verem interrompida a educação dos seus filhos, julgam que apenas lhes podem legar a miséria. Perante o quadro doloroso, para todos é cruel o dilema: partir ou ficar? Recomeçar a vida noutras bases e noutro local, ou ficar, resistir, lutar, agarrar-se à terra, defender bens até à morte? Para muitos e muitos, e de momento, a decisão é de ficar: nasceram ali, e pais, avós, gerações de antepassados nasceram ali: a terra é mais deles que de outros: onde não havia nada, há hoje tudo: e foram eles, e só eles, que tudo construíram com a sua iniciativa e o seu braço. E ir para onde? São já numerosos os que nunca sequer foram à Metrópole, ou que estão em Angola de meninos, ou que há largos anos não saem da província. Que fazer em Lisboa? Seria então preferível ir para a África do Sul ou para a Rodésia do Sul. Mas não: há que estar, correr todos os riscos, afrontar todos os perigos, ficar, vivos ou mortos. Mas a outros é o pânico que os possui. Esses decidem abandonar tudo, perder tudo o que não puder ser levado ou transferido, e tomar o caminho de Lisboa. E é o êxodo, aos milhares. Em aviões e barcos, disputam-se a poder de oiro os lugares.










Ver aqui



Embarque de tropas portuguesas no Niassa (1961). Ver aqui








Chegada dos primeiros soldados a Luanda (1961).



Desfile de tropas portuguesas em Luanda







Têm imediata repercussão na opinião metropolitana os "acontecimentos" de Angola. [Entre os brancos de Angola, os ataques terroristas no Norte ficaram conhecidos e eram sempre designados pelos "acontecimentos". Nas conversas, dizia-se: por altura dos acontecimentos, antes dos acontecimentos, depois dos acontecimentos, etc. Não era preciso especificar de que acontecimentos se tratava, porque se subentendiam. Os negros classificavam o terrorismo do Norte de confusão: por altura da confusão, fulano anda na confusão, etc.]. Há desde logo um aspecto sentimental: Angola é território querido dos portugueses: e há o terror da sua perda, ou risco. Mesmo nos mais desprevenidos, e nos mais alheios aos altos jogos da política, forma-se a convicção clara de que, algures e por alguém, está traçado e em execução um plano de guerra contra Portugal em África. Encadeiam-se agora os factos: fuga de Delgado e Galvão, graças ao estratagema dos asilos políticos; captura do Santa Maria; simultaneamente, produzem-se os primeiros tumultos de Luanda; e a reunião do Conselho de Segurança, e o debate antiportuguês, coincidem rigorosamente com a invasão do terrorismo no Norte de Angola. Uma conclusão parece impor-se: trata-se de intimidar Portugal, de fazer ajoelhar o governo de Lisboa. Nem por haver esta consciência, ou justamente por virtude desta consciência, instala-se na Metrópole uma desorientação que frisa com o pânico. Há uma angústia colectiva, e são em torrentes os boatos sem peias da imaginação: Oliveira Salazar está doente, e com gravidade, ou pediu a demissão, ou prepara a sua partida, se não a sua fuga, para a Suíça; está por dias, ou por horas, uma revolta das Forças Armadas; não é apenas em Angola que lavra a insurreição, mas por todo o Ultramar, e o governo está a ludibriar o povo; e as potências vão confrontar Portugal com um ultimato rude. Depois, é a oposição de esquerda que aproveita os "acontecimentos", e os apresenta com o matiz que convém aos seus desígnios. Em conversas, circulam as interpretações especiosas dos que sabem, dos que estão informados: na origem da revolta está a injustiça de que é vítima a população do Norte de Angola; a culpa pertence aos homens das grandes plantações, aos cafeeiros, aos madeireiros, que à custa de salários de miséria acumularam fortunas de fábula; a culpa cabe a um restrito número de famílias metropolitanas que exploram e abafam a economia daquela zona, e até a de Angola; a culpa tem de ser atribuída aos administrativos, incompetentes, corruptos e opressores; e de forma global, em suma, vai para o governo de Lisboa a responsabilidade maior, porque tudo consentiu e nada preveniu. Noutros círculos, são políticas as explicações de estilo: Portugal é atacado no Ultramar por não serem democráticos o regime e o governo de Lisboa: não existiria a hostilidade das potências e da ONU se houvesse liberdade no país e se assentassem num pluralismo ideológico as instituições políticas portuguesas.

Decorrem os dias. Nos Estados Unidos, abre-se controvérsia, e os dirigentes republicanos pedem a Kennedy que explique o seu voto antiportuguês; e sobre este surge também polémica entre direitas e esquerdas europeias. Em 24 de Março de 1961, e sem embargo do seu precário estado de saúde, parte para Angola o ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves. Representa a viagem a primeira reacção de Lisboa, em alto plano, perante os acontecimentos. No Portugal metropolitano, continua a inundação de notícias de novas atrocidades no Norte da província. São os relatos feitos pelos brancos que chegam, e cujo afluxo não cessa; e são as crónicas minuciosas da rádio, da imprensa, de correspondentes especiais que acorrem ao território. E agrava-se, aprofunda-se o traumatismo na opinião pública: dir-se-ia também não haver na metrópole quem não possua um familiar, um amigo, um afilhado, um sócio, um simples conhecido, que não tenha sido morto, ou ferido, ou estropiado, ou de algum modo afectado em Angola na sua segurança ou nos seus bens. E sucedem-se manifestações, algumas violentas, junto do consulado americano em Luanda e da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. Cartazes são exibidos, e alguns clamam: "fora dos Açores", "racistas", "abaixo a ONU", "Angola é nossa", "América para os peles-vermelhas". E em Nova Iorque, agora em sessão especial da Assembleia Geral da ONU, de novo o delegado da Libéria propõe a inscrição da questão de Angola na agenda, e pede prioridade para o seu debate. Opõe-se energicamente a delegação portuguesa. Mas a Assembleia, se recusa a prioridade, aceita a inscrição. Protestam os delegados portugueses, que alegam a ilegalidade da decisão, e num gesto espectacular, por instruções de Lisboa, abandonam a vasta sala das sessões. Entretanto, parecendo que se está dentro de uma normalidade de rotina, é anunciada a vinda de Couve de Murville, ministro dos Negócios Estrangeiros de França, numa visita oficial a Lisboa, e a ida a Espanha, também oficialmente, do presidente Américo Thomaz.

Para além das fronteiras portuguesas, e à parte a guerra movida no Norte de Angola, o ataque político contra Portugal assume virulência sem paralelo. Há uma ou outra nota de bom senso, de moderação. Cyril Sulzberger, vulto todo-poderoso do poderoso New York Times, critica também Kennedy pelo voto contra Portugal: sugere, como os republicanos, que os Estados Unidos "ao menos se abstenham" e que os ocidentais não se entreguem ao gosto de votar uns contra os outros; "se continuarmos a deixar andar as coisas, acabaremos numa corrida para a guerra nas fronteiras da África do Sul"; "ou veremos Portugal abandonar a NATO, levando consigo os Açores". Também um ou outro jornal francês, ou alemão, ou britânico, sugeria ponderação, aconselhava calma e isenção no exame da política portuguesa. De Gaulle, presidente de França, mandava dizer em Lisboa: "Eu compreendo a vossa política. Mas com que contam e com quem contam?" Konrad Adenauer, chanceler alemão, exprimia em Bona a sua simpatia, e significava o seu apoio; mas não ocultava as suas dúvidas, nem o seu desalento perante as vagas do mundo. Para além destes homens, que se exprimiam em surdina, tudo era brutalmente hostil. Na grande imprensa internacional, nas influentes cadeias de rádio e televisão, na alta-roda mundial da finança e da economia, nos parlamentos das nações, nos círculos das classes políticas supremas, eram sem mercê os ataques, as acusações, as ameaças, os anúncios de tragédia para Portugal. Disseminados pelo mundo, alguns amigos raros, em segredo e com pavor, eram pródigos de sugestões e de conselhos: deveria Portugal ceder, transigir, desamparar tudo, com rapidez e a esmo, salvaguardando somente alguma aparência de dignidade, se viável. E sublinhavam, junto do governo e das elites portuguesas, a loucura de uma resistência, a insensatez de contrariar uma enxurrada universal. Escorraçado, acossado, vilipendiado, Portugal era tratado de réprobo. E para a generalidade não havia dúvida de que o governo português tinha contado o seu tempo: estava por semanas, talvez por dias.

Protesto de estudantes em Lisboa contra as decisões das Nações Unidas sobre a política africana de Salazar.



Antiamericanismo em Lourenço Marques (Abril de 1961).



Fervor de rua em África: apoio a Salazar (Agosto de 1963).



Manifestação contra as Nações Unidas em Macau


Se os "acontecimentos" do Norte de Angola se repercutiam no povo, o ambiente internacional impressiona sobretudo as classes dirigentes portuguesas, a alta burguesia e a alta classe média, os círculos políticos, os homens da finança, da indústria, do comércio, e da economia. Sentem-se possuídos de pânico, e sucumbem. Invade-os a tibieza moral, perdem a lucidez de visão, perturba-se-lhes a inteligência. Nos meios ligados ao governo e ao regime, muitos sentem-se em vésperas de naufrágio, e procuram saber como abandonar o navio; e nos próprios centros da União Nacional surge de chofre um vazio, um esboroamento de vontades, e não têm rebuço as expressões de azedume e crítica. No parlamento, é a aflição: tudo está perdido. Manuel Aroso, deputado, procura Luís Supico e revela-lhe que o deputado Homem de Melo, muito da roda de Craveiro Lopes, tem já um discurso preparado com violento ataque ao Governo e a Salazar. É um dos pontos do programa de uma conspiração na forja, que estaria concertada com meios americanos, e em paralelo com círculos internos orientados por Galvão e Delgado. Há uma perda colectiva da coragem: não cabe dúvida, o mundo está contra Portugal, e Portugal não pode pensar em bater-se com o mundo. Perante a oposição declarada dos Estados Unidos e do Brasil, e as votações maciças das Nações Unidas, e a animosidade de todo o Ocidente em suma, que fazer senão conformar a política portuguesa com os imperativos do momento? São em largo número os homens de consequência, cujo estandarte é o do patriotismo e por anos e anos têm afirmado a sua devoção ao governo e ao regime, que enfileiram agora nas novas ideias, advogam a entrega de tudo às Nações Unidas porque consideram fundamental gozar de bom ambiente no estrangeiro, e têm por humilhantes para Portugal as votações da ONU e os editoriais hostis do Le Monde, ou do Times, ou do New York Times. Numa síntese, esses homens comungam num mesmo desvairo: perca-se tudo, pague-se qualquer preço; mas arredem-se sacrifícios, adopte-se a política dos grandes do mundo, venham os capitais, faça-se os negócios; há que viver bem, ainda que sob jugo alheio. Alguns comportam-se em sentido oposto: reafirmam a sua confiança nos destinos portugueses de Angola e de todo o Ultramar, têm por avisada a política do governo, e dispõem-se ao risco de novos empreendimentos. Sem embargo, por uma forma ou outra, assume já larga escala a fuga de capitais para o estrangeiro. Mais do que nos noutros, é grave o embate do ambiente mundial em sectores das Forças Armadas portuguesas. Nos quartéis, nas instalações para oficiais, em suas casas particulares, são frequentes as reuniões, e exprimem-se dúvidas, formulam-se críticas, há desalento, há descrença. Mesmo no âmbito dos Estados-Maiores do Exército, da Força Aérea e da Armada, não deixam de se interrogar; e, sem que tenham esse propósito, dão no entanto livre curso às alegações dos meios internacionais anticolonialistas e da extrema-esquerda portuguesa. Bater-se por Portugal, sem dúvida; defender o Ultramar, decerto; mas não serão chamados a arriscar a vida devido a situações imorais que, em grande medida, teriam conduzido à rebelião do Norte de Angola e à guerra que se trava? Entendem os chefes militares responsáveis que se impõe dissipar tais dúvidas e que, sejam quais forem os desvios, é Portugal e seu Ultramar que estão verdadeiramente em causa; mas no topo de oficiais muitos são os que hesitam, e tornam às perguntas sem fim. Não serão de facto os interesses pessoais de alguns que tudo provocaram? Não estará na existência da censura a origem de tudo? E não deverá o governo tomar providências? Acima de tudo, não foi Portugal efectivamente abandonado pelos seus grandes aliados e amigos, os Estados Unidos, o Brasil, a Inglaterra? [Estas perguntas e outras semelhantes eram realmente formuladas em sessões do Conselho Superior Militar, nas reuniões realizadas nos meses de Fevereiro e Março de 1961]. E esta última pergunta é aquela que acima de tudo perturba as Forças Armadas. Em reuniões do Conselho Superior Militar, presidido pelo ministro da Defesa, é sugerido que sejam esclarecidos os oficiais-generais e os comandos de unidades. Por um ou outro motivo, são fundas nos responsáveis supremos das Forças Armadas as preocupações pela sua coesão; e muitos, atentos à grande idade do chefe do governo, interrogam-se quanto ao futuro. De tudo, porém, uma consequência é nítida: no povo, nas classes dirigentes, nos meios militares, há o sentimento de perigos indefinidos, a ansiedade perante o dia de amanhã, uma psicose de alucinação colectiva perante o que se pensa ser um cerco e o que se julga ser uma derrocada iminente. Pelos últimos dias de Março, é promulgada legislação organizando o colégio eleitoral para eleição do presidente da República, como deliberado pela Assembleia Nacional.

Oliveira Salazar continua silencioso, e para o grande público parece como alheio a tudo. Mas está informado de todos os factos. E com sarcasmo de sangrar diz para o seus colaboradores mais íntimos: "Bem, no fundo acusam-me de eu ter perdido as eleições nos Estados Unidos e no Brasil".

Está a findar o mês de Março de 1961, e Salazar recebe os telegramas e relatos que Lopes Alves começa a enviar de Angola. Homem de viva inteligência, o ministro observou e compreendeu; e são de funda preocupação, e de quase alarme, as informações que remete. Salazar está sobretudo apreensivo com o futuro das relações com os Estados Unidos.

[Como o ministro da Saúde, Martins de Carvalho, houvesse sido convidado por Augusto de Castro para falar numa sessão comemorativa do Pacto do Atlântico, e tivesse consultado Salazar, este, numa carta em que se ocupa de outros assuntos, escreve depois: "Quanto ao Pacto do Atlântico: não me parece possível que um ministro fale sobre o assunto sem dizer alguma coisa sobre a contradição intrínseca da política americana. Suponho que a nova orientação que veio a público e cada vez mais se afirma, exigirá de nós uma revisão de atitude para com os Estados Unidos. Por ora nada se fez em público, mas espera-se fazer referência ao problema na sessão da OTAN em Paris. E depois veremos. As palavras que diga a esse respeito não responsabilizarão o Governo, senão de modo muito indirecto, mas devem ser preparadas de modo a não fechar nenhuma porta. Não convinha em todo o caso que o Chefe do Estado estivesse presente". De uma carta de 21-III-961. Há na carta um pequeno lapso de Salazar: a próxima sessão da OTAN não estava marcada para Paris mas para Oslo. Augusto de Castro presidia à Comissão Portuguesa do Atlântico, organismo privado (embora com ajuda oficial), destinado a apoiar junto da opinião pública o Pacto do Atlântico, o seu espírito de defesa, etc.].

Regressa também de Angola, entretanto, a missão militar chefiada por Beleza Ferraz. Este declara-se francamente optimista; pensa que em breve será restabelecida a paz; não parece emprestar importância à ligação internacional dos acontecimentos, nem ao contexto em que foram desencadeados; não os classifica de simples caso de ordem pública; mas não julga que imponham providências em vasta escala, e urgentes. Em discursos públicos, repete o presidente da República: "Se os outros mudaram, não é por culpa nossa. Temos de ter fé e forças para nos mantermos unidos até que eles mudem outra vez". E pela mesma altura o ministro da Defesa Nacional dirige ao presidente do Conselho uma longa carta.



Almeida Fernandes, ministro do Exército, e Botelho Moniz, ministro da Defesa Nacional, à sua direita.



Nesse documento, Botelho Moniz recolhe os pontos de vista que têm curso generalizado. Preocupa-o antes de mais, afirma o ministro, a "gravidade do actual momento político internacional", a que as Forças Armadas "não podem ser indiferentes". De todo o lado surgem dificuldades. Para clarear a situação, já apontou em conversas anteriores medidas pertinentes. Mas no momento em que se afirma estar próxima uma remodelação ministerial, julga indispensável sumariar tais medidas e expô-las ao presidente do Conselho. Há que definir "responsabilidades que poderiam representar o aniquilamento total ou a sobrevivência das forças armadas, uma vez que a acção política do Governo parecia incapaz de poder fazer face aos acontecimentos". Dia a dia, a situação tem-se agravado: "só um choque psicológico de envergadura poderá desanuviar o ambiente político nacional e o pesado clima internacional". Ao espírito do ministro é sombrio o quadro que se apresenta. Há que reforçar a unidade nacional. Há que alargar o "âmbito de cooperação ao maior número dos que, acima de tudo, querem servir o País, pondo de parte todas as razões que nos dividem, tornando-se assim necessário encontrar um vasto campo de entendimento comum que nos não separe por razões mesquinhas". É "muito estreito" o quadro político actual, estando confinado a "valores políticos gastos", e muitos não têm "idoneidade moral bastante que se imponha". Há decerto valores políticos suficientes para renovar "dentro da continuidade" o espírito que inspirou o 28 de Maio, hoje adulterado por oportunistas e interesseiros; e há que "chamar ao tablado político valores novos e outros, experimentados sim, mas indiferentes ou mesmo inconformistas por terem perdido a fé". Para essa renovação, e para que esta produza o choque psicológico indispensável, apenas uma mutação profunda de pessoas, de métodos, de orgânica e de saneamento poderia atingir o fim pretendido. "Eu sei", continua o general Botelho Moniz, "que poderosos interesses poderão entravar ou dificultar o desenvolvimento desta política preconizada, que é a única susceptível de melhorar as condições sociais do trabalho, elevando Portugal no conceito internacional, onde o baixo nível das classes rural, operária e média é motivo de censura frequentemente apontada". Advoga o ministro "adequadas medidas" para evitar que Portugal seja considerado um país onde as liberdades essenciais não existem; e "pequenas modificações, mais de aparência do que de forma", poderiam desfazer tal queixa. É "sentimento geral que a acção política da nossa diplomacia desde há muito se revela inadequada"; e no governo actual, como nos anteriores, verifica-se uma "descoordenação perigosa". No que respeita às Forças Armadas, acentua o general Botelho Moniz: "a situação destas é angustiosa e caminhamos para uma situação insustentável, onde poderemos ficar à mercê dum ataque frontal, com forças dispersas por quatro continentes, sem meios bastantes e com uma missão de suicídio da qual não seremos capazes de sair, uma vez que a política lhe não encontra solução nem parece capaz de a procurar". E o ministro da Defesa afirma o parecer concordante de outras entidades: do ministro do Exército, do chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Conclui por formular votos por que se não desagregue a coesão das Forças Armadas.

Paralelamente, Botelho Moniz tem reuniões com oficiais superiores. Convoca o Conselho Superior Militar. Comparecem o ministro e subsecretário de Estado do Exército, respectivamente Almeida Fernandes e Costa Gomes; dirigentes do Ministério do Exército; comandantes das Regiões Militares, governador militar de Lisboa, chefes dos Estados-Maiores; e comandantes-chefes da Guarda Republicana, Polícia de Segurança Pública, Guarda Fiscal. Kaúlza de Arriaga quer assistir; mas é impedido por Botelho Moniz. Em princípio, na reunião, trata-se de apreciar os acontecimentos de Angola, e de estudar e propor medidas para os enfrentar. Há divergências. Albuquerque de Freitas, da Força Aérea, discorda de Beleza Ferraz; e este, por seu turno, discorda de Câmara Pina, do Exército. É nítido um cuidado: defender a coesão das Forças Armadas. Mas no espírito de todos estão subjacentes perguntas de outra natureza: deverá manter-se o statu quo político? Como garantir o futuro do país? Através dos círculos militares, pelas unidades dispersas, não se atribui todavia à reunião um significado simplesmente militar: há o pressentimento de que tudo decorre num terreno político. E Botelho Moniz acentua este aspecto distribuindo aos oficiais cópias da carta que remetera a Oliveira Salazar. Em pouco, outras cópias circulam por todas as unidades, na Metrópole e no Ultramar.

Em Oliveira Salazar não causa surpresa a extensa carta de Moniz. Está na linha de um pensamento que já vem de trás, e a que o ministro parece cada vez mais aferrado: traduz a atmosfera criada pela propaganda anticolonialista, exprime um estado de espírito que reflecte os contactos assíduos do ministro com o embaixador dos Estados Unidos; e em alguns pormenores aponta, por outro lado, questões que, por serem aceites como verdades por muitos, constituem por isso realidades políticas que seria imprudente esquecer, ou menosprezar. E o chefe do governo sabe que, por entre o desalinho e primarismo da prosa e as frases vagas apreendidas à pressa, a carta reproduz o ânimo de alguns sectores da oficialidade. Salazar convoca o ministro da Defesa. Em 28 e 29 de Março de 1961, os dois homens conversam longamente. Por parte do chefe do governo, há o propósito de obter esclarecimentos: a carta do ministro descreve objectivos, não define políticas para os prosseguir. Por outro lado, Moniz estabelecia ligação entre problemas aparentemente desconexos, ou independentes: como faria o ministro a ligação de causa e efeito? E assim Oliveira Salazar formula numerosas perguntas. Como vê o ministro que um choque psicológico em Portugal, entre portugueses e para portugueses, desanuvie o pesado clima internacional e pare os debates nas Nações Unidas, modifique a política americana e suspenda os assaltos e morticínios terroristas? Como é que, sem abandono do Ultramar, se altera o ambiente externo? Que política preconiza exactamente? Como é que tal política eleva Portugal no conceito internacional? É pensamento do ministro que a agressão terrorista tem somente por objectivo corrigir injustiças, melhorar condições sociais, acabar com a censura, e que cessa se tudo isto for feito? E se Portugal se represtigiar, findam os ataques? Na ONU, a ofensiva tem o objectivo de expulsar Portugal de África, ou pretende apenas alargar o leque de recrutamento da classe política em Portugal? Os ataques aos territórios ultramarinos britânicos, belgas, franceses, tiveram origem no desprestígio da Inglaterra, Bélgica ou França, ou em situações sociais condenáveis que existissem nesses países, ou na falta de liberdades essenciais? Tendo territórios localizados em vários continentes, deve Portugal, para evitar a dispersão de forças, entregar esses territórios, ou só alguns? E quais? E se se entregarem uns territórios, em nome de que princípios se pode recusar a entrega dos restantes? Mas nenhuma destas interrogações encontra resposta clara por parte de Moniz. Este parece a Salazar como muito preocupado pela atitude americana, que receia acima de tudo e que, na essência, constitui para o ministro o factor decisivo de perturbação. E Moniz sustenta uma tese: não se deve abandonar o Ultramar: e apenas importa pintar a fachada com outra cor, imaginar uma qualquer construção que apazigue os afro-asiáticos e satisfaça os Estados Unidos. Salazar pergunta a Moniz se pensa que os Estados Unidos, e os afro-asiáticos, e o bloco comunista, ficavam persuadidos de que possuem a realidade das coisas quando lhes fosse entregue apenas a aparência das coisas. E em torno deste ponto não se estabelece entendimento entre os dois homens.



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O ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e o secretário de Estado da Aeronáutica, coronel Kaúlza de Arriaga, durante uma visita a Angola.


Oliveira Salazar finda as entrevistas com o ministro nos melhores termos: pensará, ponderará o teor da carta. De momento, todavia, não lhe dará resposta escrita. Entra o fim-de-semana de Páscoa. Botelho Moniz dá conta destas conversas a Elbrick, e declara que Salazar foi muito cortês; mas não adivinha que decisão será a do chefe do governo. Depois, o ministro toma uns dias de descanso, parte para o Algarve. Mas para se orientar melhor, e por sugestão que fora feita pelo ministro da Defesa, Salazar decide convocar o Conselho Superior de Defesa Nacional. Na ausência do ministro do Ultramar, participa Adriano Moreira, subsecretário da Administração Ultramarina; e o subsecretário do Exército, Costa Gomes; o subsecretário da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga; o chefe do Estado-Maior-General; e os chefes do Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas. Estão ausentes de Lisboa, além do da Defesa, os ministros do Exército e da Marinha, o primeiro em Fátima, o segundo em França. E na reunião os chefes militares mostram-se concordes num parecer: do ponto de vista militar, a situação no Norte de Angola poderia ter-se como resolvida e cabiam apenas operações de limpeza e policiamento. Depois, de harmonia com planos anteriores, o chefe do Estado-Maior-General, Beleza Ferraz, e o do Estado-Maior da Força Aérea, Albuquerque de Freitas, partem para os Estados Unidos. Por si, sem o dizer em conselho, Oliveira Salazar dá mais fé ao parecer de Lopes Alves do que ao dos responsáveis militares.

[...] Nestes primeiros dias de Abril de 1961, precisamente enquanto decorrem as visitas de Murville e de Arinos, intensifica-se a actividade dos altos responsáveis militares. Em oficiais de patente elevada, alguns exercendo comandos de vulto, tornava-se à ideia fixa: os acontecimentos do Norte de Angola são consequência de uma só causa, e esta seria a exploração económica, a injustiça social, a ganância praticada por alguns homens da Metrópole. Nas regiões militares, através do país, efectuam-se também reuniões, com a presença de comandantes de unidades. Nos debates travados, são decerto mencionados os acontecimentos do Norte de Angola; mas alguns oficiais vão muito além e manifestam a sua preocupação com o momento político, a crise que se desencadeou, o papel das Forças Armadas, o futuro do país; e fica posto o problema da capacidade política do presidente do Conselho para dominar os problemas, e resolvê-los. Há unanimidade quanto à vantagem de manter a coesão das Forças Armadas; e opiniões mais radicais expressas por alguns ou opções mais violentas sugeridas por outros não recolhem apoio generalizado. Retiram os oficiais responsáveis, no entanto, uma conclusão: de um plano estritamente militar, tudo está transferido para um plano político. Com o progresso das reuniões, e sua repetição, alguns oficiais põem com nitidez o problema: deve ser mantido ou afastado o chefe do governo? Deve essa imposição, se for resolvido o afastamento, ser feita ao presidente da República? Se este se não conformar, deve ser também afastado? Em 10 de Abril de 1961, o general Silva Domingues, governador militar de Lisboa, está reunido com os seus subordinados, e é claramente posto o problema da substituição de Oliveira Salazar. Em sua casa, Botelho Moniz tem tido conversas com Arnaldo Schultz, ministro do Interior, e este parece assumir uma atitude que o ministro da Defesa considera ambígua. Almeida Fernandes procura Schultz também, e colhe a mesma impressão perante a sua recusa de um esclarecimento. Almeida Fernandes sugere que se solicite nova entrevista ao presidente da República, e o pedido é apresentado em Belém. De 10 para 11 de Abril, correm já abertamente nos meios políticos os ecos do que se está passando. Alarma-se a própria oposição liberal; e alguns, como Lopes de Oliveira e Alberto Madureira, querem fundar um movimento para apoiar incondicionalmente a defesa da integridade territorial da nação. Amigos pessoais e políticos do chefe do governo acorrem pressurosos e assustados: é José Nosolini, que possui fragmentos de notícias sem sentido definido; é Soares da Fonseca, que parece a par de tudo; é Costa Leite, que não oculta o seu abatimento; é Trigo de Negreiros, que se mostra desesperado; e é Albino dos Reis, que recomenda acção pronta. Ao gabinete de Kaúlza de Arriaga afluem telefonemas com informações: Santos Costa parece ao corrente da reunião do governador militar e confirma que este pôs o problema da saída compulsiva do presidente do Conselho. Por seu lado, já durante o dia 11, Arriaga avista-se com Almeida Fernandes, e da conversa o subsecretário da Aeronáutica conclui: o ministro do Exército vai solicitar informações precisas do governador militar de Lisboa; o ministro da Defesa está sob forte emoção, alternadamente deprimido ou excitado; se Botelho Moniz tentasse um golpe de força, Almeida Fernandes não o acompanharia; se esse golpe de força fosse desencadeado, Fernandes espera que o Exército lhe obedeça, mas não o pode garantir. Arriaga declara entender que a nova instância a praticar em Belém se destina a apressar a remodelação ministerial, em que tanto se fala, e não a exigir a demissão do presidente do Conselho; mas nesse caso deveria então ser feita junto do chefe do governo a diligência. Preferia realizá-la junto do presidente da República, conclui o ministro. Durante algumas horas, Câmara Pina faz sondagens telefónicas junto das principais unidades dispersas pelo país, e recolhe a convicção de que na sua maioria não estão com Botelho Moniz. Depois, sabe-se que está de prevenção o Exército; Américo Thomaz envia o chefe da sua Casa Militar, general Humberto Pais, a sugerir a Arriaga que proceda de igual modo quanto à Força Aérea; e o subsecretário toma desde logo essa decisão, e executa-a, no que é firmemente apoiado por Adriano Moreira e Correia de Oliveira. Arriaga apura também em conversa com Shultz que este se encontra ao lado do governo, ao mesmo tempo que afirma responder pela Guarda Republicana e pela Polícia de Segurança Pública. Entretanto, pela meia tarde do dia 11, o presidente da República responde ao pedido da audiência dos dois ministros, e marca-lhes as 16 horas do dia 12 de Abril. Botelho Moniz e Almeida Fernandes insistem por audiência urgente. Américo Thomaz fixa as vinte e três horas e trinta do dia 11. Mas então o presidente da República resolve convocar Oliveira Salazar para a sua residência do Restelo. Quer informar o chefe do governo de todos os pormenores, reiterar-lhe a sua confiança, explicar-lhe antecipadamente os motivos da audiência que vai conceder a Moniz, e avisá-lo da atitude de firmeza que se propõe assumir perante o que prevê serem as exigências do ministro da Defesa; e pretende por último acentuar a necessidade de acção rápida e drástica nos dias, mesmo nas horas que se seguem.

Na sua residência oficial a S. Bento, o chefe do governo parece longínquo, fora de tudo, não apenas só mas solitário, alheio ao que decorre pelo exterior, muito sereno, senhor de si, além dos homens e dos acontecimentos: não faz nada, não dá um passo, espera não se sabe o quê, tem na sua frente a eternidade. Naquele fim de tarde, Salazar encontra-se com Luís Supico Pinto, e nos dois cadeirões frente a frente os dois homens praticam da crise que ruge pelo exterior. Muito naturalmente, Salazar diz a Luís Supico: "Perante os manejos em curso de alguns militares, ainda não me disse nada o Chefe do Estado, não sei que decisão tomará". E acrescenta: "Por mim estou incerto quando a um ponto: não sei se voltarei para Coimbra ou se irei para Santa Comba". Mas mais uma vez soa o telefone: Salazar atende pessoalmente: é o presidente da República que lhe pede para ir com urgência ao Restelo: Salazar levanta-se, e com Luís Supico dirige-se para a saída. Puxa do bolso o relógio, diz para Supico: "Ir, a conversa, voltar... Olhe, se quer saber novidades telefone-me entre as nove e as dez horas". E toma o automóvel para o Restelo. Na residência particular do presidente da República, este transmite ao chefe do governo as últimas informações, e não lhe oculta a sua convicção de que Botelho Moniz prepara um golpe de Estado se não for afastado Salazar; mas, como Thomaz não tem essa intenção e, pelo contrário, ali reitera a sua confiança política ao chefe do governo, há que actuar com presteza para atalhar as intenções de Moniz e seus partidários. Regressa Salazar à Rua da Imprensa. Pelas dez horas da noite telefona Luís Supico, ávido de notícias. Diz-lhe o chefe do governo: "Sim, lá estive no Restelo. Pois, meu caro senhor, parece que tenho de continuar...".



Alberto Franco Nogueira



Mas chegam as horas da audiência aos ministros. Antes da meia-noite, apresentam-se Botelho Moniz e Almeida Fernandes. Moniz vem armado; e inicia a sua exposição. No interesse nacional, afirma o ministro da Defesa, impõe-se a demissão do chefe do governo; e esse é o sentir, se não unânime, pelo menos da esmagadora maioria das Forças Armadas, além de corresponder aos desejos da opinião pública. Almeida Fernandes, no entanto, não corrobora as palavras de Moniz neste particular; e já assim o fizera saber ao presidente. Thomaz invoca por isso o próprio testemunho de Fernandes para contrariar Botelho Moniz; e os dois ministros travam-se de razões enquanto no gabinete do chefe do Estado. Américo Thomaz escuta atentamente a desavença entre ambos. Diz depois: as suas informações não coincidem com as do ministro da Defesa; era seu dever ouvir sempre os juízos e os pareceres dos homens responsáveis, como é o caso; e ia reflectir sobre quanto lhe fora dito. Saem os dois ministros, são as primeiras horas da madrugada do dia 12 de Abril de 1961.

Neste dia, pela manhã, e conforme há muito planeado, o presidente da República visita a Manutenção Militar. É recebido pelo ministro do Exército. São percorridas as instalações. Depois, há um almoço. Fernandes brinda pelo presidente; este saúda o ministro e a instituição. Nos dois homens, para os observadores, há a habitual afabilidade de trato e galhardia de procedimento. Pouco após, pela tarde, Moniz recebe do presidente da República uma carta breve, em termos sóbrios. Diz Américo Thomaz: ponderara como era seu dever, e angustiadamente, o que lhe haviam exposto os ministros, e também outras informações; no interesse do país, não pode demorar mais uma decisão; e por isso "resolvi reiterar a minha confiança no Senhor Presidente do Conselho". E termina Thomaz: "creio bem que Vossa Excelência desejará, também, que Deus me tenha inspirado a melhor solução". A essa hora, Moniz convoca para o seu gabinete na Defesa Nacional o subsecretário da Aeronáutica, Kaulza de Arriaga. Almeida Fernandes está presente. Moniz pergunta se a Força Aérea está de prevenção, e de quem emanara a ordem. Arriaga responde afirmativamente, e esclarece que era sua a ordem. Moniz manda Arriaga sair do seu gabinete. Já de pé, os dois homens trocam palavras de uma violência e de uma descortesia próprias de quem perdeu o domínio dos nervos. Arriaga dirige-se a Belém, e relata ao presidente da República o episódio. Nesse momento, chega um pedido de audiência urgente por parte de Botelho Moniz. Recusa-se o presidente.

Despende Salazar horas e horas do dia 12 de Abril em conversas com os seus colaboradores políticos e pelas dez da noite chama com urgência Costa Leite, homem de confiança e fidelidade. Refere-lhe em síntese a situação. Informa-o de que na remodelação ministerial decidira tomar a Defesa Nacional, e este facto supõe a exoneração de Beleza Ferraz do seu cargo. E sendo ele, Salazar, um civil, impõe-se que o substituto de Ferraz, que será no plano operacional o ministro efectivo, seja um oficial de superior categoria, e de prestígio militar indiscutível entre os seus pares. Para este efeito, Oliveira Salazar pensara em Gomes de Araújo, homem de personalidade vigorosa, competência profissional reconhecida por todos, carácter leal, talvez de excessiva susceptibilidade e de temperamento acaso difícil. [Recorde-se que Manuel Gomes de Araújo foi subsecretário da Guerra, com Santos Costa, entre 6-9-44 e 4-2-47, e depois ministro das Comunicações desde esta última data até 14-8-58]. Está Costa Leite disposto a deslocar-se imediatamente a casa de Gomes de Araújo, expor a situação, e fazer o convite em nome de Salazar? Pelas 11 horas da noite, Araújo havia aceite desempenhar as funções de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. E que nomes são possíveis para os cargos de ministro do Exército e de subsecretário de Estado do Exército? E para outras chefias e comandos militares? São ventilados os nomes do brigadeiro Mário Silva e do tenente-coronel Jaime da Fonseca para os cargos de ministro e de subsecretário. E enquanto decorre esta conversa em casa de Gomes de Araújo, Salazar recebe Quintanilha Dias, ministro da Marinha, que acaba de regressar de França. Expõe-lhe a delicadeza do momento. Quintanilha precipita-se a casa do almirante Sousa Uva, chefe do Estado-Maior da Armada, e depois seguem ambos para o Ministério da Marinha. Poucos momentos passados, a Marinha de Guerra entra em prevenção rigorosa. Está de volta Costa Leite à residência de Salazar, comunica que Araújo aceita o convite; e é decidido convidar ao outro dia Mário Silva e Jaime da Fonseca. Entretanto, estando também prevista a exoneração de Vasco Lopes Alves, por fortes e sérios motivos de saúde, Salazar oferece a pasta do Ultramar a Adriano Moreira, que tem desempenhado com brilho e dedicação política as funções de subsecretário; e aquele aceita. Nesta altura, Botelho Moniz está a dar ordens à Escola Prática de Infantaria, em Mafra, para fazer avançar sobre Lisboa dois batalhões operacionais. E como a noite de 12 para 13 de Abril está serena e tépida, Salazar, antes de se deitar, resolve descer ao parque da residência, e entrega-se a um longo, lento passeio, para lá e para cá.

Em 13 de Abril, pela manhã, Salazar expede duas cartas. Destina-se a primeira ao general Botelho Moniz: "É a segunda vez", escreve o chefe do governo, "que com pesar meu nos vemos obrigados a interromper a nossa colaboração no governo; mas os factos dos últimos dias não parece poderem levar a outra conclusão. Não desejo agora discutir as ideias de V. Ex.ª quanto a certos problemas; sabe que com muitas concordei. O Chefe de Estado porém encarregou-me de remodelar o governo e de continuar à sua frente. [Salazar tinha escrito após continuar as palavras "por algum tempo mais", que riscou]. Depois da conversa havida com o Senhor Presidente da República, da parte de V. Ex.ª e do Senhor Ministro do Exército, não há dignamente outra solução do que propor a exoneração de V. Ex.ª e do Col. Almeida Fernandes. Eu farei durante algum tempo o sacrifício de tomar conta da Defesa N.al no que espero todos me auxiliem, sobretudo no que respeita a Angola, único problema que no momento me interessa e aflige. Aproveito a oportunidade de agradecer a V. Ex.ª a sua prestante colaboração e atenções pessoais. Com toda a consideração, mtt. att. V.or e grato, Ol. Salazar. 13-4-61". Análoga na substância, é de teor diferente a carta para Almeida Fernandes, e talvez mais incisiva. Diz: "O Senhor Presidente da República entendeu não dever adoptar a sugestão apresentada pelo Sr. M.º da Defesa e por V. Ex.ª para a substituição do Ministério e encarregou-me de remodelar o actual Governo sob a minha presidência. É o que farei para obedecer às ordens do Chefe de Estado; parece-me porém que, dados os factos recentemente verificados e as conversações havidas com o Chefe de Estado, é impossível não propor a substituição de V. Ex.ª neste momento. Não queria oficializar o caso sem lhe dar esta satisfação e sem lhe agradecer a colaboração que teve a bondade de prestar-me no Governo. Como, segundo as nossas leis, o subsecretário acompanha o Ministro na exoneração, eu pedia a V. Ex.ª o favor de comunicar ao Coronel Costa Gomes este facto e transmitir-lhe da minha parte os agradecimentos que lhe devo pelos esforços realizados no subsecretariado quanto ao Ultramar e o apreço em que fiquei tendo o seu trabalho. Com toda a consideração de V. Ex.ª mtt. att. V.or e grato, Ol. Salazar. 13-4-61". [Estes dois textos constituem a transcrição rigorosa do manuscrito-rascunho do punho de Salazar. Talvez com variantes, não são documentos inéditos. Mas penso que a sua transcrição na íntegra se impunha nesta biografia]. E depois o chefe do governo completa o "expediente da crise": são lavrados os diplomas que exoneram Botelho Moniz, Almeida Fernandes, Costa Gomes, Vasco Lopes Alves, e os que nomeiam o presidente do Conselho para a gestão da Defesa Nacional, Mário Silva, para o Exército, Jaime da Fonseca para o subsecretariado da mesma pasta, Adriano Moreira para o Ultramar, Costa Freitas para o subsecretariado da Administração Ultramarina. Amaro da Costa é confirmado como subsecretário do Fomento Ultramarino. Por último, é assinado o diploma que exonera Beleza Ferraz e designa Gomes de Araújo para as funções de chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas.







Também naquela manhã dia 13 de Abril chega a Lisboa, vindo dos Estados Unidos, o general Albuquerque de Freitas, chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Viera por ordem de Botelho Moniz, dada na sua qualidade de ministro da Defesa. Mas Arriaga envia ao aeroporto os generais Mira Delgado e Francisco Chagas, e estes comunicam a Albuquerque de Freitas que o subsecretário da Aeronáutica deseja vê-lo imediatamente. Declina Freitas a instância, e afirma que, tendo sido chamado pelo ministro da Defesa, com este se avistará em primeira mão. Desloca-se a casa do general Botelho Moniz, que lhe refere os episódios dos últimos dias e reitera a sua posição política quanto à demissão de Salazar. Depois, Freitas comparece então no gabinete do seu subsecretário de Estado; é homem leal e de inteireza; e informa Arriaga de que, às cinco horas da tarde e no Departamento de Defesa Nacional, haverá uma reunião, convocada e presidida por Botelho Moniz, para ser decidida, em forma final, a manutenção ou a demissão de Oliveira Salazar, e a estratégia militar a ser seguida num caso e no outro. Entretanto, sabe-se por Lisboa, em meios políticos restritos, a notícia de que Moniz, para o caso de ser obtida a demissão de Salazar, conta com a conivência e a cooperação de Marcello Caetano; mas este apenas passaria a intervir publicamente quando triunfante o golpe militar. De posse da informação de Freitas, o subsecretário da Aeronáutica comunica-a a Belém e a S. Bento, e acrescenta que importa actuar antes das cinco da tarde. Por intermédio de Soares da Fonseca, tanto o presidente da República como o chefe do governo estão já a par dos planos de Botelho Moniz.

Com o chefe do governo encontra-se Mário de Figueiredo, seu amigo de há cinquenta anos, desde os tempos do Seminário de Viseu. Figueiredo está indignado, e quase desvairado; e ajuda a uma última demão nos textos preparados. E então pelo início da tarde, a Emissora Nacional suspende os seus programas e comunica que estão no Diário do Governo os decretos exonerando os ministros militares, e do Ultramar, e fazendo as novas nomeações. Pouco depois, pela rádio e pela televisão, Oliveira Salazar fala aos portugueses. É curto, incisivo: "Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do Governo que se verificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa palavra, e essa é Angola. Pareceu que a concentração de poderes da Presidência do Conselho e da Defesa Nacional, bem como a alteração de alguns postos noutros sectores das forças armadas, facilitaria e abreviaria as providências para a defesa eficaz da Província e a garantia da vida, do trabalho e do sossego das populações. Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão. Como um só dia pode poupar sacrifícios e vidas, é necessário não desperdiçar desse dia uma só hora, para que Portugal faça todo o esforço que lhe é exigido a fim de defender Angola e com ela a integridade da Nação". Enquanto o povo português é confrontado com a decisão do chefe do governo, assume as funções de chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas o general Gomes de Araújo. Este é homem firme, e de prestígio, e com autoridade natural, e actua rapidamente. Entra em contacto com outros responsáveis das Forças Armadas, e comandos das regiões militares, e a todos informa do novo estado de coisas; e a todos determina que não compareçam na reunião das cinco horas na Defesa Nacional. Por seu turno, Quintanilha Dias proíbe também a todos os chefes da Armada a sua presença. Pelas cinco da tarde, no Palacete da Cova da Moura [Sede do Departamento da Defesa Nacional], encontra-se ainda Botelho Moniz, acompanhado de Almeida Fernandes e Costa Gomes. Chegam alguns oficiais: o general Silva Domingues, governador militar de Lisboa; o general Valadas Tavares, comandante da 1.ª Região Militar, com Quartel-General no Porto; o general Meira e Cruz e o brigadeiro Pires Barata, primeiro e segundo comandantes da 2.ª Região Militar com sede em Tomar; e ainda alguns oficiais com altos postos na administração do Exército, além dos oficiais do gabinete de Botelho Moniz. Comparece também, trajando civilmente, o antigo presidente da República, marechal Craveiro Lopes [segundo testemunhas idóneas, Craveiro Lopes transportava numa mala o seu uniforme, para se fardar após o triunfo do golpe de Estado]. E surge o general Albuquerque de Freitas, em exercício das suas funções de chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Freitas fala aos presentes: dentro da legalidade, o general Botelho Moniz já não é ministro da Defesa, os coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes também já não são membros do governo; o novo chefe do Estado-Maior-General já tomou as suas providências; não é possível contar com o Estado-Maior do Exército nem com o da Armada; nem tão-pouco com qualquer oficial-general da Força Aérea, salvo ele próprio, Albuquerque de Freitas; não é possível contar com a maioria das unidades; estão firmemente ao lado do Governo as corporações militarizadas; nenhuns outros chefes militares vão comparecer na reunião; se se quiser prosseguir no projecto que ali os juntou, haverá que usar a força; essa decisão está para além de todos os planos; se tomada, seria de resultados mais que duvidosos; perderam-se quarenta e oito horas, que o governo soube aproveitar; e por isso, sem embargo de pessoalmente ter assumido atitude ao lado dos ministros demitidos, entende que "é de renunciar", pois não se pretendia um acto de força mas uma ameaça tão esmagadora que por si seria bastante, e isso já não era possível. De Mafra chega uma notícia: o coronel Caeiro Carrasco atalhara e frustrara a vinda dos dois batalhões sobre Lisboa. Botelho Moniz parecia esperar a adesão maciça dos chefes militares; e é abatido pelo desalento, pela frustração, quando verifica o contrário. Estava finda a tentativa. Separam-se os que se haviam congregado para derrubar o chefe do governo. E ao fim da tarde o general Albuquerque de Freitas entrega na Presidência do Conselho um requerimento, dirigido ao novo ministro da Defesa, pedindo a sua passagem à situação de reserva. Depois Salazar recebe o subsecretário de Estado da Aeronáutica: é resolvido deferir o requerimento de Freitas. E perante o aspecto fatigado de Arriaga, comenta para este: "É natural, os Senhores andam para aí em conspirações".

Cai a noite. Salazar está só outra vez. Aparecem Maria Lívia e José Nosolini, que vêm ansiosos por notícias. Convida-os o chefe do governo para jantar. Descem os três ao parque da residência. Nosolini pergunta se Botelho Moniz e os que o seguem, apesar de demitidos, não poderão ainda tentar qualquer coisa. Responde Oliveira Salazar: "Sim, podem decerto. Mas se o fizerem vão ter dificuldades, vão ter dificuldades". E repete por entre as sombras do parque: "Vão ter dificuldades"».

Franco Nogueira («Salazar. A Resistência - 1958-1964», V).


«[13 de Abril de 1961]. Tratava-se, salienta Costa Gomes, de uma acção "preparatória de um golpe militar onde se destituiria o presidente do Conselho e, talvez também, o presidente da República", chegando mesmo a estar preparado um avião para conduzir Oliveira Salazar à Suíça».

Luís Nuno Rodrigues («Marechal Costa Gomes. No centro da tempestade»).




Guerra em Angola (1961). A caminho de Nambuangongo: tropas sob o comando de Armando Maçanita.



Aeródromo-Base N.º 3 no Norte de Angola  (7 de Fevereiro de 1970).







Frota de helicópteros Allouette III estacionados no Luso






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«Havia princípios nos comandos que eram fundamentais: o culto da Pátria e a mentalização. Esclarecíamos os homens porque é que fazíamos a guerra, falávamos do passado e da história, tínhamos fotografias de quando o terrorismo começou em Angola em 1961. Mulheres e homens violados e com os membros decepados e os filhos e crianças mortos perto deles, com paus espetados nas vaginas e no ânus. Hoje já caiu muito no esquecimento e há muito pouca gente em Portugal que se lembre disso. Mas eu lembro-me, tenho fotografias guardadas. No curso dos comandos, avivávamos constantemente isso, os milhares de brancos que foram chacinados em Angola. Por exemplo, agarravam num branco, prendiam-no a uma árvore e violavam a mulher, as filhas e depois rasgavam-nas e matavam-nas à sua frente. Morreram milhares de brancos assim. A nossa preparação era muito dura mas assentava em duas coisas: nós sabíamos porque é que íamos fazer a guerra, sabíamos que a tínhamos que fazer e recebíamos uma preparação técnica elevada. Foi por isso que o nosso número de baixas em combate foi pequeno, em relação às outras unidades: em toda a guerra tivemos cerca de 395 mortos nos comandos, mas perto de 300 morreram em acidentes.

[...] A partir de 1971, para mim, houve um lapso que o general Kaúlza de Arriaga cometeu: uma curta avaliação do inimigo. Ele considerou, provavelmente, que o rio Zambeze era uma barreira intransponível ao terrorismo. Mas para o terrorismo não havia barreiras, quanto mais um rio. Por mais largo que o rio fosse, eles atravessavam para o outro lado e acabou. Devo dizer, no entanto, que o senhor general Kaúlza de Arriaga foi o oficial general mais lúcido, inteligente e brilhante com que trabalhei em África».

Jaime Neves («Mama Sume!», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«O Ramada Curto e o Cunha Leal, dois homens da oposição, fizeram em 1961 um comunicado dizendo que o que se estava a passar em Angola era muito grave e, como tal, o Governo tinha obrigação de defender Angola. Portanto, a oposição devia, nesse aspecto, não perturbar a defesa de Angola. Devia haver uma espécie de trégua, de pausa política, por causa da gravidade da situação em Angola. Nós, militares, estávamos nos quartéis mas sabíamos o que se estava a passar, o que se tinha passado no Congo, no Quénia, na Índia, na Argélia. Houve um livro francês interessantíssimo que na época foi best-seller: Os Centuriões. Todos nós lemos. De repente, deram-se os grandes massacres de 1961. Muita gente em Portugal quer esquecer isso, por cumplicidade da cultura portuguesa com os movimentos de libertação. A verdade é que nunca houve outros massacres daquela violência, naquele espaço de tempo, numa única noite. Talvez em sítio nenhum se tenha matado tanta gente. Eu ainda vi as casas abandonadas com vestígios nas paredes de cabelos e restos de pele de bebé, que foram agarrados pelos pés e mortos nas paredes. Atiravam-nos à parede e estouravam-lhes a cabeça. Quando aconteceram os grandes massacres de Março, imediatamente percebemos que tínhamos de ir para Angola. Eu achei que devia ir».

Ricardo Durão («Os centuriões», in José Freire Antunes, «A Guerra de África - 1961-1974», Vol. I).


«Quanto às mudanças de governo, o Chefe de Estado tem constitucionalmente e de facto toda a liberdade de agir. E é meu parecer que não deve fugir a exercê-la quando oportuno ou necessário. Mas essa faculdade constitucional, toda a gente estará de acordo, não pode desprender-se nem das circunstâncias, nem das pessoas, nem das suas ideias e projectos quanto aos problemas nacionais. O Chefe de Estado é a garantia suprema da vida e progresso da comunidade nacional. A Ele se pedem as últimas responsabilidades por que o interesse comum não tenha sido realizado nem a vida da grei defendida. Ele tem de responder perante todos e perante a sua própria consciência pela integridade e sobrevivência da Nação. Assim não basta a qualquer afirmar-se ou sentir-se patriota para o que o Chefe de Estado lhe confie o encargo de presidir ou constituir um governo; é necessário que os pressupostos de que esse alguém parte, os princípios que vai aplicar, os métodos que adopte convincentemente levem aos fins propostos ou desejados.

Ao que todos pudemos assistir a presente campanha foi na verdade triste e altamente preocupante: os problemas básicos da política internacional e ultramarina foram versados de modo a não servir, antes a prejudicar os interesses da Nação. A argumentação repetida foi a dos inimigos de Portugal; e não pode constituir honra para ninguém que as oposições sejam saudadas pelos que combatem contra Portugal aqui, na ONU ou no Ultramar.  Conhecimento mais completo dos motivos da campanha movida contra o País nos meios internacionais e que conduziram e alimentam a guerra contra territórios portugueses, aconselharia as oposições a maior discrição e a não serem cá dentro o joguete de grandes interesses em causa. As oposições tiveram a maior dificuldade em sacar do imbróglio das suas concepções o reconhecimento da integridade da Nação como imperativo dos Portugueses, e do dever de a defender; mas os que não são cegos compreendem que, pelos caminhos entrevistos e mal definidos, não se chegaria a garanti-la efectivamente, como todos disseram desejar.

Entretanto a nossa gente bate-se e morre em Angola, como já se bateu e morreu noutras partes do território ultramarino. Bate-se e morre pelo Governo actual? Que ideia! Vai bater-se amanhã pela democracia? Que engano! Bate-se e bater-se-á com este ou outro Governo pela Nação que é uma realidade tangível, e que o povo sente bem na pureza do seu instinto patriótico e à margem da torcida filosofia dos doutores.

Diante de coisas tão sérias como sermos ou não sermos, cumprirmos ou não cumprirmos a nossa missão no Mundo, eu sou o primeiro a não estranhar que o Chefe do Estado não tenha entregue o Governo aos oradores da oposição.

Temos pois de concluir que foi cometido grave erro por alguns condutores do povo, e que tem de ser o mesmo povo, cerne da Nação, a corrigir agora tal erro no acto eleitoral. Ele tem de corroborar por votações maciças uma política de salvação nacional; ele tem de destruir a ideia que pudesse ficar deste debate de um país dividido que não conheceria o seu norte. O que se passou há-de entender-se apenas como a infelicidade de alguns pastores se haverem perdido nos caminhos da serra, sem terem conseguido extraviar o rebanho.

O povo português compreende a minha linguagem. Sabe que nada me interessa senão servir o melhor possível o interesse comum. E se eu lhe digo que a retaguarda é para ser defendida tal como a frente em África ou na Índia, é porque sei que isso é condição da vitória e esta tem de ser ganha por todos».

Oliveira Salazar («Apelo ao Povo», SNI, 1961).






«A Revolução de 28 de Maio de 1926 e o Estado Novo, que se lhe seguiu e dela foi decorrente, constituíram uma indispensabilidade nacional resultante da situação caótica e de ruptura a que a Primeira República havia conduzido o País, em todos ou quase todos os sectores e particularmente no das finanças públicas. Foram chefes militares que sentiram aquela indispensabilidade e souberam, primeiro, estabelecer uma ditadura de sentido construtivo e redentor e, depois, admitir e conseguir, acabando por se lhe entregar plenamente, que um homem de génio, surgido em Coimbra - o Professor Doutor António Oliveira Salazar - dirigisse o País. Este criou, com a Constituição de 1933, o Estado Novo que chefiou até 1968, ano em que por doença, motivada ou acelerada por uma queda, teve de abandonar o poder.

Nestes trinta e cinco anos, o Estado Novo, além de continuar e terminar a Obra, iniciada pela ditadura, de reorganização geral do País, e particularmente de sua reconstrução financeira, teve de Enfrentar e Resolver quatro conjuntos de Grandes Problemas, que principalmente o Estrangeiro fez incidir sobre Portugal. Foram eles: os problemas decorrentes da Guerra de Espanha, ocorrida de 1936 a 1939; os problemas consequentes da Segunda Grande Guerra, que teve lugar de 1939 a 1945; os problemas devidos à expansão dos regimes democráticos pluralistas, após a referida Segunda Grande Guerra; os problemas relativos ao Ultramar Português, intensificados na década de 50 e, sobretudo, na década de 60.

São aquela Obra e o Enfrentamento e Resolução destes conjuntos de Grandes Problemas que, em termos de história, caracterizam o Estado Novo e facultam a formulação de um seu juízo. Assim:

1. A obra de reorganização geral do País, e particularmente de sua reconstrução financeira, foi realização notabilíssima que, só por si, justificou e elevou o Estado Novo e Salazar.

Mas, não posso deixar de referir, como ponto bem negativo, o facto de certos princípios de estrita economia continuarem, mesmo depois de desnecessários, a aplicar-se com prejuízo, por vezes acentuado ou mesmo grave, de realizações importantes.

2. Na Guerra de Espanha, estava fundamentalmente em causa a comunização ou não do país e, por arrastamento, a de Portugal, isto é, de toda a Península Ibérica, com severas consequências para a Europa e para o Ocidente em geral. A posição e acção de Salazar e dos Portugueses sobre o próprio conflito espanhol e, relativamente a ele, em âmbito internacional, contribuíram muito significativamente, mesmo quase decisivamente, para que a boa causa, a causa não-comunista, vencesse em Espanha. Foi outro serviço notabilíssimo prestado pelo Estado Novo, mas agora, não só a Portugal, como à Espanha e a toda a Comunidade Internacional Civilizada.

3. Relativamente à Segunda Grande Guerra, a atitude e a actuação de Salazar e dos seus Governos podem sintetizar-se nos três aspectos dominantes seguintes: o de preservar os Portugueses dos efeitos mais dolorosos da guerra; a contribuição muito significativa, igualmente quase decisiva, para a manutenção da neutralidade da Espanha; e o apoio oportuno dado à Causa Aliada, com a concessão de facilidades nos Açores, às respectivas forças armadas.

A grande vantagem em preservar os Portugueses dos efeitos mais dolorosos da guerra é evidente, até porque foi conseguida com satisfação, pelo menos final, dos próprios Aliados.

A contribuição para a manutenção da neutralidade de Espanha, neutralidade essencial para a Causa Aliada, foi serviço maior prestado a esta Causa. O alinhamento espanhol com a Alemanha de Hitler teria tido a projecção negativa de dimensão imprevisível no decurso e resultado da guerra. Salazar, que já tinha contribuído para evitar a comunização de Espanha, como recordei, contribuiu, agora, para evitar a sua nazificação.







Oliveira Salazar




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Igualmente, a concessão de facilidades, nos Açores, às forças aliadas, muito importante para estas forças, efectivou-se oportunamente e sem qualquer afectação da soberania nacional, constituindo acto de grande relevância. Tal, não só por mostrar explicitamente a posição de Portugal na guerra, como por permitir reforço considerável do controlo pelas forças aliadas - controlo que lhes era indispensável - das comunicações marítimas e aéreas no Atlântico Norte. Assim e relativamente à Segunda Grande Guerra, o Estado Novo houve-se por forma superiormente meritória, no referente a Portugal, no referente aos Aliados e, em consequência, no referente ao Mundo em geral.

4. A ditadura estabelecida em 1926 era, por natureza, autoritária e o Estado Novo, que a substituiu, manteve certo autoritarismo - embora limitado pelo Direito e pela Moral Cristã, e, assim, muito afastado do dos sistemas, que pelo menos em parte lhe foram contemporâneos, de Franco, de Mussolini, de Hitler e de Estaline - e fez vigorar um regime de partido único. Com a vitória, em 1945, na Segunda Grande Guerra, das democracias ocidentais sobre as potências totalitárias - embora a URSS supertotalitária tivesse continuado a crescer em poder e agressividade -, verificou-se no Ocidente uma expansão dos regimes democráticos pluralistas. De tal resultaram pressões intensas sobre Portugal, considerando-se que, após já mais de vinte anos de regime autoritário - embora autoritarismo limitado pelo Direito e pela Moral cristã, e não totalitário -, seria o momento de o Estado Novo dar lugar a uma democracia pluralista. Mas havia pelo menos uma razão decisiva - repete-se decisiva - que impedia o estabelecimento, na época, em Portugal, dessa democracia pluralista. É que a influência que, em semelhante democracia, poderia surgir e decerto surgiria da parte de movimentos esquerdistas, inclusivamente socialistas-democráticos e socialistas-comunistas, conduziria à impossibilidade de manter a integridade do Conjunto Português - Metrópole e Ultramar -, mesmo dentro da Solução Portuguesa e da Política Ultramarina Portuguesa, que adiante se referirão. Insiste-se: o estabelecimento, então, de uma democracia pluralista em Portugal teria como consequência, imediata ou a curto prazo, a perda do seu Ultramar.

Assim, o Presidente Salazar teve que lutar, a nível externo, contra as pressões em causa, procurando fazer aceitar internacionalmente a continuação do Estado Novo com características que tinha e sempre tivera. Foi luta árdua, mas que se saldou por um sucesso, concretizado com o ingresso de Portugal na NATO, em 1949, onde ficou a par precisamente das democracias ocidentais vencedoras da Segunda Grande Guerra, e com o seu ingresso na EFTA, em 1959, onde ficou em paralelo com as democratíssimas Inglaterra e Suécia. Foi o reconhecimento, pela Comunidade Internacional Civilizada, do regime português e foi um grande triunfo do Estado Novo.

5. Salazar emergiu como político financeiro que depressa se revelou de excepção, prioritariamente empenhado na reconstrução financeira do País, e apenas como eventual estadista. Desta circunstância resultou o facto de, desde início, não ter encarado o Ultramar Português na plenitude da sua essência específica e única no Mundo. É disso consequência o Acto Colonial de 1933, que, alinhando de algum modo com outros países europeus possuidores de territórios no Ultramar, estava imbuído de certo e anacrónico espírito de império.

Porém, com a sua enorme capacidade, Salazar assumiu, progressiva e firmemente, a qualidade de estadista pleno, que, no seu zénite, foi mesmo um dos melhores de todos os tempos em Portugal. E logo teve lugar a evolução do Conceito Ultramarino Português, considerando entre outros, embora com algum atraso face à essência da fórmula portuguesa, os princípios actuais decorrentes dos direitos dos homens e dos povos, e terminando por se definirem uma Solução Portuguesa e uma Política Ultramarina Portuguesa, correctas no acerto, realismo e modernidade. Podem enunciar-se, como segue, as bases dessa solução e dessa política:


Bases então já explicitadas

a) Manutenção firme do conjunto unido dos territórios portugueses, europeus e ultramarinos.

b) Promoção, o mais acelerada possível, do seu progresso económico, social e político, em particular educacional, de saúde e cívico.

c) Intensificação da implantação, nos mesmos territórios, da paridade, harmonia e dignificação étnicas, da coexistência de religiões e crenças, e da conciliação de culturas e tradições - proposições fulcro da Solução Portuguesa. E proposições implicando objectivos, a prazo e de começo necessariamente tendenciais, de plenitude de cidadanias, de equivalentes posições iniciais e iguais oportunidades, de vigência dos mesmos direitos e deveres, e de acesso a situações económicas, sociais e políticas conseguido em face do valor real, da iniciativa havida e da actividade desenvolvida.

d) Tudo com a finalidade da consecução de um elevado grau de desenvolvimento global.



Bases então a explicitar oportunamente

e) Conseguido esse grau de desenvolvimento permissor de autodeterminações autênticas - proposição fulcro da Política Ultramarina Portuguesa -, informação por forma exaustiva e isenta das populações dos territórios sobre as características e modus faciendi dos diversos arranjos políticos possíveis - unidade, federação, confederação, comunidade ou separação total -, e sobre a natureza e positividade, no momento, e projecção eminentemente válida, no futuro, da Solução Portuguesa.

i) Em seguida, consulta geral e igualmente isenta das mesmas populações sobre os arranjos políticos em verdade desejados.

g) Por fim, adopção efectiva e rigorosa das opções verificadas na consulta.

h) Tudo prevenindo interferências estrangeiras ou de terceiros.

Contudo, o Presidente Salazar estava convicto, em face de boas razões, de que a explicitação, na época, das quatro últimas bases, mesmo em círculos fechados e em termos confidenciais, desencadearia uma imparável corrida às autodeterminações, que anularia por completo a política de autodeterminações autênticas. Tal explicitação só deveria ter lugar mais tarde e em tempo oportuno.

Deste modo ficou estabelecido, embora com uma parte ainda não explicitada, o novo e correcto Conceito Ultramarino Português, abrangendo a Solução e a Política Ultramarina Portuguesas. E foi com fundamento neste conceito que o Estado Novo teve a grandeza de manter a decisão de defender, a todo o custo, a integridade do Conjunto Português, facultando simultaneamente ao Mundo exemplo maior no plano étnico-social. Exemplo que, de resto, este Mundo mal aproveitou, como mostra a multiplicação dos conflitos raciais, religiosos e culturais que se vêm verificando.

Mas, à correcção do novo Conceito Ultramarino Português e à grandeza da decisão de defender a todo o custo o Conjunto Português, não correspondeu totalmente a respectiva Execução. Esta processou-se com erros vários, não pouco denunciados oportunamente mas nem por isso corrigidos e alguns até acentuados após os fins da década de 50, dada a idade já avançada de Salazar e, depois, dada a personalidade de Marcello Caetano. Entre eles, contam-se os seguintes: o limitado impulso e mesmo condicionamentos bem negativos postos no povoamento branco do Ultramar Português, erro que prejudicou o desenvolvimento da sociedade multirracial; a não integração económica do Conjunto Português, integração que teria consolidado fortemente a unidade política; a falta de preparação contra-subversiva, em tempo plenamente útil, das forças nacionais, incluindo o não estabelecimento de uma estratégia a nível, pelo menos, dos territórios metropolitanos e africanos portugueses, o que teria permitido o emprego, na guerra ultramarina de 1961-74, de menor volume de meios e um sucesso, nessa guerra, muito mais rápido.

De qualquer modo e mesmo com tais erros, se não tivessem tido lugar equívocos imensos de alguns Portugueses e, mais gravemente, apostasias e traições inconcebíveis de outros, o Conjunto Português ter-se-ia mantido e seria hoje, no Mundo, um dos espaços de grande justiça e de grande prosperidade. Bem em contraste com as dificuldades com que se tem debatido o que, após a descolonização, restou de Portugal, e com a opressão, a miséria e o sofrimento que se abateram inexoravelmente sobre quase todo o antigo Ultramar Português.

6. E parece exacta a seguinte síntese. Para além da notabilíssima reorganização geral do País, particularmente da sua reconstrução financeira; para além das atitudes, posições e acções, também notabilíssimas e superiormente meritórias, relativas à Guerra de Espanha e à Segunda Grande Guerra, e para além do triunfo do reconhecimento do regime português pela Comunidade Internacional Civilizada; seria o Conjunto Português, pluricontinental e multirracial, de grande justiça e de grande prosperidade, a Obra maior do Estado Novo. Contudo, embora com algumas responsabilidades deste, mas fundamentalmente como consequência dos equívocos, apostasias e traições citados, uns e outras impensáveis, verificou-se a queda do Estado Novo e com ela o desmoronamento do Conjunto Português, com prejuízo total daquela Obra.

7. Em consequência de tudo o exposto, o Juízo ponderado, em termos de História, do Estado Novo de Salazar é altamente positivo».

Kaúlza de Arriaga (in Jaime Nogueira Pinto, «Salazar visto pelos seus próximos - 1946-68»).








GUERRA E POLÍTICA


A. O COMEÇO DA LUTA EM ANGOLA (1)


A Força Aérea, na previsão das situações que iriam verificar-se no Ultramar Português, particularmente em Angola e Moçambique, e com antecedência, fez os necessários reconhecimentos naquele Ultramar (1958), estabeleceu os convenientes contactos na África Austral (1959) e promoveu mesmo a realização de um grande exercício (1959) - a operação Himba -, na qual meia dúzia de aviões de combate, uma dezena de aviões de transporte e uma centena de pára-quedistas se deslocaram, com escalas na Guiné e em S. Tomé, a Angola. E, entrando no domínio das realizações, a Força Aérea preparou os respectivos planos de infra-estruturas aéreas e começou a reunir os meios aéreos possíveis. Foram estes actos militares - reconhecimentos, estabelecimento de contactos, operação Himba, planos de infra-estruturas aéreas e reunião de meios aéreos - os primeiros ou dos primeiros tendo em vista a prevenção das futuras agressões antiportuguesas em África.

Os reconhecimentos tiveram lugar sob a direcção do General Venâncio Deslandes que, com um grupo de oficiais, se deslocou a todas as Províncias Africanas Portuguesas. Os contactos foram estabelecidos pelo então indigitado Comandante da Região Aérea de Angola, Coronel Fernando Pinto Resende, e disseram respeito a Angola, aos antigos Congo Belga e Congo Francês, e à República da África do Sul. A operação Himba, na qual participou o próprio Subsecretário de Estado da Aeronáutica, foi tecnicamente dirigida pelo Brigadeiro João Albuquerque de Freitas e nela, além de em termos concretos se firmar a rota aérea da Metrópole para a África Portuguesa, se fizeram demonstrações de ataque ao solo e de pára-quedismo de combate, em Luanda e noutras cidades angolanas.

Com base nos conhecimentos realizados, os planos das infra-estruturas aéreas para a África Portuguesa - Guiné, S. Tomé e, sobretudo, Angola e Moçambique - foram preparados na Força Aérea e foram sendo oportunamente enviados à Defesa Nacional, para aprovação ou correcção. Porém, aquela Defesa Nacional manteve-se, apesar de todas as insistências, silenciosa em relação a tais planos. Cansado de esperar e principalmente sentindo a aproximação de perturbações subversivas, prioritariamente em Angola, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica tomou a iniciativa de sucessivamente mandar executar aqueles planos. Foi uma decisão ousada, dados os planos, sem apoios superiores, serem executados a distâncias enormes e em regiões com muito poucos recursos, e dado serem condicionados pela dimensão de Angola e Moçambique, e, assim, grandes e dispendiosos.

Mas foi, também, a decisão que mais contribuiu, ou pelo menos uma das que mais contribuíram, para se fazer face, com sucesso, à fase inicial da subversão em Angola e posteriormente, para se fazer face, também com sucesso, a toda a subversão na mesma Província e talvez especialmente em Moçambique.

Ao lançamento das infra-estruturas aéreas e, na medida em que estas os iam podendo absorver, seguiu-se o envio progressivo para o Ultramar dos meios aéreos em acelerada reunião, o que foi feito com a concordância passiva da Defesa Nacional. Em Angola, os meios enviados eram rapidamente empregados em operações.

Porém, a Defesa Nacional e o Exército, ou pelo menos os seus chefes supremos, Ministros, Subsecretário de Estado e Chefes do Estado-Maior, numa cegueira espantosa, proclamavam, antes de 15 de Março de 1961, que o que se previa passar em Angola era um problema pouco mais do que policial que não exigia grande e apressada atenção das Forças Armadas, cuja missão fundamental continuava a ser a contribuição para a NATO. E, mesmo após uma estada em Angola, no período em que ocorreram os gravíssimos e sangrentos acontecimentos de 15 de Março de 1961 (2), os Chefes do Estado-Maior General e do Estado-Maior do Exército, Generais Beleza Ferraz e Câmara Pina, mantendo a sua cegueira, continuaram a proclamar que o que sucedeu e sucedia em Angola era uma questão simples que não exigia providências das Forças Armadas, em vasta escala e urgentes.

No alertar da Metrópole para o que realmente sucedia em Angola, teve capital importância a acção do Brigadeiro Fernando Pinto Resende, já Comandante da Região Aérea de Angola. O Brigadeiro Pinto Resende, desde Fevereiro de 1961, em mensagens sucessivas para a Subsecretaria de Estado da Aeronáutica, descrevia a situação como ela de facto era e solicitava medidas rápidas e na dimensão adequada, sem o que, dizia, a manutenção de Angola portuguesa se tornava difícil, com tendência para o impossível. O Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, General Albuquerque de Freitas, apoiava decididamente a posição do Brigadeiro Pinto Resende. Dessas mensagens, eram enviadas, com pareceres concordantes do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, cópias à Defesa Nacional e à Presidência do Conselho de Ministros. A Defesa Nacional reagia mal, tendo mesmo pretendido obrigar o Subsecretário de Estado da Aeronáutica a demitir o Brigadeiro Pinto Resende de Comandante da Região Aérea de Angola - o que o Subsecretário ignorou -, por tratar de assuntos que lhe não diziam respeito e por alarmista. A Presidência do Conselho registava e certamente pensava em agir. Uma das consequências das mesmas mensagens foi a viagem a Angola, promovida pelo Presidente do Conselho de Ministros, do Ministro do Ultramar, Almirante Lopes Alves. Esta viagem teve lugar com começo em fins de Março e foi, de Lisboa - base aérea do Montijo - a Luanda, feita secretamente, tendo o Subsecretário de Estado da Aeronáutica sido encarregado da organização desta parte secreta da viagem. O Ministro do Ultramar, homem muito inteligente e ponderado, de Luanda, e após o seu regresso, em Lisboa, confirmou plenamente a posição da Força Aérea, expressa, há perto de dois meses, pelo Brigadeiro Pinto Resende, pelo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea e pelo Subsecretário de Estado da Aeronáutica. E considerou que uma subversão, com terrorismo e um pouco de guerrilhas, estava a ter e teria lugar em Angola.






De acordo com o que ficou dito, na fase inicial da subversão nesta Província, foram os meios operacionais da Força Aérea, já ali semi-instalados, que permitiram, não só evacuar pessoas, doentes e feridos, mas sobretudo enfrentar o inimigo. Também a Força Aérea estabeleceu uma ponte aérea embora limitada - a compatível com as possibilidades -, entre a Metrópole e Luanda, para transporte de meios de reforço, constituídos por forças pára-quedistas e algumas de caçadores. Estes reforços ajudaram muito, naquela fase inicial da subversão, a combater o inimigo. Este foi controlado.

Por outro lado, teve lugar a tentativa de golpe de Estado na Metrópole, que ficou conhecida pelo "13 de Abril". Esta tentativa de golpe de Estado encabeçada pelo General Botelho Moniz, Ministro da Defesa Nacional, mas tendo como promotor principal o General Costa Gomes, Subsecretário de Estado do Exército, dirigia-se contra a pessoa do Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, e contra a sua política ultramarina.

O Prof. Dr. Oliveira Salazar, um dos melhores estadistas portugueses de todos os tempos, patriota acima de tudo, totalmente dedicado, durante um consulado de cerca de 40 anos, à causa do País, político especialmente conhecedor de questões internacionais, produziu, em termos nacionais, uma Obra ímpar, e doutrinou, para o Mundo, com especial clarividência e presciência. Contudo, a idade não perdoa e Oliveira Salazar deveria, para bem acrescido do País e para seu ainda maior prestígio, ter deixado a Chefia do Executivo nos anos 50, ascendendo à Presidência da República ou abandonando o Poder. E deveria ter sido substituído por alguém que tivesse capacidade para continuar Portugal.

Quanto à sua política ultramarina, tal como se definiu (3), ela era indiscutível no seu acerto, realismo e modernidade. Do que carecia essa política, era de uma Execução, particularmente no plano estratégico, que a servisse com a altura, a inteligência e a dinâmica adequadas.

Perante e apesar do que ficou dito sobre Salazar, repugnava em definitivo que contra ele tivesse lugar qualquer acção de força. Repugnância que aumentava pelo facto do golpe ser, como se referiu, encabeçado por um seu Ministro que nesta posição lhe devia especial lealdade (4).

Também não existia, nos golpistas ou pessoas provavelmente a eles ligadas, ninguém que tivesse a tal capacidade para continuar Portugal.

Mas um golpe de Estado contra a política ultramarina de Salazar constituía uma irracionalidade, uma apostasia nacional e um mau serviço prestado à Humanidade. Acresce que, praticamente e no imediato, o golpe teria em Angola uma projecção catastrófica, provocando uma diminuição drástica no moral dos poucos defensores e um grande impulso no terrorismo, factos que, quase certamente, conduziriam à perda da Província.

Por todas estas razões, procurou-se combater o golpe e anulá-lo antes do seu início efectivo, o que se conseguiu. Abortado ele, novos Ministros da Defesa Nacional e do Exército, e novo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, respectivamente, Oliveira Salazar, Mário Silva e Gomes de Araújo, foram nomeados (5). Em reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional, que se seguiu, assentou-se nas medidas a tomar depressa e em força, em relação a Angola. No fim da reunião, Salazar chamou de parte Kaúlza de Arriaga para lhe recomendar e pedir o aceleramento máximo do envio de meios para aquela Província.

Pouco após o "13 de Abril", o também novo Ministro do Ultramar, Adriano Moreira, e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, fizeram uma importante viagem a Angola e particularmente às regiões atingidas pela subversão.

Foi no decorrer desta viagem que os dois membros do Governo assistiram ao desfile, na Avenida Marginal de Luanda, do primeiro grande contingente de tropas - cerca de 2000 homens - que o Exército enviou, por via marítima, para Angola. Foi um desfile emocionante, feito perante as lágrimas de júbilo da população. O Exército começara a intervir em força. Tinha-se iniciado a contra-ofensiva portuguesa.


"O 13 DE ABRIL DE 1961" (6)


No primeiro semestre de 1960, as relações entre o Ministro da Defesa Nacional, General Botelho Moniz, e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, Coronel Kaúlza de Arriaga, não cessaram de se agravar.



Kaúlza de Arriaga na Barragem de Cabora Bassa (Moçambique).







O Subsecretário de Estado da Aeronáutica sentia-se bloqueado e curto-circuitado. Bloqueado pela enorme demora com que o Departamento da Defesa Nacional considerava os assuntos relativos à Força Aérea e pelas muitas dificuldades que o mesmo Departamento punha na solução de tais assuntos. Curto-circuitado pelas directivas que, partindo do Ministro da Defesa Nacional, lhe não eram transmitidas, mas dadas pelo Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, General Beleza Ferraz, ao Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, General Albuquerque de Freitas.

Em Julho de 1960, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica voltou a manifestar pessoalmente ao Presidente do Conselho de Ministros, Prof. Dr. Oliveira Salazar, a suas preocupações sobre a defesa da África Portuguesa.

Em 3 de Agosto, enviou ao Presidente um "memorandum", no qual sintetizava aquelas preocupações e solicitava a convocação do Conselho Superior de Defesa Nacional para análise do assunto e definição de responsabilidades.

Pouco depois, teve efectivamente lugar a reunião daquele Conselho. Nele, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica desenvolveu o constante do referido "memorandum". O Ministro do Exército, Coronel Almeida Fernandes, e o Subsecretário de Estado do Exército, Coronel Costa Gomes, discordaram do exposto e preconizado pelo Subsecretário de Estado da Aeronáutica. O Ministro da Defesa Nacional discordou também e, decorridos alguns dias, enviou à Subsecretaria de Estado da Aeronáutica um documento, no qual confirmava a orientação até então seguida e repudiava as ideias novas do Subsecretário de Estado da Aeronáutica. O Presidente do Conselho de Ministros não se manifestou.

No último trimestre de 1960, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica e o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea decidiram enviar para Angola as primeiras forças aéreas. O Departamento da Defesa Nacional não se opôs e a decisão foi executada.

No final de 1960 e começo de 1961, tiveram lugar os acontecimentos da baixa de Cassanje, em Angola, e logo foi assaltado o paquete Santa Maria.

As forças militares que actuavam na baixa do Cassanje adquiriram a convicção de que a causa fundamental dos acontecimentos era a exploração dos trabalhadores pretos levada a efeito pelas empresas algodoeiras. E verificava-se tendência para se generalizar nas Forças Armadas o conceito errado de que, em África, defendiam não o País mas sobretudo os interesses de alguns capitalistas.

Dado existir realmente, na referida região de Cassanje, injustiça social e dado o perigo daquela tendência, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica focou o assunto no Conselho Superior Militar e pô-lo directamente ao Presidente do Conselho de Ministros. Este, surpreendido, prometeu formalmente que seriam alteradas as condições de trabalho na região em causa, por forma a passar a vigorar um sistema socialmente justo.

Em Fevereiro de 1961, teve lugar o assalto a um posto da Polícia de Luanda.

Em 25 de Fevereiro, os Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, Generais Beleza Ferraz e Câmara Pina, partiram para Angola.

Em 15 de Março do mesmo ano, eclodiu a rebelião terrorista no distrito do Congo. Algumas, pouquíssimas, forças militares brancas existentes - ninguém no momento julgou conveniente o emprego de tropas negras - ajudadas pela população civil branca, tiveram de limitar-se à defesa dos principais centros populacionais, abandonando todo o resto do Congo aos terroristas.

Da Metrópole foram enviados alguns, muito reduzidos, reforços e o Ministério do Exército preparou um plano de envio de mais tropas. Este, dado os seus dilatados prazos, não podia considerar-se adequado.






A gravidade da situação aumentava.

Em 21 de Março, o Ministro do Ultramar, Almirante Lopes Alves, partiu também para Angola.

Pouco depois do regresso de Angola - 27 de Março - dos Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica foi convocado, pelos procedimentos usuais, para uma reunião do Conselho Superior Militar.

Igual convocação recebeu o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

Quando, porém, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica chegou ao Departamento da Defesa Nacional, o Ministro da Defesa Nacional disse-lhe que devia haver qualquer mal entendido, pois que não era o Conselho Superior Militar mas sim o Conselho Superior do Exército que se reunia, para ouvir exposições dos Chefes do Estado-Maior General e do Estado-Maior do Exército, recém-chegados de África, sobre a situação em Angola (7).

O Subsecretário manifestou a sua surpresa, mas declarou que, sendo assim, se retirava juntamente com o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea. O Ministro respondeu que este, sim, estava convocado para assistir à reunião como observador, tal como sucedia com o Chefe do Estado-Maior da Armada, Almirante Sousa Uva.

No dia seguinte, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea informou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica de que, no final da reunião, tinham sido distribuídas, a todos ou quase todos os presentes, cópias de uma carta, datada de Março de 1961 e dirigida ao Presidente do Conselho de Ministros pelo Ministro da Defesa Nacional, na qual se faziam duras censuras à acção do Governo.

Os Chefes do Estado-Maior General e do Estado-Maior do Exército, em face do que observaram em Angola, consideravam, teimosamente, estar a situação militar praticamente resolvida, havendo apenas que realizar acções de limpeza e de policiamento.

Pelo contrário, o Comandante da 2.ª Região Aérea, Brigadeiro Pinto Resende, vinha enviando à Subsecretaria de Estado da Aeronáutica mensagens nas quais informava que a situação em Angola se agravava constantemente e que, em pouco tempo, atingiria o ponto de irreversibilidade. Enunciou mesmo o mínimo de meios necessários para que tal fosse evitado. Cópias de todas estas mensagens foram enviadas ao Departamento de Defesa Nacional. Também delas foi dado conhecimento ao Presidente do Conselho de Ministros. No Departamento da Defesa Nacional, chegou a pensar-se em tentar forçar o Subsecretário de Estado da Aeronáutica a exonerar o Brigadeiro Pinto Resende do Comando da 2.ª Região Aérea, dado considerar-se, naquele Departamento, que o Brigadeiro era excessivamente pessimista e tratava de assuntos que lhe não diziam respeito.

O Ministro do Ultramar, ainda em Angola, verificou a gravidade da situação, em tudo concordando com o Comandante da 2.ª Região Aérea. Enviou para Lisboa telegramas alarmantes. Em face das informações do Comandante da 2.ª Região Aérea e do Ministro do Ultramar, o Presidente do Conselho de Ministros promoveu uma reunião, para a qual foram convocados, na ausência dos Ministros da Defesa Nacional, descansando no Algarve, e do Ultramar, os Subsecretários de Estado da Administração Ultramarina, Prof. Adriano Moreira, e do Exército, e os Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército. Nesta reunião, o Presidente do Conselho de Ministros deparou com a opinião obstinada, dos Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas e do Estado-Maior do Exército, de que a situação militar estava resolvida e de que apenas deveriam continuar a ter lugar operações de limpeza e de policiamento.

O Chefe do Estado-Maior da Força Aérea partiu para os Estados Unidos da América em visita oficial.

No aeroporto da Portela e quando o Subsecretário de Estado da Aeronáutica dele se despedia, tomou a iniciativa de aludir às divergências existentes entre o Ministro da Defesa Nacional e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo dito a este último: "V. Ex.ª é que tem razão, estou inteiramente a seu lado".

Constava que o Ministro da Defesa Nacional advogava a ideia de que, a fim de se captarem as boas graças dos Estados Unidos da América, o Governo deveria fazer uma declaração, prometendo a autodeterminação a prazo das Províncias Ultramarinas.




Constava, também, que o Ministro havia nesse sentido contactado as Autoridades Americanas, através da CIA (8).

Sabia que o Presidente do Conselho de Ministros tinha em preparação uma remodelação ministerial. Contudo, essa remodelação demorava, o que provocava um crescente mal-estar.


Dia 10 de Abril


No dia 10 de Abril de 1961, após o jantar, diversos militares, entre os quais o Brigadeiro Santos Costa, telefonaram ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, informando-o de que o Governador Militar de Lisboa, General Silva Domingues, tinha convocado os comandantes das unidades suas subordinadas e lhes tinha posto a hipótese do Prof. Oliveira Salazar ser exonerado compulsivamente das funções de Presidente de Conselho de Ministros, dado, sobretudo, a sua incapacidade para resolução do problema da África Portuguesa.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica telefonou ao Ministro do Exército, comunicando-lhe o que efectivamente se passava. Este Ministro, recém-chegado de Fátima, respondeu nada saber, mas prometeu pôr-se em contacto com o Governador de Lisboa. Cerca de uma hora depois, o Ministro do Exército telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe que havia falado com o Governador Militar de Lisboa e que este o informara de que realmente tinha convocado os comandantes das unidades suas subordinadas, embora em pequenos grupos, mas que apenas lhes tinha recomendado a maior coesão, dada a situação difícil que o País atravessava. O Ministro acentuou que assim o Governador Militar de Lisboa tinha agido dentro da sua competência e por forma acertada.

Pouco depois, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica voltou a receber telefonemas pelos quais era informado mais pormenorizada e alarmantemente do que se havia passado no Governo Militar de Lisboa, confirmando-se que tinha sido considerada a hipótese de se forçar a demissão do Prof. Oliveira Salazar.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica tentou telefonar novamente ao Ministro do Exército, mas este revelou-se incontactável.

Durante a noite, voltou a confirmar-se que as reuniões do Governo Militar de Lisboa não tinham sido tão inofensivas quanto o Ministro dissera ao Subsecretário.


Dia 11 de Abril


Na manhã do dia 11 de Abril de 1961, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica dirigiu-se ao Ministério do Exército, tendo-se reunido com o Ministro.

Teve lugar a seguinte conversa:

a. O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse ao Ministro do Exército que, apesar do que este lhe havia afirmado, sabia ter o Governador Militar de Lisboa tido, com os seus comandantes de unidade, conversações de carácter subversivo ou, pelo menos, para-subversivo.

O Ministro respondeu nada mais saber do que dissera na véspera, mas que voltaria a falar com o Governador Militar de Lisboa, que mandou convocar.

b. O Subsecretário insistiu com o Ministro no sentido de saber se alguma coisa mais existia além das conversações no Governo Militar de Lisboa, pois não acreditava que o Governador tivesse agido por sua exclusiva iniciativa.

O Ministro acabou por dizer que realmente o Ministro da Defesa Nacional se encontrava ora muito deprimido ora sobre-excitado e que ele, Ministro do Exército era uma das poucas pessoas capazes de o acalmar.

O Subsecretário perguntou ao que poderia conduzir tal excitação.

O Ministro respondeu que esperava que nada sucedesse, mas que o estado de espírito do Ministro da Defesa Nacional poderia conduzi-lo a tentar um golpe de força contra o Presidente do Conselho de Ministros.

e. O Subsecretário disse que não imaginara que tal possibilidade pudesse ter lugar, mas que, em face dela, se via obrigado a pôr mais algumas questões:

- No caso do Ministro da Defesa Nacional tentar o referido golpe de força, qual a atitude do Ministro do Exército?

O Ministro respondeu que, embora lhe custasse muito, pois tinha o maior respeito e amizade pelo Ministro da Defesa Nacional, não o poderia acompanhar.

- No caso do Ministro da Defesa Nacional tentar o golpe de força e, como muito bem, o Ministro do Exército não o acompanhava, qual a atitude do Exército?

O Ministro respondeu que esperava que o Exército lhe obedecesse mas que não podia assegurá-lo.

- Sendo assim, poderia admitir-se a eclosão de uma guerra civil, seguindo algumas unidades o Ministro da Defesa Nacional e outras o Ministro do Exército?

O Ministro respondeu que assim realmente poderia suceder.

d. O Subsecretário perguntou se o Ministro do Exército estava consciente das suas enormes responsabilidades. Se estava ciente que a mais pequena escaramuça em Lisboa teria em Angola projecção catastrófica, provocando uma diminuição drástica no moral dos poucos defensores e um grande impulso no terrorismo, factos que, quase certamente, conduziriam à perda daquela Província.

O Ministro respondeu que estava plenamente consciente das suas responsabilidades.

Chegou o Governador Militar de Lisboa e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica retirou-se antes deste entrar no gabinete do Ministro.

Durante toda a tarde de 11 de Abril, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica tentou comunicar telefonicamente com o Ministro do Exército, afim de conhecer o resultado da conversa havida com o Governador Militar de Lisboa.

O Ministro do Exército manteve-se, porém, de novo totalmente incomunicável.

No mesmo dia:

a. Após o almoço, o Prof. Costa Leite (Lumbralles) visitou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica em casa deste, tendo ambos analisado a situação.

b. Durante a tarde, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica recebeu a informação de que o Exército estava de prevenção ou vigilância e de que o ajudante de campo do Subsecretário de Estado do Exército tinha ido à Academia Militar onde tivera, com alguns oficiais, conversações análogas às havidas no Governo Militar de Lisboa.

c. Antes do jantar, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República, General Humberto Pais, visitou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica em casa deste, tendo ambos analisado a situação e sido considerado, pelo Subsecretário, a hipótese de, tal como o Exército, a Força Aérea entrar de prevenção ou vigilância.

d. Mais tarde, o Chefe de Estado, Almirante Thomaz, recebeu um pedido de audiência dos Ministros da Defesa Nacional e do Exército, a ter lugar após um desafio internacional de futebol militar, que se realizava no começo da noite. O Presidente da República marcou audiência para o dia seguinte, às 16 horas. Os dois Ministros insistiram, porém, de tal forma, que o Presidente acabou por aceder recebê-los por volta da meia-noite.

e. Após o jantar, o Presidente da República recebeu o Presidente do Conselho de Ministros em sua casa.

f. Pouco depois, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe, em nome do Chefe do Estado, que talvez fosse conveniente tomarem-se, na Força Aérea, algumas medidas de segurança.

g. O Subsecretário de Estado da Aeronáutica convocou, para sua casa, o General Mira Delgado, que substituía o General Albuquerque de Freitas, Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, ainda em missão oficial no estrangeiro, e os Generais da Força Aérea Francisco Chagas e Machado de Barros, expôs-lhes a situação e mandou que a Força Aérea entrasse de prevenção. A ordem foi prontamente executada.

h. O Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, que entretanto chegou a casa do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, apoiou fortemente as medidas de segurança tomadas.

Pouco depois da meia-noite, o Presidente da República recebeu os Ministros da Defesa Nacional e do Exército.

Seguidamente, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República informou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica do teor da conversa havida.

Em síntese:

a. O Ministro da Defesa Nacional advogou, durante cerca de 10 minutos, a necessidade, que dizia imposta pelo interesse nacional, particularmente no respeitante ao problema ultramarino, da exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros, e o Ministro do Exército glosou, durante mais de uma hora, as palavras do Ministro da Defesa Nacional.

b. O Presidente da República respondeu que, como era seu dever, ouvia sempre as opiniões dos portugueses responsáveis; que, desde logo, lhe não parecia ser solução adequada para os problemas nacionais a exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros; mas que iria pensar e que, oportunamente, daria a sua resposta definitiva.

c. Nesta conversa entre o Presidente da República e os Ministros da Defesa Nacional e do Exército, ocorreu ainda o seguinte:

- O Ministro da Defesa Nacional afirmou que, no relativo à exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros, tinha o apoio da grande maioria das Unidades do Exército.




- O Presidente da República respondeu que as suas informações eram diferentes e que, segundo elas, o número de Unidades referido era mínimo.

- O Ministro da Defesa Nacional perguntou onde tinha obtido o Presidente da República tais informações.

- O Presidente da República respondeu que se não sentia na obrigação de referir as fontes das suas informações até porque o Ministro da Defesa Nacional também o não fazia, mas poderia adiantar que uma de tais fontes era o Ministro do Exército, ali presente.

- Daqui resultou a discussão agreste entre o Ministro da Defesa Nacional e o Ministro do Exército, tendo o primeiro acusado este último de fornecer informações diferentes ao Presidente da República e a ele próprio.


Dia 12 de Abril


No dia 12 de Abril de 1961 e em consequência de convite anteriormente formulado, o Presidente da República almoçou com o Ministro e oficiais do Exército na Manutenção Militar.

O Ministro brindou com simpatia pelo Chefe do Estado.

Após o almoço, os Ministros da Defesa Nacional e do Exército receberam uma carta, em que o Presidente da República repudiava, por prejudicial ao interesse nacional, a exoneração do Prof. Oliveira Salazar de Presidente do Conselho de Ministros.

A meio da tarde, o Ministro da Defesa Nacional, por intermédio de um dos seus ajudantes de campo, convocou para o seu gabinete o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Este, imprevidentemente, compareceu no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional, onde também estava o Ministro do Exército.

Teve lugar a seguinte conversa, entre o Ministro da Defesa Nacional e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-se o Ministro do Exército mantido rigorosamente calado:

a. O Ministro perguntou ao Subsecretário se era verdade estar a Força Aérea de prevenção.

O Subsecretário respondeu afirmativamente.

b. O Ministro perguntou quem dera a ordem de prevenção.

O Subsecretário respondeu ter sido ele próprio, Subsecretário.

O Ministro disse que só ele, Ministro, tinha autoridade para o fazer e que, em consequência, o Subsecretário tinha exorbitado.

O Subsecretário respondeu considerar-se com autoridade para tomar na Força Aérea as medidas de segurança que entendesse, o que de resto tinha sucedido já diversas vezes.

O Ministro repetiu que só ele, Ministro, tinha tal autoridade.

O Subsecretário manteve a sua posição.

c. O Ministro perguntou por que estavam forças pára-quedistas em Lisboa.

O Subsecretário respondeu que a prevenção na Força Aérea abrangia o deslocamento de forças pára-quedistas para as suas unidades de Lisboa.

d. O Ministro perguntou por que tinha o Subsecretário mandado entrar a Força Aérea de prevenção.

O Subsecretário respondeu, que estando o Exército de prevenção ou vigilância, considerava que a Força Aérea devia estar em situação semelhante.

e. O Ministro perguntou quem informara o Subsecretário de que o Exército estava de prevenção ou vigilância.

O Subsecretário respondeu que tal era do conhecimento comum.

O Ministro insistiu, repetindo a pergunta.

O Subsecretário respondeu que sabia ser isso verdade.

O Ministro voltou a insistir.

O Subsecretário deu a mesma resposta.

f. O Ministro pediu ao Subsecretário para sair e, estando este já de pé, descontrolou-se, tendo havido dura troca de palavras.

g. O Ministro disse ainda, em voz bastante alta, que ia pedir uma audiência imediata ao Presidente da República.




O Subsecretário de Estado da Aeronáutica deixou o gabinete do Ministro da Defesa Nacional e seguiu para a Presidência da República, onde relatou ao Chefe do Estado o que acabava de passar-se (9).

Pouco depois, chegou o pedido telefónico de audiência imediata a conceder pelo Chefe de Estado ao Ministro da Defesa Nacional. O Presidente recusou-se a conceber tal audiência.

A sensação, de que um golpe de força contra o Presidente do Conselho de Ministros, com as suas gravíssimas consequências em Angola, chefiado pelo Ministro da Defesa Nacional, mas tendo como principal promotor o Subsecretário do Exército, estava iminente, tornava-se cada vez mais nítida.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica pôs-se em contacto com o Ministro do Interior, Coronel Arnaldo Schulz, que, apesar de solicitado pelo Ministro do Exército, se mostrou firmemente ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da sua política ultramarina. As forças de segurança mantinham a sua fidelidade.

Diligências feitas, nas unidades do Governo Militar de Lisboa, mostraram ser limitado o apoio ao Ministro da Defesa Nacional.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica manteve frequente contacto com o Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, Adriano Moreira, que sempre o apoiou e se manteve decididamente ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da sua política ultramarina.

O Embaixador de Portugal em Madrid, General da Força Aérea Venâncio Deslandes, que entretanto se deslocara a Lisboa, procurou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-lhe expresso o seu apoio e mostrado estar, também decididamente, ao lado do Prof. Oliveira Salazar e da mesma política ultramarina.

Em conversa havida em casa do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, entre este, o Prof. Costa Leite (Lumbralles) e o Secretário de Estado do Comércio, Dr. Corrêa de Oliveira, admitiu-se a hipótese de, na remodelação ministerial em preparação, o Prof. Oliveira Salazar substituir o General Botelho Moniz no cargo de Ministro da Defesa Nacional. Mas a este respeito o Subsecretário de Estado da Aeronáutica manteve-se reservado.

Após o jantar, o Prof. Costa Leite telefonou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, pedindo-lhe a sua opinião sobre a designação do Brigadeiro Mário Silva, Tenente-Coronel Jaime da Fonseca e General Gomes de Araújo para o desempenho, respectivamente, dos cargos de Ministro do Exército, Subsecretário de Estado do Exército e do Estado-Maior General das Forças Armadas.

O Subsecretário respondeu nada poder dizer sobre as pessoas do Brigadeiro Mário Silva e do Tenente-Coronel Jaime da Fonseca, dado não as conhecer suficientemente, mas que, no que respeitava ao General Gomes de Araújo, considerava não poder encontrar-se melhor solução (10).

Nessa mesma noite, o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha de Mendonça, recém-chegado do estrangeiro, foi recebido pelo Presidente do Conselho de Ministros que o pôs ao corrente da situação que se vivia.

O Ministro da Marinha seguidamente foi buscar o Chefe do Estado-Maior da Armada a casa e ordenou que a Armada entrasse de prevenção.

Cerca da meia-noite, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica foi informado de que o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, que só deveria regressar dos Estados Unidos da América dentro de uma semana, chegava a Lisboa na madrugada seguinte, 13 de Abril.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica pediu ao General Mira Delgado que o fosse esperar e lhe dissesse que tinha urgência em lhe falar.








Dia 13 de Abril


O General Albuquerque de Freitas, que chegou ao aeroporto de Lisboa por volta das 7 horas da manhã, foi desagradável para os Generais Mira Delgado e Francisco Chagas que o esperavam, e, em lugar de se apresentar ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dirigiu-se para a residência do Ministro da Defesa Nacional, acompanhado de um ajudante de campo deste que também o esperava.

O General Albuquerque de Freitas só às 10 horas se apresentou ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Interrogado por este sobre a sua atitude, o General Albuquerque de Freitas disse o seguinte:

a. Tinha sido mandado regressar a Lisboa por telegrama do Ministro da Defesa Nacional.

b. Acabava de estar com este Ministro.

c. Às 17 horas, teria lugar uma reunião no Departamento da Defesa Nacional ou em casa do respectivo Ministro, à qual compareceriam, além deste e do Ministro e Subsecretário de Estado do Exército, os Chefes dos Estados-Maiores dos três ramos das Forças Armadas e alguns outros chefes militares.

d. Nesta reunião, se ponderaria se o Prof. Oliveira Salazar deveria ou não ser demitido e, no caso de unanimemente se decidir pela demissão, seria esta imposta ao Presidente da República que a aceitaria ou seria, também, afastado do seu cargo.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica chamou ao seu gabinete, instalado no Aeródromo-Base n.º 1, o Chefe da Casa Militar do Presidente da República e o Dr. Sollari Allegro, tendo-lhes exposto a situação e pedido que transmitissem urgentemente aos Presidentes da República e do Conselho de Ministros que se tornava imperioso que, no começo da tarde:

a. Fossem exonerados os General Botelho Moniz, Coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes e General Beleza Ferraz dos cargos de Ministro da Defesa Nacional e do Exército, Subsecretário de Estado do Exército e Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.

b. Fossem designados para os mesmos cargos outras entidades.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse, ainda, que, caso tal não tivesse lugar, havia a maior probabilidade de, após as 17 horas, estarem presos os Presidentes da República e do Conselho de Ministros ou se estar em guerra civil.

O Subsecretário de Estado da Aeronáutica chamou, igualmente, ao seu gabinete o General Gomes de Araújo, tendo-lhe do mesmo modo exposto a situação e pedido para, logo que designado Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, intervir junto dos chefes militares do Exército no sentido de evitar que estes comparecessem na reunião das 17 horas com o General Botelho Moniz que, então, já não deveria ser Ministro da Defesa Nacional.

Pouco depois das 15 horas, a Emissora Nacional anunciou a exoneração dos General Botelho Moniz, Coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes e General Beleza Ferraz dos seus cargos e a nomeação para os mesmos cargos dos Prof. Oliveira Salazar, Brigadeiro Mário Silva, Tenente-Coronel Jaime da Fonseca e General Gomes de Araújo.

O General Gomes de Araújo logo actuou junto dos chefes militares do Exército, tendo, em consequência, a maioria destes desistido de comparecer na reunião das 17 horas.

O Ministro da Marinha proibiu os chefes militares da Armada de comparecerem na mesma reunião.


O Subsecretário de Estado da Aeronáutica disse ao General Albuquerque de Freitas, único chefe militar da Força Aérea, nesta em serviço, que se prestava a participar na reunião em causa, que lhe permitia a sua comparência na reunião, mas que desta nada poderia resultar, dado já não terem qualquer autoridade as pessoas que a ela presidiam. O General Albuquerque de Freitas mostrou-se muito surpreendido com a remodelação ministerial verificada.

A reunião das 17 horas realizou-se, não tendo a ela comparecido a maioria dos chefes militares do Exército, nenhum chefe militar da Armada e, evidentemente, nenhum chefe militar da Força Aérea, com excepção do General Albuquerque de Freitas. Compareceu, porém, o Marechal Craveiro Lopes.

O General Albuquerque de Freitas, imediatamente após o termo da reunião, entregou directamente no gabinete no novo Ministro da Defesa Nacional um requerimento em que pedia a passagem à situação de reserva.

Em seguida, procurou o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, tendo-o informado daquele requerimento e relatado o seguinte:

a. Na reunião das 17 horas, o General Botelho Moniz esperava pelos chefes militares convocados, quando o General Albuquerque de Freitas chegou.

b. Este disse que tinha a informação de que os principais chefes do Exército e todos os da Armada não compareceriam à reunião e pediu ao General Botelho Moniz para se certificar do facto.

c. Um dos ajudantes de campo do General Botelho Moniz confirmou telefonicamente que assim sucedia.

d. Então, o General Albuquerque de Freitas declarou que nenhuma decisão relativa a uma acção de força poderia ser tomada, dado não existir unanimidade nos chefes militares.

e. Após terem falado várias outras pessoas, a opinião do General Albuquerque de Freitas prevaleceu, tendo a reunião terminado.


Estava abortado o golpe de força


O Presidente do Conselho de Ministros e novo Ministro da Defesa Nacional telefonou, pouco depois das 18 horas, ao Subsecretário de Estado da Aeronáutica, dizendo-lhe que tinha em seu poder um requerimento de passagem à situação de reserva do General Albuquerque de Freitas e que sobre o assunto gostava de pessoalmente trocar impressões.

O Subsecretário aproveitou o telefonema para lembrar a conveniência do Presidente fazer, ainda nessa tarde ou noite, uma declaração ao País relativa aos acontecimentos verificados.

O Presidente mostrou dúvidas sobre tal conveniência pois considerava que apenas se tinha processado uma substituição de rotina de alguns membros do Governo.

Às 19 horas, o Presidente do Conselho de Ministros recebeu o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

Foi analisado o caso do General Albuquerque de Freitas, tendo-se concluído do acerto de deferir o seu requerimento de passagem à situação de reserva (11).

Relativamente aos acontecimentos que tiveram lugar, o Presidente apenas considerou que o Subsecretário tinha aspecto de cansado. Este disse que tinha dormido pouco nas noites anteriores, ao que Salazar respondeu: É natural, os senhores andam para aí a conspirar.

Momentos depois, o Presidente, que acabara por reconhecer a necessidade da declaração referida, dirigiu ao País uma curta mas expressiva mensagem.

Durante toda a crise, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica não teve com o Presidente do Conselho de Ministros contacto algum.

Terminada a crise, mas em relação a ela, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica apenas teve com o Presidente do Conselho de Ministros o contacto telefónico e o contacto pessoal atrás citados.

Após ter ouvido a mensagem do Presidente do Conselho de Ministros, o Subsecretário de Estado da Aeronáutica regressou a sua casa, onde encontrou o recém-nomeado Ministro do Ultramar, Prof. Adriano Moreira, eufórico perante o facto de ter sido abortada a acção de força que tinha estado iminente.

E, logo em seguida, o novo Ministro afirmou... mas meu caro Kaúlza, a sua carreira política vai terminar. O Prof. Oliveira Salazar não lhe poderá perdoar o serviço grande de mais que acaba de lhe prestar (in «Guerra e Política. Em Nome da Verdade. Os Anos Decisivos», Edições Referendo, 1987, pp. 199-215).



Ao centro, da esquerda para a direita: Adriano Moreira, Oliveira Salazar e Américo Thomaz.



Notas: 

(1) Escrito em Dezembro de 1984.

(2) Acontecimentos que constituíram o início de facto da guerra subversiva movida contra Portugal em África.

(3) Alínea A. do capítulo I

(4) Independentemente de todo o resto, a atitude de Botelho Moniz implicava uma sua demissão prévia do Governo.

(5) Por uma questão ética, Kaúlza de Arriaga não quis pronunciar-se, em termos de iniciativa e antecipadamente, sobre os nomes destes futuros Ministros que, assim, foram efectivamente designados.

(6) Apontamento preparado em Maio de 1961 e revisto em Dezembro de 1984.

(7) Tratando-se de uma reunião de teor conspiratório, ou muito próximo disso, como depois se soube, era natural que o Ministro da Defesa Nacional não quisesse que a ela assistissem o Ministro da Marinha e o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

(8) Hoje, julga saber-se que realmente os agentes de então, da CIA, operando em Portugal, ansiavam pelo sucesso da tentativa de golpe de Estado, que ficou conhecida pelo "13 de Abril". E parece que, frustrados com o abortar desse golpe, procuraram desacreditar o Subsecretário de Estado da Aeronáutica, um dos principais responsáveis por tal desfecho, inclusive reportando para Washington que o Subsecretário, em viagem subsequente a Angola, fizera inúmeras e imaginadas "asneiras", indispondo contra ele especialmente o Exército. Isto apesar das excelentes relações que, na época, o mesmo Subsecretário mantinha com a Embaixada dos Estados Unidos da América em Lisboa.

(9) Quando o Subsecretário de Estado da Aeronáutica deixou o gabinete do Ministro da Defesa Nacional, na Cova da Moura, e, passando pela antecâmara daquele gabinete, deparou com sete ou oito oficiais - chefe de gabinete, ajudantes de campo e adjuntos do Ministro da Defesa Nacional, etc. - alinhados com propósitos que era lícito admitir não fossem inteiramente pacíficos, o Subsecretário, com serenidade, sem a menor pressa, estendeu a mão a cada um de tais oficiais, dirigiu a alguns umas poucas palavras e saiu com aparente normalidade da antecâmara, tomando o automóvel e dirigindo-se para a Presidência da República. Já, então, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea em exercício, General Mira Delgado, tomava medidas cautelares, com base em tropas pára-quedistas, a fim de proteger o Subsecretário de Estado da Aeronáutica.

(10) Esta opinião, sobre a designação do General Gomes de Araújo para Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, foi um erro do Subsecretário de Estado da Aeronáutica, como mais tarde se verificou. Alínea J. do presente capítulo.

(11) Os Generais Botelho Moniz e Beleza Ferraz, também, logo solicitaram a sua passagem àquela situação de reserva, o que se efectivou. Mas os Coronéis Almeida Fernandes e Costa Gomes foram mantidos no activo, facto que, em relação ao último, constituiu erro enorme com futuras funestas consequências para o País. Alínea J do Presente capítulo.


Costa Gomes na Organização das Nações Unidas (Outubro de 1974).











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